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Álvaro de Campos, o nome

          Álvaro, à semelhança dos dois outros heterónimos, é um nome de origem


germânica, significando «atento a tudo» ou «atento a novas oportunidades»,
remetendo para a fase futurista do Campos cantor da modernidade, do progresso,
simbolizados nas máquinas e na indústria.

          Já Campos poderá remeter para os «campos do conhecimento» e, assim,


em conjunto, os dois nomes traduziriam o homem «atento a todos os campos do
conhecimento», um verdadeiro modernista.

          Especulações...
Fases poéticas de Álvaro de Campos
 ● 1.ª fase – Decadentista

▪ poema (único): “Opiário”, 1914;

▪ características:
❶ atitude de tédio (de viver) e desilusão perante o desenrolar de uma vida
monótona e sem objetivos;
❷ o cansaço, a frustração e o enfado levam o sujeito poético a desejar a evasão para
um não-lugar e a ver no ópio um refúgio;
❸ cansaço da civilização;
❹ busca da evasão;
❺ procura de novas sensações: o sujeito poético procura novas sensações;
❻ atitude desafiadora das normas instituídas: o sujeito poético exibe uma atitude
desafiadora das normas instituídas e uma recusa em compactuar com os cânones
sociais (ex.: quadro Mona Lisa com bigodes, de Marcel Duchamp).
 
● 2.ª fase – Futurista e Sensacionista
▪ poemas      - “Ode Triunfal”, 1914
- “Ode Marítima”, 1915
- “Saudação a Walt Whitman”, 1915 (poeta americano que fazia o elogio da vida
moderna)
▪ características:
❶ apologia do progresso, da civilização tecnológica, da modernidade, da força e da
velocidade, numa linguagem impetuosa e exuberante;
❷ exaltação do presente: “Porque o presente é todo o passado e todo o futuro”;
❸ celebração do triunfo da máquina, na qual são projetados os sonhos e os desejos
do poeta;
❹ experiência e expressão excessiva das sensações;
❺ sadismo e masoquismo;
❻ euforia emocional.
 
● 3.ª fase – Intimista ou abúlica
▪ poemas      - “Esta velha angústia”
- “Lisbon Revisited 1923”
- “Tabacaria”
- “Datilografia”
- “Aniversário”
▪ características:
❶ a deceção, o desalento, e a angústia existencial da vida moderna;
❷ o vazio, a falta de afeto e a ausência de ligação aos outros;
❸ o abatimento, que o leva a sofrer fechado em si, consciente de que não sairá
deste estado;
❹ a recordação nostálgica da infância, tempo dos afetos, que não voltará a aceitar.
 

Álvaro de Campos - TEMAS


·  Poeta plural (como Fernando Pessoa) - três fases:
          -» Decandentismo («Opiário»);
          -» Triunfalismo futurista e sensacionista (Odes);
          -» Cansaço e abulia («Tabacaria».

·  Decadentismo literário (1.ª fase):


          -» Abulia, tédio de viver;
          -» Procura de sensações novas;
          -» Busca da evasão.

·  Futurismo (2.ª fase):
          -» Apologia / elogio da civilização mecânica e industrial e da técnica;
          -» Ruptura com o subjectivismo da lírica tradicional;
          -» Atitude escandalosa e chocante: transgressão da moral estabelecida.
    Sensacionismo:
          -» Vivência em excesso de sensações («Sentir tudo de todas as maneiras» -
afastamento
              de Caeiro;
          -» Atitudes sadistas e masoquistas;
          -» Cantor apaixonado do mundo moderno, contemporâneo.

·  Pessimismo (3.ª fase) - reencontro com o Pessoa ortónimo:


          -» Dissolução do eu;
          -» Dor de pesnar, de ser lúcido, racional;
          -» Conflito entre a realidade e o poeta;
          -» Inadaptação ao real, que é «opaco» e gera estranheza e perplexidade;
          -» Cansaço, tédio, abulia;
          -» Angústia existencial;
          -» Solidão;
          -» Nostalgia da infância irremediavelmente perdida.
    Busca de soluções (ilusões) para o mal que o afecta:
          -» Sonho;
          -» Retorno à infância;
          -» Viagem («Ode Marítima»);
          -» Ópio («Opiário»;
          -» Sensacionismo futurista.

