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Feminino e sagrado
Organizadora
Maria Simone Marinho Nogueira
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Arte de Capa: Kate Bedell - https://www.katebedell.com/
Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia [recurso eletrônico] / Maria Simone Marinho Nogueira (Org.)
-- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
265 p.
ISBN - 978-65-5917-393-8
DOI - 10.22350/9786559173938
CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Nota da organizadora
1
A aula sobre Christine de Pizan contou com a colaboração do Prof. Dr. Evaniel Brás, da Universidade Federal de
Sergipe.
2
As aulas sobre Hilda Hilst e sobre Adélia Prado contou com a colaboração da Profa. Dra. Cleide Oliveira, do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, e que gentilmente engrandece este livro com o Prefácio.
De qualquer modo, é importante fazer uma observação em relação
aos textos aqui publicados. Com exceção de dois deles, que têm por base
as pesquisas já desenvolvidas na Pós-Graduação, todos os outros se cons-
tituem num esforço por parte das mestrandas e dos mestrandos em
realizar uma investigação sobre uma escritora até então desconhecida ou
nunca trabalhada por elas e eles, valorizando-os ainda mais porque pos-
suem o sabor da descoberta e do encanto que deve ser um dos
pressupostos da pesquisa quando se trata, sobretudo, das humanidades.
Área tão necessária e importante quanto mal compreendida no atual con-
texto em que vivemos. Nesta direção, o solicitado no Componente
Curricular foi que ao final do semestre fosse entregue um artigo sobre o
tema abordado a partir das mulheres apresentadas ou de outras que pu-
dessem acrescentar novas perspectivas à discussão. Assim, dentre as
estudadas, se apresentaram textos sobre Hadewijch da Antuérpia, Simone
Weil, Hilda Hilst e Adélia Prado. A estes, acrescentaram-se textos sobre
Isabel Machado, Catarina de Siena, Etty Hillesum, Clarice Lispector e Dôra
Limeira. Logo, da Idade Média à Contemporaneidade, partindo dos Países
Baixos, passa pela Itália, França e Portugal, cruza o Atlântico e chega ao
Brasil, recortando diferentes paisagens. Neste percurso, vê-se um coro de
vozes, na verdade, de escritas que desenham o sagrado ou que expressam
um experienciar dele. Seja como for, cada uma à sua maneira, cada uma
na sua língua, escreve para si e para quem tiver a disponibilidade da escuta
para o indizível, isto é, para aquelas e aqueles que têm sede do infinito e a
quem, naturalmente, tudo não basta. Aproveitando a metáfora do desejo,
que não baste, desta forma, este livro, e que suas leitoras e seus leitores se
sintam sedentos por provar um pouco mais.
Prefácio 11
Cleide Oliveira
1 14
Um pouco da religiosidade medieval a partir das experiências místicas de Catarina de
Siena
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos
2 37
“Cristo desceu e tomou conta de mim”: a mística em Simone Weil
Luiza Benício Pereira
Maria Simone Marinho Nogueira
3 60
Crítica à instituição igreja e a recusa de Simone Weil ao batismo em carta a um
religioso
Luana Micaelhy da Silva Morais
4 77
Simone Weil e o acesso ao divino por meio do infortúnio
Jaqueline Vieira de Lima
5 92
A espera de Deus em Simone Weil: reflexões sobre justiça e caridade
Erica Dayana Monteiro Cavalcante
6 106
Testemunho e sagrado em Simone Weil
Jéssica da Silva Nascimento
Reginaldo Oliveira Silva
7 129
A experiência mística na escrita de si em Etty Hillesum
Solange Alves de Almeida
8 149
Entre o feminino e o sagrado: um estudo sobre a relação com o divino em D. Isabel de
Aragão no medievo europeu
Francisco Edinaldo de Pontes
Aldinida Medeiros
9 180
Peças do inespecífico: o mosaico do amor na poética de Hadewijch da antuérpia
Itamar Mateus Muniz de Melo
10 193
Entre o real e o sagrado: uma leitura possível do conto Búfalo, de Clarice Lispector
João Aleixo da Silva Neto
11 203
Dimensões do sagrado em Hilda Hilst, Obscena Senhora D.
Julian Bohrz
12 226
A experiência divina em Adélia Prado: uma ligação mística do eu-lírico em
Consanguíneos e O amor no Éter
Pedro Caio Sousa Almeida
13 240
A presença do sagrado na escrita de autoria feminina em O beijo de Deus, de Dôra
Limeira
Ana Flávia da Silva Oliveira
Cleide Oliveira
Por fim, o texto de Ana Flávia da Silva Oliveira, sobre a escritora paraibana
Dôra Limeira, em especial sobre a narrativa O beijo de Deus (2007), texto
que enfoca a intercessão sempre surpreendente entre o erótico e o sagrado
na referida narrativa.
Entre o feminino e o sagrado os textos que aqui se dispõem estabele-
cem rico diálogo com a filosofia e com a literatura; fica a sugestão para que
o leitor aceite o convite e se embrenhe nessa floresta de signos tecida a
partir de uma multiplicidade de vozes que se conjugam no feminino e se
afinam no comum desejo de aceder ao sagrado.
Introdução
O século XIV é visto, por muitos autores, como paradoxal, pois, se por
um lado, foi marcado por eventos como a Guerra dos Cem Anos, a Peste
Negra e o Grande Cisma, por outro, foi também a época em que viveram
grandes poetas, místicos e santos, como Boccaccio, Geoffrey Chaucer, Jo-
hann Tauler, Henrique Suso, Ruysbroeck, Brígida da Suécia e Catarina de
Siena. Por isto, ele é comumente descrito como uma era de destruição, mas
também de soerguimento; de terror apocalíptico, mas também de espe-
rança mística.
Nele, houve o colapso da ordem estabelecida pela Igreja, o esgota-
mento do modelo feudal, o surgimento do nacionalismo e das primeiras
divisões religiosas, contudo, espiritualmente, ele foi bastante profícuo,
uma época de bastante vitalidade espiritual que marcou a história do Oci-
dente (DAWSON, 2002).
A Itália, que viria a ser expoente do Renascimento, produziu, nos sé-
culos anteriores, uma literatura espiritual extremamente rica, “repleta de
devoção mística e fervor religioso” (KING, 2004, p.56). Embora alguns
místicos tenham se mantido propositalmente afastados das polêmicas,
preferindo enfatizar a necessidade de conversão pessoal e de uma mu-
dança interior; outros, como Catarina de Siena, sentiram-se compelidos
ao profundo envolvimento em defesa do papado e de uma reforma da
Igreja (MCGINN, 2005).
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 15
como mais do que mera realidade natural, e tudo – a própria casa, a rotina
– é compreendido a partir de uma perspectiva que toma por base a trans-
cendência (ELIADE, 2011).
O sagrado, para ele, é a realidade por excelência, e ele deseja nunca
perdê-la de vista, mantendo-se, o máximo possível, perto de onde ele se
manifesta primordialmente, o templo, e dos objetos consagrados, dese-
jando santificar-se e viver num mundo santificado. A vida cotidiana é
valorizada no plano religioso e metafísico e é transfigurada, de forma que
até o gesto mais habitual pode significar um ato espiritual, e a vida mesma,
de muitas formas, é passível de ser santificada (ELIADE, 2011). Embora
muito do que Eliade descreve seja relativo a sociedades primitivas, as in-
formações supracitadas ajudam o ocidental contemporâneo a
compreender o pensamento cristão e a mística medieval, que se funda-
menta nesta necessidade que o religioso tem de santificar-se para entrar
em comunhão com Deus – tudo o mais se desenvolve a partir deste postu-
lado inicial (ADDISON, 1918).
O religioso considera haver no coração do homem uma inquietação1,
um abismo2, uma saudade profunda, um “desejo de Deus” intenso e ine-
xaurível, chamado pelos primeiros padres sírios de “sede da alma pelo
Deus vivo” (GEBHART, 1922). A partir deste ponto de vista, desde os pri-
mitivos, com seus rituais e sacrifícios, há uma busca do homem por algo
superior que o criou e com quem deve restabelecer o contato, por meio de
rituais religiosos e da observância de leis, de uma ética revelada por este
ser supremo a um pontífice, seja sacerdote ou profeta.
1 “Todavia, o homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te. Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor,
porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”. (AGOSTINHO,
1955, 1.1)
2 “O infinito abismo só pode ser preenchido por um objeto infinito e imutável, isto é, somente pelo próprio Deus”.
(PASCAL, 2001, VII, 425).
18 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
3 Gn 3, 23-24: "O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, para que ele cultivasse a terra “de onde havia tirado”.
E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados de uma espada flamejante, para guardar
o caminho da árvore da vida"
4 Maria de Nazaré é uma figura bastante cara aos medievais, que costumavam apontá-la como contrária a Eva: a
desobediência da primeira Eva ocasionou a queda; a obediência da nova Eva permitiu a Encarnação do Verbo; a
primeira Eva disse “não” a Deus, a nova Eva disse “sim” e concebeu do Espírito Santo; por meio da primeira Eva, o
pecado veio ao mundo; por meio da nova Eva, a redenção veio ao mundo. Se por meio da primeira Eva houve a
queda, pela intercessão da nova Eva Jesus iniciou seu ministério salvífico com o primeiro milagre (bodas de Caná)
etc. A nova Eva é amada triplamente por Deus: com amor de Criador, por Deus Pai; com amor de esposo, pelo
Espírito Santo; e com amor de Filho, por Jesus Cristo, sendo, por isso, considerada a maior e mais amada dentre as
criaturas. Se, com a expulsão do Éden, anjos foram colocados na porta para evitar a volta do casal caído e, em todo
o Antigo Testamento, os homens se prostram e não conseguem fitar os anjos, tamanho o seu esplendor; a nova Eva
é saudada alegremente pelo maior dos arcanjos e o fita com tranquilidade etc. A famosa Ladainha de Nossa Senhora
remonta ao século XIII.
5 Deus passeava no jardim à hora da brisa da tarde, em plena comunhão com os homens (Gn 3,8) [grifos nossos]
6 Jó se despoja de tudo e suporta o sofrimento pacientemente, perde bens, filhos e chega a ter o corpo coberto por
feridas – lembra o que ocorre com certa frequência na mística cristã.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 19
Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por
vós, ó meu Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando
irei contemplar a face de Deus? Minhas lágrimas se converteram em ali-
mento dia e noite, enquanto me repetem sem cessar: “Teu Deus, onde está?”
[...] Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim?
Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu
Deus. Desfalece-me a alma dentro de mim; por isso, penso em vós do lon-
gínquo país do Jordão, perto do Hermon e do monte Misar. Uma vaga traz
outra no fragor das águas revoltas, todos os vagalhões de vossas torrentes
passaram sobre mim. Conceda-me o Senhor de dia a sua graça; e de noite eu
cantarei, louvarei ao Deus de minha vida. Sl 42, 2-4.6-9. (Destaques nossos)
Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro. Minha alma está se-
denta de vós, e minha carne por vós anseia como a terra árida e sequiosa,
sem água. Quero vos contemplar no santuário, para ver vosso poder e vossa
glória. Porque vossa graça me é mais preciosa do que a vida, meus lábios
entoarão vossos louvores. Assim vos bendirei em toda a minha vida, com
minhas mãos erguidas vosso nome adorarei. Minha alma saciada como de fino
manjar, com exultante alegria meus lábios vos louvarão. Quando, no leito, me
vem vossa lembrança, passo a noite toda pensando em vós. Porque vós sois o
meu apoio, exulto de alegria, à sombra de vossas asas. Minha alma está unida
a vós, sustenta-me a vossa destra. Sl 62, 2-9. (Destaques nossos)
7 Por exemplo: "Buscai o Senhor, já que ele se deixa encontrar; invocai-o, já que está perto" Is 55,6.
20 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
busca8, uma espera9 do homem por Deus, com quem deseja estabelecer
uma relação pessoal. A mesma coisa é encontrada nos primeiros séculos
do Cristianismo e na Idade Média. "A teologia mística começa sustentando
que o homem se apartou de Deus e anseia por estar novamente unida a
ele" (GEBHART, 1922), este anseio, como dito, é o postulado da mística
cristã. O homem está incompleto, insatisfeito, e não se satisfará com nada
menos que Deus.
Mas, além da natural dificuldade, para o homem moderno, de com-
preender a cosmovisão medieval, no entendimento da mística medieval
sobrevém ainda o antigo problema da linguagem que, em certa medida,
foi responsável pelos clássicos embates entre teólogos especulativos e mís-
ticos; aqueles, buscando, a todo custo, enquadrar as ações divinas na razão
humana e em seus conceitos filosóficos e teológicos, e estes sem conseguir
expressar perfeitamente a experiência mística, utilizando termos inexatos,
inadequados, ou até mesmo, para os teólogos, exagerados, devido à limi-
tação da linguagem a qual os místicos sentem-se constrangidos a recorrer
por não haver outra opção, mesmo sabendo que fica muito aquém da ex-
periência inefável10 que tentam descrever (ROYO MARÍN, 1988).
Em certa ocasião, relata Raimundo de Cápua, Catarina afirmou: “Mas
aqui me falta a memória, e a pobreza da linguagem me impede de dar uma
descrição adequada destas coisas. Não obstante, lhe darei o que puder”
(CÁPUA, 1960, p. 76). Em outro momento, o confessor diz que Catarina de
Siena, durante uma de suas visões, repetiu em latim, por muito tempo,
Vidi arcana Dei, vi os segredos de Deus. Muito tempo depois, quando vol-
tou a si, continuou repetindo as mesmas palavras. Por isso, quando
questionada acerca do motivo pelo qual repetia aquelas palavras sem ex-
plicá-las, como costumava fazer, respondeu:
Estas almas lançadas no forno de minha caridade, sem que nada delas
reste fora de mim, ou seja, nenhum desejo seu, senão todos eles abrasa-
dos em mim, nada há que seja capaz de tomá-las e arrancá-las de mim e
minha graça, porque estão feitas uma só coisa comigo, e eu com elas. E
jamais delas me aparto por este sentimento de minha presença: seu espírito
me sente sempre consigo, enquanto que em outros, menos perfeitos, te disse
que ia e vinha, afastando-me deles quanto ao sentimento, embora não en-
quanto graça, e que isto fazia para levá-los à perfeição. (CATALINA DE SIENA,
1996, p. 193)
Catarina era uma grande pensadora e olhava o assunto principal sob diversos
pontos de vista. Tinha grande facilidade de palavras, férrea unidade e associ-
ação de ideias, ótima memória sobre afirmações feitas precedentemente
(INTRODUÇÃO, CATARINA DE SIENA, 2016, p. 18).
