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ORAÇÕES EUCARÍSTICAS
Uma contribuição à tradução da terceira edição
típica do Missal Romano
tal conhecia desde há séculos outras intervenções.1 Elas tinham, por sua
vez, antecedentes na liturgia judaica. Nas longas bênçãos, construídas
segundo a estrutura da todá vétero-testamentária, os rabinos introduzi-
ram aclamações que resumiam cada trecho recitado pelo presidente. São
as chamadas “eulogias finais” ou hatimá.2 Em sua origem tinham uma
meritória razão pedagógico-pastoral: quebrar a monotonia de uma longa
oração presidencial e chamar a atenção para os pontos fundamentais da
oração. Entretanto, tiveram uma conseqüência funesta ao desfazerem a
unidade da estrutura literário-teológica da oração de aliança (todá).
Esse perigo pode ocorrer também na liturgia cristã. No sulco da re-
forma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II, compuseram-se
orações eucarísticas (= OEs)3 dotadas de numerosas intervenções da as-
sembléia. Tal é o caso da OE concedida ao Brasil para o Congresso Eu-
carístico de Manaus (1974), hoje conhecida como OE V. Pouco depois a
Sagrada Congregação para o Culto Divino (= SCCD) elaborou OEs para
missas com crianças que apresentavam, já no texto latino, várias inter-
venções da assembléia.4 Mais tarde, em 1988, foi aprovada a então cha-
mada “anáfora zairense”, dotada igualmente de intervenções da assem-
bléia.5 Ao traduzir a segunda edição típica do Missal Romano (= MR), a
CNBB obteve para o Brasil o privilégio de introduzir intervenções da
assembléia em todas as OEs. Essa prática foi recentemente apoiada por
ocasião do Sínodo dos Bispos sobre a eucaristia.6
1. Cf., por exemplo, COMISSÃO EPARQUIAL DE LITURGIA: Divina Liturgia de São João Crisósto-
mo, Estética Artes Gráficas, Curitiba 1999, 61 e 65. Cf. La Divina Liturgia del Santo nostro Padre Giovanni Cri-
sóstomo (texto grego com tradução italiana do Mosteiro Exarquial de Santa Maria de Grottaferrata), (s/ed.),
Roma 1967, original grego: p. 108 e 112; trad. it., p. 109 e 113. Na reforma litúrgica do Vaticano II introduziu-se
na liturgia romana a aclamação anamnética.
2. Cf. C. GIRAUDO, Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia, Loyola, São Paulo 2003, 122,
213 e 373, nota 38.
3. A partir de agora se usará para “oração eucarística” a sigla OE (no plural: OEs). No caso de se fazer ne-
cessário, haverá alguma especificação: a sigla OE seguida de um algarismo romano indica a numeração das OEs
no MR brasileiro; OE rec. I e OE rec. II identificam as duas OEs sobre a reconciliação; OE div. circ. remete às
quatro variantes da OE para diversas circunstâncias; OE cr. sinaliza as OEs para missas com crianças, um alga-
rismo romano as especifica mais.
4. Cf. A. BUGNINI, La riforma liturgica (1948-1975), CLV – Edizioni Liturgiche, Roma 1983, 469-475.
5. Cf. informação, texto e análise em, GIRAUDO, op. cit. (Num só corpo), 406-411. Com a mudança do
nome do Zaire para República Democrática do Congo, ignoro qual possa ser atualmente a denominação adequa-
da dessa anáfora.
