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Psicologias Do Fascismo Curso Completo 2
Psicologias Do Fascismo Curso Completo 2
Departamento de Filosofia
Psicologias do fascismo
Curso completo – 2019
Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram nã o apenas como nossas
formaçõ es do inconsciente, nossos sintomas, angú stias, desejos e fantasias sã o
1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30
expressõ es de dimensõ es fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâ micas imanentes a fenô menos sociais,
como o fascismo, exige a mobilizaçã o de uma dimensã o propriamente
“psicoló gica”, mesmo que este termo vá , no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinçã o específica, até o ponto em que talvez nã o tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicoló gico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusã o de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizá vamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarã o atravessados por uma urgente
necessidade de modificaçã o.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questõ es prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemoló gica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razã o para se propor uma abordagem
psicoló gica do fascismo?”, até porque nã o é claro o que entendemos por
“abordagem psicoló gica” neste caso. A outra questã o é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenô meno totalitá rio historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemô nicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, entã o qual sua especificidade, em que
condiçõ es poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questã o como a anterior, relativa à abordagem psicoló gica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Nã o estaríamos a
produzir um erro categorial primá rio ao mobilizarmos categorias psicoló gicas
para descrever fenô menos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interaçã o entre as mú ltiplas esferas sociais de
valores em prol de descriçõ es sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representaçõ es mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reproduçã o material da vida. Como se,
ao final, as relaçõ es sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situaçã o ideal originá ria na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relaçõ es de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressã o institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posiçã o de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da aná lise da
ló gica do poder.
Como se nã o bastasse tal dificuldade epistemoló gica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
aná lise psicoló gicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunçã o explícita entre:
criminologia, reflexã o socioló gica sobre o impacto social dos processo de
urbanizaçã o na Europa, reflexã o política sobre movimentos de massa, além de
consideraçõ es sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo nã o será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja traduçã o mais
aproximada seria “psicologia das multidõ es”. Os principais textos sã o escritos em
um prazo de nã o mais de quinze anos: Psychologie des foules, de Gustave Le Bon é
de 1895. Les lois de l’imitation, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu L’opinion et la foule, de 1901. La folla delinquente, do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussõ es sobre psicologia das massas alcançarã o
o mundo anglo-saxã o principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregá rio (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá : The Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a aná lise do Eu é de 1921.
Conhecemos aná lises anteriores a respeito de fenô menos de massa, elas
estã o lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e de
Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e Maupassant.
Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi anteriormente
explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada um a sua
maneira, fazer das massas, da multidã o, o objeto de uma ciência a parte inteira, o
que nã o era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da regressã o social,
das involuçõ es que estariam a ameaçar as novas sociedades capitalistas urbanas
do século XIX. Assumindo uma noçã o bastante presente na psicologia de entã o,
que definia a doença mental como degenerescência, como retorno a está gios
arcaicos de maturaçã o e desenvolvimento, esses trabalhos (embora os trabalhos
de Tarde sejam uma exceçã o a este caso) veem as massas como o equivalente
social de uma degenerescência patoló gica, propícia a comportamentos
criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reaçõ es violentas e
incontrolá veis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
histó ria, mas nunca tã o considerá vel quanto atualmente. A açã o inconsciente das
massas, substituindo a açã o consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual”2. Pois nã o seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidõ es (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensã o do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das naçõ es.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período de
“anarquia confusa precedendo a eclosã o de novas sociedades”, período
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva”3
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso cará ter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâ mbulo”4,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
2
LE BON, Psychologie des foules, préface
3
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
(sonambulismo, hipnose, açã o social) encontramos a ilusã o de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressã o no sentido
psicoló gico do termo. Regressã o a uma sociedade ingoverná vel, já que nã o seria
possível governar as massas. No má ximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria nã o ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditá rias (...) por trá s das causas assumidas de
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nó s”5. Tais causas
resultantes de sedimentaçõ es que compõ e “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsá vel pela constituiçã o da unidade mental
da massa. Daí a afirmaçã o de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressã o: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vá rios degraus na escada da civilizaçã o”6.
Se nos perguntarmos pelas condiçõ es histó ricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará histó ria
posteriormente:
5
LE BON, idem, p. 22
6
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
ameaçariam do exterior a marcha do progresso pró pria ao processo de
racionalizaçã o das sociedades europeias do começo do século XX.
O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressã o do primeiro nã o
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmá ticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinçã o entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode
aparecer nas massas espontâ neas de maneira “mais camuflada”. Maneira de
afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituiçõ es, isto no sentido de uma psicologia da regressã o imanente ao
funcionamento normal de nossas instituiçõ es, e nã o mais psicologia da regressã o
que apareceria como desvio em relaçã o ao bom funcionamento normal das
instituiçõ es democrá ticas. Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a
psicologia das massas de Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen 8.
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituiçõ es que aparecem como subsistemas inerentes a toda noçã o de
democracia liberal seriam a expressã o mais evidente de nú cleos de regressã o
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas nã o sã o a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisó rios em instituiçõ es democrá tico
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religiã o triunfará nã o apenas sobre
a psicaná lise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Nã o podemos sequer
imaginar como é potente, a religiã o”9.
Se, para Freud, a histó ria da democracia no ocidente será uma histó ria de
afastamentos malogrados em relaçã o tanto ao nú cleo teoló gico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierá rquicas e militarizadas, se esses nú cleos e
figuras conhecerã o retornos perió dicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepçã o teoló gico-política de poder (a secularizaçã o de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relaçã o é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicaçã o da noçã o clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenô menos sociais que colocariam em risco o horizonte de
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará entã o a aná lise das latências
de regressã o imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicoló gico de fenô menos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
8
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
9
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78
nú cleo teoló gico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
relaçõ es sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos sã o
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuaçã o se realizam perpetuariam modos de relaçã o social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos sã o pró prios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissã o à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna nã o seria exatamente o esteio de
uma forma democrá tica de vida baseada na cooperaçã o imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressã o
social. E nã o será por acaso que comportamentos xenó fobos, racistas e violentos
nã o virã o necessariamente dos integrantes de famílias em decomposiçã o, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradaçã o, mas
também de famílias aparentemente só lidas, países aparentemente pró speros. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de auto-
crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questã o epistemoló gica inicial, esta que dizia
respeito à adequaçã o de propor uma aná lise psicoló gica de fenô menos sociais. O
que vemos aqui é como nã o seria possível compreender fenô menos sociais, seus
modos de criaçã o de adesã o, as modalidades de produçã o de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilizaçã o de fantasmas, de afetos e representaçõ es que
nã o sã o individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos sã o individuais. Lembremos do que
diz Freud:
O que é fascismo?
12
Idem, p. 17
13
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
explorados nã o façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploraçã o, a humilhaçã o, a escravidã o, ao ponto nã o apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Nã o, as massas nã o
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstâ ncia, e é isto que se faz necessá rio compreender15.
15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262
Uma má quina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que
preferia abolir seus pró prios servos a parar a destruiçã o17.
19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessá rio acreditar que a impotência
da vida ordiná ria e da espoliaçã o constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produçã o autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirizaçã o da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberaçã o da violência por aqueles que já nã o aguentam mais
serem violentados. O carnaval nã o é aqui a reversã o da ordem, mas a conjugaçã o
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, nã o há fascismo sem ressurreiçã o dos Estados-naçã o em sua
versã o paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que sã o
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educaçã o Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pá tria construída através do
genocídio dos índios e da escravidã o dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-naçã o se mostra como o ú ltimo refú gio do que é meu, do que
me é pró prio. É o meu territó rio, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressã o bá sica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidá rio da insensibilidade absoluta em
relaçã o à violência com classes vulnerá veis e historicamente marcadas pela
opressã o. Ele é a implosã o da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social nã o sejam transformadas. Pois toda política é uma questã o de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramá tica do visível, a forma com que as existências sã o reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que nã o reconhecido nã o existe. Mas ser
reconhecido nã o significa apenas uma recogniçã o do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes nã o o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportá vel.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposiçã o da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonizaçã o do desejo anti-
institucional pela pró pria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente
liberado, pode criar poderes que voltam à s mã os do povo, democracias que
abandonam a representaçã o para transferir a deliberaçã o e a gestã o para a
imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor
pela mã o forte do governo expresso em uma liderança que parece estar acima da
lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor seus piores sentimentos
sem preocupaçã o com seus efeitos, demonstrar seu desejo mais baixo de
violência como expressã o de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessá rio que tais líderes pareçam cô micos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironizaçã o, tais
proposiçõ es poderã o circular com fricçã o baixa. Afinal, nã o é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve entã o levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a nã o ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de aná lise para saber em que
situaçõ es atuais esta descriçã o encaixa.
Psicologias do fascismo
Aula 2
20
FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14
Essa introduçã o a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma
nota metodoló gica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se
estabelecer distinçõ es estritas entre psicologia individual e psicologia social. O
que só pode significar que uma clínica da subjetividade será , necessariamente,
uma clínica de fenô menos sociais. Pois nã o há fato psicoló gico legível a partir de
uma perspectiva solipsista, os modos de relaçã o a si e a pró pria constituiçã o de
uma noçã o identitá ria como o si-mesmo é dependente destes fenô menos sociais
que sã o: “as relaçõ es dos indivíduos aos seus pais, irmã os e irmã s, a seu objeto de
amor, a seu professor e a seu médico”21. Freud chega mesmo a afirmar que a
distinçã o entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser situada
no interior da psicologia individual, já que nã o há ato psíquico narcísico, ou seja,
nã o há amor de si que nã o se oriente a partir da internalizaçã o de uma teleologia
das relaçõ es sociais. O que nã o poderia ser diferente já que identidades
individuais sã o produçõ es relacionais, as pró prias instâ ncias da vida psíquica sã o
internalizaçõ es de disposiçõ es sociais de conduta. Proposiçõ es que podem nos
levar à interpretaçã o de Etienne Balibar, para quem: “a pró pria individualidade é
um caso particular da formaçã o de massa”22.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relaçõ es sociais.
Neste sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu
tempo pode ser sintetizada através da noçã o de abstraçã o. Ao tomar o indivíduo
isolado como “membro de uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou
uma instituiçã o”, a psicologia social passa por cima da estruturaçã o sistêmica dos
modos de interaçã o social, ou seja, deste modo de interaçã o social que vai
progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre mã e e bebê à família,
à s instituiçõ es sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que implica que
experiências primeiras de interaçã o no interior do nú cleo familiar servirã o de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante nã o para assumir
alguma forma de familiarismo, mas para insistir na dimensã o instauradora do
conflito. Pois a família é, antes de qualquer coisa, um nú cleo produtor de
conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud nã o ignora a dependência das
configuraçõ es familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz
dependência nã o diz subsunçã o simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante
tentar compreender a configuraçã o dos processos de interaçã o social postulando
algum princípio abstrato como “pulsã o gregá ria”, “pulsã o social”, “group mind”
etc. Devemos compreender como modos elementares de interaçã o influenciam
regimes de aplicaçã o de princípios sociais mais gerais. Daí porque Freud termina
insistindo: “Nossas expectativas sã o orientadas por duas possibilidades: que a
pulsã o social nã o seja nem originá ria nem indecomponível e que os inícios de sua
formaçã o possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
exemplo na família”23.
A partir de tais consideraçõ es, Freud parte para uma certa revisã o de
literatura que ocupará os pró ximos dois capítulos. Tal revisã o começa com o
livro de Gustave Le Bon, La psychologie des foules, editado em 1895. A razã o nã o
deve ser procurada apenas no cará ter fundador deste livro que, aos olhos de
muitos, aparece como a inauguraçã o da psicologia social e como a realizaçã o
21
FREUD, Psicologia das massas - introdução
22
BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
23
FREUD, Psicologia das massas - introduçõa
clá ssica dos princípios de uma sociologia das massas de forte cará ter
conservador. De fato, Freud encontra uma problemá tica com a qual ele
compartilha, embora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em
seu livro, Le Bon começa afirmando:
Foi necessá rio a fortiori no início de toda sociedade antiga uma grande
autoridade exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e
afirmativos. Foi através do terror e da impostura, como se diz
normalmente, que eles reinaram? Nã o, esta explicaçã o é claramente
insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio30.
A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiraçã o
capaz de sustentar relaçõ es sociais, Tarde faz entã o apelo à s relaçõ es pró prias a
hipnose. Segundo ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de
desejo, imobilizada em lembranças de toda natureza, adormecidas mas nã o
mortas”31. O hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio,
atualizar tal força potencial, atualizar este desejo imobilizado em lembranças de
toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como sujeito que saber a
respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde nã o está longe de aceitar ao
dizer: “Obedecer alguém nã o é sempre querer o que ele quer ou parece
querer?”32.Tal relaçã o de hipnose social baseada em relaçõ es assimétricas de
prestígio poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade
imitativa do ser social”. Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade
é a imitaçã o e a imitaçã o é uma espécie de sonambulismo”33.
