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Renato Janine Ribeiro http://www.renatojanine.pro.br/filopol/hobbes.

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Ao leitor sem
medo Ao leitor sem medo
Hobbes a Hobbes escrevendo contra o seu tempo
escrevendo
contra o seu a
tempo Comecemos pelas imagens feitas. Existiu na Inglaterra um grande
Estes são medo de 1588: a nação protestante aguardando a invasão
trechos do
Thomas
primeiro
espanhola, as povoações ribeirinhas espreitando o desembarque da
Hobbes o la
paz contra el capítulo, "O armada que se temia invencível. Não faltaram alarmes falsos:
clero gêmeo do especialmente na finisterra inglesa, a Cornualha; num desses
medo", de
minha tese de pânicos, nasceu Thomas Hobbes, de parto prematuro — "minha
État de nature doutoramento mãe pariu gêmeos, eu e o medo", como recordará, autobiógrafo, daí
et relations sobre o filósofo
internationales a noventa anos.
inglês Thomas
dans la pensée Hobbes,
de Thomas
Hobbes
defendida em O medo, gêmeo de um pensador, marcando-o desde o nascimento,
1984 e publicada
no mesmo ano
enlaçado com ele feito herança ou gene, como seu direito ou
A Nova Política pela editora natureza; a vida e obra de Hobbes são pontuadas por esta paixão.
Brasiliense. Com orgulho, na defesa de sua reputação contra o dr. Wallis, o
Depois de
Pensando a
esgotada por filósofo revela que em 1640, ao ser instalado um Parlamento hostil
Nova Política
vários anos, foi ao governo autoritário do rei, foi ele "o primeiro de todos os que
reimpressa em
1999, numa
fugiram"; e, onze anos depois, receando que o Leviathan que
A democracia
direta edição acrescida publicara Ihe valesse a morte nas mãos dos realistas com ele
de apêndices, exilados na França, "vieram[-lhe] à mente Dorislaus e Ascham" e
pela Editora da
Pai e filhos
UFMG. retornou à Inglaterra. Mais tarde, escreveu que nenhuma lei
vigente permitia castigar hereges: temia talvez que os bispos que
Democracia
versus
proibiam o seu livro o mandassem à fogueira, ou pelo menos o
república: a tentassem punir por essas teses em religião.
questão do
desejo nas
lutas sociais A imagem do filósofo medroso teve, tem, uma tradição. Thomas de
Quincey, no seu Do Assassinato Considerado como uma das
As duas éticas Belas-Artes (capítulo de 1827), zombeteiramente refaz a história
ou A ação
possível da filosofia moderna seguindo o tema, já por si hobbesiano, da
morte violenta: foram assassinados Espinosa e Malebranche, foi
O palco do assassino Berkeley, ameaçado de morte Des Cartes, e Locke era
poder desinteressante a ponto de ninguém cogitar matá-lo; classifica
como "medroso" só a Hobbes, tantas associações cometia sua
Substituir a
mimese pela imaginação fértil: certa vez acabava de banhar-se e aguardava o
criaçcao, na jantar, quando ouviu uma gritaria e — recordando que "Sextus
política
Roscius fora assassinado depois de cear perto dos Balneae
Idéias com
Palatinae" — "perturbou-se".
deságio
***
O que forma o
elo social?
Toda leitura é recorte; talvez a qualidade, ou simplesmente a data,
de uma obra esteja justamente em não ser possível mais que
A economia
como mistério recortá-la, em não se poder abrangê-la na integridade — que nem
sabemos se um dia ela teve —; como propõe Borges na "Busca de
Um pensador Averróis". Se uma aventura estruturalista, a de Guéroult, tentou
da ética
produzir leituras definitivas e intrínsecas das obras filosóficas, a
que preço foi: destruir suas condições de produção, a perversão de
sua leitura, as tensões do texto e da história, e recalcar imagens e
figuras sob o conceito. Contudo, isso posto, vale notar que as
imagens mais correntes acerca de Hobbes resultam da eleição de
alguns temas-chave — o medo, a guerra de todos, o Estado
todo-poderoso — à custa do obscurecimento de outros — a
esperança, o poder da lei: humoristas, teólogos, panfletários fazem,
de Hobbes, uma charge. Será reação irritada às teses sobre o
homem e a política — ou será, também, sinal da força e sedução
das imagens que ele propõe?