·  Romantismo:
          -» Hipertrofia do «eu»;
          -» Excesso;
          -» Desejo de evasão e dispersão.
·  Ser dividido entre o sonho e a realidade
Álvaro de Campos - Linguagem e estilo
· Aspectos fónicos:
          -» Verso livre, em geral muito longo;
          -» Irregularidade formal (estrófica, métrica e rítmica);
          -» Assonâncias, onomatopeias, aliterações;
          -» Rima interior;
          -» Ritmo amplo, com alternâncias.

· Aspectos morfossintácticos e semânticos:


          -» Excesso de expressão: exclamações, interjeições, apóstrofes, pontuação
emotiva
              (exclamações, interrogações, reticências);
          -» Mistura de níveis de língua;
          -» Desvios sintácticos;
          -» Estrangeirismos e neologismos;
          -» Substantivação de fonemas;
          -» Metáforas ousadas, personificações, hipérboles, paradoxos,
enumerações, gradações;
          -» Estilo torrencial (2.ª fase);
          -» Repetições, simetria de construção, anáforas;
          -» Construções nominais, infinitivas e gerundivas;
          -» Grafismos inovadores e expressivos;
          -» Estética não aristotélica (fase futurista), assente nas ideias de força,
dinamismo,
              energia, etc.
Apresentação da "Ode Triunfal"
 ● Apresentação da “Ode Triunfal”
 
• Segundo a carta escrita por Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, o poema foi escrito
em Londres, em 1914, “num jato e à máquina de escrever, sem interrupções nem
emenda”.
 
• Fui publicado no primeiro número da revista Orpheu, em 1915.
 
• É constituído por 240 versos.
 
• Inclui-se na segunda fase poética de Álvaro de Campos – futurismo e
sensacionismo.
 
• Estrutura interna
 
– Introdução (1.ª estrofe) – Contextualização do canto:
▪ Localização do sujeito poético: engenheiro situado no interior de uma fábrica.
▪ Atividade: escrita, a partir da contemplação do que o rodeia (“Tenho febre e
escrevo” – v. 2).
▪ Estado de espírito do sujeito poético.
▪ Novo conceito de estética: novo conceito de beleza, “totalmente desconhecido”
dos antigos” (v. 4).
 
– Desenvolvimento (da 2.ª à penúltima estrofe) – Exaltação da modernidade nas
suas várias vertentes (indústria, técnica, comércio, sociedade), visando a
identificação com tudo.
▪ Associação da voz do sujeito lírico às máquinas que canta (estrofe 2 a 4).
▪ Explanação entusiástica de múltiplas imagens de vida urbana e moderna.
▪ Erotização da relação física do «eu» com a trepidante vida das cidades (estr. 13 a
15).
▪ Apoteose final (penúltima estrofe).
 
– Conclusão (último verso) – Constatação do fracasso (impossibilidade de
identificação com tudo):
▪ A busca desenfreada com “tudo e todos”.
▪ A confissão de um aparente fracasso: ”Ah não ser eu…” – cf. advérbio de
negação.
▪ Tom de ambiguidade e nostalgia (interjeição “Ah”).

pluralidade sensorial – “Sentir tudo de todas as maneiras” – é uma


forma/um método de conhecimento da dinâmica da vida
moderna;

. a intensidade e o sincronismo conferem maior captação de


captação sensitiva, já que esta se caracteriza pela sua fugacidade
e fragmentação → o sujeito poético sente intensamente.

 
• Campos sente uma ânsia eufórica de abarcar a totalidade e a complexidade das
sensações: “todos”, “todas”. O excesso de sensações representa a vontade do
«eu» de experimentar intensamente e de todas as maneiras a multiplicidade de
situações da vida moderna – sentir tudo de todas as maneiras -, por isso,
extasiado, deseja “exprimir-[se] todo como um motor se exprime! / Ser completo
como uma máquina! / Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-
modelo!” (vv. 26-28).
 