6. Cf. SALA STAMPA DELLA SANTA SEDE. Synodus Episcoporum Bolletino. VI Assemblea Genera-
le Ordinaria del Sinodo dei Vescovi. 2-23 ottobre 2005, Edizione italiana. 31 – 22/10/2005, Elenco finale delle
proposizioni. Proposizione 21: http://www.vatican.va/news_service/press/sinodo/documents/bolletino_21_xi-
ordinaria-2005/01_italiano/b31_01.html
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7. Cf. GIRAUDO, ob. cit. (Num só corpo), 187-253 (considerações de caráter geral sobre a estrutura teológi-
co-literária do gênero “anáfora”); 369-411 (análise das orações eucarísticas da liturgia romana). Ver também suas
outras obras: ID., La struttura letteraria della preghiera eucaristica. Saggio sulla genesi letteraria di una forma
(todà veterotestamentaria, berakà giudaica, anafora cristiana), Biblical Institute Press, Roma 1981. ID., Eucaris-
tia per la Chiesa. Prospettive teologiche sull’eucaristia a partire dalla “lex orandi”, Morcelliana/Gregorian Uni-
versity Press, Brescia/Rome 1989. ID.,Preghiere eucaristiche per la Chiesa di oggi. Riflessioni in margine al com-
mento del canone svizzero-romano, Morcelliana/Gregorian University Press, Brescia/Rome 1993. ID., Stupore eu-
caristico. Per una mistagogia della messa alla luce dell’enciclica Ecclesia de Eucharistia, Libreria Editrice Vatica-
na, Vaticano 2004. Como vulgarização em português: ID., Redescobrindo a eucaristia, Loyola, São Paulo 2002.
8. Cf. J.A. JUNGMANN, Missarum sollemnia. Eine genetische Erklärung der römischen Messe. Band 1:
Messe im Wandel der Jahrhunderte. Messe und kirchliche Gemeinschaft. Vormesse, Herder, Wien 1948, 219, n.
15. Ele explica que “anáfora” significa “hinauflegen (auf den Altar)” (“colocar [sobre o altar]”; para isso é neces-
sário levantar a oferenda [hinauflegen]). Conforme informação de meu colega Johann Konings, é possível que
anáfora tenha a ver com o hebraico ‘olah, que significa oferenda alteada ao altar, como, p. ex., no Sl 51,19. Tam-
bém em Nm 4,19 significa o ministério da oferenda, embora com outro substrato hebraico. O verbo grego anaphe-
rein corresponde a muitos verbos hebraicos, que geralmente têm o sentido de “fazer subir”.
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Deus que se segue dos benefícios que lhe conferiu). A segunda depende
da primeira; é sua conseqüência lógica, jurídica e teológica.
Toda aliança supõe dois parceiros. Também a aliança de Yhwh com
seu povo. Se o discurso de aliança, quando parte de Deus tem essa estru-
tura de duas secções, também quando parte do parceiro humano terá
uma estrutura análoga. Apenas análoga, porque o ser humano não pode
apresentar méritos diante de Deus e, por isso, não pode iniciar seu dis-
curso a Deus recordando o que fez por Deus, já que tudo que possa ter
realizado de bom é graça, dom de Deus. Tampouco pode o ser humano
fazer exigências a Deus, apresentar-lhe injunções. O discurso de alian-
ça, da parte do parceiro humano, só pode ser recordação da misericórdia
divina e súplica humilde e confiante com base nas promessas da aliança.
Daqui decorre a estrutura da oração de aliança que é o correspon-
dente da parte do parceiro humano ao discurso de aliança da parte de
Deus. Também a oração de aliança apresenta-se em duas secções: a sec-
ção anamnético-celebrativa e a secção epiclética. O parceiro humano
da aliança inicia seu discurso recordando os grandes feitos de Deus em
favor da humanidade, em favor de seu povo, sua fidelidade incansável
diante das infidelidades humanas e, recordando-o, louva, bendiz, dá gra-
ças a Deus por tanta bondade e misericórdia. Baseado na sempre renova-
da fidelidade de Deus, ousa apresentar-lhe sua injunção, como parceiro
da aliança, mas será uma “injunção suplicante”. A promessa de Deus
autoriza o parceiro humano a elevar sua súplica.
Para reforçar o pedido, o orante pode usar de um artifício literário:
referir a atuação salvífica ou a promessa divina, em que se baseia sua sú-
plica, citando o próprio texto bíblico, a Palavra de Deus. Do ponto de
vista literário a citação é um embolismo (do grego tò émbolon = enxer-
to); do ponto de vista teológico, é o lugar teológico-escriturístico que dá
força e fundamento ao pedido. A súplica não provém de uma opção arbi-
trária do orante, mas está no dinamismo da aliança: o pedido é motivado
e garantido pela promessa de Deus.