Freud compreenderá fenô menos como a mú tua sugestã o dos indivíduos e
o prestígio do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando
de explicaçõ es. E para tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as
relaçõ es de autoridade e de coesã o no interior da massa sã o expressõ es de
vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que Freud nã o teme em remeter
ao conceito platô nico de “Eros”. Mas a respeito de tais vínculos, Freud dirá :
Quer dizer, falta uma elaboraçã o clara da natureza dos conflitos psíquicos como
motor das experiências sociais que podem aparecer como herança de
experiências histó ricas. A verdadeira questã o é: quais os conflitos que levam
sujeitos a se constituírem em uma massa que se sustenta através da
implementaçã o de exigências libidinais? Esses conflitos psíquicos, cuja
compreensã o exige a mobilizaçã o dos conflitos inerentes à constituiçã o do Eu,
com suas dinâ micas de identificaçã o, com suas modalidades de sujeiçã o psíquica,
explicam principalmente a natureza das relaçõ es sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud nã o se interessa pelas dinâ micas
revolucioná rias, já que os processos revolucioná rios sã o exatamente aqueles nos
quais as figuras de autoridade sã o depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever
Psicologia das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores,
Paul Federn, escrevera Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais
(1919). Neste texto, que Freud certamente conhecia pois seus argumentos
principais foram apresentados na Sociedade das quarta-feiras, Federn via no fim
do Império Austro-Hú ngaro e na queda da figura do Imperador, assim como na
vitó ria da Revoluçã o Soviética, a possibilidade do advento de sujeitos políticos
que nã o seriam mais “sujeitos do Estado autoritá rio patriarcal”. Para tanto, tais
sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relaçõ es fraternas, relaçõ es
distintas e que nã o se derivam completamente da estrutura hierá rquica de uma
relaçã o com o pai que até entã o havia marcado a experiência política de forma
hegemô nica. Para que novas formas de identidades coletivas fossem possíveis,
nã o bastaria apenas transmutar a identificaçã o com o pai em recusa de seu
domínio. Seria necessá ria a existência de um modelo alternativo de
35
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
identificaçõ es que se daria de maneira horizontal e com forte configuraçã o
igualitá ria. Daí uma afirmaçã o maior como: “Dorme em nó s, igualmente herdada
ainda que em uma intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo
princípio social, este da comunidade fraterna cujo motivo psíquico nã o está
carregado de culpabilidade e temor interior. Seria uma liberaçã o imensa se a
revoluçã o atual, que é uma repetiçã o das revoltas antigas contra o pai, tiver
sucesso”36.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relaçõ es fraternas
poderiam constituir um “segundo princípio social” relativamente autô nomo e
nã o completamente dedutível das relaçõ es verticais entre filhos e pais, inscreve-
se no horizonte de reflexõ es sobre estruturas institucionais pó s-revolucioná rias.
A partir de tal modelo, Federn tentará pensar o fundamento libidinal de
organizaçõ es políticas nã o-hierá rquicas como, por exemplo, os sovietes e os
conselhos operá rios que procuravam se disseminar na nascente repú blica
austríaca graças à s propostas dos social-democratas. A sociedade sem pais a que
Federn alude tem a forma inicial de uma repú blica socialista de conselhos
operá rios.
É fato que Freud nã o seguirá esta via. Para tanto, seria necessá ria a defesa
de uma dimensã o de relaçõ es intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada
na reciprocidade igualitá ria. Tal dimensã o nã o existe nos escritos de Freud que,
neste sentido, estaria mais à vontade lembrando da agressividade pró pria à s
relaçõ es fraternas com suas estruturais duais baseadas em rivalidade. Por isto, as
relaçõ es de cooperaçã o tipificadas em confrarias ou comunidades de iguais só
podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano, apoiando-se na
exclusã o violenta da figura antagô nica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revoluçã o bolchevique, Freud
pergunta-se sobre o que os soviéticos farã o com sua violência depois de
acabarem com seus ú ltimos burgueses.
Neste sentido, nã o é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de
massa para Freud nã o sejam, como poderíamos esperar, eclosõ es
revolucioná rias (como a Comuna de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja:
duas instituiçõ es que nã o pareceriam, a primeira vista, exemplos de regressã o
social. Pois se trata de afirmar que a ló gica da regressã o social, esta mesma que
anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem, criança, neuró tico e
que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no cerne de
nossas instituiçõ es (e nã o simplesmente nas força que visam desestabilizá -las).
Se levarmos em conta que estamos a falar de um cidadã o do finado Império
Austro-Hú ngaro, podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder
teoló gico-político da igreja e as forças armadas é uma maneira metonímica de se
referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza
constitutiva das relaçõ es verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo
freudiano vem da igreja cató lica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o
general. As relaçõ es entre os membros e o líder constitui uma relaçã o na qual
todos estã o igualmente distantes do centro, Por outro lado, é o vínculo libidinal
ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do desaparecimento do líder
provocar ou pâ nico provocado pela anulaçã o das ligaçõ es mú tuas ou uma
36
FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238
desintegraçã o que libera a violência generalizada contra aquele que aparece
como o outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relaçã o entre identidade e
identificaçã o no interior dos fenô menos sociais. A proposiçã o de Freud se refere
a uma tese sobre o processo de formaçã o de identidades coletivas. Uma
identidade coletiva precisa de uma identificaçã o vertical para se constituir. Ela
precisa de uma relaçã o à representaçã o de soberania. Essa é uma tese forte e
polêmica, mas lembremos que tal identificaçã o vertical nã o precisa
necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
ideia, uma representaçã o, uma organizaçã o. Mas, para Freud, tais identificaçõ es
verticais devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois
fenô menos: o pâ nico e violência sem direçã o já que, como lembra Freud, nã o há
religiã o do amor sem violência; “Uma religiã o, mesmo que se denomine a religiã o
do amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que nã o pertencem a ela.
No fundo, toda religiã o é uma religiã o do amor para aqueles que a abraçam, e
tende à crueldade e à intolerâ ncia para com os nã o seguidores”37. Nesta
proposiçã o, está sintetizado o fundamento do antagonismo político através da
consolidaçã o de relaçõ es amigo-inimigo. As massas sã o constituídas como
mecanismos de defesa contra o pâ nico vindo da angú stia da ausência de
identificaçã o, assim como da defesa contra a desintegraçã o da gestã o das
relaçõ es antagonistas entre amigo e inimigo.
Problemas de imagens
37
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
38
idem,
39
LE BON, idem, pp. 44-45
percebemos novamente o deslocamento operado por Freud em idéias
relativamente correntes de sua época. O modo de pensar que Freud descreve é
aquele pró prio aos processos primá rios do inconsciente. Neste sentido, eles nã o
sã o arbitrá rios e vinculados ao erro, mas descrevem processos de encadeamento
de representaçõ es absolutamente necessá rios do ponto de vista da dinâ mica do
desejo. Eles permitem a compreensã o dos conflitos e desenvolvimentos que dã o
inteligibilidade a uma funçã o intencional central como o desejo. Por outro lado,
sendo as massas e as instituiçõ es o espaço de desdobramento de processos
primá rios, chega-se rapidamente à conclusã o de que a aná lise nã o deverá se
basear nas disposiçõ es normativas imanentes ao horizonte de racionalidade
social. Há uma dinâ mica inconsciente que deve ser desvelada e na qual se
encontra o verdadeiro fundamento da coesã o social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por
similitudes aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios
elementares da ló gica e do entendimento. Foucault e Adorno, por razõ es
distintas, insistiram bastante neste ponto: como a razã o moderna impô s à
mimesis como figura de um pensar exilado das exigências de racionalidade do
entendimento. Desde o descrédito cartesiano à imaginaçã o, o que tem afinidade
mimética é negado enquanto algo dotado de potência cognitiva. Vale sempre a
pena lembrar que a potência disruptiva da mimesis em sociedades pré-modernas
implica na implementaçã o social de processos de diferenciaçã o que nã o sã o
solidá rios da entificaçã o do princípio de identidade, como é o caso no
pensamento pró prio ao conceito moderno de razã o.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das
teorias de Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexã o sobre a
natureza do líder das massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar
compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma idéia ou instituiçã o) a
partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Mas antes de aprofundar a
natureza da relaçã o entre indivíduo e líder da massa, Freud passa à distinçã o de
McDougall entre massas organizadas (group) dotadas de singularidade e
responsá veis por processos de individuaçã o e massas desorganizadas e efêmeras
(crowd) que parecem impedir toda e qualquer individuaçã o. O fato significativo é
que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso paradigmá tico. Ou seja, de
fato, a traduçã o inglesa de Strachey nã o estava totalmente incorreta: o
diagnó stico freudiano é também uma group psychology. O que deixa a crítica
freudiana ainda mais pró ximo de nossos modos de organizaçã o social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen
à psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social,
com especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a
possibilidade das hipó teses fundamentais de Psicologia das massas e análise do
eu valerem também para sociedades democrá ticas insistindo, no seu caso, na
irredutibilidade da norma jurídica à crença ou amor por uma pessoa ou ideia
personificada. Ao acreditar na relaçã o fundamental entre norma e fantasia, ou
antes, ao operar como quem nã o é capaz de estabelecer distinçõ es entre norma e
fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das massas e dos
“grupos transitó rios” fortemente dependentes de mó biles psicoló gicos para todo
e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud nã o apenas indicaria a gênese
das ilusõ es substancialistas que afetam a representaçã o da autoridade do Estado,
mostrando como tais ilusõ es significariam o retorno de uma mentalidade arcaica
a ser combatida por inviabilizar uma concepçã o democrá tica da vida política
incapaz de sobreviver ao conflito particularista das paixõ es. Neste sentido, a
perspectiva freudiana nã o é eminentemente crítica, o que para Kelsen seria bem-
vindo. Ao contrá rio, ao insistir em compreender todo e qualquer vínculo social a
partir “dos processos de ligaçã o e associaçã o libidinal” em sua multiplicidade
empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusã o tanto para a pró pria
sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica.
De um lado, Kelson dirá : “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de
grupo”40, insistindo que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o
Estado, para o jurista austríaco
42
FREUD, Psicologia das massas e análise do eu, op. cit., p. 71
43
FREUD, Psicologia das massas - introdução
interaçã o no interior do nú cleo familiar servirã o de base para desenvolvimentos
subsequentes. Isto permite a Freud fazer afirmaçõ es como:
Se falta uma elaboraçã o clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor
das experiências sociais que podem parecer herança de experiências histó ricas, é
porque falta a compreensã o da maneira com que os conflitos psíquicos
produzidos nos processos “normais” de socializaçã o produzem indivíduos com
fortes tendências a regressã o social. Por isto, lembrei a vocês como nã o era mero
acaso que os dois exemplos privilegiados de massa para Freud nã o fossem, como
poderíamos esperar, eclosõ es revolucioná rias (como a Comuna de Paris, para Le
Bon), mas o exército e a igreja: duas instituiçõ es que nã o pareceriam, a primeira
vista, exemplos de regressã o social. Pois se tratava de afirmar que a ló gica da
regressã o social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da
tríade selvagem, criança, neuró tico e que agora se vê acrescida da massa, é peça
constitutiva que atua no cerne de nossas instituiçõ es (e nã o simplesmente nas
força que visam desestabilizá -las). Assim, se a questã o fundamental do texto de
Freud era: “porque homens modernos retornam a estruturas de comportamento
em contradiçã o flagrante com seus pró prios níveis de racionalidade e com o
está gio atual da civilizaçã o tecnoló gica esclarecida”48, a resposta passava por
expor como tais “níveis de racionalidade” e tal “está gio atual da civilizaçã o” era
indissociá vel da conservaçã o de arcaísmos e de formas de servidã o.
Freud termina esta parte introdutó ria identificando uma espécie de ponto
cego das teorias de Le Bon, assim como nas teorias de McDougall. Ponto este que
se encontraria na reflexã o sobre a natureza do líder das massas. De nada adiante,
segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma
idéia ou instituiçã o) a partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Para
compreender a dinâ mica do político nas sociedades modernas faz-se necessá rio
46
MONOD, Jean-Claude; Qu’est-ce qu’un chef en démocratie?, Paris: Seuil, p. 87
47
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
48
ADORNO, Freudian theory ..., p. 412
uma teoria que vincule os processos de formaçã o do Eu à aná lise da natureza dos
vínculos entre sujeitos e figuras de autoridade. Este é o problema central do livro
e é ele que será o objeto das articulaçõ es presentes nos pró ximos capítulos.
Trata-se de um problema que permitirá , a leitores como Adorno, encontrar neste
livro a previsã o: “da ascensã o e natureza dos movimentos fascistas de massa
através de categorias puramente psicoló gicas”49.
49
ADORNO, Freudian theory and the patterns of fascist propaganda, p. 411
50
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 63
se dar de maneira parcial “tomando apenas um traço da pessoa-objeto” 51. Ela
pode se por identificaçã o ao sintoma do outro, ou seja, repetindo seus modos de
adoecer e seus conflitos.
Freud insiste nestes processos de identificaçã o a fim de lembrar como ele
tem valor explicativo no caso da relaçã o entre o indivíduo e o líder da massa.
Pois percebamos que este objeto introjetado, embora apareça inicialmente como
limitaçã o do narcisismo, é ainda um modo de investimento narcísico, já que ele
aparece como Ideal do eu. Isto nos leva a afirmar que:
Melancolia e poder
51
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 64
52
ADORNO, idem, p. 418
53
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 67
mas através da ligaçã o da vida psíquica à formas de ambivalência
melancó lica54.