16 Brígida da Suécia também agiu pelo mesmo propósito, mas não há registros de que tenha conhecido ou chegado
a se corresponder com Catarina.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 25
rol17 de mulheres que contaram com parceiros homens que creram na ve-
racidade das experiências místicas e ajudaram a registrar e divulgar as
suas mensagens.
Os escritos de Catarina são uma verdadeira joia não apenas quando
lidos em busca de informações históricas ou sociológicas, para uma melhor
leitura da sociedade italiana medieval, mas também – e principalmente –
por sua beleza e riqueza espiritual. Tanto o Epistolário como as Orações e
seu O Diálogo foram escritos em língua vernácula, não em latim; este úl-
timo, inclusive, “é uma das mais apreciadas joias da mística cristã de todos
os tempos” (ROYO MARÍN, 2019, p. 307), apontado, por muitos, como um
clássico da língua italiana sendo a contrapartida mística em prosa da Di-
vina Comédia.
Doutrinariamente, Catarina ecoa os grandes ensinamentos dos cris-
tãos de seu tempo, o que faz com que seja parte, portanto, de uma tradição;
mas, ao mesmo tempo, ela inova trazendo conceitos e reflexões próprias,
com ênfases bastante particulares, de tal forma que resta difícil definir a
espiritualidade catariniana apontando uma única característica. Quatro
elementos importantes permeiam os seus escritos: o conhecimento de si,
que, juntamente com o conhecimento de Deus, leva à santidade; o amor
ao próximo como forma de pôr em prática o amor a Deus, ou seja, o amor
a Deus no próximo; a caridade; e o sacrifício redentor de Jesus Cristo
(MCGINN, 2016).
17 Hildegarda de Bingen e Volmar de S. Disibodo; Elisabeth e Ekbert de Schönau; Christina de Markyate e Geoffrey
de St. Albans; Jacques de Vitry e Marie de Oignies; Lutgarda de Aywières e Thomas de Cantimpré; Matilde de
Magdeburgo e Enrique de Halle; Christine de Stommeln e Peter de Dracia; Elsbeth Stagel e Henrique Suso; Dorothea
de Montau e John Marienwerder; e Angela de Foligno e Irmão A. (NEWMAN, 1995) são alguns exemplos. Ademais,
Jerônimo e Paula, João da Cruz e Teresa d’Ávila, Francisco de Sales e Joana de Chantal e Vicente de Paula e Luisa de
Marillac (ROYO MARÍN, 1988) são exemplos de mútua influência sobrenatural.
26 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Unidas todas estas potências e imersas no fogo do Meu amor, o corpo perde o
sentido de modo que, vendo, o olho não vê; a língua, mesmo falando, não
fala; a mão, apalpando, não toca; e os pés, se movendo, não caminham.
Algumas vezes, pelo transbordamento do coração, permito que a língua
se mova, pronunciando palavras para desafogar o coração e para glória e
louvor do Meu nome. (CATALINA DE SIENA, 1996, p. 194-195) [grifos nos-
sos]
18 2Cor 11, 2: “"Eu vos consagro um carinho e amor santo, porque vos desposei com um esposo único e vos apresentei
a Cristo como virgem pura"
19 Ef 5, 25-27. 32: "Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-
la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem
ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível [...]"Esse mistério é grande, quero dizer,
com referência a Cristo e à Igreja."
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 29
Assim como Francisco de Assis21, tamanha foi a união com Cristo que
Catarina chegou a receber os estigmas, mas pediu – e foi atendida – que
ficassem invisíveis para os demais. A própria Catarina descreve o aconte-
cimento ao seu confessor e biógrafo:
20 Na carta 373, de despedida ao Frei Raimundo de Cápua, ao descrever as fortes dores e agonias, ela revela uma
visão na qual o próprio Cristo a conforta: “Abraçou-me e disse palavras com muita ternura, mas não as direi”.
(CATERINA DA SIENA, 1939, p. 1239)
21 Francisco de Assis é considerado o primeiro estigmatizado da História do Cristianismo; quem não o considera,
normalmente vê nas declarações de Paulo (Gl 6, 17: carrego em meu corpo as marcas de Jesus; II Cor 12,7: foi-me
dado um espinho na carne; Gl 2,20: já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; Col 1, 24: Agora me alegro
nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo
que é a Igreja, etc) provas de que era estigmatizado.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 31
sua resolução, mas sem sucesso. Ela ofertou a sua vida ao Esposo, ofere-
cendo-se para suportar o peso de todos os pecados do mundo, pela
unidade e reforma da Igreja.
Nos últimos três meses de vida, Catarina sentiu profunda agonia, su-
portando-a, paradoxalmente, com júbilo e contentamento. A nave de São
Pedro havia sido colocada sobre os seus ombros e a estava esmagando. Ela
escreve as últimas cartas, despede-se, confessa os seus pecados, pede a mi-
sericórdia divina, exclama “Sangue! Sangue!”, e entrega a sua alma a Deus
(ROYO MARÍN, 2019). Catarina, inteiramente unida a Cristo, faleceu em
um domingo, dia do Senhor, um mês após completar 33 anos, a idade com
que Ele morreu pelos pecadores.
Considerações finais
Referências
ADDISON, Charles Morris. The Theory and Practice of Mysticism. New York: E. P. Dutton
Company, 1918.
AQUINAS, Thomas. Summa Theologiae. Prima Pars, 1-49. New York: Aquinas Institute,
2012.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 35
AQUINAS, Thomas. Summa Theologiae. Secunda Secundae, 92-189. New York. Aquinas
Institute, 2012.
BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA. 9a. ed. São Paulo: Editora Ave- Maria, 2012.
CÁPUA, Raymond of. The Life of St. Catherine of Sienne. Dublin: James Duffy & Co. Ltda.
1960.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
GEBHART, Emile. Mystics & Heretics in Italy at the end of the Middle Ages. London: George
& Unwin LTD, 1922.
LACEY, Antonia. Gendered Language and the Mystic Voice. Reading from Luce Irigaray to
Catherine of Siena. In: New Trends in Feminine Spirituality. Turnhout: Brepols,
1999, p. 329-342.
36 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
MCGINN, Bernard. The Harvest of Mysticism in Medieval Germany. Vol. IV. New York:
Herder & Herder, 2005.
MCGINN, Bernard. The Varieties of Vernacular Mysticism (1350-1550). Vol. V. New York:
Herder & Herder, 2016.
MITCHELL, Linda. Family Life in the Middle Ages. London: Greenwood Press, 2007.
PETRY, Ray C. Late Medieval Mysticism. Louisville: Westminster John Knox Press, 2006.
SESÉ, Javier. El Ideal Femenino en las Cartas de Santa Catalina de Siena. Anuario Filosófico,
Universidad de Navarra, 26, 1993, p. 635-651.
Considerações iniciais
concepção estática e limitada, uma vez que ela é dinâmica e busca uma
experienciar do ilimitado.
A pensadora enfocada neste estudo é a filósofa francesa Simone Adol-
phine Weil1 – uma das mentes mais impactantes e inquietantes do século
XX –, que nasceu em Paris em 3 de fevereiro de 1909 e faleceu em 24 de
agosto do ano de 1943 no Reino Unido, “sem ter podido presenciar a der-
rocada do nazismo e a libertação da França do jugo da Alemanha hitlerista”
(PUENTE, 2020, p. 55). Em seu percurso de 34 anos, atuou não apenas no
campo das produções teóricas, mas também na filosofia, na docência,
como militante ativa dos movimentos sociais, na luta pelos mais pobres,
foi também “sindicalista, crítica do capitalismo (do colonialismo, do comu-
nismo, do marxismo, do totalitarismo, da revolução), anarquista,
operária” (NOGUEIRA, 2019, p. 204). A capacidade intelectual e a versati-
lidade são marcas constantes na vida e na escrita de Simone Weil, que
produziu obras acerca de diversas áreas do conhecimento: na teologia, ci-
ência, política, filosofia, literatura, sociologia, dentre outras, mantendo
aflorada até os últimos minutos de sua vida a ânsia por compreender a si
mesma e os acontecimentos que a cercavam, em sua totalidade.
Simone Weil preocupou-se com os mais pobres, com a classe traba-
lhadora, em uma visão que contemplava as categorias políticas e sociais,
refletindo sobre as causas que promoviam a miserabilidade do sujeito.
Eram essas as suas inquietações pessoais no desnudamento da caridade,
do amor, da partilha do sofrimento ou do querer sentir a angústia que
abarcava a tantos para, assim, sofrer na própria carne e entender na sua
vida as dimensões da alma humana e da realidade desumanizadora, bus-
cando sentir, simbolicamente, a cruz de Cristo, com todas as suas
contradições.
1 Nogueira (2019) destaca a existência da obra biográfica La vie de Simone Weil, datada de 1973, escrita por Simone
Pétrement, amiga da pensadora francesa.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 39
união com o divino, e com o próximo, envolvendo, desta forma, suas per-
cepções, sua filosofia de vida, seus modos de enxergar o outro e os
problemas que o envolvem, sua reflexão do Cristianismo e de outras reli-
giões, assim como sua contemplação do Cristo. Para tanto, tomamos como
apoio a carta Autobiografia espiritual, e os ensaios O amor de Deus e o
infortúnio, que se encontram na obra Espera de Deus (2019)4.
Dessa forma, buscamos colocar em evidência um pouco do percurso
existencial de Simone Weil, dando destaque aos acontecimentos principais
de sua vida, visto ser esta bastante dinâmica e marcada por inúmeros fatos
importantes, inclusive, no que diz respeito ao seu percurso espiritual. Em
seguida, procuramos abordar a mística a partir dos aspectos conceituais e
terminológicos, com base no teólogo Juan Martins Velasco. Por último,
abordamos os textos da pensadora em tela, tendo como foco a sua mística.
5 Nasceu em 1868 e faleceu em 1951, na França. Além de professor de Filosofia, atuante nos liceus franceses, foi
jornalista e escritor. Os textos produzidos por Alain versam sobre diversos temas, da política à educação, publicados
no jornal francês La Dépêche de Rouen et de Normandie, e em outras fontes da época.
42 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
6 Simone Weil contou com a colaboração de Auguste Detoeuf, que a pedido de Boris Souvarine, oportunizou a sua
entrada na Alsthom em 04 de dezembro de 1934, permanecendo até o mês de abril do ano seguinte (MARTINS, 2011).
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 43
7 José Luiz Brandão Luz (2009) destaca, utilizando o registro de Gustave Thibon, que enquanto trabalhava como
operária, Weil não aceitou as confortáveis acomodações disponibilizadas pelo agricultor, preferindo “uma habitação
degradada que possuía numa propriedade de família” (LUZ, 2009, p. 1533).
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8 Em linha gerais, o projeto consistia no envio, por meio de paraquedas, de enfermeiras capacitadas ao campo de
combate para a prestação dos socorros necessários aos soldados feridos, a própria Weil preparou-se para tal tarefa
quando estava nos Estados Unidos (MARTINS, 2011). O projeto encontra-se nos Ecrits de Londres et dernières letres
e uma tradução para língua portuguesa pode ser encontrada no belo livro de Maria Clara Bingemer, Simone Weil. A
força e a fraqueza do amor, 2007, no Anexo III.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 45
9 Para Certeau (2015), também, o surgimento do substantivo mística ocorre no século XVII, como podemos ler num
livro de referência para quem estuda a mística; A fábula mística. Séculos XVI e XVII.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 49
O estudo da mística abre novos horizontes para uma série de problemas, com-
plexifica falsas soluções teóricas e introduz nelas questões pouco ou nada
levadas em consideração, na Antiguidade, na Idade Média ou na Modernidade,
na filosofia, na teologia ou na literatura. As relações entre o racional e o irra-
cional, dogma e heresia, tradição e inovação, conservadorismo e modernismo,
metafísica e desconstrução ficam muito mais ricas e sutis quando o objeto em
questão está dentro do universo da mística. Ela desafia religiosos e ateus, es-
tetas e políticos, direita e esquerda, cristãos e outras religiões, e os obriga a
considerar o seu oposto, perceber os limites de sua posição e saber dialogar
sem preconceitos. (LOSSO, 2016, p. 21)
10 Duas outras cartas que se encontram no mesmo livro onde está sua Autobiografia espiritual abordam também o
tema da sua não aceitação em ser batizada. Em relação à crítica que faz à igreja católica, pode-se ler Carta a um
religioso, 2016.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 51
pelo contato de Deus, que desce até o homem11. A pensadora revela que
nunca procurou Deus, tinha diante da vida uma posição agnóstica, consi-
derando este ato de “buscar” incorreto, que não lhe agradava,
evidenciando, naquela afirmação, que o divino veio até ela. Vejamos, en-
tão, aqueles três momentos que marcam a mística weiliana.
Assim, terminado o ano árduo de trabalho como operária – este que
levou Simone Weil a sentir a alma e o corpo estilhaçado pelo infortúnio do
outro, da dor, da miséria, cuja presença ceifou a sua juventude, cravando-
se no seu espírito e na sua carne – viaja em setembro de 1935, juntamente
com os pais, a Portugal, na esperança de se recuperar “deste aprendizado
por demais pesado para alguém de saúde tão frágil como era o seu caso”
(NOGUEIRA, 2019, p. 205). Afastando-se dos pais, fora a um vilarejo por-
tuguês, “estando de espírito e em estado físico miserável” (WEIL, 2019, p.
33) segundo nos relata. Ela conta que entrou sozinha no vilarejo onde
ocorria a festa do padroeiro e as mulheres dos pescadores contornavam os
barcos em cortejo e cantavam “cânticos certamente muito antigos, de uma
tristeza de cortar o coração” (WEIL, 2019, p. 34). O som entoado era tão
dilacerante, que nunca havia escutado algo desta natureza, relatando a di-
ficuldade na descrição ou explicação acerca do que tinha experienciado, e
frisa: “Lá eu tive de repente a certeza de que o cristianismo é por excelência
a religião dos escravos, que os escravos não podem deixar de aderir ao
cristianismo, e eu entre os outros” (WEIL, 2019, p. 35). Marcada pelo so-
frimento, pela dor, Simone Weil tem a sua experiência íntima com Cristo,
a partir deste momento ela entende que o seu lugar é no cristianismo,
neste sempre esteve e deveria permanecer unida aos infortunados.
Em 1937 houve o segundo encontro com o divino, em Assis, Itália, ao
visitar a capela romana de Santa Maria degli Angeli “incomparável
11 Michel de Certeau (2015, p. 249), acentua que “a mística é o anti babel”, remontando o mito da torre, de modo
inverso, o homem não sobe a Deus pelas paredes erguidas, é Deus que realiza a descida, vindo ao seu encontro.
