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Anton Tchekhov O Tio Vania
Anton Tchekhov O Tio Vania
O TIO VÂNIA
CENAS DA VIDA NO CAMPO
TEXTO CÉNICO
TRADUÇÃO DE
ANTÓNIO PESCADA
TNSJ/ASSéDIO/ENSEMBLE
2005
2
Personagens
Primeiro Acto
Jardim. Vê-se uma parte da casa com terraço. Na alameda, sob os velhos
álamos, há uma mesa posta para o chá. Bancos, cadeiras; sobre um dos
bancos está pousada uma guitarra. Perto da mesa há um baloiço. Passa
das duas horas da tarde. O céu está nublado. Marina (uma velha balofa e
pesadona, sentada junto do samovar, faz croché) e Astrov (caminha ao pé
dela)
Pausa
ASTROV: Pois é... Em dez anos tornei-me outro homem. E qual é a razão?
Trabalhei de mais, ama. Sempre a pé de manhã à noite, não tenho sossego.
E à noite está uma pessoa debaixo do cobertor com receio de que o venham
chamar para um doente. Em todo este tempo, desde que nos conhecemos,
não tive um único dia livre. Como não envelhecer? E a vida é em si mesma
aborrecida, estúpida, suja... Esta vida é opressiva. À nossa volta só vemos
tipos esquisitos, só tipos esquisitos por todo o lado; um homem vive com
eles dois ou três anos e pouco a pouco, sem dar por isso, torna-se também
esquisito. Destino fatal. (torce o longo bigode.) Ih, que grande bigode me
cresceu... Bigode estúpido. Tornei-me esquisito, ama... Estúpido ainda não
estou, graças a Deus, o cérebro continua no seu lugar, mas os sentidos estão
como que embotados. Não quero nada, não preciso de nada, não gosto de
ninguém... Se calhar só gosto de ti. (Dá-lhe um beijo na cabeça.) Em
criança tinha uma ama assim, como tu.
MARINA: Não queres comer?
ASTROV: Não. Há duas semanas, durante a Quaresma, fui a Málitskoie
por causa de uma epidemia... Tifo... As pessoas estão todas doentes nas
isbas... Lama, fedor, fumo, os bezerros pelo chão junto com os doentes...
Os porcos também por ali... Andei o dia inteiro ocupado, sem me sentar,
sem comer nada, e chego a casa não me dão descanso — trouxeram-me um
agulheiro do caminho de ferro; deitei-o na marquesa para o operar, e ele vai
e morre-me com o clorofórmio. E quando não deviam, os meus sentidos
despertaram e a consciência começou a apertar-me, como se eu o tivesse
morto de propósito... Sentei-me, fechei os olhos — e fiquei a pensar:
aqueles que viverem daqui por cem ou duzentos anos e para quem abrimos
hoje o caminho, irão lembrar-se de nós com uma boa palavra? Não
lembram, ama!
MARINA: As pessoas não se lembram, mas Deus lembra-se.
Entra Voinítski.
Pausa.
Sim...
ASTROV: Dormiste bem?
VOINÍTSKI: Dormi... muito. (bocejando) Desde que o professor vive aqui
com a mulher, a vida saiu dos eixos... Durmo fora de horas, ao almoço e ao
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jantar como toda a espécie de mistelas, bebo vinho... tudo isto faz mal à
saúde! Dantes não tinha um minuto livre, eu e a Sónia trabalhávamos, e
trabalhávamos bem, e agora só a Sónia trabalha, e eu durmo, como, bebo...
Não está certo!
MARINA (abanando a cabeça): Que hábitos! O professor levanta-se ao
meio-dia e o samovar está a ferver desde manhã, à espera dele. Quando eles
não estavam cá almoçávamos sempre à uma hora, como as pessoas fazem
em todo o lado, e com eles é depois das seis. À noite o professor lê e
escreve, e de repente às duas horas toca a campainha... Que há, senhor?
Chá! Por causa dele é preciso acordar o cozinheiro, acender o samovar...
Que hábitos!
ASTROV: E ainda vão ficar aqui muito tempo?
VOINÍTSKI (assobiando): Cem anos. O professor decidiu instalar-se aqui.