• O desejo de excesso de sensações leva-o mesmo a assumir uma
atitude sadomasoquista (vv. 134-135) só para aceder a “tudo com que hoje se
constrói, com que hoje se é diferente de ontem!” (v. 101). De facto, o
sensacionismo de Campos é de cariz masoquista e sensualista e apela a um gozo
orgíaco e extremo: “Eu podia morrer triturado por um motor” (v. 134); “Atirem-
me para dentro das fornalhas” (v. 136), etc.
 
 domingo, 21 de fevereiro de 2021
Análise da «Ode Triunfal» (1.ª parte)
 
▪ 1.ª estrofe:
 

• Localização:

- espacial: interior de uma fábrica, em plena e intensa atividade (o


sujeito poético está rodeado de máquinas, sob a luz forte das “grandes
lâmpadas elétricas”;
- temporal: presente em que o sujeito poético observa a fábrica; noite?
(a luz das lâmpadas).

 
• Estado de espírito do sujeito poético:

- estado febril, doentio, delirante (“Tenho febre e escrevo”) – canta o


progresso e a modernidade de forma entusiástica;

- sente dor (“À dolorosa luz…”);

- em fúria (“rangendo os dentes””.

 
• Ação do sujeito poético:

- engenheiro;

- escritor (“Escrevo”):

. o ambiente inspira-o a escrever (violentamente) um cântico novo


sobre a beleza da civilização moderna;

. a realidade que o cerca provoca-lhe sensações contraditórias:

- deleita-se a apreciar a beleza do que o rodeia;

- mas essa beleza/realidade causa-lhe dor.

 
• Valorização de um novo conceito de arte/estética, de uma nova forma de
beleza “totalmente desconhecida dos antigos” (vv. 3-4, 15, 37-40):

- valoriza-se a “beleza” da civilização moderna, diferente da beleza


aristotélica clássica, que assentava nas noções de Perfeição, Equilíbrio,
Agradável, Harmonia, Proporção e Elegância, porque a realidade
moderna não as tem;

- o novo conceito de Belo relaciona-se com as ideias de Força, Velocidade,


Dinamismo, Excesso, Modernidade…
 
         Álvaro de Campos, na “Ode Triunfal”, põe em prática o que havia teorizado nos
seus Apontamentos para uma estética não aristotélica (revista “Athena”, números 3 e
4). De acordo com a conceção de Aristóteles, a arte/a estética assentava nas ideias de
beleza, de perfeição, de equilíbrio, do agradável comandado pela inteligência. Na
esteira de Walt Whitman, o heterónimo de Pessoa apresenta uma nova conceção,
sustentada nos seguintes princípios:

▪ assenta nas ideias de força, dinamismo, energia explosiva, volúpia da


imaginação;
▪ o sentir predomina em relação ao pensar, por isso o importante não é a
beleza dos maquinismos em si mesmos, mas as sensações que eles
despertam e o modo como se codificam, ao nível da expressão, essas
sensações;

▪ não é a beleza clássica saída da inteligência que cativa o sujeito poético,


mas a força caótica e explosiva produto de uma emotividade individual
desordenada e caótica, de um subconsciente em convulsão;

▪ daí que Campos queira transformar-se na realidade excessiva que o cerca e


cantar tudo “com um excesso / De expressão de todas as (…) sensações
com um excesso contemporâneo” das máquinas (vv. 26 a 32).
 
 
▪ Sensacionismo
 

• O Sensacionismo é uma estética criada por Fernando Pessoa e por Mário


de Sá-Carneiro e encontramos a sua marca na poesia de Álvaro de Campos
e de Alberto Caeiro.

• Na poesia, privilegia a representação das sensações (visuais, auditivas,


etc.) de que o sujeito poético teve consciência no seu contacto com o
mundo que o rodeia.

• Perpassa a “Ode Triunfal” o princípio de sentir tudo de todas as


maneiras e ser tudo e todos nesta realidade moderna, urbana e
industrial.

• Na “Ode Triunfal”, o Sensacionismo associa-se ao Futurismo na ideia de


sentir em excesso (e em delírio) o mundo moderno e de representar a
forma como os sentidos aprendem essa realidade.