52 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
12 “Os antigos que conheciam bem a questão diziam: ‘um homem perde a metade da sua alma no dia em que se
torna escravo’” (WEIL, 2019, p. 82).
54 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
O infortúnio não atinge apenas uma área da vida, mas todas elas, em
um movimento de padecimento físico, espiritual, psicológico, em que o su-
jeito se vê extenuado diante de tal circunstância, aproxima-se da morte
“capaz de transformar o homem em pedra ou coisa” (NOGUEIRA, 2020,
p. 153). Os marcados pelo malheur não têm condições de socorrer o outro,
bem como não anseiam ser ajudados, “assim a compaixão para com os
infelizes é uma impossibilidade” (WEIL, 2019, p. 85). Apenas a graça e a
compaixão de Deus alcançam os infortunados, fenômeno considerado
mais espantoso que o milagre do próprio Cristo ao andar nas águas do
mar da Galileia, ao restaurar a saúde dos enfermos e ao ressuscitar Lá-
zaro13.
13 Pode-se verificar as passagens mencionadas por Simone Weil na bíblia cristã nos seguintes evangelhos: Mateus
14: 22-33 (Jesus anda sobre as águas); Marcos 5: 24-34 (cura da mulher que sofria com fluxo de sangue); João 5: 1-
10 (cura do enfermo de Betesda); João 9: 1-12 (cura de um cego de nascença); João 11: 38-44 (ressureição de Lázaro).
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 55
propicia um encontro com ele, que desce e concede a graça aos que man-
tém acesa a capacidade de amar. A cruz de Cristo representa então a nossa
esperança e, no limite entre o humano e o divino, habitamos a contradição
entre o infortúnio e a esperança, entre a presença e a ausência, entre o
próximo e o distante.
Weil frisa: “o infortúnio é uma maravilha da técnica Divina” (WEIL,
2019, p. 99), através dele torna-se possível uma alma finita conhecer a
“força cega, bruta e fria” (WEIL, 2019, p. 99) e diminuir a distância infinita
entre Deus e o ser humano. A criatura recebe o amor do criador por meio
da graça, a qual permeia o âmago da alma transpassada pelo prego, im-
plantado “no centro do universo” (WEIL, 2019, p. 99), que não pode ser
dimensionado em posição, localizado no espaço ou circunscrito no tempo,
pois este centro é o próprio Deus.
Considerações finais
Referências
BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada: contendo velho e novo testamento. Tradução de João
Ferreira de Almeida. São Paulo: Casa publicadora paulista, 2012.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Simone Weil. A força e a fraqueza do amor. Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Mística e profecia feminina: notas para ler algumas
místicas contemporâneas. Rhema, v. 15, n. 48/49/50, p. 149-180, jan./dez, 2011.
Edição Unificada.
CERTEAU, Michel. A fábula mística. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forence
Universitária, 2015.
CUGINI, Paolo. Para uma espiritualidade encarnada: a mística do amor em Simone Weil.
Dialagesthai, v. 5, p. 1-19, 2010.
LOSSO, Eduardo Guerreiro. Prefácio. In: BINGEMER, Maria Clara; PINHEIRO, Marcus
Reis. (Org.). Narrativas místicas: antologia de textos místicos da história do
cristianismo. São Paulo: Paulus, 2016, p. 09-24. Coleção Amantes do mistério.
LUZ, José Luís Brandão. Simone Weil e a grandeza da infelicidade humana. Razão e
Liberdade. Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira. CFUL, Lisboa, p. 1531-
1549. 2009.
MCGINN, Bernard. O desenvolvimento da mística. De Gregório Magno até 1200: tomo II, a
presença de Deus: uma história mística ocidental. Tradução de José Raimundo
Vidigal. São Paulo: Paullus, 2012.
WEIL, Simone. A gravidade e a graça. Tradução de Paulo Neve. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
3
A vida de Simone Weil foi muito curta, porém, seu legado foi consis-
tente e seus escritos servem como base para compreender alguns
questionamentos referentes à sua vivência e atuação enquanto sujeito hu-
mano ativo e que usava de sua posição e compreensão crítica do mundo
para falar sobre as relações humanas.
Simone Adolphine Weil nasceu em Paris no ano de 1909 e faleceu em
1943 em Ashford, Reino Unido. Foi uma notável filósofa, mística, escritora,
pensadora e pacifista. Um dos seus principais objetivos de vida era a busca
pela justiça, e uma possível compreensão das relações humanas. Era des-
cendente de família judia, porém, não praticante. De acordo com
Bingemer, ela nunca conseguiu sintonizar com o judaísmo. Dessa forma,
mesmo pertencente a uma família de judeus, tinha inspiração cristã. Con-
soante a essa questão, Nogueira (2020, p. 205) destaca: “Embora venha de
uma família de judeus não praticantes e demonstre toda sua acolhida às
mais diversas concepções religiosas, Simone Weil, como ela mesma es-
creve, sempre teve uma inspiração cristã, apesar de todas as críticas que
fez à Igreja católica”.
Luana Micaelhy da Silva Morais | 61
Simone Weil foi uma criança abastada e culta, lia em várias línguas,
incluindo grego e latim e teve na infância uma boa educação. Seu irmão
André Weil, um notável matemático, era reconhecido por sua exímia inte-
ligência. Ela, por sua vez, julgava-se medíocre na comparação de suas
faculdades intelectuais com as de seu irmão (Cf. WEIL, 2019). Foi leitora e
apreciadora de obras de tradição filosófica e literária grega, como Platão e
Homero. Todo esse contexto familiar proporcionou à pensadora parisiense
se tornar uma mulher inteligente e engajada nas questões sociais. Estudou
Filosofia na Sorbonne e foi aluna, além de grande admiradora, de Alain
Chartier.
As temáticas abordadas nos escritos de Weil se constituem a partir de
obras filosóficas que exploram, por exemplo, os pensamentos de Descartes
e Espinosa, Platão e Marx e questões que abordam a opressão da classe
trabalhadora. Também tece críticas às teorias da revolução e formula no-
vas ideias. Ela se interessa e escreve sobre o ser humano e a teologia (Cf.
PUENTE, 2020). Nessa perspectiva, NOGUEIRA (2020, p. 149) comple-
menta: “Em geral seus escritos podem ser divididos em duas fases, a
primeira inclui um pensamento mais social e político e a segunda, um pen-
samento mais filosófico e religioso”, embora, como ressalta a estudiosa,
essas fases não devem ser vistas como antagônicas, mas complementares.
Deste modo, dentre as atuações profissionais da pensadora em
apreço, destacamos que ela lecionou filosofia em escolas públicas às alunas
de nível médio. Uma atitude que chama a atenção neste período de docên-
cia é que Weil distribuía o seu salário aos operários em situação de
vulnerabilidade, vivendo apenas com o honorário correspondente ao
abono de desemprego (LUZ, 2009). Isto, dentre outras coisas, mostra que
a solidariedade sempre fez parte de sua vida.
62 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Para além dessa atuação, foi uma participante ativa das reivindica-
ções sindicais em favor da classe trabalhadora, porém nunca se filiou a
partido algum. Como bem destaca Puente:
Simone Weil viveu em uma época marcada não somente pelas duas Grandes
Guerras, mas também por intensos movimentos político-sociais de luta por
melhores condições de trabalho para os operários, bem como por um engaja-
mento dos intelectuais na formação educacional dos trabalhadores. Tudo isso
se manifesta fortemente em sua produção filosófica (PUENTE, 2020, p. 55).
Em meio a tal contexto, Weil decide pedir uma licença de seu trabalho
como professora e trabalhar como operária no chão fabril com o objetivo
de compreender a opressão vivenciada pelos operários. No período de
1934 a 1935 trabalhou em algumas fábricas francesas e tais experiências
lhe proporcionaram fazer uma comparação empírica e teórica acerca das
condições dos proletariados. No ano de 1936 lutou na guerra espanhola
junto aos republicanos e, por ser pacifista, recusou-se a pegar em armas,
porém, este pacifismo não resistiu ao avanço do nazismo no mundo (Cf.
PUENTE, 2020).
O estado de saúde de Weil em toda sua vida foi crítico, a saúde fragi-
lizada somadas a suas experiências na fábrica e na guerra lhe levavam a
um estágio cada vez mais doentio. Conforme explica Luz (2009),
refeição maior que a oferecido aos soldados da guerra, por este motivo sua
saúde se fazia cada vez mais debilitada. Suas ações eram com base em uma
solidariedade desenvolvida ao longo da vida. Como podemos observar a
partir das suas próprias palavras: “Quanto ao espírito de pobreza, eu não
me lembro de nenhum momento onde ele não tenha estado em mim, na
medida em que, infelizmente fraco, ele era compatível com minha imper-
feição” (WEIL, 2019, p. 32). Com isto entendemos que o olhar caridoso de
Weil para com os menos abastados se manifestava de modo que o sagrado
se fez presente em sua vida pela via dos oprimidos.
Comungar com o sofrimento do outro, e não apenas fazer teorias sobre ele;
participar das aflições do outro, e não apenas dissertar sobre elas; mergulhar
profundamente na dor do mundo até o ponto de fazê-la sua, não ficando longe
dela e tratando-a assepticamente (BINGEMER, 2009, p. 20).
1 Simone Weil passou um ano trabalhando como operária. Esta rotina dura aliada a seu estado de saúde frágil e seus
hábitos alimentares a deixaram muito debilitada. A viagem foi uma tentativa dos pais em lhe proporcionar uma
recuperação.
66 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Para Weil, sua crença com relação ao belo na natureza e nas artes é
um reflexo sensível do mistério da fé. Com isto notamos que a pensadora
deixa documentado em seus escritos reflexões relacionadas aos diversos
aspectos de manifestações do sagrado.
cristã. No entanto, Weil acreditava que todos os que creem podem verda-
deiramente estar na presença de Cristo:
A palavra “Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem ao
mundo” contradiz absolutamente a doutrina católica do batismo. Pois sendo
assim, o verbo habita em segredo todo homem, batizado ou não; não é o ba-
tismo que o faz entrar na alma (WEIL, 2016, p. 45).
Não há salvação sem “novo nascimento”, sem iluminação interior, sem pre-
sença de Cristo e do Espírito Santo na alma. Se, portanto, há possibilidade de
salvação fora da Igreja, há possibilidade de revelações individuais ou coletivas
fora do cristianismo. Neste caso, a verdadeira fé constitui uma espécie de ade-
são muito diferente da que consiste em acreditar nesta ou naquela opinião. É
preciso pensar de novo a noção de fé (WEIL, 2016, p. 30).
Foi batizada de maneira reservada, por uma pessoa de seu círculo, Simone
Deitz, que era então sua melhor amiga, e que o reconhece, que o afirma, que
74 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
é, para dizer a verdade, a única testemunha do fato, mas que não quer que se
publique o seu nome...”. Simone Deitz manteve, de fato, secreto o fato por
quase meio século, embora já J. Cabaud e Simone Pétrément tivessem tido
notícia disso, sem nomear a autora do batismo, que queria permanecer desco-
nhecida (NICOLA, DANESE, 2009, p. 16).
Considerações finais
Por tudo que foi discutido até aqui a respeito da vida e do pensamento
de Simone Weil, é possível verificar que sua recusa ao batismo se dava pelo
fato de não querer se submeter aos dogmas, regras e imposições da Igreja
católica a seus fiéis. Se assim fosse, Weil acreditava não poder mais con-
templar as outras coisas que ela considerava boas e que a Igreja não
aceitava e, de certa forma, ainda nos dias atuais não aceita.
Se considerar cristã da porta para fora era exatamente não aceitar
deixar de lado a diversidade de culturas, crenças e credos existentes ao
longo da história que não eram reconhecidos pela instituição Igreja. Neste
viés, notamos a tentativa da escritora em promover um diálogo inter-reli-
gioso, ao passo que a Igreja exclui inúmeras práticas que seriam para Weil
importantes e essenciais, por isso ela se considera uma cristã da porta da
Igreja para fora.
Verifica-se, portanto, que a mística weliana é penetrante e atual.
Como também é notável que em toda sua vida até a morte sua ação se
constitui em comungar com o sofrimento do outro, admirar a beleza do
Luana Micaelhy da Silva Morais | 75
Referências
BINGEMER, Maria Clara: Simone Weil. A vida em busca da verdade. Revista do Instituto
de Humanistas Unisinos (IHU on-line). Filosofia, mística e espiritualidade. Simone
Weil, cem anos Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/313 São
Leopoldo, 03 de novembro de 2009 | edição 313.
LUZ, José Luís Brandão da. Simone Weil e a grandeza da infelicidade humana. Razão e
Liberdade. Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira. CFUL: Lisboa. 2009. p.
1531-1549. Disponível em: http://www.pucsp.br/rever/ Acessado em 10 de janeiro
de 2021.
NICOLA, Giulia Paola di. e DANESE Attilio: A busca da verdade pautada pela mística Revista
do Instituto de Humanistas Unisinos (IHU on-line). Filosofia, mística e
espiritualidade. Simone Weil, cem anos Disponível em: http://www.ihuonline.
unisinos.br/edicao/313 São Leopoldo, 03 de novembro de 2009 | edição 313.
TEIXEIRA, Faustino (org.) No Limiar do Mistério: Mística e Religião, Paulinas: São Paulo,
2004.
WEIL, Simone, 1909-1043. Carta a um religioso. tradução de Monica Stael. - Petrópolis, RJ:
Vozes, 2016. - (Série Clássicos da Espiritualidade).
1“As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas marcadas por uma
espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas “Begijnhof”, “Béguinages”, conforme a
região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias,
viúvas, algumas casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de trabalho
autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da época, alimentadas por uma
espiritualidade singular, de caráter leigo” (CALADO, 2012, p. 47 apud NOGUEIRA, 2013, p. 158).
2 Segundo Serrato e Souza (2018), Simone Weil viveu em uma época histórica de muitos desafios: um período entre
guerras, entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
78 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
e mística francesa que merece destaque tanto pelo seu modo singular de
vida como também pela maneira que experienciou o divino.
Neste sentido, vale salientar que, com base nos estudos da pesquisa-
dora Maria Simone Marinho Nogueira, entendemos que independente dos
tempos, das culturas e vertentes, a mística é sempre a união do humano
com o divino. No que tange, especificamente, à mística feminina, segundo
esta estudiosa, trata-se de um “movimento feito por mulheres que busca-
vam o divino a partir da união de instâncias afetivas e intelectivas [...]”
(NOGUEIRA, 2015, p. 94). Logo, compreendemos que esta união é pautada
em uma intensa e subjetiva relação entre a figura feminina e o divino e
não está necessariamente ligada à religião institucionalizada.