54
BUTLER, Judith; The psychic life of power, p. 168
55
FREUD, Sigmund; “O Eu e o Id”, In: Obras completas vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 34.
56
FREUD, idem, p. 73
57
Idem, p. 72
ausência de crítica ante o hipnotizador, como diante do objeto amado” 58. Essa
forma de descrever o enamoramento como empobrecimento do Eu, e nã o como
alguma forma de confirmaçã o mú tua de si no interior de relaçõ es pretensamente
simétricas ou como alguma forma de despossessã o mú tua que leva todos a
narrarem a si de outra forma, mostra como estamos a falar de relaçõ es
assimétricas fundadas em uma ló gica melancó lica, na qual o objeto amado retira
sua força da associaçã o a um objeto perdido.
Se formos a um texto fundamental de Freud tal qual “Luto e melancolia”,
veremos porque Freud insiste em inserir a etiologia da melancolia no interior de
uma reflexã o mais ampla sobre as relaçõ es amorosas. Essa é a maneira freudiana
de lembrar que o amor nã o é apenas o nome que damos a uma escolha afetiva de
objeto. Ele é a base dos processos de formaçã o da identidade subjetiva a partir
da transformaçã o de investimentos libidinais em identificaçõ es. Esta é uma
maneira de dizer que as verdadeiras relaçõ es amorosas colocam em circulaçã o
dinâ micas identificató rias de formaçã o da identidade, já que tais relaçõ es
fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo, de
produzir as condiçõ es para o seu reconhecimento. Através das relaçõ es
amorosas, traços de cará ter sã o modificados e identificaçõ es ao outro sã o
integradas. Eu sou aquilo que eu amo.
Por exemplo, Freud aceita uma teoria na qual a bissexualidade é a posiçã o
inata dos sujeitos. Eles começam por investir libidinalmente as duas figuras
parentais, o pai e a mã e. No decorrer do processo de constituiçã o de uma
identidade de gênero, um desses investimentos é recalcado, perdido. Mas essa
perda nã o é simples anulaçã o. Antes, ela produz uma posiçã o melancó lica. A
posiçã o masculina deve perder o investimento libidinal na figura paterna,
trocando-o por uma identificaçã o. A posiçã o feminina deve perder o
investimento libidinal na figura materna, trocando-o por uma identificaçã o. Estes
investimentos, no entanto, mesmo recalcados voltam melancolicamente ou como
reprimenda e desvalorizaçã o contra si, por ter perdido o objeto outrora amado.
Neste sentido, lembremos da definiçã o freudiana:
A plena satisfaçã o dos impulsos sexuais permite uma descarga que nã o faz
“laços tã o duradouros entre as pessoas”. Mas a duraçã o é baseada em uma forma
muito específica de inibiçã o, a saber uma inibiçã o melancó lica. Uma inibiçã o da
meta que guarda relaçõ es indiretas com a meta inibida. O líder autoritá rio
guarda sempre traços daquilo que ele combate ou organiza purgaçõ es perió dicas
contra grupos e sujeitos que reascendem aquilo que os sujeitos precisaram
perder para constituir os sistema de cicatrizes que representa sua pró pria
identidade. Essa dinâ mica é fundamental para compreendermos a ló gica libidinal
da relaçã o entre massa e líder. O líder, assim como a instituiçã o autoritá ria,
oferece uma maneira do sujeito se relacionar à quilo que fora anteriormente
objeto de seu investimento e que ele precisou recalcar para constituir uma
identidade. Essa maneira pode se dar de duas formas: através de impulsos
sexuais inibidos na meta (e nã o é por outra razã o que Freud procurou, como
paradigma das massas, duas instituiçõ es homogêneas e de forte vínculo
homossexual inibido como a igreja e o exército) ou através da inversã o do afeto,
de amor a raiva, e a constituiçã o do objeto social de agressã o. A explosã o de
desrecalque que a massa produz é, na verdade, apenas a contrapartida de uma
posiçã o melancó lica mais profunda e original.
60
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
61
FREUD, Psicologia das massas, p. 75
62
FREUD, idem, - capítulo VIII
verticalmente com um ú nico objeto no lugar de seu Ideal do Eu, ou ainda, de seu
supereu. O líder da massa é assim um representante do supereu social. Freud
ainda dirá , de forma mais explícita: “o indivíduo abandona seu ideal do eu
(Ichideal) e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (Führer)” 63.
Lembremos, a este respeito, de alguns traços gerais dos processos de
socializaçã o pró prios à família burguesa. Relaçã o marcada pela sobreposiçã o
entre rivalidade e identificaçã o que aparece de maneira mais visível no conflito
entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como
sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessá rio
que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei
repressora em relaçã o à s exigências pulsionais. Para ser reconhecido como
sujeito, a criança deve abrir mã o de certos desejos (como os desejos incestuosos
e agressivos) e saber hierarquizar suas pulsõ es a partir de uma vontade
relativamente unitá ria. Ele deve aprender a « agir como » uma autoridade
paterna dotada de força de coerçã o.
O resultado é a internalizaçã o psíquica de uma ”instâ ncia moral de
observaçã o”, no caso, o supereu derivado da identificaçã o com os pais e outras
representaçõ es de autoridade. A internalizaçã o da lei parental através do
supereu é, para Freud, signo sempre legível de uma demanda de amor, e saber-se
objeto amado por um Outro (que é representante da Lei simbó lica), saber-se
potencialmente protegido por alguém a quem reconheço certa força tem, para o
sujeito, o valor da anulaçã o de uma posiçã o existencial de pura contingência.
Lembremos disto: todo vínculo a autoridade é baseado sob alguma forma de
demanda de amor e reconhecimento; ele nunca é simplesmente o resultado de
alguma coerção. No entanto, há um conflito fundamental entre, de um lado,
repressã o a desejos incestuosos, agressivos e polimó rficos e, de outro, demanda
de amor e reconhecimento.
Podemos nos perguntar aqui por que a formaçã o de uma instâ ncia
psíquica como o supereu deve ser vivenciada necessariamente sob a forma da
repressã o. Pois ela poderia ser vivenciada como uma espécie de aceitaçã o tanto
da limitaçã o necessá ria de exigências pulsionais de satisfaçã o quanto de um
ordenamento fundamental para a perpetuaçã o da vida social. Mas sabemos como
Freud insiste ser impossível submeter-se integralmente às injunções do supereu
sem que isto não leve à pura e simples auto-destruição. Conhecemos as pá ginas de
Freud dedicadas à descriçã o da « ferocidade » irracional do supereu na sua
aplicaçã o de exigências ao Eu. Isto a ponto dele indicar, como ideal do
tratamento psicanalítico : « fortalecer o Eu, torná-lo independente do supereu,
estender seu campo de percepçã o e ampliar sua organizaçã o de maneira que ele
possa se apropriar de pedaços do Isso. Onde Isso estava, devo Eu advir »64. Isto
talvez se explique pelo fato do supereu não ser apenas a internalização de um
conjunto de regras e normas que visam orientar a conduta e o desejo. Antes, ele
indica a constituição e internalização de uma representação fantasmática de
autoridade que sempre acompanhará o sujeito. Ele é o complemento fantasmático
necessário para minha aquiescência à regra e à norma. Tal representaçã o é, ao
mesmo tempo, objeto de amor (por ocupar o lugar para o qual minhas demandas
de amparo se dirigem, por alimentar minhas expectativas de gratificaçã o, por
63
FREUD, Massenpsychologie und Ich-analyse, p. 144
64
Idem, GW vol. XV, op. cit., p. 86
aparecer como promessa de segurança e proteção) e de ó dio (por suas injunçõ es
serem vivenciadas de maneira restritiva).
Jacques Lacan tem uma maneira precisa de explicar esta natureza
restritiva do supereu, isto quando insiste que ele é uma “lei desprovida de
sentido”65. Podemos compreender tal ausência de sentido a partir da ideia de que
as injunçõ es do supereu sã o determinaçõ es contraditó rias feitas apenas para
submeterem o sujeito a uma representaçã o fantasmá tica de autoridade que deve
perpetuar um sentimento de inadequaçã o, fraqueza e impotência. Como se, ao
final, a afirmaçã o do líder para as massas seria sempre um: “vocês nã o estavam à
altura”. Como Hitler a dizer que ao final que o povo alemã o nã o estava à altura de
seu destino.
Este sentimento de inadequaçã o é fundamental para conservar uma
representaçã o de autoridade superegó ica, já que a possibilidade de tal
representaçã o conservar-se como ló cus de acolhimento de uma demanda de
amor está vinculada ao velamento de sua impossibilidade em dar conta do
desamparo e de impedir a confrontaçã o com a contingência. E a maneira mais
eficaz para isto é impondo obrigaçõ es contraditó rias ou superlativas que nunca
poderã o ser realizadas pelo sujeito. Desta forma, a ineficá cia do supereu em suas
funçõ es de proteçã o e segurança acaba por ser, de uma certa forma, invertida
para ser vivenciada como impotência do pró prio sujeito em se adaptar à s
exigências do supereu, o que ao menos preserva o supereu como representaçã o
fantasmá tica de autoridade. Estamos dispostos a tudo, mesmo a nos auto-destruir,
para defender a crença de que há um amor que pode nos livrar da insegurança.
Estamos dispostos até a esconder a impotência do Outro que nos promete tal
amor. Neste sentido, só podemos concordar com psicanalista inglês Adam
Phillips :
65
LACAN, Jacques; Séminaire I, Paris: Seuil, 1975, p. 9
66
PHILLIPS, Adam; Trois capacites négatives, Paris : Editions de l´Olivier, 2009, pp. 90-91.
67
BALIBAR, Etienne; Citoyen Sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: Seuil, 2011,
p. 384
culpabilizaçã o do meu pró prio desejo de violência contra a norma de igualdade
restritiva enunciada pelo poder. Neste sentido, se Freud pode dizer que o
sentimento de culpa é o “mais importante problema no desenvolvimento da
civilizaçã o”68 é porque, entre outras coisas, ele conhece sua funçã o decisiva na
construçã o da coesã o social e na sustentaçã o das relaçõ es com a autoridade. Uma
funçã o que nã o se reduz à expressã o da responsabilidade consciente diante dos
impulsos de transgressã o de normas aceitas como necessá rias para a
perpetuaçã o da vida social. Ela indica principalmente o vínculo libidinal
inconsciente com objetos que perdemos, que ainda tem a força de projetar em
nó s a sombra de reprimendas sem fim e de auto-destruiçã o melancó lica. A culpa
que sustenta os laços sociais sob a égide do poder tem uma gênese em fantasias
inconscientes construídas a partir de objetos que perdemos, e muito pouco tem a
ver com a expressã o de uma responsabilidade diante da perpetuaçã o da vida
institucional assumida de forma consciente.
68
FREUD, Sigmund; “O mal estar na civilização”, op. cit., p. 106
Psicologias do fascismo
Aula 4
Na aula de hoje, vamos terminar nossa leitura de Psicologia das massas e análise
do eu através do comentá rio de seus ú ltimos capítulos. Neles, veremos a
mobilizaçã o feita por Freud a partir da hipó tese antropoló gica do assassinato de
uma figura coercitiva como fundamento do vínculo social. Assassinato provoca
uma circulaçã o de afetos que pulsam entre a melancolia e a mania, definindo as
dinâ micas regressiva no interior da massa.
Antes, gostaria de lembrar a vocês o que vimos até agora, qual o saldo de
nosso trajeto de leitura. Vimos como Freud abria o espaço para uma psicologia
das massas que se enraizava na aná lise dos processos de formaçã o da
individualidade moderna. Sua ideia central era de que os fenô menos sociais de
regressã o nã o poderiam ser vistos como a emergência de estruturas arcaicas
sedimentadas em um inconsciente que se confundiria com a dimensã o do
irracional. Eles eram o anverso necessá rio dos processos hegemô nicos de
constituiçã o de individualidades. Freud procurou mostrar como individualidades
eram constituídas a partir de identificaçõ es através das quais lidá vamos com
nossas contradiçõ es, nossas bivalências, nossa polimorfia a partir da
internalizaçã o de figuras disciplinares que tiravam sua força nã o daquilo que eles
eram capazes de produzir, mas da maneira com que eles eram capazes de
perpetuar nossa dependência a um poder social que nã o poderia entregar o
amparo que prometia. Ou seja, a ideia central de Freud é que a individualidade
moderna é estruturalmente dividida, ela é um espaço estrutural de sofrimento
por estar cindida entre a disciplina e sua transgressã o, entre a unidade e a
multiplicidade, por ser o campo de uma espécie de guerra civil.
As formas de sua gestã o desta divisã o serã o o fundamento para os
processos de regressã o social. Assim, as regressõ es nã o serã o simplesmente o
retorno a alguma forma de demanda de proteçã o paterna, de retorno à
simplicidade dicotô mica de situaçõ es. Elas serã o, na verdade, as formas de gestã o
da divisã o subjetiva. Vimos uma dessas formas de gestã o através da melancolia.
