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O caso da tabuleta da Confeitaria - Machado de Assis

(OBSERVAÇÃO! A obra completa é de domínio público, você pode baixar em:


http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000030.pdf

Capítulo 42: “Pare no d.”


“Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à rua da Assembleia, onde se pintava a
tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram
pintadas: a palavra Confeitaria e a letra d. (...) Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se
com a forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a
tabuleta no domingo.
Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco
vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e acreditou que lhe diziam a verdade,
os que afirmavam a revolução e vagamente a República. A princípio, no meio do
espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a
pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia
só isto: “Pare no D.”
(...) Quando o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
– Você viu-a pronta?
– Vi, patrão.
– Tinha escrito o nome antigo?
– Tinha, sim, senhor: “Confeitaria do Império”.
Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta,
por sinal que coberta com um pedaço de chita (...). Levantada a cortina, Custódio leu:
“Confeitaria do Império”. Era o nome antigo, o próprio, o célebre (...)
– O senhor vai despintar tudo isto, disse ele.
– Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despesa. Depois, pinto outra
coisa.
– Mas que perde o senhor em substituir a última palavra por outra? A primeira pode
ficar, e mesmo o d... Não leu o meu bilhete?
– Chegou tarde.
– E por que pintou, depois de tão graves acontecimentos?
– O senhor tinha pressa, e eu acordei às cinco e meia para servi-lo. Quando me deram as
notícias, a tabuleta estava pronta. Não me disse que queria pendurá-la domingo? Tive
que pôr muito secante na tinta, e, além da tinta, gastei tempo e trabalho.
Custódio quis repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr o número da confeitaria e o
nome do dono na tabuleta, e expô-la assim, para que os revolucionários lhe fossem
quebrar as vidraças do Catete. Não teve remédio senão capitular. Que esperasse; ia
pensar na substituição (...) Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o vizinho
Aires e correu a ouvi-lo. (...)
Capítulo 43: Tabuleta nova
– Mas o que é que há? – perguntou Aires.
– A República está proclamada.
– Já há governo?
– Penso que já (...). Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome
todo pintado. – “Confeitaria do Império”, a tinta é viva e bonita. (...)V. Exa . crê que, se
ficar “Império”, venham quebrar-me as vidraças? (...)
– Mas pode pôr “Confeitaria da República”...
– Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois
meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o
dinheiro.
– Tem razão... Sente-se.
(...) Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses, –
“Confeitaria do Governo”.
– Tanto serve para um regime como para outro.
– Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida... Há, porém, uma razão contra.
V.Exa . sabe que nenhum governo deixa de ter oposição. As oposições, quando
descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem-me a
tabuleta; entretanto, o que procuro é o respeito de todos. (...)
– Olhe, dou-lhe uma ideia, que pode ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra à
mão, e será a última. Mas eu creio que qualquer uma delas serve. Deixe a tabuleta
pintada como está, e à direita, na ponta, por baixo do título, mande escrever estas
palavras que explicam tudo: “Fundada em 1860”. Não foi em 1860 que abriu a casa?
– Foi, respondeu Custódio.
– Pois...
Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não (...) confessou que a ideia era boa.
(...). Entretanto, a outra ideia podia ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas.
– A outra ideia não tem a vantagem de pôr a data à fundação da casa, tem só a de definir
o título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regime. Deixe-lhe a palavra
império e acrescente-lhe embaixo, ao centro, estas duas... das leis. Olhe, assim, concluiu
Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia.
Custódio leu, releu e achou que a ideia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe via um
defeito: sendo as letras de baixo menores, podiam não ser lidas tão depressa e
claramente como as de cima (...) Daí que algum político ou sequer inimigo pessoal não
entendesse logo e... (...)
Aires achou outro título, o nome da rua, “Confeitaria do Catete” (...) havendo outra
confeitaria na mesma rua, esse título ficava comum às duas casas. (...) Disse-lhe então
que o melhor seria pagar a despesa feita e não pôr nada, a não ser que preferisse o seu
próprio nome: Confeitaria do Custódio. Muita gente certamente lhe não conhecia a casa
por outra designação. Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação
política ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois
regimes, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara,
menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse
alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez
de Império, mas as revoluções trazem sempre despesas.
– Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em
que param as modas, disse Custódio agradecendo.
Capítulo 49: Tabuleta velha
Toda a gente voltou da ilha com o baile na cabeça, muita sonhou com ele, alguma
dormiu mal ou nada. Aires foi dos que acordaram tarde; eram onze horas. Ao meio-dia
almoçou (...). Fumou, leu, até que resolveu ir à Rua do Ouvidor. Como chegasse à
vidraça de uma das janelas da frente, viu à porta da confeitaria uma figura inesperada, o
velho Custódio, cheio de melancolia. (...) Aires queria saber o que o entristecia.
– Vim para contá-lo a V. Exa . É a tabuleta.
– Que tabuleta? (...)
– Tanto me aconselharam que fizesse reformar a tabuleta que afinal consenti (...) E sabe
V. Exa , o que me disse o pintor? Que a tábua está velha, e precisa de outra; a madeira
não aguenta mais tinta. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira. Mostrou-me
que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via. Teimei que pintasse
assim mesmo; respondeu-me que era artista e não faria obra que se estragasse logo.
– Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha não vale nada. Agora verá que dura
pelo resto da nossa vida.

ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó (1904). São Paulo: Ática, 1998, p. 91-116
Adaptação: Joelza Ester Domingues

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