Posto isto, destacamos que Simone Weil, mesmo carregando uma
inspiração cristã, era agnóstica, como bem ela indica em sua Autobiografia
Espiritual3, pois nunca procurou Deus, e quando o encontrou foi sem ne-
nhuma intermediação dos seres humanos. Consoante a essa questão, é
pertinente observarmos o que Nogueira enfatiza acerca das mulheres mís-
ticas medievais que, ao nosso ver, relaciona-se bem à mística
contemporânea em destaque neste breve estudo. Conforme esta pesquisa-
dora, as místicas daquele contexto pensavam e viviam o divino em sua
plenitude, ou seja, “sem limites, sem objeções, sem intermediários (sine
medio), o que leva todas elas a ideia do aniquilamento, representado de
diferentes modos e expresso por diferentes termos” (NOGUEIRA, 2015, p.
96).
Desse modo, nota-se que essas mulheres esvaziavam-se de si e de
tudo, e ao fazerem isto era como se abrissem um espaço vazio na alma
para que Deus ali se colocasse (Cf. NOGUEIRA, 2015, p. 97). Em vista disso,
podemos dizer que quando isto acontece, ou seja, quando o divino se
3 Carta autobiográfica escrita ao Padre Joseph-Marie Perrin contida no livro Espera de Deus (2019).
Jaqueline Vieira de Lima | 79
4 De acordo com Nogueira (2020, p. 149), em geral os escritos de Simone Weil podem ser divididos em duas fases:
“a primeira inclui um pensamento mais social e político e a segunda, um pensamento mais filosófico e religioso.
Mesmo assim, essas duas fases não devem ser vistas como antagônicas ou como se existissem duas ‘Weil’, afinal,
num colóquio realizado na Sorbonne em maio de 1999, cujo título foi “Simone Weil: espiritual ou política”,
apresentou-se nas discussões realizadas no próprio colóquio essa dicotomia como um falso dilema, pois, conforme
Silva (2009, p.7), a mística iluminava seu engajamento político e a política transportava para a mística a densidade
do sofrimento humano”.
Jaqueline Vieira de Lima | 81
particular pelas prostitutas e quer conhecer seu contexto e toda sua misé-
ria, entende que experimentá-la desde dentro e compreendê-la lhe dará
meios para superá-la” (SERRATO, 2015, p. 128).
Embora acometida pela fragilidade do corpo e por fortes dores de ca-
beça desde o período que trabalha no liceu de Puy, em fins de 1934 ela
pediu licença do magistério e foi procurar emprego em uma fábrica, a
Alsthom. Ela queria sentir na pele a experiência operária. Depois que tra-
balhou nesta fábrica, afirma sentir-se como os escravos que eram
marcados pelos romanos a ferro e fogo. Durante esse tempo a fadiga do-
minava-a e as dores de cabeça aumentavam cada vez mais, de modo que
não conseguia acompanhar o ritmo dos demais operários nem correspon-
der às exigências dos patrões. Fere-se durante o duro trabalho, contudo
mostra-se resistente diante dessas situações desgastantes e, para além
dessa fábrica, trabalhou nas Carnoud e Renault. Nessas também teve uma
experiência sofrida, chegando a pedir demissão desta última em 22 de
agosto de 1935. (Cf. MARTINS, 2011, p. 37-38).
Em outubro de 1935 foi nomeada para o Liceu de Bourges, mas em
março de 1936 decidiu pedir licença de um ano para viver a experiência de
vida agrícola e, assim, participar diretamente da vida dos camponeses, tra-
balhando com eles no campo na época da colheita e nos vinhedos na época
da safra.
Outro aspecto marcante de solidariedade e resistência na vida de Weil
diz respeito a quando ela queria escrever sobre a guerra e para isso foi
para Barcelona, em agosto de 1936, para vivenciá-la. No mês de outubro
desse mesmo ano ela retornou para a França, e em 1942, ao chegar a Nova
York, foi chamada pelo governo francês para ir em missão para a Ingla-
terra. Em Londres, segundo Martins (2015) foi encarregada de textos, fez
planos e redigiu sobre os direitos e deveres recíprocos ou conjuntos do
84 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Estado e do ser humano, uma vez que ela queria compartilhar essas expe-
riências com a população francesa.
Fragilizada em virtude do intenso trabalho e por recusar a alimenta-
ção prescrita pelos médicos como um ato de solidariedade com os
franceses que sofriam com a falta de alimentos, Simone Weil faleceu em
24 de agosto de 1943, no momento estava sozinha no “despojamento de
sua condição humana, no esgotamento de todas as tentativas de retornar
e estar ao lado de seu povo” (MARTINS, 2015, p. 140).
Simone Weil e a união com o divino por meio do infortúnio: reflexões acerca
do ensaio o amor de deus e o infortúnio
6 De acordo com Martins (2013), embora façam traduções deste termo, elas não têm o peso semântico do termo
original em francês.
Jaqueline Vieira de Lima | 85
aquele. Neste caso, a dor sentida pelo indivíduo não afeta profundamente
a sua alma. Já o infortúnio, além do sofrimento físico, afeta a alma de
forma violenta a tal ponto que a pessoa que é acometida por ele mantém
apenas metade dela. Sendo assim, Weil o define como:
Nota-se, portanto, que é preciso que haja a dor física, nem que seja
leve para que ocorra o infortúnio para a alma, uma vez que tal dor não
possibilita a dispersão do pensamento, obrigando-o a reconhecer a pre-
sença do infortúnio. Para exemplificar este fato, Weil cita a possível
situação de um condenado a olhar durante horas a guilhotina que vai lhe
cortar o pescoço. Nesta situação, o indivíduo passa por um estado violento
intenso, já que seu pensamento é levado, obrigatoriamente, a reconhecer
a presença do infortúnio.
Dessa maneira, segundo Weil, só há verdadeiramente infortúnio se
as dimensões sociais, psicológicas e físicas forem atingidas. No que tange
à parte social, a autora enfatiza que é um aspecto fundamental, logo, “não
há realmente infortúnio onde não houver, sob uma forma qualquer, deca-
dência social ou apreensão de tal decadência” (WEIL, 2019, p. 83-84).
Assim, a pessoa tomada pelo infortúnio assemelha-se a um verme, de
modo que parece estar destituído da sua própria personalidade. Vejamos
o que a mística em carta endereçada ao Pe. Perrin fala acerca da sua expe-
riência na fábrica e o infortúnio:
Com base nesse excerto podemos notar que Weil foi acometida pelo
infortúnio enquanto esteve na fábrica. Como também é possível verificar
o fato de que a pessoa que passa pelo infortúnio, mesmo depois de superar
tamanha dor, não consegue apagar as marcas. O fato é que o infortúnio é
algo tão profundo que os indivíduos que passaram por algum tipo de so-
frimento, mas que não passaram pela sua experiência propriamente dita,
jamais saberão o que seja, assim como não é possível dar a um surdo-
mudo a ideia do que seja o som (Cf. WEIL, 2019).
Outro aspecto relacionado às pessoas que passam pelo infortúnio é
que elas se sentem completamente sozinhas e tornam-se incapazes de ofe-
recer ajuda ao próximo, como também de serem ajudadas. Logo, “[...] a
compaixão para com os infelizes é uma impossibilidade. Quando ela real-
mente se produz, é um milagre mais surpreendente do que caminhar
sobre as águas, a cura dos enfermos e até mesmo a ressureição de um
morto” (WEIL, 2019, p. 85). Nogueira (2020), em suas reflexões acerca do
texto em análise, enfatiza que esse milagre acontece quando os seres hu-
manos tornam-se capazes de negar o seu eu (egóico) e abrem um espaço
para que Cristo possa habitar neles (Cf. NOGUEIRA, 2020, p. 155). Acres-
centa ainda que “A habitação de Cristo em nós, entretanto, está para além
do plano meramente religioso, no sentido da igreja enquanto coisa social”
Jaqueline Vieira de Lima | 87
É preciso que a alma continue a amar o vazio ou ao menos que ela queira amar,
mesmo com uma parte infinitesimal de si mesma. Então, um dia, Deus virá se
mostrar a ela e revelar-lhe a beleza do mundo, como aconteceu com Jó. Mas
se a alma parar de amar, ela cairá em algo quase igual ao inferno (WEIL, 2019,
p. 85).
Considerações finais
Referências
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. A filosofia de Simone Weil: uma mística da ação e da
contemplação. Revista Sísifo, Feira de Santana, v. 1, n. 6, p. 1-11, 2017.
OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis; Vozes, 2007.
WEIL, Simone. O amor de Deus e o infortúnio. In.: Espera de Deus: cartas escritas de 19 de
janeiro a 26 de maio de 1942. Trad. de Karin Andrea de Guise. Petrópolis, RJ: Vozes,
2019, p. 82-100.
WEIL, Simone. Autobiografia Espiritual. In.: Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro
a 26 de maio de 1942. Trad. de Karin Andrea de Guise. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019,
p. 29-50.
WOLFF, Cristina Scheibe. Resistência. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro
Antônio (org.). Dicionário crítico de gênero. 2. ed. Dourados, MS: Ed. Universidade
Federal de Grande Dourados, 2019.
5
Considerações iniciais
“Se fosse concebível que nos condenamos obedecendo a Deus e nos salvamos
desobedecendo-lhe, eu escolheria, assim mesmo, a obediência” (WEIL, 2019,
p. 13).
[...] após muitos percalços e muita pertinácia da parte dela, Weil consegue
juntar-se à resistência francesa em Londres: no final de novembro de 1942 ela
consegue chegar a Liverpool. Restarão para ela apenas mais nove meses de
vida. Meses de intensa produção teórica e de engajamento prático na resistên-
cia. Ela sente-se fracassada por não conseguir a autorização do General De
Gaulle, chefe da resistência francesa em Londres, para poder realizar o projeto
relacionado às enfermeiras de fronteira, por ela idealizado. O plano consistiria
em lançar de paraquedas, nos campos de batalha, um grupo de jovens mulhe-
res com algum conhecimento em enfermagem (a própria Weil capacitou-se
rapidamente para poder ser enviada) a fim de socorrer os aliados, mas tam-
bém seus inimigos, o que deveria ocorrer no próprio campo de batalha
(PUENTE, 2020, p. 59-60).
Conforme o exposto, vemos que a vida de Weil pode ser lida como
uma constante e intensa transgressão, pois a todo instante ela saía da sua
zona de conforto e estava em busca “da entrega si” em prol dos menos
favorecidos, pois, para ela, o bem deveria ser feito ao próximo sem ne-
nhum interesse. Desse modo, referente à entrega de si, percebemos que
esse ato tinha como principal exemplo a “Paixão de Cristo”, pois era um
momento exemplar de amor ao próximo que a motivava em seus gestos
caridosos.
Ainda sobre a compaixão de Weil, muitas vezes, para praticar a cari-
dade, esquecia-se da sua fragilidade física: “É interessante notar que essa
atitude remete à decisão tomada durante a Primeira Guerra Mundial, com
apenas seis anos de idade, [...] recusar-se a comer açúcar porque os solda-
dos que lutavam nas trincheiras estavam privados de consumir açúcar”
(PUENTE, 2020, p. 60).
Diante disso, compreendemos que os seus atos de caridade – para ela,
uma ação de justiça – chegam ao ponto de não se prender a essas condições
adversas, pois, todo o contexto que a cercava lhe servia de combustível
96 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
para habitar cenários outros que, talvez, por sua constante saúde delicada,
fosse impedida de adentrar. Fato que não a intimidava diante de seus ob-
jetivos enquanto filósofa, professora – trabalhadora braçal por um período
–, dentre as mais variadas situações que ela se propôs a cumprir.
Simone Weil nasceu no berço de uma família abastada, onde recebeu
uma excelente educação, inicialmente, por incentivo dos pais e ao longo do
seu crescimento o interesse pelo conhecimento partia de seu próprio des-
pertar. As obras que lia incentivavam-na a estudar e tinham para si um
caráter esclarecedor que a ajudava compreender melhor o comporta-
mento humano – em especial, na relação com o divino –, de modo a fazê-
la perceber as mazelas humanas e as circunstâncias que ela podia ou não
estar inserida, mediante as situações de “enquadramento” presentes na
sociedade.
Ainda no que diz respeito à infância de Weil e a sua condição social e
financeira estável, mesmo sempre tendo o melhor ofertado pelos seus pais,
a filósofa, já na sua idade pueril, mostra-se uma pessoa bastante espiritu-
alizada e caridosa, ao ponto de abster-se do consumo de doces durante a
infância, como já foi dito anteriormente, acontecimento que ela julga como
sendo um ato de justiça, semelhante ao jejum praticado por algumas reli-
giões. Mas no tocante à caridade, desde muito cedo, essa virtude fazia parte
das práticas de Simone Weil, como podemos ver quando ela afirma que
“sempre teve, desde a primeira infância, a noção cristã de caridade ao
próximo, à qual ela deu o nome de justiça, [...]” (WEIL, 2019, p. 30, grifo
nosso).
Sendo assim, todo o seu comportamento era vivenciado como uma
forma de praticar a caridade e o despojamento do seu querer em benefício
dos mais necessitados, antes mesmo que Deus a encontrasse, quando, en-
tão, saiu da condição de agnóstica para a condição de escrava do Cristo,
por quem ela se sentia completamente apaixonada e mergulhada no mais
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 97
belo sentimento. Fato que ocorre durante uma de suas viagens com seus
pais, que pode ser vista como a sua primeira experiência mística, num pe-
queno vilarejo, quando a tristeza de muitos que ali habitavam se faz
perceber semelhante à sua. Com isso, ela compreende que para o indivíduo
ser feliz é preciso passar pela tristeza, esvaziando-se de si mesmo para as-
semelhar-se ao Cristo.
A partir desse seu primeiro episódio místico e dos gestos concretos
para com o próximo, percebemos na filósofa a incessante “espera por
Deus”, por mais que ela nunca o tenha buscado. Através de algumas expe-
riências místicas, o divino, mais tarde, se revela, quando ela descobre sua
afeição pelo cristianismo, embora o critique por sua maneira dogmática de
se estabelecer diante dos que o seguem, recusando o batismo – momento
em que o padre Perrin adentra a sua história, embora não logre êxito no
que diz respeito a este tema. Pois, Weil julgava desnecessário aquele ato,
visto que ela não lhe atribui sentido, como ela mesma afirma:
É claro, eu sabia muito bem que a minha concepção de vida era cristã. É por
essa razão que nunca me passou pela cabeça que eu poderia entrar no cristia-
nismo. Eu tinha a impressão de ter nascido em seu interior. Mas acrescentar
a essa concepção de vida o próprio dogma, sem ser a isso obrigada por uma
evidência, teria me parecido uma falta de probidade (WEIL, 2019, p. 33).
afirmando: “Posso dizer que em toda minha vida jamais, em momento al-
gum, busquei Deus [...]” (WEIL, 2019, p. 30). Ela defende a ideia de que o
próprio Cristo é quem veio ao encontro dela.