MARINA: Ainda agora. Há já duas horas que o samovar está na mesa e
eles foram passear.
VOINÍTSKI: Lá vêm, lá vêm... Não te preocupes.
TELÉGUIN: Desculpe... Não é Ivan Ivánovitch, mas Iliá Ilitch... Iliá Ilitch
Teléguin, ou, como alguns me chamam por causa da minha cara bexigosa,
Baunilha. Em tempos baptizei Sónia, e sua excelência o seu marido
conhece-me muito bem. Agora vivo em vossa casa, nesta propriedade... Se
teve a bondade de reparar, eu almoço todos os dias convosco.
SÓNIA: Iliá Ilitch é nosso auxiliar, o nosso braço direito.
(Carinhosamente) Vá lá, padrinho, eu sirvo-lhe mais um pouco.
MARIA VASSÍLIEVNA: Ah!
SÓNIA: O que foi, avó?
MARIA VASSÍLIEVNA: Esqueci-me de dizer ao Aleksandr... perdi a
memória... hoje recebi uma carta de Khárkov, de Pável Alekséievitch...
Enviou-me a sua nova brochura...
ASTROV: É interessante?
MARIA VASSÍLIEVNA: É interessante, mas um tanto estranha. Refuta
aquilo que ele próprio defendia há sete anos. Isso é horrível!
VOINÍTSKI: Não é nada horrível. Beba o chá, maman.
MARIA VASSÍLIEVNA: Mas eu quero falar!
VOINÍTSKI: Mas há já cinquenta anos que nós falamos, falamos e lemos
brochuras. Já era tempo de acabar.
MARIA VASSÍLIEVNA: Tu, não sei porquê, não gostas de me ouvir falar.
Desculpa, Jean, mas neste último ano mudaste tanto que eu já nem te
conheço. Eras um homem com determinadas convicções, uma
personalidade luminosa...
VOINÍTSKI: Oh, sim! Era uma personalidade luminosa que não iluminava
ninguém…
Pausa.
Pausa.
ELENA ANDRÉIEVNA: Que belo tempo que está hoje... Não faz calor...
Pausa.
EMPREGADO: O senhor doutor está cá? (Para Astrov). Por favor, Mikhail
Lvóvitch, estão à sua procura.
ASTROV: De onde?
EMPREGADO: Da fábrica.
ASTROV (com enfado): Muito obrigado. Pois quê, tenho der ir... (Procura
o boné com o olhar.) É uma lástima, diabos me levem...
SÓNIA: Que desagradável, realmente... Depois da fábrica venha cá jantar.
ASTROV: Não, já será tarde. Onde é que... Para onde é que... (Para o
Empregado.) Sabe que mais, meu caro, traga-me cá um copo de vodca,
pensando bem. (O empregado sai.) Onde é que... Para onde... (Acha o
boné.) Numa das peças de Ostrovski há um homem com um grande bigode
e pequenas capacidades... Assim sou eu. Bem, os meus respeitos,
senhores... (Para Elena Andréievna.) Se alguma vez passar pela minha
casa, por exemplo com Sofia Aleksándrovna, terei muito prazer. A minha
propriedade é pequena, apenas trinta hectares, mas se lhe interessa tenho
um excelente pomar e um viveiro como não se encontra em mil
quilómetros em redor. Ao meu lado há um bosque do Estado. O intendente
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florestal é velho, está sempre doente, de modo que na realidade sou eu que
dirijo todos os assuntos.
ELENA ANDRÉIEVNA: Já me disseram que o senhor gosta muito da
floresta. É claro que isso pode ser muito útil, mas não perturba a sua
vocação principal? Afinal o senhor é médico.
ASTROV: Só Deus sabe qual é a nossa verdadeira vocação.
ELENA ANDRÉIEVNA: E isso é interessante?
ASTROV: Sim, é um assunto interessante.
VOINÍTSKI: (com ironia): Muito!
ELENA ANDRÉIEVNA (Para Astrov): O senhor ainda é um homem
novo, pelo aspecto... bem, pode ter trinta e seis, trinta e sete anos... e
certamente não é assim tão interessante como diz. É só floresta e mais
floresta. Acho isso monótono.