1 de 2 04/05/2013 18:34
Renato Janine Ribeiro http://www.renatojanine.pro.br/filopol/hobbes.html

Em nossos dias, algumas frases de Barthes confessam-no seduzido


por Hobbes: teria sido ele o único dos filósofos a levar em conta o
medo, este desdenhado de toda a filosofia, e assim fornece ao
Prazer do Texto saborosa epígrafe: "O medo foi a única paixão da
minha vida." Inversão de valores: não mais o anedotário do filósofo
fujão, terrorista, escandaloso; mas alicerçar o seu pensamento
numa paixão, a mais vergonhosa porém — a rigor — a que melhor
expressa o pathos, a passividade humana: a paixão por excelência,
o medo. Por que não entendermos as filosofias como obras de arte,
cada uma delas prismando o mundo a partir de uma faceta, que
pode ser uma paixão, um sentimento, uma prática? Dos Caracteres
de algum moralista do século XVII extrairíamos os pensamentos
possíveis, ou os enraizaríamos naqueles: sonho que não está
remoto de alguma frase de Lévi-Strauss nos Tristes Trópicos.

***

Mas esta leitura, enquanto faz coincidirem o medo e a filosofia


hobbesiana, assenta num recorte excessivo. Na introdução ao
Leviathan, o apelo ao leitor cita duas paixões: "esperar, temer". Por
que seria o medo déspota entre as paixões? Retornemos à
autobiografia: o que nos faz supor que o irmão gêmeo do medo seja
o medo? Irmandade não é igualdade, nem são univitelinos todos os
gêmeos. Escrevendo em 1672 a sua autobiografia, Hobbes
certamente conhecia um dos poemas de John Donne, dedicado "ao
sr. T. W.": na bela tradução de Eugênio Gardinalli Filho:

De esp'rança outra vez prenhe e seu par


gêmeo, o medo,
Muito indaguei de ti, como e onde estavas,
e do
Meu mesmo anseio de sabê-lo a que assim
cedo

em que o poeta laureado retoma velho topos da cultura clássica, de


que também se nutriu o filósofo, a oposição-proximidade de medo e
esperança. Nascer gêmeo do medo é dizer-se portador da
esperança. Discrição do filósofo, que nomeia o irmão e cala o
próprio nome; louvor dos discípulos que, para escândalo de
Anthony à Wood, entusiasmados com o nascimento de Hobbes
numa Sexta-feira santa, proclamavam que, "assim como Cristo
nosso Salvador deixou o mundo naquele dia para salvar os homens
do mundo, também outro salvador veio ao mundo naquele dia para
salvá-los". A esperança hobbesiana, na voz de alguns "hobbistas",
facilmente se converte em promessa de salvação, messiânica. E, na
obra do filósofo, é constante a junção de esperança e medo: assim,
listando as paixões que nos inclinam à paz, ao medo da morte logo
acrescenta ele o "desejo daquelas coisas que são necessárias para
uma vida cômoda; e uma esperança de as conseguirem através da
sua [= dos homens] indústria" (Leviathan, XIII, p.188). Se o medo
induz o homem a afastar-se da guerra natural, a esperança posta
no trabalho leva-o a buscar o Estado que Ihe garanta vida e
conforto. Somam-se a negação da guerra e a afirmação da paz.
Também, no capítulo VI do Leviathan, o medo adiciona-se à
esperança no processo da deliberação: esta é "a soma completa de
desejos, aversões, esperanças e medos, continuada até que a coisa
se faça ou então se pense impossível" (p.127). É a contradição das
paixões que move o homem, que o faz viver; limitado a uma só,
talvez ele desconhecesse o movimento; ao desesperado, o mero
medo mata. Pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões:
medo e esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão
e atração. Mas não é possível escutar a filosofia hobbesiana pela
nota só do medo, que não existe sem o contraponto da esperança.
Sem esta, como entenderíamos o elevado conceito de Hobbes
acerca de sua obra ("a filosofia política não é mais antiga que meu
livro Do Cidadão" — diz nos English Works, v.I, p.ix), a sua
constante promessa de paz, vida e progresso aos homens, a
concepção talvez "messiânica" que tem do seu filosofar?

2 de 2 04/05/2013 18:34

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