Além disso, ao longo de sua vida, nos deparamos com algumas oca-
siões em que o seu lado místico é despertado. Na sua Autobiografia
Espiritual, percebemos em três momentos algumas experiências que a fi-
zeram se aproximar do cristianismo mesmo sem vínculo com religião
alguma. Ainda nesse período, ela enfrenta diversas situações a contragosto
em busca pela “verdade”. Assim como quem costura um tecido com o in-
tuito de unir os pedaços ao ponto de se tornarem uma bela tapeçaria,
Simone Weil buscava, através do conhecimento, o entendimento dos acon-
tecimentos da vida humana. Isto é, uma verdadeira união entre as
experiências terrenas (humanas) interligadas ao mundo do sagrado.
Embora, inicialmente, seja percebida como agnóstica, a vida lhe apre-
senta contextos adversos (e diversos) que, outrora, não percebia. Como
acontece na sua primeira experiência mística, ao se deparar com uma pro-
cissão num pequeno vilarejo em Portugal. Assim, ao ouvir cantos
chorosos, a mesma se identifica com o sofrimento daqueles que, motivados
pelo cristianismo, se entregam sem reservas, enlevados pelo ato de “crer”
numa divindade, no próprio Cristo, que se aproximava de cada um e de
todos pela condição miserável e infeliz que estavam a contemplar em meio
a sua existência. Nesse momento, ela compara a sua tristeza a tristeza da-
quele povo, envolto a tantas ausências e injustiças por ela observadas:
[...] entrei naquele vilarejo português – que era, aliás, também muito miserá-
vel – sozinha, à noite, sob a lua cheia, no dia da festa do padroeiro. Era à beira-
mar. As mulheres dos pescadores andavam em volta dos barcos, em procissão,
carregando círios e cantando cânticos certamente muito antigos, de uma tris-
teza de cortar o coração. [...] Lá eu tive de repente a certeza de que o
cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que os escravos não
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 99
Posso dizer que em toda minha vida jamais, em momento algum, busquei
Deus. Por essa razão talvez, sem dúvida subjetiva demais, essa é uma expres-
são que eu não gosto e que me parece falsa. Desde a adolescência eu achava
que o problema de Deus é um problema cujos dados estão faltando aqui em
baixo e que o único método eficiente para resolvê-lo de maneira errada, o que
me parecia ser o maior mal possível era não perguntando. Dessa maneira eu
não perguntei. Eu não afirmava nem negava. Parecia-me ser inútil resolver
esse problema, pois eu pensava que, estando neste mundo, cabe a nós adotar
a melhor atitude possível para com os problemas dele, e que essa atitude não
dependia da solução do problema de Deus (WEIL, 2019, p. 30).
Atitude essa, portanto, que traz para nós reflexões sobre o nosso com-
portamento de espera, mediante os conflitos existentes no mundo, assim
como fez a escritora francesa no decorrer de sua jornada diante de suas
lutas em favor dos menos favorecidos; em defesa de causas das classes
minoritárias, objetivando, com isso, “resolver os problemas da forma mais
adequada possível”, o que a impulsionava a ter uma postura de modo pa-
cífico e racional.
100 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
afirma Cugini (2010), que o modelo de tudo isso para Weil é a cruz de
Cristo. “Se quisermos que o amor de Deus molde todo elemento da exis-
tência humana, então, não tem outro caminho que fitar os olhos em Deus
e manter o olhar fixo Nele.” (CUGINI, 2010, p. 08).
Assim, a mística francesa nos propõe uma reflexão sobre as estrutu-
ras sociais, em especial, representada pelas religiões, a exemplo da
católica. Ademais, ela também nos coloca numa postura reflexiva sobre o
mundo diante do outro que sofre. Além disso, apesar de sua forte afeição
por Cristo, Simone Weil não se prende a nenhum credo em específico. Ela
se apropria dos mais variados conhecimentos que possa lhe favorecer uma
aproximação cada vez mais íntima com o amor, com Cristo, pois: “Nin-
guém pode pensar em ter o monopólio do amor. Não existe religião ou
sociedade que possa argumentar de ser o dono do amor” (CUGINI, 2010,
p. 12).
Destarte, a caridade, ou como ela mesma chama “a justiça”, é uma
das manifestações do profundo amor a Deus, refletido no amor ao próximo
por meio da defesa de causas que venha beneficiar os pobres e miseráveis
como ela mesma os define. De modo que, “A justiça, considerada pela Weil
como uma virtude sobrenatural, manifesta esta qualidade sobrenatural
quando num relacionamento de forças desiguais o superior trata como
igual o inferior” (CUGINI, 2010, p. 12-13). Em síntese, a partir das consi-
derações do fragmento acima e voltando o nosso olhar para a própria Weil,
enquanto “virtude sobrenatural”, ela não aprendeu e não adquiriu esse
mérito através da educação de qualidade por ela recebida, mas sim, a filó-
sofa já nasceu e se constituiu com tal propriedade ao ponto de apenas ser,
de somente expressar o que havia dentro de si através de seus atos de jus-
tiça e/ou caridade.
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 103
Considerações finais
Referências
CUGINI, Paolo. Para uma espiritualidade encarnada: a mística do amor em Simone Weil.
Dialesthai. Revista Telemática di Filosofia. Roma. vol. 11, 2010. p. 01-19. Disponível
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 105
WEIL, Simone. Autobiografia Espiritual. In: Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro
a 26 de maio de 1942. Tradução de Karin Andrea de Guise. Petrópolis: Vozes, 2019.
p. 29-40.
6
Considerações iniciais
Simone Adolphine Weil foi uma filósofa, mística e escritora que nas-
ceu em 1909 na cidade de Paris, França, e faleceu no ano de 1943 em
Ashford, Reino Unido. Vinda de uma família de origem judaica não prati-
cante, foi criada em meio ao agnosticismo, juntamente com seu irmão
André Weil, conhecido matemático da época. Sempre muito estudiosa, na
juventude entrou para o Liceu Henri IV, onde estudou com Émile Chartier,
conhecido pelo pseudônimo Alain, o qual influenciou largamente seu pen-
samento. Na sequência, formou-se em Filosofia pela Sorbonne Université,
sendo uma das primeiras mulheres a estudar lá, juntamente com Simone
de Beauvoir.
Simone Weil foi também professora de filosofia de alunas em escolas
públicas de nível médio. No período de docência, distribuía o seu salário
aos operários em situação de vulnerabilidade, vivendo apenas com o ho-
norário de desemprego. Nessa época também participava de lutas sindicais
a favor da classe trabalhadora.
Simone Weil viveu em uma época marcada não somente pelas duas Grandes
Guerras, mas também por intensos movimentos político-sociais de luta por
melhores condições de trabalho para os operários, bem como por um engaja-
mento dos intelectuais na formação educacional dos trabalhadores. Tudo isso
se manifesta fortemente em sua produção filosófica (PUENTE, 2020, p. 55).
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 107
fato de já se sentir cristã e por não querer abrir mão do que as outras
religiões têm a oferecer. Assim, ao falar sobre o sagrado, o faz por meio do
testemunho de suas vivências em relação a ele. Desta feita, pretendemos
analisar de que forma sagrado e testemunho se relacionam em algumas
cartas (“Hesitações diante do batismo”, “Mesmo assunto”, “Sobre a sua
partida”, “Autobiografia espiritual” e “Últimos pensamentos”) escritas por
Simone Weil a Padre Perrin, publicadas no livro “Espera de Deus” (Ed.
Vozes, 2019). Entendemos que ao tentar explicar ao Padre Joseph-Marie
Perrin o porquê de não querer ser batizada, Simone Weil fala de Deus e de
diversas situações relacionadas ao Sagrado a partir do testemunho de sua
relação com elas.
A fim de refletir sobre a cartas da autora e as relacionar ao testemu-
nho, utilizaremos como referenciais teóricos Agamben (2008) e
Seligmann-Silva (2008, 2010) para entender o que é a literatura de teste-
munho, Conceição (2011), sobre o testemunho no âmbito religioso, Otto
(2007) em relação às características do sagrado, mais especificamente do
numinoso, Certeau (2015), para compreender como se caracteriza a escrita
mística, bem como Nogueira (2015), sobre a mística feminina.
morte da narrativa pois essa, segundo ele, deveria ser relacionada à cole-
tividade, à capacidade de compartilhar experiências, tal como consistia a
relato do marinheiro que retorna de terras estrangeiras ou o camponês
sedentário, para o alemão, os narradores genuínos.
Segundo Benjamin (1989), os homens voltavam da guerra sem con-
seguir mais se expressar, em decorrência do que haviam sofrido. A
experiência da guerra seria assim o golpe final para a narrativa, pois não
havia linguagem para simbolizar a sua experiência, mas também, não ha-
via a quem as comunicar. No entanto, ao que parece, o testemunho, e a
literatura que dele e com ele surge, desafia o confinamento que silencia as
vivências, e insiste em tornar-se letra.
Agamben (2008) afirma que em latim há dois termos para represen-
tar a testemunha:
Mesmo sendo sobre um mesmo evento, cada pessoa tem uma expe-
riência pessoal do acontecimento e o desafio é narrar, através da
linguagem, algo tão singular. Agamben (2008) afirma que o testemunho
traz uma lacuna, pois as pessoas não conseguem descrever tudo que
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 111
viveram, bem como aqueles que sobreviveram não passaram por tudo que
o Lager podia fazer com a pessoa, pois aqueles que vivenciaram tudo não
sobreviveram. Desta feita, aquele que testemunha, encontra diversas difi-
culdades e deve mostrar em seu testemunho, através de uma não-língua
(porque a língua conhecida não dá conta) a impossibilidade de testemu-
nhar.
Portanto é necessário encontrar uma designação para esse aspecto visto isola-
damente, a qual, em primeiro lugar, preserve sua particularidade e, em
segundo lugar, abranja e designe também eventuais subtipos ou estágios de
desenvolvimento. Para tal eu cunho o termo "o numinoso" (já que do latim
omen se pode formar "ominoso", de numen, então, numinoso), referindo-me
a uma categoria numinosa de interpretação e valoração bem como a um estado
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 113
psíquico numinoso que sempre ocorre quando aquela é aplicada, ou seja, onde
se julga tratar-se de objeto numinoso. Como essa categoria é totalmente sui
generis, enquanto dado fundamental e primordial ela não é definível em sen-
tido rigoroso, mas apenas pode ser discutida (OTTO, 2007, p.38).
Essa sensação pode ser uma suave maré a invadir nosso ânimo, num estado
de espírito a pairar em profunda devoção meditativa. Pode passar para um
estado d'alma a fluir continuamente, em duradouro frêmito, até se desvane-
cer, deixando a alma novamente no profano. Mas também pode eclodir do
fundo da alma em surtos e convulsões. Pode induzir estranhas excitações, ine-
briamento, delírio, êxtase. Tem suas formas selvagens e demoníacas. Pode
decair para horror e estremecimento como que diante de uma assombração
(OTTO, 2007, p.44-45).
círculos de linguagem” (CERTEAU, 2015, p.253) Para que alguém fale, en-
tão, é necessário que outro escute, que haja um diálogo.
De qualquer forma, podemos dizer que a mística feminina pode ser definida
por um movimento feito por mulheres que buscavam o divino a partir da
união das instâncias afetivas e intelectivas, às vezes acompanhado de visões
(como em Hildegard von Bingen e Hadewijch d’Anvers), outras vezes seguido
apenas por uma intensa reflexão (como em Marguerite Porete)” (NOGUEIRA,
2015, p.94).
tinha a intenção de que Simone passasse pelo batismo, por gostar muito
dela e acreditar que tal experiência seria algo bom e necessário para as
pessoas. Ela, no entanto, não queria ser batizada e escreve algumas cartas
para explicar o porquê da sua negativa. Ao tentar dar tal explicação, pre-
cisa esclarecer como para ela deveria ser a relação com Deus e o faz a partir
de seu testemunho, demonstrando que verdadeiramente existem outras
formas de se relacionar com o sagrado.
Diante dessa situação, Weil apresenta diversos motivos pelos quais
não quer se batizar. Antes de tudo, ela acredita que Deus não deseja que
ela participe da Igreja: “O tipo de inibição que me mantém fora da Igreja é
devido ou ao estado de imperfeição em que me encontro, ou pelo fato da
minha vocação e da vontade de Deus se oporem a isso” (WEIL, 2019, p.12).
Diz que nunca teve nenhum sinal de que Ele quisesse isso e que sempre
iria seguir Sua vontade, por mais que o contrário parecesse muito bom.
Ao falar das características da Igreja, afirma: “Eu amo a liturgia, os
cantos, a arquitetura, os ritos e as cerimônias católicas. Mas eu não tenho,
em grau algum, amor pela Igreja propriamente dita, fora da sua relação
com todas essas coisas que eu amo” (WEIL, 2019, p.15). Ela critica o fato
de a Igreja só aceitar tudo do jeito dela, principalmente a forma de falar e
se relacionar com Deus e afirma que por isso, para fazer parte da Igreja,
ela teria de se separar de sua maneira de pensar e de sua inteligência, o
que não estava disposta a fazer. Diz também que não poderia se “[...] se-
parar da massa imensa e infeliz dos fiéis” (WEIL, 2019, p. 13) e nem
“abandonar meus sentimentos relativos às religiões não cristãs e a Israel”
(WEIL, 2019, p.38).
Enquanto comenta os motivos de não querer ser batizada acaba te-
cendo críticas à Igreja enquanto instituição, principalmente sobre sua
relação com o social – “O que me dá medo é a Igreja como coisa social”
(WEIL, 2019, p.17) – e a necessidade de uma coletividade. Afirma que
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 119
Páscoa, quando teve fortes dores de cabeça e escutou os cantos que vinham
dos ofícios da Igreja que faziam com que doesse ainda mais.
[...] cada som me doía como se fosse um golpe; um extremo esforço de atenção
me permitiu sair desta carne miserável, deixando-a sofrer sozinha, recolhida
em seu canto, e encontrar alegria pura e perfeita na beleza inusitada do canto
e das palavras. Essa experiência me permitiu por analogia melhor compreen-
der a possibilidade de amar o amor divino através do infortúnio (WEIL, 2019,
p.35).
desacreditar dessa situação, e que por isso agradece não ter lido os místicos
antes, pois assim sabe que não fabricou esse contato.