SÓNIA: Não, é extremamente interessante. Mikhail Lvóvitch planta todos
os anos novos bosques e já lhe enviaram uma medalha de bronze e um
diploma. Ele procura que não destruam os bosques antigos. Se o escutar,
acabará por concordar inteiramente com ele. Diz que as florestas
embelezam a terra, que ensinam o homem a compreender o belo e lhe
incutem um estado de espírito majestoso. As florestas amenizam o clima.
Nos países de clima ameno gastam-se menos forças na luta com a natureza
e por isso o homem é mais brando e mais terno; as pessoas são bonitas,
flexíveis, facilmente estimuláveis, a sua fala é elegante, os movimentos
graciosos. Entre eles desenvolvem-se as ciências e as artes, a sua filosofia
não é lúgubre, as relações com a mulher cheias de elegante nobreza...
VOINÍTSKI (rindo-se): Bravo, bravo!... Tudo isso é muito bonito, mas não
é convincente. Portanto (voltando-se para Astrov) meu amigo, deixa-me
continuar a aquecer o forno com lenha e a construir os palheiros com
madeira.
ASTROV: Podes aquecer o forno com turfa e construir os palheiros com
pedra. Bem, admito que se cortem as florestas segundo as necessidades,
mas para quê exterminá-las? As florestas russas tremem debaixo do
machado, destroem-se milhões de árvores, devastam-se os ambientes de
animais e pássaros, os rios baixam e secam, desaparecem
irremediavelmente paisagens maravilhosas. E tudo porque o homem,
preguiçoso, não tem senso bastante para se dar ao trabalho de extrair o
combustível. (Para Elena Andréievna.) A senhora não acha? É preciso ser-
se um bárbaro insensato para queimar no fogão esta beleza, destruir aquilo
que não somos capazes de criar. O homem é dotado de inteligência e força
criadora para multiplicar aquilo que lhe foi dado, mas até agora não criou,
apenas destruiu. As florestas são cada vez menos, os rios secam, a caça
mudou-se, o clima deteriora-se e a cada dia a terra fica mais pobre e mais
feia. (Para Voinítski.) Tu olhas para mim com ironia e achas que tudo isto
que eu digo não é grave, e... e talvez seja mesmo uma extravagância. Mas
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quando passo junto aos bosques dos camponeses, que eu salvei do abate, ou
quando oiço o rumorejar do meu jovem bosque, plantado pelas minhas
mãos, tenho consciência de que o clima está também um pouco nas minhas
mãos e que se daqui por mil anos o homem for feliz isso será também um
pouco por minha causa. Quando planto uma bétula e depois a vejo verdejar
e oscilar ao vento, a minha alma enche-se de orgulho, e eu... (Ao ver o
Empregado, que lhe trouxe um copo de vodca numa bandeja.) Mas...
(bebe) tenho de ir. Tudo isto é provavelmente uma extravagância, no fim
de contas. Os meus respeitos! (Caminha para a casa.)
SÓNIA (toma-o pelo braço e vai com ele). Quando é que volta a visitar-
nos?
ASTROV: Não sei...
SÓNIA: Daqui por um mês, novamente?...
Pausa.
eu não falei com ele como deve ser, não lhe dei atenção. Ele ficou a pensar
que eu sou má. Provavelmente, Ivan Petróvitch, nós os dois somos tão
amigos porque ambos somos maçadores, enfadonhos! Maçadores! Não me
olhe assim, eu não gosto disso.
VOINÍTSKI: Como posso eu olhá-la de outro modo, se a amo? Você é a
minha felicidade, a minha vida, a minha juventude! Sei que as minhas
hipóteses de reciprocidade são ínfimas, iguais a zero; mas eu não preciso de
nada, deixe-me apenas olhar para si, ouvir a sua voz...
ELENA ANDRÉIEVNA: Fale baixo, podem ouvi-lo!
Pano
Segundo Acto
Pausa.
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Entra Sónia.
Um relâmpago
Pausa.