A narração da instituição na oração eucarística é, do ponto de vista
literário, um embolismo introduzido na súplica da Igreja pela transfor-
mação dos dons no corpo (e sangue) de Cristo, para que os que dele co-
mungarem sejam o corpo de Cristo. Em si não seria necessário citar o re-
lato da instituição; bastaria realizar o que Cristo mandou, ou seja: fazer
memória de sua morte e ressurreição, bendizendo a Deus na ação de gra-
ças pronunciada sobre o pão e sobre o vinho. Como exemplo de que o re-
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12. Trata-se principalmente de variantes de 2Cor 13,13. Assim na anáfora das Constituições Apostólicas
(cf. GIRAUDO, ob. cit. (Num só corpo), 257); anáfora de São Tiago (cf. ib., 286); anáfora de São João Crisósto-
mo (cf. ib., 319); anáfora de Addai e Mari (cf. ib., 341); anáforas da tradição hispânica (cf. ib., 325).
13. A tradução oficial da resposta em língua portuguesa não corresponde à resposta tradicional em grego e
em latim – ao contrário do que acontece em todas as outras línguas. Ela expressa antes a profissão de fé na presen-
ça do Senhor: “Ele está no meio de nós”. Não foi uma escolha muito feliz, pois, de certa forma, declara dispensá-
vel a saudação: “Desejas que o Senhor esteja conosco? Ele já está! O desejo foi inútil!”...
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14. O termo “dever”, da tradução oficial, pode causar certa ojeriza em pessoas que não compreendem que o
“dever” não é resposta a uma imposição, mas a resposta de quem compreendeu que a iniciativa amorosa de Deus
exige de nós a resposta devida do preito de ação de graças, resposta que é carregada pelo amor reconhecido.
15. É como CIPRIANO DE CARTAGO (em: De oratione Dominica 31, CSEL 3, 289) o chama.
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16. Tal é o caso na liturgia judaica. No uso cristão, seria mais lógico dizer que o “Bendito” faz eco à acla-
mação das multidões que acolheram Jesus em Jerusalém (cf. Mt 21,9). Giraudo opta por atribuir esta parte do
Santo aos querubins e ofanins a partir do estudo dos ancestrais judaicos da anáfora cristã. Cf. GIRAUDO, ob. cit.
(Num só corpo), 296.
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17. Em algumas das OEs romanas de composição recente não se segue essa estrutura gramatical.
18. Citado por GIRAUDO, ob. cit. (Num só corpo), 312 (cf. 310-312).
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19. Entende-se que, por razões práticas, se tenha preferido traduzir “Por Cristo, com Cristo, em Cristo”: a
tendência, infelizmente comum, a pronunciar atabalhoadamente os textos litúrgicos, levaria a uma verdadeira ca-
tástrofe, se se fosse dizer “Por ele, com ele e nele”. As pausas necessárias entre cada inciso não seriam feitas e a
proclamação se tornaria incompreensível. O verdadeiro remédio, no entanto, seria a educação litúrgica dos presi-
dentes, despertando neles o sentido da importância desse momento.
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20. Por isso a tentação de a doxologia ser pronunciada por todo o povo. Pode-se suspeitar que a introdução
da intervenção antes da doxologia visava a evitar essa prática muito difundida.
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ças à eucaristia que está sendo celebrada, cresçam como corpo eclesial
de Cristo. Se isso não fica claro nas intervenções da assembléia, temos
novamente uma lista solta de intenções desconexas entre si ou, quando
muito, como o MR propõe para as preces dos fiéis, sucedendo-se numa
certa ordem pré-determinada.
Mais uma questão diz respeito à enorme variedade de respostas dis-
tintas que torna impossível memorizar e, portanto, não ajuda a finalida-
de catequético-pedagógica das intervenções da assembléia. Pelo con-
trário, obriga a operações nada apropriadas para a liturgia, mas que se
verificam infelizmente por toda a parte: quer o uso de um folheto ou ca-
derninho, quer o padre dizendo a intervenção para o povo repeti-la. Isso
sem mencionar o fato de que tais intervenções deveriam ser cantadas e
não recitadas. Poucas opções, bem escolhidas, possibilitariam aos fiéis
até mesmo a compreensão da estrutura literário-teológica da anáfora e,
com isso, mediariam uma melhor teologia eucarística.