Outra situação foi em relação ao Pater, o Pai Nosso, o qual Simone
Weil resolveu decorar. Na mesma época começou a trabalhar na vindima
e recitava-o em grego todos os dias antes do trabalho. Se durante a recita-
ção se distraísse, recomeçava até fazê-lo com atenção absoluta. Ela
descreve essa experiência da seguinte maneira:
A filósofa não sabe de onde vêm todas as ideias que tem em relação a
Deus e a Igreja, mas ao se dar conta delas, precisa que saiam da sua mente
e para isso tem que falar sobre elas. Essa necessidade, como comentamos
anteriormente, é característica marcante das testemunhas, as quais
124 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Se ninguém consentir em dar atenção aos pensamentos que, não sei como,
pousaram em um ser tão insatisfatório quanto eu, eles serão enterrados co-
migo. Se, como eu acredito, eles contêm alguma verdade, isso seria uma pena.
Eu os prejudico. O fato de eles se encontrarem em mim impele que se dê aten-
ção a eles. Eu só vejo o senhor a quem posso implorar atenção em favor desses
pensamentos. É uma grande dor para mim, temer que os pensamentos que
desceram em mim sejam condenados à morte pelo contágio da minha insufi-
ciência e da minha miséria. Eu jamais consigo ler a figueira estéril sem
estremecer. Acredito que ela seja o meu retrato. A natureza nela também era
impotente e, no entanto, ela não foi desculpada. Cristo a amaldiçoou (WEIL,
2019, p.67).
Podemos perceber que Simone Weil se culpa por não conseguir que
seus pensamentos tenham a atenção necessária. Destarte, além do fato de
esses pensamentos terem origem em situações tão indescritíveis, dificul-
tando sua escrita, a filósofa tem problema em ser ouvida. Esse aspecto é
importante tanto em relação à mística, pois segundo Certeau (2015) ela é
necessariamente dialógica, quanto ao testemunho, pois sem quem escute,
ele não pode existir. Assim, Padre Perrin se faz importante enquanto in-
terlocutor das cartas de Simone Weil, porque se não soubesse que ele se
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 125
importava com o que ela vivenciava e com sua situação espiritual ela não
teria testemunhado todas as experiências que vivenciou.
Fica clara a necessidade que a filósofa tinha de narrar o inenarrável.
Isso porque ela encontra grandes dificuldades em narrar o que acha ne-
cessário, principalmente por serem situações extremas, intensas e muito
pessoais, precisando subverter a linguagem para dar conta delas. Além
disso, como vimos, tinha dificuldade em se fazer ouvida, acredita que as
pessoas não querem escutar seus pensamentos. Mesmo diante de tais em-
pecilhos, escreve seu testemunho, através das cartas ao Padre Perrin e ele
faz com que elas cheguem às pessoas, publicando-as, conseguindo assim
ouvintes para Weil.
Diante disso, o testemunho de Simone Weil nas cartas analisadas se
dá com o intuito de explicar o porquê de não querer ser batizada. Ao tentar
construir tal explicação, precisa testemunhar sobre diversas situações que
demonstram que uma pessoa pode ter uma relação próxima com Deus
sem a Igreja intermediando. Dessa forma, testemunho e sagrado se relaci-
onam em sua obra porque ela fala do sagrado a partir do testemunho de
suas experiências, refletindo sobre elas.
Considerações finais
Pudemos perceber pela biografia de Simone Weil que ela sempre foi
uma pessoa de ações. Não se contentando só com a teoria para conhecer a
realidade sobre o que falava, precisava vivê-la. Foi assim por exemplo em
relação à fábrica e ao trabalho no campo. Da mesma forma agia em relação
ao sagrado, pois falava dele a partir de suas experiências.
Foi instigada a escrever para explicar ao Padre Joseph-Marie Perrin o
porquê de não querer ser batizada. Ao tentar esclarecer, demonstra acre-
ditar haver uma possibilidade de aproximação de Deus sem a
intermediação da Igreja. Como prova disso, dá o testemunho de suas
126 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III).
Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 127
MORAES, Marcos Antonio de. Epistolografia e crítica genética. Ciência e Cultura (SBPC),
São Paulo, v. 59, n. 1, p. 30-32, janeiro a março de 2007.
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. A filosofia de Simone Weil: uma mística da ação e da
contemplação. Revista Sísifo. Feira de Santana, v.1, nº6, 2017. Disponível em
http://www.revistasisifo.com/2017/11/a-filosofia-de-simone-weil-uma-
mistica.html Acesso em 27/02/2021.
OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Tradução: Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis:
Vozes, 2007.
Considerações iniciais
1 Termo que caracteriza a narrativa em que um narrador em primeira pessoa se identifica explicitamente como o
autor biográfico, mas vive situações que podem ser ficcionais e se delineia como um exercício literário típico da
modernidade. (ARAUJO, 2011, p. 8)
130 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
escritos que também criam realidades. Logo, é necessário refletir com pon-
deração o que o diário de uma jovem pode nos dizer sobre a sociedade
holandesa em plena Segunda Guerra Mundial, no caso do diário de Etty
Hillesum.
Seu diário está inserido em um ambiente complexo, onde ela revela
as tensões do seu mundo numa linguagem intensa e rica. A obra é, por si,
reveladora e tem a naturalidade própria de um diário. As reflexões são
passadas claramente para o papel, sem estarem condicionadas a uma ave-
riguação. Por isso, com notável sinceridade, e com particularidades
íntimas da autora, com as suas dúvidas e análises, com os seus propósitos
e ideais, com seus conflitos e receios, seus escritos refletem a imagem de
si e do outro. Sua escrita também demostra sua fragilidade emocional e,
sobretudo, sua complexidade, fruto também dos seus estudos, como po-
demos ler na passagem que segue:
Acho que não vivo de maneira descomplicada o bastante no meu íntimo. En-
trego-me com muita devassidão aos bacanais do espírito. Talvez também me
identifique demais com tudo o que leio e estudo. Alguém como Dostoievski, de
uma forma ou de outra, ainda me deixa arrasada. Eu realmente tenho que ser
um pouco mais descomplicada. Permitir-me viver mais. Não querer ver desde
já os resultados da minha vida. (HILLESSUM, 2019, p. 89)
Agora eu sei. Não vou incomodar os outros com meus medos, não ficarei
amargurada se os outros não compreenderem do que se trata para nós, Ju-
deus. Uma certeza não será corroída ou enfraquecida pela outra. Trabalho e
continuo a viver com a mesma convicção e acho a vida plena de sentido, apesar
de tudo, plena de sentido, ainda que eu não me atreva mais a dizer isso em
público. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas e os pés des-
truídos de tanto caminhar e o jasmim atrás do meu quintal, as perseguições,
as incontáveis crueldades sem sentidos, tudo e tudo é em mim como um
grande todo e aceito tudo como um todo e começo a compreender cada vez
melhor, assim, para mim mesma, sem que eu ainda consiga explicar a alguém,
como tudo se encaixa. (Hillessum, 2019, p. 217)
2 Para mais informações sobre Auschwitz ver Primo Levi. Assim foi Auschwitz:1945-1986. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015.
3 Psicoquirologia é a interpretação dos códigos digitais da vida pela leitura das mãos.
132 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Muitas pessoas ainda são hieróglifos para mim, mas bem lentamente aprendo
a decifrá-las. É a coisa mais bonita que conheço: a leitura da vida das pessoas.
Em Westerbork, às vezes era como se eu estivesse diante da paliçada nua da
vida. Estrutura interna da vida, desprovida de qualquer construção externa.
Agradeço-te meu Deus, por me ensinar a ler cada vez melhor. (HILLESUM,
2019, p. 313)
4 Pequeno campo de trânsito judaico na Segunda Guerra Mundial, localizado perto da vila de Westerbork, no
nordeste rural da Holanda.
Solange Alves de Almeida | 133
Logo de cara um rapaz que andava pra lá e pra cá chamou atenção, rosto des-
contente e sem esconder em absoluto esse descontentamento, inquieto e
atormentado. Muito interessante de ver. Ele procurava pretextos para gritar
com os infelizes judeus: mãos para fora dos bolsos, por favor etc. Achei-o mais
digno de pena aos que os que eram tratados aos gritos, e os tratados aos gritos,
dignos de pena na medida em que tinham medo (Hillesum, 2019, p. 160)
5 O judaísmo chama Deus de Eterno, que não tem início, que "não envelhece" e não tem fim. Como nos explica o
Rabino Aryeh Kaplan, em seu livro A torá viva, 2018.
136 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
homens. Por que não? Tinham sempre tanta fome e estavam há tanto
tempo desprovidos.” (HELLISUM, 2019, p.362). E finaliza seu Diário afir-
mando que “Gostaria de ser um bálsamo para tantas dores” (HELLISUM,
2019, p. 363). Vemos, assim, que Etty, ao escrever o seu diário, desnuda
as suas dores, as suas dificuldades, e suas alegrias, legando à humanidade
a oportunidade de explorar, por meio das vivências dela (de Etty), uma
memória importante da sua história.
A escrita possibilitou para Etty um novo recomeço. Ela registrou sua
vida e a necessidade de comunicar as experiências vividas durante o perí-
odo nazista. Ela foi muito mais que uma cronista, ela foi a expressão do
amor em meio ao caos, a sua evolução espiritual transformou também
aqueles que estavam em desespero, pois encontraram em seus relatos uma
coragem interior, uma fé inabalável, uma alegria em meio a tristeza, um
bálsamo em meio a dor. Sua escrita de si foi capaz de ser reveladora, tam-
bém, do outro e, neste sentido, pôde proporcionar igualmente a este outro
um novo começo.
Etty Hillesum passou por uma profunda comunhão com Deus, pois o
próprio renascimento da vida circula no seu corpo, na sua mente, e no seu
espírito. Ela transborda de paz, o que a faz encarar momentos extrema-
mente difíceis dentro do campo de transição, suportando grandes
sofrimentos em auxílio espiritual do seu povo judeu. A atitude de Hillesum
e seu amadurecimento que brotam do amor, nos faz lembrar do que es-
creve Kierkegaard em relação ao amor: “O amor é um assunto da
consciência, e por isso deve proceder de um coração puro e de uma fé sin-
cera. [...] O amor só brota de um coração puro e de uma fé sincera quando
ele é uma questão de consciência” (KIERKEGAARD, 2005, p. 175). Ou
quando Etty fala sobre o sofrimento:
138 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Também é preciso ter forças para sofrer sozinho e não sobrecarregar os outros
com os próprios medos e fardos. Ainda temos que aprender isso e as pessoas
terão que educar umas às outras, se não com delicadeza, então com rigidez. Se
eu digo de uma maneira ou de outra acertei as contas com a vida, isso não é
resignação. Tudo é apenas um mal-entendido. Se eu alguma vez digo algo as-
sim, as pessoas interpretam de outra forma. Não é resignação, nunca. O que
eu quero dizer então precisamente? Talvez: que já vivi esta vida tantos milha-
res de vezes e já morri tantos milhares de vezes, que nada de novo pode
acontecer. Isso é uma espécie de descaso? Não. É viver a vida milhares de vezes
de minuto a minuto e faz parte disso dar espaço ao sofrimento. E na verdade
não é um lugar insignificante este que o sofrimento reivindica hoje em dia. E
em última instância, faz diferença se em um século é inquisição e, em outro
século, são as guerras e pogroms que causam sofrimento às pessoas? Sem sen-
tido, como elas mesmas dizem? O sofrimento sempre exigiu seu lugar e seus
direitos, e faz alguma diferença em que formato ele vem? O que importa é
como a pessoa o suporta e se a pessoa sabe categorizá-lo na sua existência e,
ainda assim, continua aceitando a vida. (HILLESUM, 2019, p. 213-214)
6 Albert Verwey, poeta holandês. O verso citado é da cantada Honestum petimus usque de Henk Badings, com libreto
de Verwey.
Solange Alves de Almeida | 139
manifestou no seu íntimo e nas suas ações. Etty abriu uma fresta ao Eterno
e isto foi determinante na construção da nova ligação íntima e espiritual
com o sagrado e, assim sendo, ela foi reconhecida, também, por seu alegre
caminho espiritual. Por falar em espiritualidade, ela é uma característica
de todo ser humano (religioso ou não), ou seja, ela estimula o ser humano
pela busca do sagrado e pela experiência com o transcendente. A espiritu-
alidade não é de domínio exclusivo das religiões ou de alguma corrente
espiritual. Ela é intrínseca ao ser humano e pode ser o caminho que leva
alguém para além da sua prática comum, pois ela propõe ao ser humano
um possível encontro face a face com o divino, sem deixar, entretanto, de
mergulhar em si próprio.
De acordo com Giovanetti, a espiritualidade significa a possibilidade
de uma pessoa mergulhar em si mesma. O termo ‘espiritualidade’ designa
toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem
e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens.
(GIOVANETTI, 2005 p, 137). A espiritualidade também tem relação com
valores e significados como Giovanetti nos diz: “O espírito nos permite fa-
zer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar
que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir
um sentido para a existência” (GIOVANETTI, 2005, p, 138). Desta forma,
podemos dizer que a espiritualidade de Hellisum a fez entender que o des-
tino do seu povo seria o extermínio, porém ela dizia: “Mas vamos suportá-
lo, de preferência com graça (HILLESUM, 2019 p.350). Ou quando ela es-
crevia: “Não há um poeta em mim, há sim um pedacinho de Deus em mim,
que poderia se transformar em poeta. Num campo assim é preciso que
haja um poeta que viva a vida, também ali, como poeta e que seja capaz de
cantá-la.” (Hillesum, 2019, p.350).
Dentro do campo de Westerbork, vendo todo o sofrimento em meio
a camas de campanha, onde mulheres e crianças sonhavam, ou choravam
140 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Minha vida se tornou contínuo diálogo contigo, meu Deus, um grande diálogo.
Quando estou num cantinho do campo, meus pés plantados sobre tua terra, o
rosto elevado para o teu céu, então às vezes correm-me pela face as lagrimas,
nascidas de uma emoção e gratidão internas que procuram uma maneira de
sair. Também à noite quando estou deitada na minha cama e descanso em ti
meu Deus, às vezes correm-me pelo meu rosto as lágrimas de gratidão e esta
é então minha oração. (HILLESUM. 2019, p, 379).