Os velhos são como as crianças, querem que tenham pena deles. Mas dos
velhos ninguém tem pena. (Beija Serebriakov no ombro.) Vamos lá,
senhor, para a cama... Anda, meu querido... Eu arranjo-te um chá de tília,
aqueço-te os pés... Rezo a Deus por ti...
SEREBRIAKOV (enternecido): Vamos, Marina.
MARINA: Também as minhas pernas me doem tanto, mas tanto! (Condu-
lo juntamente com Sónia). Em tempos, Vera Petrovna toda se consumia,
sempre a chorar... Tu, Sóniuchka, nesse tempo eras pequenina, tolinha...
Anda, anda, paizinho...
duas semanas que não me fala; você odeia o meu marido e despreza
abertamente a sua mãe; eu ando irritada e já hoje chorei vinte vezes...
Anda tudo mal nesta casa.
VOINÍTSKI: Deixemos a filosofia!
ELENA ANDRÉIEVNA: Você, Ivan Petróvitch, é instruído e inteligente,
acho que devia compreender que o mundo se há-de perder não por causa
dos bandidos, não por causa dos incêndios, mas por causa do ódio, da
hostilidade, por causa de todas essas desavenças mesquinhas... A sua acção
não devia ser rezingar, mas reconciliar toda a gente.
VOINÍTSKI: Primeiro reconcilie-me comigo mesmo! Minha querida...
(Agarra a mão dela.)
ELENA ANFRÉIEVNA: Deixe-me! (Retira a mão.) Vá-se embora!
VOINÍTSKI: Daqui a pouco a chuva passa e tudo na natureza reviverá e
respirará facilmente. Só a mim a tempestade não me revigora. De dia e de
noite, como um duende, sufoca-me a ideia de que a minha vida está perdida
para sempre. Não tenho passado, foi consumido em bagatelas e o presente é
horrível pelo seu absurdo. Aqui tem a minha vida e o meu amor: que hei-de
fazer deles, que hei-de fazer com eles? O meu sentimento definha em vão,
como um raio de sol caído num buraco, e eu próprio definho.
ELENA ANDRÉIEVNA: Quando você me fala do seu amor, parece-me
que embruteço e não sei o que dizer. Desculpe, não lhe posso dizer nada.
(Vai sair.) Boa noite.
VOINÍTSKI (barrando-lhe o caminho): E se soubesse como eu sofro à
ideia de que aqui ao meu lado, nesta casa, uma outra vida definha — a sua!
O que é que espera? Qual é a maldita filosofia que a estorva? Tem de
compreender, tem de compreender...
ELENA ANSDRÉIEVNA (olha-o fixamente): Ivan Petróvitch, você está
bêbedo!
VOINÍTSKI: Pode ser, pode ser...
ELENA ANDRÉIEVNA: Onde está o doutor?
VOINÍTSKI: Está ali... dorme no meu quarto. Pode ser, pode ser... Tudo
pode ser!
ELENA ANDÉIEVNA: Hoje também bebeu? Para que é isso?
VOINÍTSKI: Apesar de tudo sempre se parece com a vida... Não me
impeça, Hélène!
ELENA ANDRÉIEVNA: Dantes nunca bebia, e nunca falava assim tanto...
Vá dormir! Você aborrece-me.
VOINÍTSKI (agarrando-lhe a mão): Minha querida... maravilhosa!
ELENA ANDRÉIEVNA (com enfado): Deixe-me. Isso acaba por ser
repugnante. (Sai).
VOINÍTSKI (sozinho): Foi-se embora...
Pausa.
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Há dez anos encontrei-a em casa da minha falecida irmã. Porque é que não
me apaixonei por ela então e não lhe propus casamento? Isso era tão
possível! E agora ela seria minha mulher... Sim... Agora acordaríamos os
dois com a tempestade; ela assustava-se com o trovão e eu segurava-a nos
meus braços e murmurava-lhe: «Não tenhas medo, eu estou aqui». Oh,
pensamentos maravilhosos, que bom, até me rio... mas, meu Deus,
confundem-se-me as ideias na cabeça... Porque é que eu sou velho? Porque
é que ela não me compreende? A sua retórica, a sua moral ociosa, os
pensamentos absurdos e ociosos sobre o fim do mundo — odeio tudo isso
profundamente.