21. As observações sobre o cânon romano (OE I) ficarão para depois, dada a complexidade de sua com-
posição.
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22. A unidade dessas duas partes fica bem marcada pelo fato de o mesmo MR brasileiro atribuir ambas a
um só concelebrante (2C).
23. Gramaticalmente seria o Cristo, pois é o último citado; teologicamente deveria ser o Espírito, a quem
cabe transformar-nos numa oferenda ao Pai.
24. Aliás, é uma frase, cuja cadência não se coaduna com a das demais intervenções (aproximadamente de-
cassílabas). Tem-se a impressão de um erro de digitação, pois a intervenção correspondente na OE II soava:
“Concedei-lhe contemplar a vossa face”.
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25. Teria sido melhor traduzir homo por “ser humano”; literariamente soa muito pesada aqui a expressão
“homem e mulher”.
26. Literariamente teria sido bem melhor traduzir hominibus por “à humanidade” em vez de “aos homens e
às mulheres”.
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28. Organismo criado por Paulo VI para executar a reforma litúrgica determinada pelo Concílio Vaticano II.
29. Cf. GIRAUDO, ob. cit. (Num só corpo), 369-384.
30. ID., ib., 378.
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31. O próprio MR identifica este trecho do cânon como “memento dos vivos” (nº 81) em contraposição ao
“memento dos defuntos” (nº 97), que se encontra depois da epiclese sobre os comungantes.
32. Todo o cuidado da tradução brasileira por uma linguagem inclusiva é deixado de lado nas intervenções
(aclamações) da assembléia!
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36. Essas sugestões e outras semelhantes espalhadas pelo texto ficam subordinadas ao princípio básico a
ser defendido na conclusão: de não se optar por intervenções muito variadas e não memorizáveis.
37. Cf. C. GIRAUDO, ‘Preces eucharisticæ de reconciliatione’: Analisi della progressione tematica alla
luce della struttura anaforica, em: C. GIRAUDO (org.), Il messale romano. Tradizione, traduzione, adattamen-
to (Atti della XXX Settimana di Studio dell’Associazione Professori di Liturgia. Gazzada, 25-30 agosto 2002),
CLV – Edizioni Liturgiche, Roma 2003, 299-336.
38. O texto original mimeografado das OEs rec. (OE rec. I: francês; OE rec. II: alemão) foi enviado pela
SCCD às conferências episcopais, com uma primeira tradução latina ad interim, em 1º de novembro de 1974. A
mesma tradução latina foi publicada em fascículo impresso em 1983, por ocasião do Ano Jubilar da Redenção.
Na 3ª edição típica do MR saiu uma revisão daquela tradução latina como “appendix ad ordinem missæ”. Cf.
GIRAUDO, art. cit., 299-300. A tradução brasileira atual tem por base a tradução latina ad interim e, para a tra-
dução brasileira da 3ª edição típica do MR, terá obrigatoriamente que voltar a ser traduzida, a partir do texto lati-
no revisado.
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3. Sugestões conclusivas
46. A terceira alternativa: “Salvador do mundo, salvai-nos...” é menos feliz e deveria ser evitada, porque
não corresponde exatamente à função de memorial. Cf. GIRAUDO, ob. cit. (Num só corpo), 550, item 14. Além
disso, para evitar “uma intervenção do tipo: ‘Tomaremos agora a segunda fórmula!’”, seria “desejável que, a
cada fórmula corresponda uma monição própria” (cf. ib.), como o faz o MR espanhol.
47. As observações e sugestões não são completas. Seria preciso, em especial, estudar uma solução ade-
quada, dentro do espírito destas conclusões, para o cânon romano (OE I) e para as OEs cr. I, II e III.
Apêndice: Sinopse das intervenções