 
• O sensacionismo de Álvaro de Campos inspira-se no de Alberto Caeiro, visível no
modo como um e outro apreendem o real: através das sensações. No entanto,
enquanto que Caeiro o faz de uma forma calma e tranquila e baseado na
Natureza, Campos procura as sensações nos maquinismos e deixa-se levar pelos
excessos característicos do futurismo bem evidentes na linguagem utilizada:

- onomatopeias: “r-r-r-r-r-r-r eterno!” (v. 5);

- ritmo rápido e excessivo: “Em fúria fora e dentro de mim, / Por


todos os meus nervos dissecados fora” (vv. 7-8);

- repetições: “Canto, e canto o presente” (v. 17);

- enumerações: “(…) e canto o presente, e também o passado e o


futuro” (v. 17);
- aliterações: “Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo,
ferreando” (v. 24);

- frases exclamativas: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor


se exprime!” (v. 26);

- interjeições: “Ah” (v. 26);

- adjetivação: “Desta flora estupenda, negra, artificial e


insaciável!” (v. 32).

 
• Sensacionismo – presença dos cinco sentidos:

- audição:

. “r-r-r-r-r-r-r eterno” (v. 5);

. “ruídos modernos”;

- visão:

. “e olhando os motores” (v. 15);

- paladar/gosto:

. “Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!” (v. 9);

. “Tenho os lábios secos” (v. 10);

- tato:

. “Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à


alma” (v. 25);

. “calores” (v. 31);

- olfato:

. “perfumes de óleos” (v. 31);

- finalidade/significado: no seu estado febril, o sujeito poético procura


captar as sensações provocadas pelas máquinas através dos sentidos;

- simultaneidade e exacerbação sensorial:

. a pluralidade sensorial – “Sentir tudo de todas as maneiras” – é


uma forma/um método de conhecimento da dinâmica da vida
moderna;
. a intensidade e o sincronismo conferem maior captação de
captação sensitiva, já que esta se caracteriza pela sua fugacidade
e fragmentação → o sujeito poético sente intensamente.

 
• Campos sente uma ânsia eufórica de abarcar a totalidade e a complexidade das
sensações: “todos”, “todas”. O excesso de sensações representa a vontade do
«eu» de experimentar intensamente e de todas as maneiras a multiplicidade de
situações da vida moderna – sentir tudo de todas as maneiras -, por isso,
extasiado, deseja “exprimir-[se] todo como um motor se exprime! / Ser completo
como uma máquina! / Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-
modelo!” (vv. 26-28).
 
• O desejo de excesso de sensações leva-o mesmo a assumir uma
atitude sadomasoquista (vv. 134-135) só para aceder a “tudo com que hoje se
constrói, com que hoje se é diferente de ontem!” (v. 101). De facto, o
sensacionismo de Campos é de cariz masoquista e sensualista e apela a um gozo
orgíaco e extremo: “Eu podia morrer triturado por um motor” (v. 134); “Atirem-
me para dentro das fornalhas” (v. 136), etc

▪ Cântico da era moderna e do progresso:


 
• Campos elogia, à maneira futurista, a agitação e o movimento próprios da vida
moderna.
 
• Faz a apologia da força, enquanto critério primordial da beleza, que a obra
escrita deve reproduzir.
 
• Canta a civilização moderna, os avanços tecnológicos, em que tudo e todos têm
lugar na poesia, pelo simples facto de existirem.
 
• A Modernidade é uma espécie de nova «religião», que merece ser enaltecida,
através da poesia:

- “E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De


expressão de todas as minhas sensações / Com um excesso
contemporâneo de vós, ó máquinas!” (vv. 12-14);

- “Ó coisas todas modernas, / Ó minhas contemporâneas, forma atual


e próxima / Do sistema imediato do Universo / Nova Revelação
metálica e dinâmica de Deus!” (vv. 45-48).