Eu afirmara que a massa é uma produçã o melancó lica, que a verdadeira violência
do poder consiste em submeter sujeitos à melancolia, que há uma melancolia das
massas. Isto nos permitiu compreender um pouco porque Freud insiste tanto em
levar em conta a natureza vertical da relaçã o entre massas e líder. Pois ele quer
mostrar como a violência das massas contra grupos e populaçõ es específicas, sua
relaçã o hipnotizada ao líder nã o sã o explosõ es arcaicas de violência originá ria,
nem a expressã o de uma necessidade animal de submissã o e de comando. Elas
sã o expressõ es de reaçõ es melancó licas. A violência contra grupos é
indissociá vel da maneira com que objetos anteriormente amados e investidos
serã o postos em uma série na qual encontraremos ao final os grupos atuais que
sã o alvos de violência. Daí porque essas dinâ micas de massa sã o tã o vinculadas
à s temá ticas da traiçã o, da luta contra os infiltrados, contra aqueles que parecem
conosco mas nã o o sã o.
Baseando-se em uma interversã o do afeto, de amor a ó dio, note-se como
este “ó dio” é estruturalmente diferente, pois ele é um afeto através do qual
sujeitos se voltam contra aquilo que um dia amaram, o que faz dele um
sentimento muito mais contínuo. A dimensã o maníaca da açã o das massas será
sempre marcada por tal dinâ mica. Ela se baseia no cará ter de “festa” que esta
esse “perió dico desrespeito das proibiçõ es”69 produz.
Por outro lado, a identificaçã o das massas ao líder é descrita por Freud
como uma identificaçã o superegó ica. Isto significa que sua funçã o é perpetuar
uma fantasia que dará sustentaçã o ao poder. Esta fantasia é baseada em uma
demanda de amor cujo resultado só pode ser certo empobrecimento do Eu, certa
paralisia de sua açã o. Pois este amor é baseada na internalizaçã o de objetos
perdidos que agora se voltam contra o pró prio Eu em uma dinâ mica de auto-
reprimenda e auto-depreciaçã o. A funçã o do líder, neste caso, é levar os
indivíduos a exigências cada vez mais superlativas, como se estivéssemos diante
de provas de amor que precisam sempre serem dobradas. O fim nã o poderia ser
outro que uma relaçã o na qual o pró prio líder se volta à massa como se ela nã o
estivesse à altura de seu destino, como se ela o tivesse traído. O líder promete à
massa que ela será “grande novamente”. Ele entrega sempre uma catá strofe na
qual todos sã o jogados à sua pró pria pequenez.
69
FREUD, Psicologia das massas, p. 91
70
FREUD, Psicologia das massas ... – capítulo IX
sentimento inicialmente hostil em vínculo positivo próprio à natureza da
identificação”71.
Por outro lado, a noção de instinto gregário passa ao largo, mais uma vez, do
caráter constitutivo das relações sociais de dominação. Ela não fornece um quadro
explicativo sólido para a compreensão da figura do líder (ou de alguma instância
central de autoridade) como elemento fundador da massa. Pois, para compreender o
problema da natureza dos vínculos sociais, não é possível abstrair o problema dos
modos de interação social do problema do poder. Ao contrário, devemos sempre
lembrar que relações simétricas fundam-se a partir do reconhecimento anterior da
essencialidade de relações assimétricas. Daí porque o problema freudiano é, seguindo
esta longa tradição de reflexão sobre o fato político que vincula o problema do
política à assimetria do poder, compreender porque: “todos querem ser dominados por
um só”72. É para tentar dar conta deste problema que Freud retorna, mais uma vez, ao
seu mito antropogenético do assassinato do pai primevo.
De fato, Freud é claro em seus propósitos quando afirma que: “A massa nos
aparece como uma revivescência da horda originária. Da mesma forma que o homem
das origens manteve-se virtualmente em cada indivíduo, a horda originária pode se
constituir a partir de qualquer agregado humano” 73.A função desta articulação entre
massa e horda originária consiste, principalmente, em fornecer uma perspectiva de
apreensão das peculiaridades da figura do líder das massas modernas. Tanto é assim
que Freud não deixa de lembrar: “as massas humanas nos mostram, mais uma vez, a
imagem familiar de um indivíduo isolado, onipotente no interior de uma horda de
iguais, imagem igualmente presente na nossa representação da horda originária”74.
Esta aproximação é fundamental no interior do quadro freudiano de análise porque se
trata de mostrar como a força de coesão do líder das massas não vem, simplesmente,
da sua capacidade em se colocar como tipo ideal que regula sua conduta, por
exemplo, a partir do ascetismo do dever, da imagem de auto-controle sereno de si, da
ética da convicção, como poderíamos imaginar se compreendermos a gênese das
figuras de autoridade como o que advém destes ideais do eu sintetizados pela
internalização da lei paterna. Ao contrário, e este foi um ponto claramente visto por
alguém como Adorno, as figuras de liderança são encarnações de algo como um
supereu social. Daí porque Freud pode afirmar que: “o pai originário é o ideal da
massa que domina o eu no lugar do ideal do eu”75.
Esta natureza própria ao supereu social apropriado pelo líder explica, aos olhos
de Freud, dois traços maiores advindos das figuras modernas de liderança. O primeiro
é que, enquanto tipo ideal pautado pela imagem arcaica de um pai primevo que não se
submete aos imperativos de repressão do desejo, o líder consegue mobilizar uma
revolta contra a civilização e sua lógica de socialização (já que fornece uma imagem
para além da lógica repressiva), mas perpetuando relações de dominação instrumental.
Ele mobiliza representações vinculadas ao fantasma de que a demanda de amor que
suporta os processos sociais de identificação seja direcionada e ouvida por figuras
marcadas pela onipotência (maneira de bloquear a rivalidade própria à ambivalência
da figura paterna na família burguesa). Neste sentido, sua legitimidade vem da força
em mobilizar continuamente estruturas fantasmáticas inconscientes pressupostas por
processos de socialização no interior da família burguesa.
71
idem
72
idem
73
idem, - capítulo X
74
idem
75
FREUD, idem, cap. X
Aqui, vale a pena retornar a algumas considerações postas rapidamente no
final de nossa leitura de Totem e tabu.
Tal afirmaçã o é repetida, a sua maneira, por alguém a milhas de distâ ncia de
Lévi-Strauss, Herbert Marcuse:
76
LEVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté, p. 610
77
MARCUSE, Eros e civilização, p. 70
78
BALIBAR, Etienne; L’invention du surmoi, p. 32
79
FREUD, Totem und tabu, p. 125
Tal relaçã o absolutamente particular indicaria uma certa forma de participaçã o:
“quanto mais voltamos no tempo, mais evidente fica que o membro de uma clã se
considera como fazendo parte da mesma espécie que seu totem”, como se os
membros do clã descendessem de um totem elevado à condiçã o de ancestral. Isto
permite a Freud afirmar que a questã o central do totemismo estaria presente nas
relaçõ es entre a descendência totêmica e os imperativos de exogamia.
Com este problema em vista, Freud passa em revista à s teorias sobre a
origem do totemismo, organizando, para isto três grupos explicativos. No
primeiro, estariam explicaçõ es de cunho nominalista. O totem seria uma
designaçã o nominal através da qual um clã tomaria o nome de um animal de
empréstimo a fim de realizar exigências de distinçã o. Posteriormente tal
empréstimo teria se naturalizado, fazendo com que a ilusã o da descendência
totêmica fosse criada. No segundo grupo, estariam as ditas teses socioló gicas que
veem no totemismo a representaçã o visível de uma religiã o social. Por fim, as
teses psicoló gicas baseadas na ideia de que o totemismo seria resultado da
crença primitiva a respeito da transmigraçã o das almas e da reproduçã o.
Nenhuma destas explicaçõ es satisfaz Freud, já que todas elas parecem
ignorar a relaçã o necessá ria entre elaboraçã o de conflitos pulsionais e formaçã o
de estruturas sociais, ou antes, entre economia libidinal e teoria social. Desta
forma, ele passa entã o a construir, a partir de teorias distintas, um outro quadro
explicativo para o fenô meno do totemismo. Dois nomes sã o fundamentais aqui:
Charles Darwin com sua teoria da horda primitiva apresentada em A
descendência do homem e Seleção em relação ao sexo, de 1871 e William
Robertson Smith com sua teoria do festim totêmico apresentada em A religião dos
semitas, de 1889.
Baseado nas teorias de Darwin, Freud afirma que o estado social
originá rio do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior
das quais o macho mais forte e mais velho impediria a promiscuidade sexual,
produzindo com isto a exogamia. Para acoplar tal teoria aos esquemas pró prios
ao totemismo, bastou a Freud recorrer à s similitudes entre fato social e sintoma,
no caso, sintomas infantis de fobia de animais. Por exemplo, é sintomá tico como
Freud compreendia a ló gica que regia a constituiçã o do objeto fó bico do pequeno
Hans (o medo de ser mordido por um cavalo). Um dos pó los de produçã o da
fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai, ou seja, a mesma representaçã o
paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca uma instabilidade no interior da
identidade da representaçã o. Para rejeitar tal ambivalência, Hans desloca a
angú stia diante do pai para uma angú stia diante de cavalos e denega a moçã o
agressiva contra o pai. O cavalo aparece assim como um “substituto do pai
(Vatersurrogat)”. É exatamente a mesma ló gica que permitirá a Freud afirmar
que o animal totem nã o seria outra coisa que uma representaçã o substituta do
pai, da mesma forma que o animal no interior de uma fobia infantil. Daí a
afirmaçã o central que permite a compreensã o do sentido das interdiçõ es tabu
através do uso do Complexo de É dipo:
Afirmaçõ es como esta renderam vá rias críticas ao texto freudiano, já que se trata
de assumir a universalidade do Complexo de É dipo (um complexo resultante de
certas características específicas da família burguesa, como a sobreposiçã o de
rivalidade e identificaçã o com a figura paterna) como dispositivo geral de
socializaçã o do desejo no interior da cultura.
Por fim, Freud apoia-se em Robertson Smith a fim de insistir que o
sacrifício e a festa sã o prá ticas sociais fundadoras e renovadoras dos vínculos
sociais. Neste sentido, lá onde há sacrifício e festa há uma organizaçã o social
baseada na circulaçã o de dons (sacrifício) e no reconhecimento de uma Lei que
se faz sentir no momento mesmo em que é suspensa (festa). Smith lembra que: ‘a
forma mais antiga do sacrifício, anterior ao uso do fogo e ao conhecimento da
agricultura, era o sacrifício animal cuja carne e sangue eram consumidos em
comum pelo deus e seus adoradores” 81 isto a fim de identificar o animal
sacrificado e o animal totêmico. Daí a hipó tese do “festim totêmico”:
A partir daí, as peças estã o armadas para que Freud apresente a hipó tese
do assassinato do pai primevo, senhor da horda originá ria:
Deste sentimento de culpa, segue-se a renú ncia à s mulheres desejadas (e, com
ela, a exogamia), a conservaçã o da organizaçã o social comunitá ria, assim como a
80
FREUD, Totem e tabu
81
idem
82
idem
83
idem
preservaçã o do lugar do pai primevo como um lugar vazio ocupado por um
substituto, o totem, que deve a partir de entã o ser objeto de homenagens e
cuidados. O totemismo aparece assim como um sistema de defesa contra o
sentimento de culpa. Sem o totemismo, tal sentimento recrudesce novamente (o
que explicaria seu retorno na modernidade).
Com este esquema explicativo, Freud procura dar conta do advento da
religiã o (que teria herdado do totemismo este esquema de sentimento de culpa
em relaçã o a uma representaçã o paterna), assim como a transformaçã o de uma
“sociedade sem pais” em sociedade patriarcal. Sociedade, no entanto, em que a
figura paterna é uma pá lida encarnaçã o desta representaçã o do pai primevo.
Mas o que podemos dizer deste mito freudiano? Ha duas dimensõ es do
problema que merecem nossa atençã o. A primeiro diz respeito a esta figura do
poder que Freud apresenta através da hipó tese do pai primevo. A segunda diz
respeito à anterioridade da culpabilidade em relaçã o ao estabelecimento da Lei
social e da moralidade.
Sobre o primeiro ponto, lembremos que o mito freudiano constró i o pai
primevo como uma figura na qual convergem a enunciaçã o soberana da Lei e
exigências de regulaçã o social que tocam, principalmente, expectativas de
satisfaçã o sexual. Como se uma genealogia do poder fosse, necessariamente,
arqueologia da maneira com o que é da ordem do sexual é regulado no interior
do tecido social. Nã o é por acaso que a posse do macho mais forte nã o é simples
posse de bens, mas posse de mulheres. Freud acaba por dar forma a esta crença
moderna de que o sexual transformara-se em fator central da política. Neste
sentido, lembremos desta afirmaçã o fundamental de Foucault: : ”o que é pró prio
das sociedades modernas nã o é o terem condenado o sexo a permanecer na
obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o
como o segredo”84. Um valorizaçã o que permitiu que algo da ordem das
expectativas utó picas que animaram a esfera do político transformasse o que é
da ordem do sexual em campo fundamental de intervençã o social. O que explica
a constataçã o surpresa de Foucault:
É tendo tais questõ es em mente que podemos ver o pai primevo freudiano
como um estranha figuraçã o, talvez a ú nica possível à sensibilidade moderna, do
lugar de exceçã o pró prio à soberania. O lugar do pai primevo é um lugar
soberano por deixar à vista esta articulaçã o, que estaria escondida em toda
formaçã o social (que seria a dimensã o recalcada de toda formaçã o social
“racionalizada”), onde a enunciaçã o do poder e a apropriaçã o do gozo se
vinculam. O mito do pai primevo é assim a representaçã o imaginá ria pró pria a
um tempo que vê a essência de todo poder como regulaçã o e administraçã o da
satisfaçã o subjetiva. Se o mito é aquilo que fornece uma matriz explicativa capaz
de guiar a conduta dos sujeitos diante de certos conflitos socialmente
vivenciados, entã o podemos dizer que, através do mito do pai primevo, Freud
84
FOUCAULT, História da sexualidade I, p. 36
85
idem, p. 13
acaba por nos dizer (mesmo se a contragosto) que o sujeitos modernos agem
como quem vê instituiçõ es e figuras reconhecidas de autoridade como aquilo que
instaura e é responsá vel por uma distribuiçã o desigual das possibilidades de
satisfaçã o subjetiva. Maneira de conservar certas representaçõ es fantasmá ticas
de satisfaçã o que só podem ter realidade fantasmá tica.