Pausa.
Entra Astrov de casaca, sem colete e sem gravata; está um pouco bebido;
atrás dele vem Teléguin com a guitarra.
ASTROV: Toca!
TELÉGUIN: Estão todos a dormir!
ASTROV: Toca!
(Para Voinítski.) Estás aqui sozinho? Não há damas? (Com as mãos nos
quadris, canta em voz baixa.) «Anda casa, anda fogão, o dono não tem
colchão...» E eu fui acordado pela tempestade. Forte chuvada. Que horas
são?
VOINÍTSKI: Só o diabo sabe.
ASTROV: Pareceu-me ouvir a voz de Elena Andréievna.
VOINÍTSKI: Ela estava aqui ainda agora.
ASTROV: Magnífica mulher. (Observa o frasco que está em cima da
mesa.) Medicamentos. O que aqui vai de receitas! Remédios de Khárkov,
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Pausa.
ASTROV: Por que estás hoje tão tristonho? Tens pena do professor?
VOINÍTSKI: Deixa-me em paz.
ASTROV: Ou estás talvez apaixonado pela mulher do professor?
VOINÍTSKI: Ela é minha amiga.
ASTROV: Já?
VOINÍTSKI: O que significa esse «já»?
ASTROV: Uma mulher só pode ser amiga de um homem por esta ordem:
primeiro conhecida, depois amante e só depois amiga.
VOINÍTSKI: Torpe filosofia.
ASTROV: Como? Sim... Tenho de reconhecer — estou a tornar-se torpe.
Vê tu, ainda por cima estou bêbedo. Habitualmente embebedo-me assim
uma vez por mês. Quando estou neste estado, torno-me muito atrevido e
insolente. De nada se me dá! Meto-me nas operações mais difíceis e faço-
as muito bem; traço os mais vastos planos para o futuro; nessas alturas já
não me acho esquisito e acredito que presto um enorme serviço à
humanidade... enorme! E nesses momentos tenho o meu próprio sistema
filosófico, e todos vocês, irmãos, me parecem cá uns bichinhos... uns
micróbios. (Para Teléguin.) Baunilha, toca!
TELÉGUIN: Amiguinho, de todo o coração gostaria de tocar para ti, mas
compreendes — em casa estão todos a dormir!
ASTROV: Toca!
Pausa.
Eu vou agora voltar para casa. Está decidido e assinado. Enquanto atrelam,
já será de madrugada.
SÓNIA: Está a chover. Espere até de manhã.
ASTROV: A tempestade passa ao lado, só nos apanha uma ponta. Eu vou-
me embora. E, por favor, não volte a chamar-me para o seu pai. Eu digo-
lhe que é gota, ele diz que é reumatismo; eu peço-lhe para se deitar, ele
senta-se. E hoje nem sequer quis falar comigo.
SÓNIA: Está muito mimado. (Procura no armário.) Quer comer alguma
coisa?
ASTROV: Pode ser, traga.
SÓNIA: Eu gosto de petiscar à noite. Dizem que ele teve na vida muito
êxito com as mulheres, e as damas mimavam-no. Aqui tem um pouco de
queijo.
ASTROV: Hoje não comi nada, só bebi. O seu pai tem um carácter difícil.
(Retira uma garrafa do armário.) Posso? (Bebe um cálice.) Não está aqui
ninguém, pode-se falar com franqueza. Sabe, eu acho que não conseguia
viver nem um mês em sua casa, morreria asfixiado neste ar... O seu pai
todo entregue à gota e aos livros, o tio Vânia com a sua hipocondria, a sua
avó, por fim a sua madrasta...
SÓNIA: Que tem a minha madrasta?
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ASTROV: Numa pessoa tudo deve ser bonito: o rosto, o vestuário, a alma,
os pensamentos. Ela é bonita, não se pode negar, mas... — nada mais. Não
tem nenhuma ocupação, os outros trabalham para ela... Não é assim? E
uma vida ociosa não pode ser pura.
Pausa.
Aliás, é possível que eu esteja ser demasiado severo. Não estou satisfeito
com a vida, como o seu tio Vânia, e somos os dois rabugentos.
SÓNIA: Não está satisfeito com a vida?