 
 
▪ Realidades cantadas
 
• As realidades cantadas são diversas, desde as referentes aos avanços da
técnica (grandes lâmpadas elétricas das fábricas, rodas, engrenagens,
maquinismos, ruídos modernos, máquinas, motores, correias de transmissão,
êmbolos, volantes, comboios, navios, guindastes, fábricas, etc.) e até às que
prefiguram o lado negativo da civilização industrial (corrupções políticas,
escândalos financeiros e diplomáticos, agressões políticas, regicídios, notícias
desmentidas, desastres de comboios, naufrágios, revoluções, alterações de
constituições, guerras, invasões, injustiças, violência, etc.).
 
• Um pouco à semelhança de Cesário Verde, Campos inova ao conferir poeticidade
a temáticas não usuais: máquinas, motores, fábricas, energia, matéria, força,
etc., através de uma linguagem carregada de nomes concretos e abstratos,
fonemas substantivados (r-r-r-r-r-r-r…), topónimos (Panamá, Kiel…),
antropónimos (Platão, Virgílio…), estrangeirismos (souteneur, foule…), tipos de
letra variados (vv. 5, 72, 238), maiúsculas desusadas (Prodígio, Sol…),
adjetivação expressiva, figuras de estilo (polissíndetos, metáforas, anáforas,
apóstrofes, enumerações, personificações, sinestesias, perífrases, trocadilhos,
reiterações, gradações, comparações, aliterações…), neologismos (passante),
formas verbais variadas, advérbios expressivos (estridentemente,
exageradamente…), gerúndios (rangendo, sorrindo), interjeições (ah, hilla,
eia…), rimas internas (vv. 24, 25, 70) e onomatopeias (ciciar, up-lá ôh…).
 
 
▪ Linguagem erótica
 
• Álvaro de Campos canta o mundo do progresso industrial e mecânico através de
uma linguagem evocadora de um certo erotismo: “Amo-
vos carnivoramente, / Pervertidamente…” (vv. 105-106); “Completamente
vos possuo como a uma mulher bela…”.
 
• Por outro lado, essa linguagem possui um sentido profundamente masoquista:
“Eu podia morrer triturado por um motor…” (v. 134), que se orienta mais para a
criação de sensações novas e violentas (sensacionismo) do que para a exaltação
das máquinas.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Análise da "Ode Triunfal" (2.ª parte)


   
▪ Fusão de todos os tempos no Momento presente:
 
• O Instante presente é a congregação de todos os tempos → o presente é o
resultado dos esforços científicos passados e catalisadores dos feitos futuros - “E
há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas / Só porque houve
outrora e foram humanos Virgílio e Platão, / E pedaços do Alexandre Magno do
século talvez cinquenta, / Átomos que hão ir ter febre para o cérebro do Ésquilo
do século cem, / Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e
por estes volantes…” (vv. 19-23).
 
• O tempo é um contínuo, e a civilização, um acumular de saberes e experiências
que atravessam o tempo como uma herança. A máquina de hoje é o resultado de
outras invenções do passado: “Canto, e canto o presente, e também o passado e
o futuro, / Porque o presente é todo o passado e todo o futuro” (vv. 17-18); “E
há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas / Só porque houve
outrora e foram humanos Virgílio e Platão” (vv. 19-20).
 
• As referências a Platão, Virgílio, Alexandre Magno e Ésquilo – figuras que
representam o passado – constituem referências a um passado que permitiu a
realidade atual e continuarão a impulsionar as inovações futuras. A menção a
essas figuras concorre, assim, para explicitar a relação entre as diversas eras,
valorizando em cada momento os grandes feitos.
 
• Ao contrário de outros futuristas, como Marinetti, que rejeitavam todo o
tempo que não o futuro, que defendiam o apagamento do passado e do
presente em relação ao futuro, que seria «tudo», Campos funde as três
eras num só momento, o atual, que, contudo, só poderá fazer sentido se
se apoiar no passado e entrevisto em função do futuro: “Eia todo o
passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro de nós!” (vv.
90-91). De facto, o presente só é possível porque está alicerçado no
passado, na base do qual se apoia a construção do futuro, ou seja,
passado e futuro ganham significação no presente, no Momento (“todo o
passado dentro do presente”; “todo o futuro já dentro de nós” – vv. 222-
223).
 