As consequências políticas de tal representaçã o imaginá ria serã o
exploradas em Psicologia das massas e análise do eu. Ao invés do que poderíamos
normalmente esperar (ou seja, consolidaçã o de demandas de “redistribuiçã o”),
as sociedades modernas estariam abertas ao retorno de figuras superegó icas de
autoridade vindas na linha direta do mito do pai primevo, deste objeto perdido
inicial, ou que permitem a identificaçã o com tais tipos ideais. Neste sentido,
lembremos como algumas das grandes contribuiçõ es da Escola de Frankfurt na
aná lise dos líderes fascistas era a insistência de que nã o está vamos diante de
líderes que pregavam alguma forma de sistema repressivo “law and order”, mas
de encarnaçõ es de sistemas só cio-políticos voltados para a mobilizaçã o contínua
de exigências libidinais e de transgressõ es controladas. Daí porque eles
lembravam que a verdadeira aná lise da ideologia fascista era uma aná lise da
economia libidinal que suportava o vínculo a tal ideologia.
Os irmã os haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos
outros no tocante à s mulheres. Cada um desejaria, como o pai, tê-las todas
para si, e na luta de todos contra todos a nova organizaçã o sucumbiria.
Nenhum era tã o mais forte que os outros, de modo a poder assumir o
papel do pai. Assim, os irmã os nã o tiveram alternativa, querendo viver
juntos, senã o - talvez apó s superarem graves incidentes – instituir a
proibiçã o do incesto, com que renunciavam simultaneamente à s mulheres
que desejavam, pelas quais haviam, antes de tudo, eliminado o pai 88.
86
(FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do eu, p. 94)
87
Difícil discutir tal função da fantasia social do pai primevo sem recorrer à noção de decisão em
SCHMITT, Carl; Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität, Berlin: Duncker
and Humblot, 1934. Como se tratasse, em Freud, de fornecer a economia libidinal da soberania.
88
FREUD, Sigmund; “Totem e tabu”, In: Obras completas vol. 11, São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 220
89
Idem, p. 226
sacralizaçã o do sangue comum, na ênfase na solidariedade de todas as vidas do
mesmo clã ”90.
Mas esta comunidade de iguais, esta sociedade sem pais, tem uma
fragilidade estrutural: tal lugar vazio é suplementado por uma elaboraçã o
fantasmá tica. A fantasia do pai primevo nã o foi abolida, já que ele permanece na
vida psíquica dos sujeitos sob a forma de um sentimento comum de culpa como
fundamento de coesã o social, que denuncia, por outro lado, o desejo que tal lugar
seja ocupado. Assim, o afeto de solidariedade que a comunidade dos iguais
permite circular é também responsá vel pela paralisia social de quem continua
sustentando a “nostalgia pelo pai” (Vatersehnsucht) agora elevado à condiçã o de
objeto perdido. Este pai que nã o está lá , mas que faz sua latência ser sentida,
retornará sob uma forma melancó lica.
A sociedade sem pais deverá assim converter-se gradualmente em uma
sociedade organizada de forma patriarcal. Pois o lugar vazio do poder é, ao
mesmo tempo, lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceçã o
que se coloca em posiçã o soberana. Isto leva Freud a afirmar:
90
Idem, p. 222
91
Idem, p. 227
Psicologias do fascismo
Aula 5
Demandas e afetos
92
LACLAU, Ernesto; A razão populista, São Paulo: Três Estrelas, 2014. Discuto mais detidamente a
hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de SAFATLE, Vladimir; O circuito dos afetos: corpos
políticos, desamparo e o fim do indivíduo, Belo Horizonte: Autêntica, 2016
O projeto de Laclau parte da impossibilidade de pensar o campo social a
partir da noçã o de grupos em conflito. A noçã o de grupo pressupõ e uma
homogeneidade de interesse na constituiçã o de atores sociais. Cada ator é
portador de sistemas homogêneos de interesses que entram em conflito com
interesses de grupos opostos. Na verdade, Laclau se propõ e a dar um passo atrá s
a fim de abrir espaço a uma noçã o na qual grupos aparecem como arranjos
desenvolvidos a partir de demandas muitas vezes heterogêneas. Neste sentido, é
a noçã o de “demanda” que ganha importâ ncia. Entende-se, neste contexto, por
demanda uma petição, uma exigência. O que deixa claro seu horizonte de direçã o
a um Outro que deve, de certa maneira, ocupar uma dimensã o de poder. Grupos
podem conter demandas muitas vezes contraditó rias, heteró clitas e toda questã o
gira em torno de compreender como demandas contraditó rias podem ser, muitas
vezes, agenciadas em incorporaçõ es unificadoras. No caso, como é possível a
criaçã o de hegemonia a partir de um terreno socialmente fragmentado, disperso
e mú ltiplo. Lembremos que, neste contexto, hegemonia deve ser compreendido
como:
93
LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal; Hegemony and socialist strategy, p. 7
seria apenas a ênfase em uma ló gica política que é um ingrediante
necessá rio da política tout court94.
Laclau está a dizer que as dinâ micas internas ao populismo sã o pró prias a
todo e qualquer embate político. Laclau chega a ver no populismo “a via real para
compreender algo relativo à constituiçã o ontoló gica do político enquanto tal” 95.
Isto a ponto de defender nã o haver “nenhuma intervençã o política que nã o seja,
até certo ponto, populista”96. A maneira depreciativa com a qual tais dinâ micas
aparecem seriam, na verdade, parte de uma estratégia de desqualificaçã o da
emergência de uma política popular a partir do final do século XIX. Daí porque
Laclau relê Le Bon a fim de afirmar que sua maneira de descrever processos de
regressã o social nã o é outra coisa que a descriçã o dos processos normais de
produçã o de significaçã o social e sentido. Ele relê Hyppolite Taine, Lombroso,
Sighele para mostrar como as representaçõ es das massas tinham como objetivo
dar conta das dinâ micas afetivas que constituíam os laços sociais, mas sem nunca
perceber que está vamos a descrever os processos gerais de constituiçã o de
formas de corpo social.
É neste ponto que Laclau recorre a Freud. Ele verá em Psicologia das
massas e análise do eu tanto a descriçã o da ló gica imanente à s identidades
coletivas populares quanto as formas de regressã o autoritá ria. Partindo das
mesmas descriçõ es do advento da sociedade de massas que influenciaram Freud
(Le Bon, Tarde, e McDougall) a fim de deixar evidente seu cará ter de reaçã o ao
aparecimento de identidades populares no campo político, Laclau retorna ao
texto freudiano para explorar a dubiedade do fenô meno identificató rio no qual
sua psicologia das massas se baseia:
Ou seja, Laclau procura definir uma diferença entre processos identificató rios a
fim de distinguir uma identificaçã o autoritá ria (esta na qual o grau de distâ ncia
entre o eu e a ideal é grande) e outra pró pria a uma dinâ mica de incorporaçã o
popular (esta na qual temos um processo geral de identificaçã o mú tua).
Mas a mera proximidade entre eu e ideal do eu nos processos de
identificaçã o entre líder e povo nã o é suficiente para determinarmos uma
natureza nã o autoritá ria dos vínculos políticos. Adorno insistia que os líderes
fascistas eram exatamente aqueles que se constituíam a partir de uma distâ ncia
mínima entre o eu e o ideal do eu. Pois a condiçã o de ser, ao mesmo tempo, o
94
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 33
95
LACLAU, Ernesto; La razón populista, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011, p. 91
96
Idem, p. 195
97
Idem, p. 87
ideal do eu e a representaçã o de um mesmo objeto internalizado - que permite a
construçã o de relaçõ es gerais de equivalência na massa - faz o líder tender a
aparecer como “o alargamento da pró pria personalidade do sujeito, uma
projeçã o coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante
a ú ltima fase da infâ ncia do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual” 98.
Adorno explora tal traço ao afirmar que:
O vazio instaurador
Notemos alguns pontos aqui. O primeiro foi bem salientado por Slavoj
Zizek:
Freud nã o falaria outra coisa ao denunciar a dinâ mica autoritá ria da psicologia
das massas, mas Laclau nã o vê tal cisã o como expressã o necessá ria de prá ticas
segregacionistas. Vá rios movimentos populistas, em especial os latino-
americanos, se servem desta totalizaçã o por exclusã o para operar no â mbito
político das lutas de classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau
103
ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
104
LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
desconheceria a luta de classes. Desta forma, o populismo pode dividir a
sociedade em dois campos antagô nicos no interior do qual o povo, mesmo nã o se
confundindo com a totalidade dos membros da comunidade, coloca-se como
parte que procura ser concebida como ú nica totalidade politicamente legítima,
plebs até entã o nã o-representada que reclama ser o ú nico populus legítimo.
Assim se constitui um povo. O que nã o deixa de ressoar uma ideia fundamental
de Carl Schmitt:
105
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
106
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 110
107
Idem, p. 128
que sã o totalmente heterogêneas entre si. Isto é uma identidade popular
que funciona como um significante tendencialmente vazio108.
Laclau fornece vá rios exemplos para dar conta de um fenô meno que, em
seu caso, certamente tem expressõ es profundas no peronismo e em outras
formas de populismo latino-americano reformista, capazes de permitir a
constituiçã o de identidades coletivas. Nestes casos, o populismo demonstrou tal
funçã o pelo fato da defesa da ordem institucional nestes países ter sempre
estado, em larga medida, vinculada à s demandas hegemô nicas de setores
conservadores da sociedade. O que pode nã o ser o caso. Tal indeterminaçã o de
resultados relativos a fenô menos populistas permite a Laclau ver no papel
unificador de Nelson Mandela, que acaba por se confundir com o nome do
pró prio Estado, na política cosa nostra do governador paulista Adhemar de
Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do antiinstitucionalismo
populista. Pois:
Transformação e paralisia
108
Idem, p. 125
109
Idem, p. 136
110
Cf. ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 287
posiçã o da liderança implica reconhecimento de um lugar, nã o completamente
enquadrado do ponto de vista institucional, marcado pela presença da natureza
constituinte da vontade política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se
transforme na gestã o administrativa das possibilidades previamente
determinadas e constrangidas pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o
espaço aberto para a recorrência contínua de figuras de autoridade e liderança
que parecem periodicamente se alimentar de fantasias arcaicas de segurança,
proteçã o e de medo. Esta ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a
pró pria ambivalência da incorporaçã o em política. Tanto é assim que a definiçã o
de demandas democrá ticas fornecida por Laclau é bastante sumá ria:
112
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
113
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
No entanto, para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle
socialmente validado nã o é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento
que seja, como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar
sempre será uma operaçã o servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a
divisã o social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham
a posse dos meios de produçã o e de seus frutos. Para Bataille, isto nã o mudará o
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produçã o e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cá lculo de tempo e metas,
nã o se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final
de cada objeto produzido, avaliar cada açã o a partir do valor que ela produziu.
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que
sã o homogêneos. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo minhas
atividades a partir da ló gica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a
medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente,
o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille, o
verdadeiro nú cleo da experiência de alienaçã o produzida pela sociedade do
trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:
114
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
115
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas açõ es, nã o apenas suas açõ es no interior do mundo do trabalho, mas
também suas açõ es relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relaçõ es entre pessoas
acaba ganhando a forma de relaçõ es entre coisas: “a humanidade, no tempo
humano, antianimal do trabalho é em nó s o que nos reduz a coisas”116.
Segundo Bataille, esta homogeneidade social produzida pelo trabalho
exige a figura do Estado. Pois a funçã o do Estado seria garantir a homogeneidade
e usar sua autoridade contra forças inassimilá veis. O processo produtivo produz,
no entanto, contradiçõ es ligadas ao desenvolvimento da vida econô mica. Isso
pode levar “uma parte apreciá vel da massa dos indivíduos homogêneos a cessar
de ter interesse na conservaçã o da forma de homogeneidade existente” 117. Esta
parte pode se associar a formas heterogêneas já existentes.
O sagrado e o poder
116
Idem; O erotismo, p. 184
117
Idem, La structure psychologique du fascisme, p. 342
118
Idem; A parte maldita, p. 21
Há vá rias questõ es que poderíamos colocar a partir de afirmaçõ es desta
natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruiçã o que, do
ponto de vista das exigências econô micas de produçã o e maximizaçã o, sã o
simplesmente irracionais. Este excesso tem duas formas principais, duas formas
contrá rias à utilidade e ao cá lculo: uma forma superior e outra inferior. Uma
pura e outra impura. Uma que tem um valor elevado e outra que tem um valor .