ASTROV: Em geral gosto da vida, mas a nossa vida provinciana, russa,
mesquinha, não a posso suportar e desprezo-a com todas as forças da minha
alma. Quanto à minha própria vida, pessoal, palavra que não há
decididamente nela nada de bom. Sabe, quando caminhamos numa noite
escura por um bosque, avistamos uma luz que brilha ao longe e já não
notamos nem o cansaço, nem as trevas, nem os ramos que nos picam no
rosto... Eu trabalho — sabe disso — como mais ninguém no distrito, o
destino agride-me sem parar, por vezes sofro insuportavelmente, mas para
mim não há nenhuma luz ao longe. Já não espero nada para mim, não gosto
das pessoas... Há muito já que não gosto de ninguém.
SÓNIA: De ninguém?
ASTROV: Ninguém. Só sinto alguma ternura pela sua ama – por uma
velha recordação. Os camponeses são muito monótonos, atrasados, vivem
na imundície, e com as pessoas instruídas é difícil entender-me. São
cansativas. Os nossos bons conhecidos têm todos pensamentos
mesquinhos, sentimentos mesquinhos e não vêem mais longe que o seu
nariz — são simplesmente estúpidos. E aqueles que são mais inteligentes e
melhores são histéricos, atormentados pela análise, pela reflexão... Estes
lamuriam-se, odeiam, abordam uma pessoa de lado, olham-na de esguelha
e decidem: «Oh, este é um psicopata!» ou: «Este é um palavroso!» E
quando não sabem que rótulo colar na minha testa, dizem: «Este é um
estranho sujeito, estranho!» Eu gosto da floresta — isso é estranho; não
como carne — isso é estranho. Já não há relação directa, pura, livre com a
natureza... Não há, não! (Vai beber.)
SÓNIA (impede-o): Não, peço-lhe, rogo-lhe, não beba mais.
ASTROV: Porquê?
SÓNIA: Isso fica-lhe tão mal! Você é elegante, tem uma voz tão terna...
Mais do que isso, de todas as pessoas que conheço nenhuma é como você
— é belo. Para que quer parecer-se com as pessoas vulgares, que bebem e
jogam às cartas? Oh, não faça isso, peço-lhe! Está sempre a dizer que as
pessoas não criam, mas apenas destroem aquilo que lhes foi dado do alto.
Para quê então, para que é que se destrói a si mesmo? Não deve, não deve,
peço-lhe, imploro-lhe.
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Pausa.
Pausa.
Pausa.
Ambas emocionadas.
Bebem e beijam-se.
Pausa.
Tu estavas zangada comigo porque eu teria casado com o teu pai por
interesse... Se acreditas em juras, eu juro-te que casei com ele por amor.
Apaixonei-me por ele como cientista e homem famoso. Não era verdadeiro
amor, era artificial, mas então parecia-me que era verdadeiro. Não tenho
23
Pausa.
Pausa.
Pano.
Terceiro Acto
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Se não o vires é mais fácil. Não vamos adiar isso para as calendas,
perguntamos-lhe já. Ele queria mostrar-me uns desenhos quaisquer... Vai lá
dizer-lhe que eu lhe quero falar.
SÓNIA (fortemente agitada): Dizes-me toda a verdade?
ELENA ANDRÉIEVNA: Digo, é claro. Eu acho que a verdade, seja ela
qual for, não será em todo o caso tão horrível como a incerteza. Confia em
mim, minha querida.
SÓNIA: Sim... sim... Eu digo-lhe que tu queres ver os desenhos dele...
(Caminha até à porta e pára.) Não, a incerteza é melhor... Em todo o caso
há esperança...
ELENA ANDRÉIEVNA: Que tens tu?
SÓNIA: Nada. (Sai.)
ELENA ANDRÉIEVNA (sozinha): Não há nada pior do que conhecer um
segredo alheio e não poder ajudar. (Reflectindo.) Ele não está apaixonado
por ela, isso é evidente, mas por que não havia de se casar com ela? Ela é
feia, mas para um médico rural, na idade dele, seria uma excelente esposa.
Inteligente, tão bondosa, pura... Não, isto não é assim, não é assim...