 
▪ Identificação com as máquinas
 
• O sujeito poético procura identificar-se com as máquinas, identificação
essa que se traduz num “amor” desesperado (“Como eu vos amo… Com os
olhos e com os ouvidos e com o olfato / E com o tato… / E com a
inteligência…” – vv. 86-91).
 
• Esta identificação com as máquinas traduz uma atitude sensacionista
de ser tudo de todas as maneiras do sujeito poético, pois quer sentir
tudo e identificar-se com tudo, procurando daí obter o máximo de
sensações possível. Ele quer penetrar tudo, ser penetrado por tudo (“Ah
não ser eu toda a gente e toda a parte!”).
 
 
▪ Perceção do real pelo sujeito poético
 
• O sujeito poético perceciona o real baseado no excesso de sensações:
“(…) excesso / De expressão de todas as minhas sensações” (vv. 12-13):

- visuais:

. forma: “Ó rodas, ó engrenagens (…)”;

. luminosidade: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da


fábrica” (v. 1);

- cinéticas: “Andam por estas correias de transmissão e por estes


êmbolos e por estes volantes” (v. 23);

- táteis: “Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia


à alma.”;

- auditivas: “(…) r-r-r-r-r-r-r- eterno.” (v. 5);

- gustativas: “Tenho os lábios secos (…)” (v. 10);


- olfativas: “A todos os perfumes de óleos e calores e carvão” (v. 31).

 
• Comparando com o real de Caeiro, em Campos a Natureza é substituída
pela visão do mundo moderno e “supercivilizado” (“Em febre e olhando os
motores como a uma Natureza tropical”, “Desta flora estupenda, negra,
artificial e insaciável”), com o qual o sujeito poético estabelece uma
ligação estranha, eufórica e exaltada, caracterizado também por
um erotismo frenético e doentio (“Fazendo-me um excesso de carícias ao
corpo numa só carícia à alma.”; “Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto, / Rasgar-me todo, abrir-me completamente,
tornar-me passento / A todos os perfumes de óleos e calores e carvões”).
 
• A visão excessiva e intensa do real provoca no sujeito poético um estado
de quase alucinação marcadamente erótico que começa a desenhar-se na
segunda estrofe (“Em fúria fora e dentro de mim” – v. 7), intensifica-se
na terceira e atinge o clímax na última, conferindo, assim, ao texto a sua
faceta provocatória e escandalosamente futurista.
 
 
▪ A temática da infância
 
      Entre os versos 181 e 189, numa estrofe parentética, Álvaro de Campos
retoma um tema comum ao ortónimo e aos heterónimos - a infância -, que
surge mais uma vez como a idade perfeita, um espaço de liberdade, de não-
pensamento, de felicidade, no que se opõe ao presente. Nos versos citados, a
infância surge representada por diversos elementos: a nora, o quintal, a casa,
os pinheiros, o burro - animal significativo que representa a ausência de
pensamento / racionalidade.
 
 
▪ Denúncia do lado negativo da civilização industrial
 
• O «eu» exalta tudo o que simboliza a modernidade e a era industrial, o
que inclui os seus aspetos negativos: “Que importa tudo isto, mas que
importa tudo isto, / Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, / Ao ruído
cruel e delicioso da civilização de hoje?” (vv. 207-210).

• Assim, ele denuncia:

. a desumanidade;

. a corrupção;

. a mentira;

. a imoralidade e a perversidade;

. a pobreza e a miséria;

. a falta de higiene;


. a hipocrisia;

. os falhanços da técnica (desastres, naufrágios, desabamentos…);

. a prostituição de menores e a pedofilia;

. a guerra;

. Campos chega mesma a prever o fim / a substituição da civilização


industrial (vv. 204-206).
 
• O sujeito poético menciona também os vários tipos sociais e personagens
que caracterizam a era industrial: comerciantes, vadios, “escrocs”,
aristocratas, “esquálidas figuras dúbias”, “chefes de família”, “cocotes”,
“burguesinhas”, “pederastas”, “gente elegante que passeia”, “caixeiros-
viajantes”. Ele revela, assim, o interesse por todas as realidades que o
rodeiam.
 