Esta distinçã o é fundamental e implica duas dinâ micas possíveis à s forças
heterogêneas. Elas podem aparecer como um poder intocá vel e purificado, sem
medida comum com o mundo homogêneo. Ou elas podem aparecer como um
aquém da forma, como uma potência do informe. Um exemplo dessas
determinaçõ es contrá rias encontra-se na palavra sacer.
Bataille afirma entã o que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instâ ncia
dirigente representada pela autoridade do líder:
O fluxo afetivo que une o líder aos seus apoiadores – que toma a forma de
uma identificaçã o moral destes com aquele que eles seguem (e
reciprocamente) - é funçã o da consciência comum dos poderes e das
energias cada vez mais violentas, cada vez mais desmedidas que se
acumulam na pessoa do chefe e se tornam indefinidamente disponíveis
nele119.
O sacrifício
120
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 358
121
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
122
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
123
Idem, O erotismo, p. 116
O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a
revelaçã o de um corpo em nó s que é feito de carne, ou seja, de algo pró prio a
uma corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A
carne, como dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria
anô nima que me aproxima do que exige uma explosã o violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressã o daquilo que
Bataille chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
nã o parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressã o
invertida dos processos de reproduçã o material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histó rico marxista. Ela é a composiçã o material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direçã o a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direçã o a uma matéria que é produçã o contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximaçã o entre sacrifício e amor
nã o é feita em nome da visã o moral de que a relaçã o afetiva duradoura exige a
restriçã o dos interesses pró prios em nome da construçã o de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participaçã o através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que nã o é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que nã o pode ser visto como expressã o de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mú tuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenô meno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletó rica, de uma ordem que
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada” 124. Entre o amor
dos filó sofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinçã o entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que nã o aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e nã o sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
124
Idem, p. 129
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
nã o como identidade, mas como espaço de confrontaçã o com a heterogeneidade
que nã o se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusã o que
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusã o fosse a condiçã o para uma
experiência social de emancipaçã o em relaçã o à s amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinaçã o pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusã o pró prio à s massas fascistas, com sua fusã o
organizada a partir da identificaçã o a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por nã o
saberem como dar conta de uma experiência da heterogeneidade que se
manifesta sob a forma de desejo de fusã o e de perda de limites da
individualidade. Vimos como o fascismo seria maneira de absorver tal desejo
através de uma política das massas, mas onde o desejo de fusã o produz uma
homogeneidade organizada sob a identificaçã o, profundamente disciplinar, a um
líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade, pela depuraçã o e
purificaçã o do corpo social. Maneira da identidade ter a ú ltima palavra, mesmo
se através do uso do desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e
purificar a heterogeneidade, o fascismo acaba por destruir a heterogeneidade
que está a usar”125.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que nã o se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”126. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta nã o é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e nã o haverá superaçã o do fascismo se nã o lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulaçã o do desejo. No fundo, a questã o política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmaçã o importante
como:
127
Idem, p. 163
Psicologias do fascismo
Aula 7
Fascismo e sexualidade
129
Idem, p. 299
Ao voltarmos para a histó ria da repressã o sexual descobrimos que ela nã o
nasceu com a cultura, que ela nã o é condiçã o para a formaçã o da cultura,
mas que ela iniciou relativamente tarde, apó s a instauraçã o do
patriarcado autoritá rio e do nascimento das classes130.
Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socializaçã o
que nã o passam pela repressã o das pulsõ es sexuais. No entanto, um modelo de
dominaçã o política baseado no patriarcado autoritá rio e um modelo de
espoliaçã o econô mica baseado na perpetuaçã o da sociedade de classes é
profundamente solidá rio da generalizaçã o de formas de repressã o. Reich eleva a
família autoritá ria, cujo teatro inconsciente nos é fornecido pelo Complexo de
É dipo, ao nú cleo central de reproduçã o social das dinâ micas de regressã o. Ela
será a “célula reacioná ria central”131, um Estado autoritá rio em miniatura que
visa nã o apenas a naturalizaçã o de um tipo patriarcal de dominaçã o, mas
também a oposiçã o da mulher como genitora e a mulher como ser sexual, de
onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias numerosas: estratégia
clá ssica para submeter a mulher a condiçã o de genitora. O que significa que
apenas o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento de uma
sociedade emancipada. Apenas a anulaçã o de uma prá tica clínica baseada na
reduçã o dos conflitos psíquicos aos processos de identificaçã o no interior do
nú cleo familiar poderia contribuir para a emancipaçã o.
Ou seja, Reich procura fornecer uma aná lise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressã o social em operaçã o nas
dinâ micas de socializaçã o, em especial na família. O que significa aceitar que:
“todo espírito autenticamente revolucioná rio, toda arte e toda verdadeira ciência
tem suas raízes no nú cleo bioló gico natural do homem” 132. A emancipaçã o social
é indissociá vel de uma certa ressureiçã o da natureza negada, da afirmaçã o de
uma força bioló gica que permite aos sujeitos amar, conhecer e trabalhar. Nã o
será por outra razã o que Reich passará para a histó ria como aquele que
inventará a noçã o de “revoluçã o sexual”. Nã o haverá revoluçã o efetiva sem a
quebra das dinâ micas repressivas que fundamentam os processos de
socializaçã o.
Esta será a razã o que levará Reich a criticar as revoluçõ es comunistas que
ocorrem no início do século XX. A seu ver, o potencial revolucioná rio desaparece
na medida que as tentativas iniciais de transformaçã o das estruturas das
relaçõ es entre os sexos, dos modos de reproduçã o da família sã o abandonadas
em prol do fortalecimento dos modelos autoritá rios tradicionais. Lembremos
como, de fato, os primeiros anos da Revoluçã o Russa foram marcados pela
descriminalizaçã o da homossexualidade (1917), pelo reconhecimento do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalizaçã o do aborto (1919), além das
defesas da uniã o livre, da emancipaçã o da mulher através do trabalho
assalariado (criaçã o massiva de creches e escolas em período integral), da
socializaçã o dos trabalhos domésticos (muitos dos trabalhos domésticos seriam
transferidos para a esfera pú blica através de lavanderias coletivas, refeitó rios
pú blicos etc.) e da crítica da família (criaçã o do casamento civil, supressã o do
poder marital, exercício conjunto da autoridade dos pais sobre os filhos, e
130
Idem, p. 73
131
Idem, p. 164
132
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, op. cit., p. 15
facilitaçã o extrema dos processos de divó rcio). Tais mudanças se consolidam
através do Có digo das Leis sobre Casamento, Família e Tutela de 1918, mas que
serã o revistas no período stalinista.
A forma das reaçõ es do ego, que difere de um cará ter para outro mesmo
quando os conteú dos das experiências sã o semelhantes, pode ser
remontada à s experiências infantis, da mesma maneira que o conteú do
dos sintomas e das fantasias133.
135
Idem, p. 19
136
Idem, p. 74
137
Idem, p. 104
A partir desta estrutura repressiva de base, Reich procura derivar
algumas das características principais do fascismo, a saber, o racismo e sua
variante anti-semita, o lugar das temá ticas religiosas (o que Reich chama de
misticismo) e a fantasia da purificaçã o do corpo social que fundamenta uma
concepçã o unitá ria e identitá ria de naçã o, de estado e de pá tria. Analisemos cada
um desses pontos.
A respeito dos vínculos entre fascismo e religiã o, Reich afirma que eles se
fundam na reversã o do cará ter masoquista da antiga religiã o patriarcal em
sadismo. Daí porque um regime que se coloca como a redençã o sagrada contra a
decadência ateísta pode admitir de forma tã o orgâ nica todos os padrõ es de
violência.
Por outro lado, essa experiência religiosa nada tem a ver, por exemplo,
com a defesa de Georges Bataille a respeito da força de descentramento do
sagrado. Antes, ela é reduçã o da temá tica religiosa à defesa contra a destituiçã o
das estruturas psicoló gicas de reproduçã o da vida social sob a forma da
“individualidade”. Reich cita, por exemplo, um trecho de texto de propaganda
fascista:
Assim, Reich insiste que o racismo nã o é apenas uma justificaçã o bioló gica
para aspiraçõ es imperialistas. Sua posiçã o estrutural e decisiva está ligada, por
um lado, à clara desumanizaçã o dos que serã o objetos da reificaçã o má xima, pois
serã o reduzidos à condiçã o de objeto. Mas o racismo fascista, como é voltado
contra setores nã o submetidos à reificaçã o da escravidã o, como os judeus, é para
Reich fruto de estrutura psicoló gica precisa. Nele, pulsa as formas mais
elementares de recalque sexual através da temá tica da purificaçã o das raças e da
hierarquia pressuposta que procura aproximar motivos teoló gicos e geográ ficos:
Ou seja, o racismo é indissociá vel das dinâ micas pró prias à repressã o.
Sabemos como tal divisã o emtre o nó rdico luminosos e o semita instintual marca
também os negros e os africanos. O fascismo relega o sexual e o sensual à s raças
estrangeiras, aos costumes que pervertem nosso povo. Reich mostra, por
exemplo, a abundante propaganda produzida pelos nazistas alemã es a respeito
da pretensa promiscuidade da entã o Uniã o Soviética, onde nã o haveria mais
casamento, onde mulheres seriam disponíveis a todos em uma espécie de
prostituiçã o generalizada, de socializaçã o das mulheres, onde “nã o haveria mais
uniã o entre homem e mulher, onde se viveria hoje com uma pessoa, amanhã com
outra, de acordo com seus caprichos”141.
Mas notemos como colocar o problema do racismo e do antisemitismo
inerente ao fascismo desta forma é maneira de afirmar que sua superaçã o nã o
passa pela denú ncia das dinâ micas econô micas e de exploraçã o imanentes a tal
violência social. Na verdade, os problemas do racismos e do antisemitismo
exigem o esclarecimento de seu fundamento sexual e a atuaçã o neste nível. O
racismo para Reich se combate através de uma revoluçã o sexual.
Reich tem o mérito de expor como nã o há autoritarismo sem regulaçã o
necessá ria da vida sexual, pois se trata de lembrar que isto nã o é uma manobra
diversionista, nã o é um elemento auxiliar, mas o fundamento necessá rio de toda
servidã o e sujeiçã o social. Reich era tã o consciente deste ponto que, no início dos
anos trinta, organizará açõ es chamadas de Sex-Pol que visavam fornecer à s
classes proletá rias esclarecimentos e auxílios para uma sexualidade livre.
140
Idem, p. 143
141
Idem, p. 170
Psicologias do fascismo
Aula 8
144
GUATTARI, Félix in DELEUZE, Gilles; L’île déserte, Paris: Minuit, pp. 301-302
Mas havia algo mais no projeto de Deleuze e Guattari e que faz de
“Capitalismo e esquizofrenia” uma experiência intelectual ú nica. Lembremos
desta afirmaçã o de Guattari: “em um momento crucial, algo da ordem do desejo
se manifestou”. Ele deixa claro um dos pressupostos maiores do projeto
Capitalismo e esquizofrenia, a saber, a ideia de que uma teoria do desejo é,
necessariamente, uma teoria dos modos sociais de produçã o e que, por
consequência, uma teoria da transformaçã o dos modos sociais de produçã o só
pode ser uma teoria da transformaçã o do desejo. Um marxista clá ssico torceria o
nariz a tal colocaçã o, lembrando que a teoria dos modos de produçã o deve ser
compreendida como expressã o dos regimes sociais de trabalho. De fato, de certa
forma, Deleuze e Guattari operam uma substituiçã o da centralidade da categoria
de trabalho ao proporem a centralidade da categoria de desejo. Como dirá
Guattari em conceitualizaçã o marxista, o desejo nã o deve ser considerado como
uma superestrutura subjetiva, mas como elemento fundador da infraestrutura.
Isto a ponto de Deleuze e Guattari afirmarem, por exemplo:
Segmentaridade e micropolítica
Este horizonte pode nos permitir melhor compreender a maneira com que o
problema do fascismo retorna em Mil Platôs, em especial no seu capítulo IX.
Deleuze e Guattari introduzem sua discussã o sobre o fascismo a partir de uma
teoria geral da organizaçã o social. Essa teoria nã o parte de formas de
desenvolvimento em sequência, ela nã o é evolutiva. Na verdade, ela tenta dar
conta de um jogo de dinâ micas distintas presentes em todas as formas sociais.
Maneira de abandonar uma perspectiva histó rica teleoló gica.
Tendo isto em mente, Deleuze e Guattari partem de uma apresentaçã o de
modos de segmentaridade, conceito que vem de Durkheim e se refere a regimes
de organizaçã o e reorganizaçã o social que estabelece relaçõ es nã o a partir de um
centro funcional, como no caso da noçã o de Estado. Aparece aí a distinçã o entre
sociedades de segmento e as sociedades centralizadas.
Deleuze e Guattari partem daí para abandonar tal distinçã o e propor duas
formas de segmentaridade : uma dura e biná ria, outra flexível e nã o-biná ria.