O seu diálogo com Deus se deu quando ela se permitiu se perder para
se achar, perdeu-se nos labirintos da dúvida, da incerteza, dos questiona-
mentos aos princípios mais arraigados, da abertura para as versões
Solange Alves de Almeida | 141
Será que mesmo tendo mal físico, a mente pode continuar a trabalhar e a ser
produtiva? E a amar e a ouvir o que vem de dentro de si e dos outros, e das
conexões dessa vida e de você. Hineinhorchen [ouvir o que vem de dentro]
gostaria de encontrar uma boa expressão holandesa para isso. Na verdade,
minha vida é um constante ouvir o que vem de dentro, de mim, e dos outros,
7 Palavra Alemã que significa escutar, no sentido de auscultar, ou escutar nos detalhes. Etty Hillesum em quase todo
o seu diário escrevia muitas palavras em alemão.
142 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
de Deus. E quando eu digo ouço o que vem de dentro, na verdade é Deus que,
em mim, ouve o que vem de dentro. O mais essencial no outro. (Hillessum,
2019, p. 308-309)
Acho que devo fazer isso: de manhã, antes de começar a trabalhar, pegar meia
hora para me interiorizar, ouvir o que está no meu íntimo. Imergir. Também
se pode chamar de meditação. Mais ainda acho essa palavra um pouco apavo-
rante. Mas por que não? Meia hora de silêncio em si mesmo. Não basta
movimentar apenas braços e pernas e todos os músculos de manhã no ba-
nheiro. O ser humano é corpo e espírito. (HIllEsum, 2019, p. 56)
nos conduz a uma reflexão sobre a nossa existência. Este momento de si-
lêncio e meditação, que muitas vezes Etty praticava, exigia aprendizado,
ou seja, um constante exercício de eliminar todo o sofrimento interior, e
cultivar sentimentos de desapego e libertação. Hillesum nos faz ver que,
por dentro, o ser humano é capaz de se tornar uma campina vasta na qual
o verde não encobre a paisagem. Como se Deus penetrasse com o seu amor
puro e incondicional nesta vasta paisagem. Segundo Chardin, para se cres-
cer espiritualmente é preciso silenciar e meditar:
Então, pela primeira vez de minha vida (eu, que supostamente devo meditar
todos os dias!), eu tomei a lâmpada e, deixando a área aparentemente clara de
minhas ocupações e de minhas relações de cada dia, desci ao mais íntimo de
mim mesmo, ao abismo profundo de onde eu sinto que emana confusamente
meu poder de ação. Ora, à medida que eu me distanciava das evidências con-
vencionais, pelas quais é superficialmente iluminada a vida social, eu me dei
conta de que eu me escapava de mim mesmo (CHARDIN, 2010, p. 44).
Considerações finais
Apenas este ponto já faria por si seu relato fora do padrão, pois ela
teve a oportunidade de liberdade de trânsito e comunicação, mais de uma
vez por motivo de doença, chegando a enviar cartas e receber ajuda de
alguns amigos. No entanto, o mais relevante reside na maneira como Hil-
lesum lidou com a situação que foi imposta aos judeus de forma distinta
da maioria, o que chega a ser até curioso, tendo em vista que enquanto
muitos questionavam a Deus, perdendo sua fé na proporção do aumento
das adversidades, ela fez o caminho inverso, o descobrindo e o semeando
cada vez mais.
Estes acontecimentos são de uma singularidade notável, pois em-
bora em muitos outros livros a respeito do Shoah apareçam passagens
relacionadas à fé, tendo em consideração que o povo judeu é, geralmente,
bastante temente a Deus, há outros também que relatam a não existência
da figura divina em meio ao horror. Mesmo figuras que posteriormente
empreenderam grandes feitos a favor de seu povo, como Elie Wiesel, titu-
bearam em sua fé durante o período nos campos de concentração. Já Etty
Hillesum, que era anteriormente perturbada em sua vida por muitos mo-
mentos de tristeza e desmotivação, citando várias vezes que se sentia sem
rumo e sem propósito definido, o que a incomodava profundamente, pa-
rece ter tido na adversidade um gatilho para mudança. Sua jornada de
autoconhecimento e crescimento espiritual ocorre em proximidade tem-
poral com o agravamento da situação que ela e todos os judeus vivem.
A razão desta mulher, que dispunha de privilégios capazes de levá-la
a uma sobrevivência, ao menos provável, ter optado voluntariamente por
encaminhar-se ao campo de trânsito, mostra como ela queria resgatar os
corações aflitos e distantes de Deus. Etty tinha uma alma elevada, capaz de
encarar seu fim nos braços de Deus, como ela escreve. Portanto, seus es-
critos são uma verdadeira fonte de inspiração e crescimento espiritual, a
evolução relatada por ela se deu de forma lenta e contínua, mas da forma
146 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
mais real possível, o que faz de seus Diários um testemunho único de sua
elevação espiritual.
Através da sua escrita de si, Etty conseguiu trazer um equilíbrio ne-
cessário capaz de nos lembrar que, em meio a tanta brutalidade, terror,
morte, angústia, solidão, ela redigia de si para os outros e também para si
mesma, realizando um serviço excepcional à humanidade e às futuras ge-
rações. Deixando seu relato vivo, Etty ensinou que em um mundo de ódio
ainda existe a luz, existe o amor ou a realidade de Deus para cada um. Ela
lançou-se nesta busca pelo compromisso com a humanidade, e isto nos faz
lembrar uma história contada pelo Rabi Mordehai:
8 Tzadik: Título dado a personalidades da tradição judaica consideradas justas, como figuras bíblicas e mestres
espirituais.
Solange Alves de Almeida | 147
Referências
BARTHOLO Jr., Roberto. Você e eu: Martin Buber, presença palavra. Rio de Janeiro:
Garamond, 2001.
148 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
BUBER, Martin. Eu e tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro,
2001.
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida. Diário de Etty Hillesum, 1941-43. Tradução de
Mariângela Guimarães. Belo Horizonte/Veneza: Editora Âyiné, 2019.
IACOPINI, Beatrice. Uma fé ainda possível. Entrevista concedida a João Vitor Santos. In:
Revista IHU Online, 26 de Jan 2019. Disponivel em http://www.ihu.unisinos.br/
585814 Acesso em 18/Jun. de 2021.
KAPLAN, Aryeh. A Torá Viva. 2ª ed. São Paulo: Editora Maayanot, 2018.
Bakhtin Mikhail. Da teoria literária à cultura de massa. Tradução Robert Stam. São Paulo:
Ática, 1992.
UGGOCIONI, Cristina. Etty Hillesum, a jovem que encontrou Deus durante o Shoah.
Tradução André Langer. Revista IHU Online, Nov.18. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/584987-etty-hillesum-a-jovem-que-
encontrou-deus-durante-o-shoah>. Acesso em: 10 jan. 2021.
8
Considerações iniciais
“– Sinto um chamamento, meu pai... Aquilo fora um sussurro. Mas, num ápice,
Pedro III chegou o corpo robusto à frente. – Sentes o quê? – tentou certificar-
se. De cabeça baixa, a princesa repetiu: – Sinto um chamamento, senhor. [...]
– Mas deveis saber que o que vos acabei de dizer é o destino que Deus me
impõem, também a mim, senhor” (MACHADO, 2017, p. 38).
1 “[...] Foram então integrados os valores ‘masculinos’ (um reino estruturado com um certo tipo de poder) com os
‘femininos’ (amor e misericórdia), mas para depois desta vida, o que permitia a sua manipulação através dos tempos:
em épocas de dificuldade prevaleciam os valores ‘femininos’ e em épocas de ascensão, os ‘masculinos’ Assim, no
começo, o cristianismo era matricêntrico, mas aos poucos foi se tornando patriarcal, no sentido em que fazia
prevalecer a estrutura sobre o amor, submetendo o oprimido a valores postergados para depois da vida [...]”
(MURARO, 2002, p. 103).
150 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
2 “[...] A casta dominante cristã desprezava não apenas a carne, as emoções, mas tudo o que estava associado a elas:
a sexualidade, a mulher, o trabalho ao nível de subsistência, antes valorizado, a fim de justificar guerras santas,
conquistas, reis, imperadores e, por fim, o poder dos poderes [...]. O prazer e as mulheres eram considerados
culpáveis, porque afastavam o homem de Deus e da transcendência; eram, portanto, o pior dos pecados, pior do que
a busca desenfreada do poder e da riqueza” (MURARO, 2002, p. 103).
3 “Apesar de todo esse percurso, podemos dizer que o termo mística, por mais transformações e desgastes que tenha
sofrido ao longo do tempo, ainda traz consigo a ideia que remete para o seu sentido etimológico, ou seja, mística
deriva do verbo grego mýô, que significa fechar-se. Sem parecer forçado, podemos relacionar a noção de tal verbo à
ideia de recolher-se. Ora, o místico é aquele que se recolhe e que neste recolhimento se despoja de tudo que pode
constituir um empecilho no caminho de sua união com o divino” (NOGUEIRA, 2013, p. 157, grifo da autora).
4 “[...] independente do contexto em que se encontram, dentro, fora ou à margem das Instituições religiosas; nos
limites dos muros de suas Ordens ou das beguinarias; escrevendo para Papas, príncipes, reis ou simplesmente para
as suas irmãs; pregando para eclesiásticos ou apenas para o povo; enclausuradas em suas celas ou em seus corpos;
livres de determinados poderes que lhe eram externos ou completamente livres de suas vontades ou ‘quereres’, não
importa: a par das diferenças constatadas, as mulheres pesquisadas são, verdadeiramente, trovadoras de Deus,
anunciadoras do Divino [...]” (NOGUEIRA, 2015, p. 95).
5 “‘As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas marcadas por uma
espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas ‘Begijnhof’, ‘Béguinages’, conforme a
região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias,
viúvas, algumas casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de trabalho
autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da época, alimentadas por uma
espiritualidade singular, de caráter leigo [...]’” (CALADO, 2012, p. 47 apud NOGUEIRA, 2015, p. 158-159).
6 “O fato é que estas almas, que se tornam reflexos de Deus, são ‘almas femininas’ numa época em que não cabia às
mulheres o ‘dom’ de pregar, ensinar ou escrever, sobretudo o que elas pregaram, ensinaram e escreveram”
(NOGUEIRA, 2013, p. 162).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 151
7 “O páthos das mulheres citadas atravessa os seus escritos e oscila entre o corpo (que muitas vezes fala através de
jejuns, visões, êxtases e penitências) e o intelecto (como o caminho percorrido serenamente por Marguerite Porete,
por exemplo)” (NOGUEIRA, 2015, p. 98, grifo da autora).
152 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
(2002); Maria Simone Nogueira (2013, 2015); Rudolf Otto (2007); Joana
Ramôa (2010); António Rebelo (2018); e, Sílvia Schwartz (2010).
8 Referência à obra O Feminino e o Sagrado (2001), de Catherine Clément e Julia Kristeva. Para mais informações,
conferir as referências bibliográficas.
9 “Recebeu o nome de Isabel em homenagem à princesa Isabel da Hungria, irmã de Violante da Hungria, segunda
mulher de Jaime I, avô de Dona Isabel de Aragão” (RAMÔA, 2010, p. 63).
154 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
10 “Uma das estratégias utilizadas por homens do período patrístico para considerar as mulheres como semelhantes
a Deus, e que perdurou através da Idade Média, foi o modelo da femina virilis ou virago. Uma vez que a alma era
considerada como espiritualmente masculina em relação ao corpo, ela normativamente se manifestava em corpos
masculinos” (SCHWARTZ, 2010, p. 111, grifos da autora).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 155
Dizem que o céu se abriu de um momento para o outro, deixando ver o sol
oblíquo de Inverno alumiar a cidade, e que o povo se deteve a admirar o fenó-
meno [...] A recém-nascida chegara ao mundo envolta numa membrana rara,
que espantara físicos, homens de Deus e leigos. E correra uma premonição:
vinha protegida a criança pelo bem que traria ao mundo. [...] No palácio real
de Aljefaría nascera a neta do rei Jaime I de Aragão, filha do príncipe herdeiro,
Pedro. Aquele rebento, que juntava os sangues dos mais ilustres reis da Cris-
tandade, trazia boa fortuna e promessas de sólidas alianças ao monarca,
merecidamente conhecido por o Conquistador. O avô da princesa juntara à
sua Coroa a ilha de Maiorca, o reino de Valência e o condado de Barcelona
(MACHADO, 2017, p. 17, grifo da autora).
11 “Ao chegarmos ao século XIII, todas as catedrais já eram construídas em seu nome. Ela é mediadora, pois não
podemos nos aproximar de Deus diretamente – e isso é uma verdade indiscutível. [...] Por isso nos aproximamos
dele através da Mãe, através da fonte da nossa natureza, e ela roga por nós. Ela não é adorada, ela é venerada; ela é
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 157
vossa santidade em tudo sem mácula. Tomara eu seguir vossa luz e des-
cartar de mim a fraca condição de gente, que me apouca e desvirtua o vosso
exemplo12” (MACHADO, 2017, p. 154, grifos da autora).
De acordo com o excerto, percebemos o forte desejo da protagonista
em seguir os passos de Maria Santíssima e, com isso, saciar o seu anseio
de santidade por meio do exemplo de um sagrado feminino que consiste
na mãe de Jesus Cristo, tendo em vista que:
Na determinação inabalável que tenho de levar aos outros o bem que posso,
iluminai o meu caminho. Nada do que possais enviar-me é demasiado para vos
servir. Aos Vossos pés, senhora, mãe de todos, confio o meu propósito: fazer-
me santa na Terra. Ajudai-me a seguir o exemplo de Cristo, calando desejos e
vontades, tornando-me capaz de seguir as virtudes que Ele nos mostrou. En-
tregai-me qualquer sacrifício (MACHADO, 2017, p. 26, grifos da autora).
quase uma deusa. Sem chegar à essa condição, ela recebe o título hoje de cossalvadora” (CAMPBELL, 2017, p. 275,
grifos do autor).
12 Vale ressaltar que, o destaque em itálico do referido trecho não é nosso, mas consiste em uma opção da autora do
romance em dar destaque aos momentos de oração de D. Isabel.
158 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Dado que, o seu anseio por santidade e de doar-se ao próximo era maior
do que o que o contexto patriarcal impunha à sua condição de mulher13
em uma sociedade em que o pensamento supremacista masculino predo-
minava. “Mesmo assim, não faltaram aqueles que consideravam a mulher
na Idade Média um ser débil ou inferior ao homem, mesmo reconhecendo
que as supostas fragilidade e inferioridade não impediram algumas de ul-
trapassar os preconceitos e as barreiras do espaço e do tempo em que
estavam inseridas” (NOGUEIRA, 2013, p. 158).
Assim, para entendermos melhor essa admiração e devoção de D. Isa-
bel de Aragão para com a Virgem Maria, Leonardo Boff (2012) explica o
seguinte sobre esta última:
Sendo por isso o membro da Igreja, ela também ocupa um lugar correspon-
dente nos laços de mediação salvífica que envolvem a todos; ela é venerada
como a medianeira de todas as graças, porque, unida ao Espírito Santo, ao seu
Filho, ela é cheia da graça. Maria encontra-se de tal maneira associada ao seu
Filho, ao Espírito Santo e ao próprio Deus que é exaltada como corredentora.