Pausa.
Pausa.
Agora veja mais abaixo. O que existia há vinte e cinco anos. A floresta aqui
é já apenas um terço de toda a superfície. Já não há cabras, mas ainda há
alces. As cores verde e azul estão já mais pálidas. E assim por diante.
Passemos à terceira parte: o mapa do distrito na actualidade. Ainda há cor
verde aqui e ali, mas não seguida, só às manchas; desapareceram os alces,
os cisnes e os tetrazes... Dos antigos lugarejos, casais, eremitérios e
azenhas, não há nem vestígio. No geral é um mapa de decadência gradual e
indubitável, à qual, segundo parece, faltam uns dez ou quinze anos para ser
completa. Você dirá que aqui há uma influência cultural, que a antiga vida
deve naturalmente ceder o lugar à nova. Sim, compreendo, se no lugar
dessas florestas destruídas se estendessem estradas, vias férreas, se
houvesse aqui fábricas, oficinas, escolas — o povo teria mais saúde, seria
mais rico, mais inteligente; mas aqui não há nada disso! No distrito
continuam os mesmos pântanos, os mosquitos, a mesma falta de saúde, a
miséria, o tifo, a difteria, os incêndios... Estamos perante uma decadência
que é resultado de uma luta extenuante pela existência; essa decadência
deve-se à estagnação, à ignorância, à completa falta de auto-consciência em
que o homem, gelado, faminto, doente, para salvar os restos da vida, para
proteger os seus filhos, se agarra instintivamente, inconscientemente, a
tudo aquilo com que possa aliviar a fome e aquecer-se, destrói tudo sem
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pensar no dia de amanhã... Já foi quase tudo destruído, mas ainda nada
criado em substituição. (Com frieza.) Pela sua cara vejo que isto não lhe
interessa.
ELENA ANDRÉIEVNA: Mas eu percebo tão pouco disso...
ASTROV: E não há aqui nada que perceber, é simplesmente
desinteressante.
ELENA ANDRÉIEVNA: Para falar com franqueza, os meus pensamentos
estão ocupados com outra coisa. Desculpe. Preciso de lhe fazer um
pequeno interrogatório e sinto-me embaraçada, não sei como começar.
ASTROV: Interrogatório?
ELENA ANDRÉIEVNA: Sim, um interrogatório, mas... bastante inocente.
Sentemo-nos!
Sentam-se.
O assunto tem a ver com uma certa jovem. Falemos como pessoas
honestas, como amigos, sem rodeios. Falemos e esqueçamos qual foi o
assunto da conversa. Sim?
ASTROV: Sim.
ELENA ANDRÉIEVNA: O assunto refere-se à minha enteada, Sónia.
Você gosta dela?
ASTROV: Sim, tenho muita estima por ela.
ELENA ANDRÉIEVNA: Gosta dela como mulher?
ASTROV (depois de hesitar): Não.
ELENA ANDRÉIEVNA: Mais duas ou três palavras, e terminamos. Não
deu por nada?
ASTROV: Nada.
ELENA ANDRÉIEVNA (agarra-o pelo braço). Pelos seus olhos vejo que
não gosta dela... Ela sofre... Compreenda isto e... deixe de frequentar esta
casa.
ASTROV (levanta-se): O meu tempo já passou... E não tenho vagar...
(Encolhendo os ombros.) Quando é que eu tenho tempo? (Está
perturbado.)
ELENA ANDRÉIEVNA: Ui, que conversa tão desagradável! Estou tão
agitada, parece que carreguei mil arrobas às costas. Mas, graças a Deus,
terminámos. Esqueçamos, como se não tivéssemos falado, e... e vá-se
embora. Você é um homem inteligente, há-de compreender...
Pausa.
Pausa.
Diz-me: foi?
Sónia!
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Não posso continuar a viver no campo. Não fomos feitos para o campo.
Mas é impossível viver na cidade com os meios que recebemos desta
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Pausa.
SEREBRIAKOV: Senhores, o que vem a ser isto afinal? Tirem este doido
da minha casa! Não posso viver com ele debaixo do mesmo tecto! Vive
aqui (aponta para a porta do meio), quase a meu lado... Que se mude para
a aldeia, para o anexo; ou sou eu que me mudo, mas não posso ficar com
ele na mesma casa...