Todas as duas estariam presentes em todas as formas sociais, em maior ou
menor grau. Esta é a base para uma distinçã o bastante presente em sua teoria
entre estruturas molares e estruturas moleculares. Note-se que tais dualidades
nã o sã o mobilizadas tendo em vista uma distinçã o etapista entre tipos de
sociedades. Elas procuram dar conta de tendências diversas, de níveis distintos
no interior de todas as formas sociais. Esta dualidade será fundamental para a
distinçã o que nos interessa, a saber, esta entre macropolítica e micropolítica.
Deleuze e Guattari a descreve assim:
Esta compreensã o das relaçõ es entre molar e molecular será fundamental para a
leitura que Deleuze e Guattari farã o do fascismo. Pois nã o se trata de privilegiar a
dimensã o macropolítica e descrever o fascismo a partir da presença de uma
concepçã o totalitá ria de Estado, até porque outros modelos políticos conhecerã o
figuras totalitá rias do Estado. O fascismo traz um tipo muito específico de
totalitarismo no qual a preservaçã o do Estado totalitá rio nã o será o eixo da
ló gica da açã o política. Mas para entender este ponto, faz-se necessá rio
compreender a dimensã o molecular do fascismo, compreender o micro-fascismo.
Neste nível, o fascismo se mostra muito menos centralizado e duro do que, por
149
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 264
150
Idem, p. 263
exemplo, o estado stalinista, que seria a figura mais clá ssica de um Estado
totalitá rio. Observando-o a partir de sua estrutura molecular, o fascismo aparece
muito mais como um corpo cancerígeno do que como um organismo totalitá rio.
Nesta dimensã o do “microfascismo”, fica mais claro encontrar uma
resposta à questã o reichiana: “Por que o desejo deseja sua pró pria repressã o?”.
Pois: “é muito fá cil ser anti-fascista no nível molar sem ver o fascista que se é,
que nos entretemos e alimentamos, que cuidamos com moléculas pessoais e
coletivas”151. Mas a resposta de Deleuze e Guattari a respeito do que nos faz
desejar o fascismo passa pela implementaçã o política de uma certa dimensã o da
pulsã o de morte, mesmo que os dois afirmem, à ocasiã o: “nã o invocamos pulsã o
de morte alguma”. Mas nã o seria necessá rio invoca-la de maneira explícita. Basta
ouvir o que pulsa em afirmaçõ es como:
Eis aí o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse a parede, que ela saia
dos buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e
aumentar suas valências a cada vez, ela se volta à destruiçã o, à aboliçã o
pura e simples, à paixã o de aboliçã o152.
Nó s veremos na aula que vem por que insistir que se trata aqui de uma
leitura libidinal do fascismo que se apoia, à sua maneira na mobilizaçã o de um
certo risco interno à pulsã o de morte. Mesmo as ambiguidades que Deleuze e
Guattari descrevem (o mesmo processo pode produzir a pura e simples aboliçã o
ou a mutaçã o das formas e lugares) está bastante enraizado nos usos do conceito
psicanalítico de pulsã o de morte. Como veremos na aula que vem, Guattari
deixará isto mais claro.
Mas, por enquanto, insistamos em outro ponto, a saber, o fascismo nã o é
exatamente o culto da ordem, o fortalecimento da estrutura biná ria da norma e
de suas formas de controle. Há algo em seu interior que se assemelha a essas
dinâ micas libertá rias de linha de fuga, a esses fluxos moleculares que
paradoxalmente sã o fundamentais para processos de singularizaçã o. Mais uma
vez, encontramos a ideia de que há algo que necessariamente aproxima o
fascismo de um processo revolucioná rio efetivo. No entanto, essa possibilidade
de efetivaçã o é cortada por uma submissã o da força de transformaçã o a uma
paixã o de aboliçã o.
De toda forma, percebamos que é necessá rio que o assujeitamento faça
também parte do desejo, que ele se enraíze nos agenciamentos do desejo. Ele é
uma de suas linhas que sempre pode ser seguida. Deleuze e Guattari lembram
entã o como tais liberaçõ es de linhas de fuga sã o impulsionadas por má quinas de
guerra. Essa figura da má quina de guerra visa dar conta de um princípio social de
movimento e desterritorializaçã o. Ela descreve todo agenciamento social em
relaçã o de exterioridade ao campo estatal de uma dada situaçã o. Ou seja, a
guerra nã o aparece aqui como um exercício do Estado, mas como um princípio
exterior que o Estado procura, por vá rias formas, capturar. Pois em toda
sociedade, o que é primeiro sã o suas linhas de fuga, seus movimentos de fuga.
Posteriormente, aparecem aparelhos do Estado cuja funçã o é captura-las. A
guerra se aproxima aqui da figura nietzscheana da potência e do combate. Trata-
se da virtude do guerreiro, que em vá rias situaçõ es se coloca em confronto com
151
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 262
152
Idem, p. 280
as obrigaçõ es do Estado. Trata-se da figura do nô made que nã o se move por
viver em um espaço liso.
Tal má quina de guerra pode operar como um princípio de mutaçã o
contínua de formas, por um princípio de nomadismo que se desdobra em um
longa linha de fuga ou pode liberar uma carga catastró fica de destruiçã o. Nesse
caso, a má quina de guerra funciona exatamente a partir da guerra, pois a guerra:
“é o ú nico objeto que resta quando a má quina de guerra perdeu sua potência de
mover”153. O mesmo princípio de transformaçã o pode se deteriorar em forma
bruta da destruiçã o. Toda linha de fuga tem um risco interno de se tornar uma
linha de aboliçã o, de destruiçã o de si e dos outros. De certa forma, a questã o
central gira em torno viver em linhas de fuga, de impedir que as linhas de fuga
sejam tomadas por má quinas de destruiçã o e de autodestruiçã o. Quando isto
ocorre, uma forma fascista necessariamente emerge. Por isto, é importante para
Deleuze e Guattari indicar diferenças entre o fascismo e o totalitarismo:
Ou seja, a guerra fascista nã o é uma guerra de conquista, ela nã o tem como parar,
ela nã o tem como se realizar. Como se fosse um “movimento perpétuo, sem
objeto nem alvo” cujos impasses só levam a uma aceleraçã o cada vez maior. A
ideia nazista de dominaçã o nã o está ligada ao fortalecimento do Estado, mas a
um movimento em movimento constante. Hannah Arendt falará da: “essência
dos movimentos totalitá rios que só podem permanecer no poder enquanto
estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia” 155.
há uma guerra ilimitada que significa a mobilizaçã o total de todo efetivo social, a
militarizaçã o absoluta em direçã o a uma guerra que se torna permanente.
Guerra, no entanto, cuja direçã o nã o pode ser outra que a destruiçã o simples.
Como se o horizonte da catá strofe fosse, desde o início, o verdadeiro horizonte
da açã o. Deleuze e Guattari lembram, por exemplo, dessas afirmaçõ es de
Goebbels:
153
Idem, p. 281
154
Idem, p. 281
155
ARENDT; Origens do totalitarismo, p. 434
156
Idem, p. 282
Deleuze apreciava, falava do fato espantoso de que aqueles que aderiam ao
fascismo nã o vacilavam mesmo quando eles pró prios se tornavam vítimas,
mesmo quando o monstro começava a devorar seus pró prios filhos.
Falta a aula 9
Psicologias do fascismo
Aula 10
Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois
momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da
autoridade através do quadro freudiano fornecido por Psicologia das massas e análise
do Eu. Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: Teoria freudiana e as
estruturas da propaganda fascista. O que vincula os dois desenvolvimentos é o uso
contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e
libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um
conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.
Esta era uma maneira de lembrar que a compreensão de fenômenos como o
fascismo era incompleta se mobilizasse apenas categorias econômicas, sociológicas e
políticas. Elas precisariam mobilizar também categorias psicológicas para dar conta
da maneira com que experiências políticas podem gerir estruturas psíquicas e se
enraizar em dimensões nas quais as ações não são motivadas apenas por cálculos de
maximização de interesses ou de crença política, mas também por circuitos
inconscientes de afetos.
Assim, ao aproximar o fascismo e outras formas de autoritarismo da paranoia,
Adorno e Horkheimer estavam a dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de
participação social no interior de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes
casos, os vínculos sociais se sustentariam a partir da generalização da paranoia como
tipo social, mesmo que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais,
tivessem outra forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos
apenas uma analogia, mas a descrição de um modalidade de funcionamento social a
partir de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos deveriam
agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter implicações na própria
estrutura da personalidade subjetiva.
Mas há um ponto que gostaria de insistir nessa aula. Lembremos como o
conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos frankfurtianos, a aproximava de
uma patologia que colocava, à céu aberto, os mecanismos de identificação e
introjeção próprios do narcisismo que, por sua vez, eram a expressão de dinâmicas
próprias à constituição mesma do Eu do indivíduo moderno com seus
desconhecimentos e denegações. Freud insistira claramente, por exemplo, que o
narcisismo era uma fase necessária do desenvolvimento individual e que seu
mecanismo expunha dinâmicas próprias da paranoia e da melancolia. Neste ponto,
encontramos uma radicalização desta perspectiva em Lacan e em sua maneira de
mostrar como a própria constituição “normal” do Eu moderno era paranoica, pois
produtora de uma instância psíquica que organizava suas relações ao mundo através
de projeções, introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de
denegações e agressividades160. Isto lhe obrigava a pensar uma clínica que é,
inicialmente, crítica das ilusões identitárias e sintéticas do Eu, se não quisesse ser o
fortalecimento de tendências paranoicas nos indivíduos.
159
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
160
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
Neste sentido, é impossível colocar em circulação uma crítica que eleva a
paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno não é
o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo social em risco
perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse fornecer regressões
paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz. Isto pode nos explicar
porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do fortalecimento do indivíduo
moderno como contraponto à natureza paranoica dos vínculos sociais, como seria o
caso em uma perspectiva liberal. Na verdade, os dois conceitos tecem relações
profundas de solidariedade. Gostaria de desenvolver este ponto nas próximas aulas.
O anti-semitismo
Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra
um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta
contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve
ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica
que eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.
Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será
acrescida à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e
judaísmo, até porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa
na Europa, presente como minoria constantemente vítima de revoltas.
Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do
cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos
comunitários religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os
descendentes dos visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo
161
Idem, p. 163
wagneriano dos cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em
guardas de elite”162. A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma
violenta contra os semitas. Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários
pode ser melhor compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo,
que coloca de ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte
afirmação:
Mimese
162
Idem, p. 165
163
Idem, p. 166
164
Idem, p. 171
“mimese da mimese”, como se fosse o caso de: “colocar diretamente a serviço da
dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a essa dominação”165.
Uma maneira de introduzir o problema da assimilação da mimese passa pela
compreensão de afirmações como:
A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar
algo dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e
penetrando até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a
putrefação; o suor que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se
ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o
progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância
compulsiva166.
Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele
não é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado
de coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado
inorgânico, Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal
ou a matéria, mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um
degrau”, dirá Caillois (2002, p. 113).
O que faria o fascismo, segundo Adorno e Horkheimer, não é apenas perpetuar
esse recalque da mimese, mas permitir seu retorno através da violência contra aqueles
contra os quais a afinidade mimética está proibida. Assim: “o impulso recusado é
permitido na medida em que o civilizado o desinfeta através de sua identificação
incondicional com a instância destruidora”172. Há uma “mimese desinfetada” nos
rituais de homogeneidade fascista, há uma “mimese desinfetada” na possibilidade de
imitação dos judeus a partir do escárnio e da derrisão. Há projeção nos judeus de tudo
168
ADORNO E HORKHEIMER, idem, p. 24 [tradução modificada]
169
idem, p. 245 [tradução modificada]
170
O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como
afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo
responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade,
fenômenos ansiosos, entre outros.
171
CAILLOIS, Le mythe et l’homme, p. 111
172
ADORNO e HORKHEIMER; Dialética do esclarecimento, p. 172
aquilo que seriam os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto,
lhe pertencem. É neste ponto que aparece a mobilização da paranoia como patologia
social do fascismo.
A sombra da razão
A projeção serve para expulsar impulsos que o sujeito não admite como seu,
assim como tudo aquilo que quebraria a unidade e a coerência suposta da
personalidade. Adorno e Horkheimer admitem que, em certo sentido, perceber é
173
Ver, FREUD; Sigmund; Manuscrit H In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98.
174
Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
175
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 174
projetar. Ou seja, eles assumem a natureza projetiva da percepção como algo
faltamente inerente ao espírito devido a exigências de autoconservação. No entanto,
tal tendência à projeção seria paulatinamente controlada através de uma dupla
reflexão, de uma reflexão duplicada. O sujeito tem a experiência da resistência que
vem do objeto e tal resistência pode ser integrada através deuma reflexão de segundo
grau. Daí porque Adorno e Horkheimer podem dizer: “o patológico no anti-semitismo
não é comportamento projetivo enquanto tal, mas a ausência de reflexão que o
caracteriza”176. Nota-se claramente uma articulação profunda entre paranoia e
narcisismo que está na base da descrição psicanalítica da nosografia. O paranoico
projeta o mundo a sua imagem e semelhança, reificando tal projeção.