 
▪ Último verso do poema
 
• O «eu» exprime o seu desejo de ser múltiplo (“toda a gente”) e
omnipresente (“toda a parte” – sentir tudo de todas as
maneiras e identificar-se com tudo. Esta seria a única maneira de
fruir totalmente a maravilha do seu tempo.
 
• O verso sintetiza a atitude de deslumbramento em relação às
realidades cantadas e com as quais se deseja fundir.
 
• Por outro lado, constitui o reconhecimento da sua impossibilidade, o
que leva o «eu» poético a denunciar a sua frustração, acabando por
concluir o poema na mesma situação em que o iniciou: apenas como
observador e cantor épico de uma realidade que lhe é exterior.
 
 
▪ Retrato do sujeito poético
 
• O sujeito poético canta e exalta o progresso, a vida moderna, as
máquinas, de forma entusiástica, eufórica, apaixonada e arrebatada.
 
• Mostra-se, igualmente, espantado de novidade, louco de emoção, tudo
devido à forma maravilhosa e entusiástica como “observa” o esplendor do
progresso e da modernidade, que ama desesperada e pervertidamente.
 
• Em simultâneo, revela dor, sofrimento e um estado febril – tem os lábios
secos, arde-lhe a cabeça, está em delírio e em fúria, agitado
interiormente – esta fúria também é psicológica, uma vez que
corresponde à sua agitação interior (“Tenho os lábios secos, ó grandes
ruídos modernos” – v. 10; “E arde-me a cabeça de vos querer cantar com
um excesso” – v. 12; “Em febre e olhando os motores como a uma
Natureza tropical” – v. 15).
 
• Além disso, revela ansiedade, angústia e inquietação, pois escreve “À
dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica” (v. 1), o que
sugere um canto em sofrimento e num estado de doença (“Tenho febre e
escrevo” – v. 2).
 
• Causas desse estado de espírito:

- os “excessos” do ambiente em que se encontra inserido (vv. 12-13);

- os movimentos “em fúria” e os “ruídos” ouvidos “demasiadamente


perto” das máquinas.

 
• É um sensacionista que pretende sentir tudo de todas as maneiras e
identificar-se com tudo (pessoas, máquinas, tempos), num misto de
volúpia e vertigem, numa histeria de sensações que passa pela
identificação com tudo: “Ah!, poder exprimir-me todo como um motor se
exprime! / Ser completo como uma máquina!”; “Poder ao menos
penetrar-me fisicamente de tudo isto…”.
 
• No entanto, o «eu» da “Ode Triunfal” também critica os aspetos negativos
da civilização moderna industrial, mesmo identificando-se com ela.
 
• Além disso, revela a sua descrença, o seu desencanto e o seu pessimismo
e evoca, com nostalgia e saudade, a infância
Análise da "Ode Triunfal" (3.ª parte)
 ● Forma
 
         O poema é composto por estrofes de extensão variada (vv. 4, 10, 11, 17,
etc.) e por versos em que não existe uma regularidade métrica (vv. 23, 6, 16, 24,
etc.). Esta irregularidade sugere a exaltação (aparentemente) descontroladora do
«eu» lírico e a ideia de que uma nova realidade pede um novo tipo de poesia que
seja menos presa à regularidade.

 
● Rutura com a lírica tradicional
 
1. Formal:

- irregularidade estrófica, métrica e rítmica;

- uso excessivo de coordenação, em detrimento da subordinação;

- catadupa de recursos expressivos (onomatopeias ousadas, apóstrofes


e enumerações exageradas…);

- predomínio de vocabulário técnico, destituído de valor poético.

 
2.▪Conteúdo:
- uso de palavras completamente prosaicas (comuns ou vulgares);

- o canto excessivo da civilização industrial, encarada como matéria


épica;

- a ousadia de mencionar os aspetos negativos da sociedade.