ELENA ANDRÉIEVNA (para o marido): Vamo-nos embora daqui hoje.
Precisamos de nos preparar imediatamente.
SEREBRIAKOV: Um homem insignificante!
SÓNIA (ajoelhada, volta-se para o pai; nervosa, por entre lágrimas). É
preciso ser misericordioso, papá! Eu e o tio Vânia somos tão infelizes!
(Refreando o desespero.) É preciso ser misericordioso! Lembra-te de
quando eras mais novo o tio Vânia e a avó traduziam livros para ti,
reescreviam os teus papéis... noites inteiras, noites inteiras! Eu e o tio
Vânia trabalhávamos sem descanso, receávamos gastar um centavo
connosco e mandávamos tudo para ti... Ganhávamos o pão que comíamos!
Não estou a dizer as coisas certas, não são as coisas certas que eu digo, mas
tu deves compreender-nos, papá. É preciso ser misericordioso!
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Pausa.
Não acertei? Falhei outra vez?! (Com raiva.) Ah, diabo, diabo... o diabo te
leve (Bate com o revólver no chão e, prostrado, senta-se numa cadeira.
Serebriakov está aturdido; Elena Andréievna encostou-se à parede, sente-
se mal).
ELENA ANDRÉIEVNA: Levem-me daqui! Levem-me, matem-me, mas...
eu não posso ficar aqui, não posso!
VOINÍTSKI (desesperado): Oh, o que é que eu estou a fazer! O que é que
eu estou a fazer!
SÓNIA (em voz baixa): Ama! Ama!
37
Pano.
Quarto Acto
Pausa.
Pausa.
Sentam-se ambos.
ASTROV: Não? Pois bem, espero mais um pouco, mas depois, desculpa,
tenho de exigir pela força. Amarramos-te e procuramos. Digo isto muito a
sério.
VOINÍTSKI: Como queiras.
Pausa.
Fazer aquela figura de parvo: disparar duas vezes e não acertar nem uma!
Nunca me hei-de perdoar isto!
ASTROV: Se te apetecia disparar, bem, disparasses na tua própria testa.
VOINÍTSKI (encolhendo os ombros): É estranho. Tentei cometer um
assassínio e não me prendem, não me levam a tribunal. Quer dizer que me
consideram louco. (Com um riso mau.) Eu sou louco, mas aqueles que se
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Pausa.
Entra Sónia.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Escutam os dois.
ASTROV: Finita!
Ouvem-se guizos.
Entra o empregado.
Marina sai.
Bom proveito, meu caro. (Faz uma vénia profunda.) Devias comer o pão.
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ASTROV: Não, está bem assim... E depois, passem muito bem! (Para
Marina.) Não me venhas acompanhar, ama. Não é preciso. (Sai. Sónia vai
atrás dele com uma vela, para acompanhá-lo; Marina senta-se na
poltrona.)
VOINÍTSKI (escreve): «Em 2 de Fevereiro, óleo vegetal, vinte libras... em
16 de Fevereiro, mais óleo vegetal, vinte libras... trigo sarraceno...»
Pausa.
Ouvem-se guizos.
MARINA: Já se foi.
Pausa.
Pausa.
Nós, tio Vânia, havemos de viver. Viveremos uma enfiada longa, longa de
dias, de longas noites; havemos de suportar pacientemente as provações
que o destino nos mande; havemos de trabalhar para os outros agora e na
velhice, sem conhecer descanso. E quando chegar a nossa hora morremos
docilmente e na sepultura diremos que sofremos, que chorámos, que
passámos amarguras, e Deus terá piedade de nós, e eu e tu, tio, meu
querido tio, veremos uma vida luminosa, bela, graciosa, e havemos de
alegrar-nos e até olharemos para as nossas actuais desgraças com um
sorriso — e descansaremos. Eu acredito, tio, acredito ardentemente,
apaixonadamente... (Ajoelha-se diante dele e pousa a cabeça nas mãos
dele; com a voz cansada.) Descansaremos!
Havemos de descansar!