Por outro lado, contrariamente a outras categorias da psicose, como a
esquizofrenia, a paranoia teria como traço diferencial a preservação das funções
superiores do raciocínio. Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como
encontramos tal intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e
Poder, de Elias Canetti177. Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na
presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e um
“vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à
defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia
paranóica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso. Por trás da
máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido
a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à necessidade compulsiva
do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se
acalma quando uma relação causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:
A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual,
é uma falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar intelectualmente
o fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a determinar seu juízo, o
paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao fracasso178.
Essa excessiva coerência seria traço de uma forma de saber chamada por
Adorno e Horkheimer de “semicultura” ou “semiformação”: “uma semicultura que,
por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como verdade, não pode
suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei social, a
manifestação e a essência”179. Eles chegam a dizer que a paranoia seria o sintoma do
indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo exterior,
seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza. Ou seja, o
traço fundamental dessa semicultura é a hipóstase de relações, a impossibilidade de
admitir a limitação do saber, o que leva o sujeito a não suportar rupturas entre o
exterior e o interior, o destino individual e a lei social, a manifestação e a essência.
“Desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal de pensamento e de
humanidade”180. Daí uma tendência às formas do complot, da perseguição.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranoia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de
176
Idem, p. 176
177
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
178
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181
179
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182
180
Idem, p. 191
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e
contingências da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência
absoluta de sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste sentido,
não seria incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um
efeito maior daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação. O
que talvez nos permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão, pois é o risco
aberto quando ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Esta
compreensão da paranoia como uma espécie de “patologia da reificação” estará
claramente presente em Adorno e Horkheimer quando estes afirmarem:
181
ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180
Psicologias do fascismo
Aulas 11 e 12
182
MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
183
Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”, in
Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp. 81-94
184
NEUMANN, Behemoot, p. 397
No segundo eixo de estudos dos frankfurtianos, encontramos as aná lises
sobre a relaçã o entre nazismo e cultura. Talvez o mais exemplar desses estudos
sobre De Caligari a Hitler, de Sigfried Kracauer, nã o por acaso uma “histó ria
psicoló gica do cinema alemã o”. Kracauer analisa a produçã o cinematográ fica
alemã até a ascensã o de Hitler a fim de recompor “o padrã o psicoló gico de um
povo numa determinada época”185. Foi apó s a Primeira Guerra Mundial que o
cinema alemã o realmente nasceu. Ele nã o poderia ser indiferente a seu pró prio
nascimento, a sua necessidade de elaborar os traumas de um país humilhado
pela derrota e conduzido por um governo fraco até uma crise econô mica de
proporçõ es catastró ficas. Kracauer insistirá na compreensã o da psicologia social
como condiçã o para determinar os processos que levam à consolidaçã o do
nazismo. Daí afirmaçõ es como:
Por fim, temos o eixo das aná lise do fascismo como patologia social. Foi
isto que vimos nas ú ltimas duas aulas. Primeiro, eu insistira com vocês no
sentido em abordar um fenô meno social como o fascismo enquanto patologia
social. Vale a pena entendermos melhor este ponto devido a sua importâ ncia
epistemoló gica.
O que diz Adorno? Ele nã o afirma que semiformaçã o diga respeito a uma
incapacidade da circulaçã o de informaçõ es, do acesso a conhecimento produzir
por si só autonomia. Ao contrá rio, “a consciência passa de uma heteronomia a
outra”, da autoridade de bíblia, à autoridade da indú stria cultural, à autoridade
dos que denunciam a verdade expressa em complots inimaginá veis. Em todos
esses casos, o elemento central é a incapacidade de uma relaçã o cognitiva ao
mundo sob o fundo de crise. Digamos que nenhum lugar vazio circula, nenhuma
contingência ocorre, nenhum acaso obriga à revisã o. Semiformaçã o nã o está
ligada à falta de acesso à pretensa totalidade do saber, mas impossibilidade de
lidar com a fragilidade do saber, com os descompassos entre experiência e saber.
Isto pede nã o apenas uma descriçã o socioló gica das modalidades de circulaçã o
do saber, mas uma descriçã o psicoló gica da relaçã o entre saber e desejo, do
saber como anteparo a certas formas de desejo.
188
ADORNO, Teoria da semiformação
Por isto, as identificaçõ es só poderiam ocorrer com personalidades que sã o a
projeçã o narcísica do pró prio sujeito.
Isso faz o líder fascista tender a aparecer como “o alargamento da pró pria
personalidade do sujeito, uma projeçã o coletiva de si mesmo, ao invés da
imagem de um pai cujo papel durante a ú ltima fase da infâ ncia do sujeito pode
bem ter decaído na sociedade atual”189. Adorno explora tal traço ao afirmar que:
A personalidade autoritária
Proposiçã o que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Nã o pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo” 199 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 200. Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, nã o apenas através do egoísmo ilimitado,
mas também através da cobiça em relaçã o ao que faz o outro gozar, da ambiçã o
por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente como
concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só pode
acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite pelas
mesmas coisas”201. A guerra será inevitá vel se lembrarmos que o direito natural
(jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha pró pria natureza,
ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis) prescreve a
proibiçã o de fazer e aceitar aquilo que é destrutivo à minha vida. Assim, Hobbes
descreve como o aparecimento histó rico de uma sociedade de indivíduos
liberados de toda forma de lugar natural ou de regulaçã o coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”202. Este ponto é fundamental pois é a possibilidade efetiva
da morte violenta que definirá a necessidade de emergência do político.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessá ria da expressã o da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexã o
sobre o desejo como disposiçã o humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos sã o
miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber
como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os
seres humanos, mas esta racionalidade mimética nã o se traduz em empatia ou
tendência à cooperaçã o. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a
expressã o do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou
morte. No entanto, esta luta nã o pode ser regulada pelos pró prios contendores.
Dela, nã o emerge nada a nã o ser um impasse, já que todos os indivíduos sã o
portadores de força relativamente igual. A força maior de um nã o irá muito mais
além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser superada entã o
através da introduçã o de um terceiro elemento, que neutraliza a rivalidade da
relaçã o dual, a saber, através da instauraçã o do direito e do Estado. Daí esta
198
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
199
Idem, p. 30
200
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
201
HOBBES, Do cidadão, p. 30
202
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
definiçã o de Schmitt: “Para Hobbes, o Estado nã o é outra coisa que a guerra civil
constantemente impedida por meio de um força ilimitada”203.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressã o da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituiçõ es? Ou
é o Estado a expressã o de uma coerçã o consentida, de uma restriçã o legítima
como condiçã o para a nã o desagregaçã o do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questã o percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessá rio o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a pró pria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidaçã o da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, nã o haverá outra
saída para a regulaçã o social do que o aparecimento de uma força externa
chamada de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restriçã o
mú tua e da limitaçã o de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito sã o: a concorrência, a
desconfiança e a gló ria. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clá ssico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situaçã o de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teó rico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual à s condiçõ es de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalizaçã o
antropoló gica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.
203
SCHMITT, Carl; Le Leviathan dans la doctrine d’état de Thomas Hobbes, p. 86
criando um consenso dirigido à submissã o geral e incondicional à
potência suprema204.
É verdade que Hobbes também afirma: “As paixõ es que fazem os homens
tenderem para a paz sã o o medo da morte, o desejo daquelas coisas que sã o
necessá rias para uma vida confortá vel e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”207. Ou seja, parece nã o haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá -la: o medo ou ainda o orgulho e a gló ria por nã o precisar faltar com a
palavra. Tais consideraçõ es parecem abrir espaço à circulaçã o de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-pró prio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixõ es: medo e
esperança, aversã o e desejo ou, em termos físicos, repulsã o e atraçã o. Mas nã o é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que nã o existe sem
o contraponto da esperança”208.
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmaçõ es como: “de
204
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
205
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
206
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
207
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
208
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
todas as paixõ es, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a ú nica coisa que leva os
homens a respeitá -las”209. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiá ria das paixõ es e atingir esta situaçã o de esfriamento na
qual o vínculo político nã o precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relaçã o com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família). Ou
seja, o esfriamento das paixõ es aparece como funçã o da autoridade soberana e
condiçã o para a perpetuaçã o do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulaçã o perpétua de outras paixõ es que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressã o de uma compreensã o antropoló gica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observaçã o desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma ló gica do poder pensada a partir de uma limitaçã o política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”210. Difícil nã o chegar em uma situaçã o na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual nã o exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor” 211. O que fica claro em
afirmaçõ es como:
Por isto, nã o é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
ló gica do reconhecimento. Ele opera, ao contrá rio, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condiçã o de determinaçã o metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregaçã o de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisã o, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
cará ter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessã o
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitaçã o de seus
desejos e a restriçã o de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que sã o cidadã os e
cidadã s de tal Estado. Como cidadã o e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsá vel pela restriçã o e repressã o de meus reais
impulsos. Por isto, a pró pria noçã o de personalidade será comparada por Hobbes
a uma má scara, recobrando o sentido originá rio do termo persona entre os
gregos. Má scara que nã o reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir.
Mas há um ponto no qual essa força é quebrada, ao menos no interior da
teoria de Hobbes. Pois há uma ú nica limitaçã o que Hobbes reconhece ao poder
do Estado. Ela se refere ao direito dos indivíduos à auto-defesa quando a vida
está ameaçada pelo poder soberano, o que decorre do respeito ao primeiro
direito natural. Se o soberano atenta contra minha vida, tenho o direito de a ele
me contrapor, pois o que me liga a ele é um pacto de proteçã o que nã o existe
214
SCHMITT, Carl; Le Leviathan …, p. 84
215
Idem, p. 107
mais. No entanto, o soberano guarda o direito de continuar sua açã o contra mim
já que pode tudo fazer para garantir a proteçã o social e a permanência do Estado.
Nesta mesma linha, Schmitt dirá que o germe de morte que destruiu o
Leviatã foi a preservaçã o da liberdade interior de pensamento e de crença. Teria
sido por este caminho que o “pensamento judeu liberal” de Spinoza teria se
aproveitado para distinguir a obrigaçã o dos rituais do culto exterior e a
liberdade da crença privada, reduzindo paulatinamente o Estado a uma mera
aparência reguladora, a um garantidor do direito à opiniã o individual. Este seria
o caminho para uma situaçã o na qual o Estado nã o poderia mais reduzir os
conflitos no seio da sociedade à condiçã o de “distú rbios” e tentativas de
rebeliõ es.
A função do amparo
Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestã o social quando as exigências de
reconhecimento sã o bloqueadas. Pois o Estado nã o será apenas a instâ ncia que
opera a repressã o. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele nã o será apenas o bombeiro da vida social, mas também o pró prio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relaçã o de nã o-relaçõ es é
a necessidade que a legitimaçã o da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuaçã o contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuaçã o da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmá tico deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condiçã o de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusã o importante de
Agamben: “A fundaçã o nã o é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisã o
soberana”216. Este mecanismo de fundaçã o que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteraçã o
da relaçã o do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperá vel”217, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuaçã o de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada nã o apenas por instaurar uma relaçã o baseada no
medo para com o pró prio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relaçã o a uma fantasia social de desagregaçã o
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuaçã o da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representaçã o política, ou seja, do abrir mã o de meu
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
216
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
217
218
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
219
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
220
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
221
Idem, p. 110.
sabemos disso também tanto pela experiência das naçõ es selvagens que
existem hoje, como pelas histó rias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade222.
225
Idem, p. 10
Psicologias do fascismo
Aula 14
228
BROWN, Wendy; Les habits neuf de la politique mondiale: néolibéralisme et néoconservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 54
229
Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel; Das
recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
medo do risco provocado pela insegurança social pode aparecer como covardia
moral.
Este ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessá rio da
estratégia neoliberal de construir uma “formalizaçã o da sociedade com base no
modelo da empresa”230, o que permitiu à ló gica mercantil, entre outras coisas, ser
usada como tribunal econô mico contra o poder pú blico. Pois é fundamental ao
neoliberalismo “a extensã o e disseminaçã o dos valores do mercado à política
social e a todas as instituiçõ es”231. A generalizaçã o da forma-empresa no interior
do corpo social abriu as portas para os indivíduos se auto-compreenderem como
“empresá rios de si mesmos” que definem a racionalidade de suas açõ es a partir
da ló gica de investimentos e retorno de “capitais” e que compreendem seus
afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produçã o de
“inteligência emocional”232 e otimizaçã o de suas competências afetivas. Ela
permitiu ainda a “racionalizaçã o empresarial do desejo” 233, fundamento
normativo para a internalizaçã o de um trabalho de vigilâ ncia e controle baseado
na auto-avaliaçã o constante de si a partir de critérios derivados do mundo da
administraçã o de empresas. Esta retraduçã o das dimensõ es gerais das relaçõ es
inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de aná lise econô mica baseada no
“cá lculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo
e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados
psiquicamente.
Notemos ainda que esta internalizaçã o de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a pró pria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administraçã o de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrá tico weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitaçã o dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicoló gicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperaçã o”, “comunicaçã o” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimizaçã o da
produtividade. O que permitiu a uma soció loga como Eva Illouz lembrar que:
236
ADORNO, Theodor; Escritos sobre psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 76
237
Idem, p. 75
funda a esfera dos nossos valores. Os medos funcionam como um sistema de
vasos comunicantes.
A função do medo
Difícil não perceber que a matriz desta ditadura liberal vem exatamente de
Carl Schmitt, como vimos na aula passada.