 
 
● Influências
 

• A “Ode” evidencia a presença do futurismo de Marinetti: Campos canta


as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e
industrial…

 
• Futurismo:

- Movimento italiano de início do século XX (Marinetti);

- Rutura com a vida e a arte do “passado” (a perspetiva


aristotélica);

- Criação de uma nova estética para um novo mundo;

- Celebração da modernidade industrial e urbana;

- Culto da máquina e da velocidade;

- Fruição do mundo moderno (ligação ao Sensacionismo de Pessoa),


feita através das sensações.4

 
. Em Portugal, o Futurismo é uma das facetas do Modernismo.
Derivou do Futurismo de Marinetti, cujo primeiro manifesto saiu
no jornal Figaro em 22 de novembro de 1909.

. Tem um cariz agressivo e escandaloso e propõe-se cortar com o


passado, exprimindo em arte o dinamismo da vida moderna

. Desponta, em Portugal como um escândalo, tal como desejado


pelos seus iniciadores (Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor),
apelidados de «malucos» e «loucos» pelos jornais.

. Os textos distinguem-se por uma enorme quantidade de frases


exclamativas, de invetivas e de insultos, com o intuito de
desmistificar, demolir, acabar com os hábitos culturais
esclerosados e retrógrados: criar a pátria portuguesa do século
XX (segundo Almada).
 
• Por outro lado, o poema evidencia também a presença do sensacionismo
de Walt Whitman: Campos canta a civilização moderna industrial, mas,
mais do que os objetos – as máquinas, os motores, etc. -, o que ele busca
são as sensações que lhe despertam, num desejo de sentir tudo de todas
as maneiras.
 
• Por outro lado, em diversos momentos sente-se a presença do Pessoa
ortónimo: a sua inteligência torturada (a denúncia do lado da civilização
moderna), a referência à infância…
 
 
● Linguagem e estilo
 
▪ A tendência para humanizar as máquinas: “Grandes trópicos humanos de
ferro, fogo e forças”; “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas”, etc.
 
▪ O uso da ironia, sobretudo para traduzir a face negativa da civilização
industrial:

- "escrocs exageradamente bem vestidos": além da ironia, note-se a


presença da antítese entre a compostura exterior (o vestuário)
dos escrocs e as suas intenções;

- "Chefes de família vagamente felizes": neste caso, o advérbio


«vagamente» projeta o cansaço (de viver?) sobre a felicidade dos
chefes de família;

- "Banalidade interessante (...) / Das burguesinhas (...) / Que andam na


rua com um fim qualquer": notar novamente a presença da antítese,
agora entre o aspeto exterior das «burguesinhas» (diminutivo irónico) e
as suas obscuras intenções;

- "A maravilhosa beleza das corrupções políticas, / Deliciosos escândalos


financeiros e diplomáticos": a adjetivação antitética assume o valor de
oximoro.

 
▪ A antítese:

- "tudo o que passa e nunca passa": traduz a concentração do passado no


presente, ou a continuidade dos acontecimentos diários;

- "O ruído cruel e delicioso da civilização de hoje": traduz os sentimentos


contraditórios do sujeito poético em relação à civilização industrial.

 
▪ Metáforas e imagens:

- "Arde-me a cabeça de vos querer cantar";


- "Grandes trópicos humanos de ferro, fogo e força" (aliteração em «f»);

- "Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável";

- "Nos cafés, oásis de inutilidade ruidosas";

- "Quilhas de chapa de ferro sorrindo".

   Estes recursos estilísticos, nos exemplos apresentados, evidenciam a


forma como o sujeito poético vibra com a modernidade, com a
civilização industrial (com a fúria do movimento das máquinas, com a
excessiva quantidade de carvão...).

 
▪ O ritmo do poema é torrencial, feroz, vivo, onde surgem em catadupa as
diferentes realidades captadas pro um «eu» em plena histeria de sensações.
 
▪ Onomatopeias (“r-r-r-r-r-r-r eterno”).
 
▪ Apóstrofes (“Ó rodas, ó engrenagens”).
 
▪ Aliterações: “Rugindo, rangendo […] ferreando”.
 
▪ Empréstimos: «jockey».
 
▪ Grafismos inovadores (“Hup-lá, hup-lá, hup-lá-ô, hup-lá”; “Z-z-z-z-z-z-z-z-z-
z-z-z!”).
 
▪ Diferentes registos de língua, nomeadamente o recurso ao calão: «putas».
 

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