A morte coroou-a a perfeição de tal vida. Ela foi assunta ao céu de corpo e
alma; antecipa assim o destino de todos os justos e concretiza o que deverá ser
a transfiguração universal de todo o universo no Reino de Deus (BOFF, 2012,
p. 23-24).
13 “[...] Seu corpo é a sua magia: ele invoca o masculino e é também o vaso de toda vida. A magia feminina é,
portanto, básica e natural. O masculino, por outro lado, é sempre representado em algum papel, desempenhando
uma função, fazendo algo [...]” (CAMPBELL, 2015, p. 18).
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mãe da Forma, ela é a Mãe dos Nomes. Além dela, está a transcendência e,
portanto, ela representa o que é transcendente, tudo o que é potencial, que
está no futuro; ela é a fonte e o fim. Tal é a adoração enquanto veneração
do poder feminino no mundo ocidental” (CAMPBELL, 2015, p. 275). Em
acréscimo, a respeito dessa constante comparação de D. Isabel com a Vir-
gem Santíssima, percebemos que:
Tais e tantos são os fatos que a fé testemunha acerca de Maria. O povo de Deus
guarda a memória deles no culto e na devoção profundamente arraigada no
coração do catolicismo. Mas não só se mantém viva na memória tudo daquilo
que Deus fez por Maria. Procura-se também traduzir para a vida humana a
salvação operada em Maria, mediante um caminho de seguimento e de imita-
ção. A grandeza de nossa mãe se operou numa senda estreita na qual sempre
esteve presente o sofrimento, a pequenez e o anonimato (BOFF, 2012, p. 24).
Dai-me forças para acatar os mandos de meu pai, porque não estou fadada
para o matrimónio. Só encontro em mim a vontade de seguir o caminho da
santa tia de meu pai, Isabel da Hungria, de quem recebi o nome, entregue à sua
veneração desde que atingi o entendimento (MACHADO, 2017, p. 26, grifos da
autora).
Isabel da Hungria tinha então já sido beatificada, por Gregório IX, em 1235, a
pedido expresso do citado imperador – e é muito interessante que, num pro-
cesso certamente motivado, em larga medida, por esta mesma
consanguinidade, as iconografias das duas santas, da mais antiga Isabel da
Hungria e da posterior Isabel de Aragão, tenham tendido a aproximar-se de
forma apreciável. A mesma relação explica que Isabel da Hungria se integre,
como veremos, no grupo de personagens santas que figuram na arca tumular
da Rainha Santa como fatos particulares da sua devoção e garantias de sua
ligação excepcional ao divino (RAMÔA, 2010, p. 63-64).
14 Referência à obra Deusas: os mistérios do divino feminino (2015), de Joseph Campbell. Para mais informações,
conferir as referências bibliográficas.
15 Alusão à obra O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e as suas formas religiosas (2012),
de Leonardo Boff. Para mais informações, conferir as referências bibliográficas.
16 “Agora as mulheres devem nos contar do ponto de vista delas quais são as possibilidades do futuro feminino. E é
um futuro – é como se a decolagem já tivesse acontecido. [...] Repetindo mais uma vez o antigo mote de Goethe: ‘O
eterno feminino / nos leva adiante’” (CAMPBELL, 2015, p. 304).
17 “Não a religião, nem seu reverso que é a negação ateia, mas essa experiência que as crenças ao mesmo tempo
abrigam e exploram, no cruzamento da sexualidade e do pensar, do corpo e do sentir, que as mulheres realizam tão
162 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Este pobre homem não irá juntar-se aos cadáveres que são descobertos todas
as manhãs, prostados nas ruas de Barcelona, onde são resistem ao frio do In-
verno. Acredito que o salvei, como seria fácil salvar tantos outros desgraçados,
se somente lhes fosse dado algum calor de gente, que honrasse a sua alma, e
tratamento para curar as chagas do corpo (MACHADO, 2017, p. 22).
Tendo em vista que, “o anjo que o devolvia à vida era apenas uma
menina” (MACHADO, 2017, p. 22). Esse é, portanto, apenas um dos muitos
exemplos que ilustram o cuidado com os doentes por parte da protagonista
no decorrer da narrativa. Levando em consideração o excerto, é a partir
dessa premissa de doar-se integralmente aos desvalidos que D. Isabel de-
senvolve as suas ações no desenrolar do romance, não só com o cuidado
aos doentes, mas também, com o saciamento da fome dos mais
intensamente sem preocupação alguma, e sobre a qual lhes resta – nos resta – tanto a dizer” (CLÉMENT; KRISTEVA,
2001, p. 08).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 163
necessitados. Uma vez que, “a sua relação, desde a infância, com a ordem
religiosa franciscana configura total importância para o seu espírito religi-
oso e magnânimo” (FERREIRA, 2016, p. 33).
Em adição, além do cuidado com os enfermos, apesar das muitas mu-
danças da corte para diversos lugares do reino de Portugal – visto que,
nessa época, a Corte Real Portuguesa, embora fixada em Coimbra, era
também itinerante –, D. Isabel não deixava de cuidar dos mais necessita-
dos tendo como uma das suas ações mais conhecidas até hoje na cultura
judaico-cristã, a partilha de pães: “Mas aquele excesso de pão eram ordens
da mulher, vagamente lhe disseram nos corredores por onde procurou,
sabendo ele [o Rei] que a ocultavam, que desculpavam todos os desejos da
rainha, que vivia para atender os outros” (MACHADO, 2017, p. 368, acrés-
cimo nosso). Um exemplo disso, vemos quando ela mesma solicita a
distribuição de pães aos criados na alcáçova de Coimbra, o que causa es-
tranhamento na Corte Portuguesa ao presenciar esse hábito da rosa da
Casa de Aragão:
Resolveu dirigir-se ela própria às cozinhas para deixar o pedido e garantir que
não haveria esquecimento e que as crianças enjeitadas receberiam diaria-
mente os seus alimentos à hora marcada. Notou alguns olhares cruzados entre
o pessoal, talvez pela estranheza da ordem. Na sua terra, era ela quem enchia
os cestos com pães ou com sobras de banquetes para entregar a um ou outro
asilo que conhecia, mas ocorreu-lhe que em Portugal talvez fizesse de outra
maneira... mas intimidou-se de perguntar. O importante era deixar consolo
certo aos meninos que não lhe saíam da cabeça (MACHADO, 2017, p. 113).
18 “O século XIII foi o século da Virgem. A Deusa retorna para a tradição cristã, antideusa, por meio da Virgem, Mãe
de Deus. Principalmente no catolicismo tem havido um crescimento constante da Virgem desde o século V até os dias
de hoje” (CAMPBELL, 2015, p. 269).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 165
Meu filho, beijo a sua testa inocente. Tomara poder proteger-te toda a vida,
assim, como quando te tenho nos braços, livrando-te do mal. Que Deus te
guarde. Faço o sinal da cruz na tua pele macia, jurando que nunca te abando-
narei, mesmo que o mundo inteiro se resolva contra ti, Afonso, terás a tua mãe
(MACHADO, 2017, p. 191).
Pudesse falar com el-rei, meu senhor, pudesse eu falar com o infante meu fi-
lho, sem nenhuma outra voz entre todos, para que sós os laços sagrados que
nos unem pudessem discorrer por si. Não abandonarei meu filho, nem com
excesso de fel que carrega apenas porque vive na crença do desprezo de seu
pai. Se o largar, quem lhe resta para lhe levar ao ouvido palavras de siso? Não
abandonarei Afonso nem esmorecerá a esperança de trazer harmonia aos que
têm o mesmo sangue, enquanto me restar vigor no corpo, sabendo que a fé
jamais me faltará (MACHADO, 2017, p. 326).
166 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
19 “[...] Ela se ordena à maternidade. Aqui radica toda a grandeza de Maria. Ela não é apenas a consagrada de Deus.
É possuída por Ele. Torna-se a sua esposa. É a mãe de Jesus que é Deus [...]” (BOFF, 2012, p. 207).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 167
mão direita elevada para ser vista. [...] Só o relinchar nervoso dos cavalos cor-
tava o silêncio que caíra no campo de batalha, enquanto a extraordinária visão
de uma mulher à garupa de uma mula avançava lentamente entre as duas
hostes em contenda. Isabel pensara em tudo e ia de coroa sobre o véu para que
a sua aparição fosse identificada de imediato. Só como rainha poderia alcançar
a paz, falhadas todas as tentativas como esposa e mãe dentro de portas. – Pa-
rai, senhores, e ouvi-me. E pararam todos a ouvi-la. – Que dois reis de
Portugal, presente e futuro, não derramem o seu sangue sobre o solo que os
deveria unir [...] Esta é uma guerra que nem Deus nem o povo deste reino
desejam (MACHADO, 2017, p. 364-365).
20 “[...] Efetivamente Maria está ligada ao tempo; viveu a condição de peregrina, na fé e na esperança, era virgem,
tornou-se Mãe de Deus, fez-se junto da cruz corredentora de todos os homens, teve que esperar até ser glorificada”
[...] (BOFF, 2012, p. 27).
168 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Julia Kristeva (2001) denominam como o amor materno que faz alusão à
maternidade da mãe de Jesus. Isso posto, as autoras indagam: “Essa vida,
desejada e dirigida por uma maternidade amorosa não é um puro e sim-
ples processo biológico: eu falo do sentido da vida – de uma vida que tem
um sentido. [...] E se o que chamamos de ‘sagrado’ fosse a celebração desse
mistério que é a emergência do sentido?” (CLÉMENT; KRISTEVA, 2001,
p. 21).
Portanto, a partir das reflexões de Catherine Clément e Julia Kristeva
(2001) e tudo o que foi discutido até aqui, percebemos que essas expres-
sões do sagrado de D. Isabel configuram-se como meios de atingir o divino
através de intermediações. Tendo em vista que, constatamos que as ações
franciscanas e marianas da protagonista para com os mais necessitados
podem ser relacionadas com o que Rudolf Otto (2007, p. 200) chama de
“as obras do Cristo”. Sendo, por conseguinte, o amor materno relacionado
à imagem de mãe abnegada e totalmente dedicada ao filho que a Virgem
Maria foi configurando, desse modo, a sua maternidade como uma das
expressões que ilustram fortemente essa conexão para com o sagrado.
Uma vez que, “ela mesma [Maria] é uma questão fundamental que deve
ser refletida porque nela Deus é encontrado numa densidade apenas com-
parável com Jesus Cristo” (BOFF, 2012, p. 29, acréscimo nosso),
mostrando-nos, dessa forma, a representação de uma nova faceta na rela-
ção entre o feminino e o sagrado: o rosto materno de Deus.
21 “A mística feminina medieval é fortemente marcada pela relação humano-divino e, neste sentido, aproxima-se
muito da religião, uma vez que esta também aborda aquela relação” (NOGUEIRA, 2015, p. 92).
174 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Considerações finais
Deus, como é pregado pela sociedade cristã patrística na qual ela está in-
serida. Mas D. Isabel de Aragão detém uma percepção do sagrado que se
caracteriza como um rosto materno de Deus, um Deus Mãe, isto é, um
divino feminino, configurando, desta forma, as relações entre o feminino
e o sagrado.
Referências
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histórico. 2013. 73f. Trabalho de Conclusão de Curso. Monografia (Graduação em
Letras com habilitação em Língua Portuguesa). Centro de Educação. Universidade
Estadual da Paraíba. Monteiro, 2013.
CAMPBELL, Joseph. Deusas: os mistérios do divino feminino. Editado por Safron Rossi.
Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2015.
COSTA, Isabel Maria Marques. Isabel de Aragão, Rainha Santa, no período medieval e na
atualidade, uma visão comparatista entre textos literários e historiográficos. 2019.
100f. Dissertação (Mestrado). Mestrado em Estudos Portugueses Multidisciplinares.
Universidade Aberta. Lisboa, 2019.
COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres intelectuais na idade
média: entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e
a mística. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.
178 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
FERREIRA, Simone dos Santos Alves. Mito e Criação Literária: o repensar paródico dos
mitos Inesiano e Isabelino. João Pessoa: Editora da UFPB, 2017.
GIMENEZ, José Carlos. A Rainha Isabel nas estratégias políticas na Península Ibérica: 1280-
1336. 2005. 211f. Tese (Doutorado). Doutorado em História. Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2005.
MEDEIROS, Aldinida. Entre Ficção e História: Isabel, a Rainha Santa de Portugal. Revista
Graphos. Revista de Pós-Graduação em Letras (PPGL). João Pessoa. v. 15. n. 01, 2013.
p. 01- 11. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/
view/16313. Acesso em: 07 de setembro de 2020.
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: uma história através dos tempos e
suas perspectivas para o futuro. 8.ª edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Traduzido por Walter O. Schlupp. Petrópolis: Vozes, 2007.
RAMÔA, Joana. Isabel de Aragão, rainha e santa de Portugal: o seu jacente medieval como
imagem excelsa de santidade. Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias. Lisboa.
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 179
REBELO, António Manoel Ribeiro. O apreço da Rainha Santa Isabel pela espiritualidade
franciscana. Repositório Científico da Universidade de Coimbra. Coimbra. 2018. p.
73- 108. Disponível em: https://eg.uc.pt/handle/10316/81378. Acesso em: 22 de
abril de 2020.
Considerações iniciais
1 A obra da poetisa mística não se limite aos poemas. Ela também produziu cartas e relatos de visões.
182 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Percebemos que a poetisa começa seu poema com base numa dualidade
implícita, na medida em que só se pensa na ideia de coração nobre em
relação a outro que não o seja. A partir disso, construímos a imagem de
uma alma elevada, a qual não deve sucumbir à tristeza mesmo diante de
adversidades. Em seguida, nos próximos cinco versos, ela mostra ao que
este ser elevado deve estar pronto para enfrentar “Pero quien quiera
afrontar los trabajos de Amor / de El sólo tendrá que aprender / —dulzura
y crueldad, / alegría y dolor— / lo que hay que probar en el servicio de
Amor.” (ibid.), quer dizer, o amor espera este coração nobre, mas esta não
é uma tarefa simples, tendo em vista que ele se manifesta através da do-
çura e crueldade, da alegria e da dor. Com esta parte da estrofe, podemos
iniciar a construção das nossas peças, visto que é requisitado ao eu-lírico
dureza ou estabilidade, para se manter firme na instabilidade desse amor.
Essa capacidade de não se deixar abalar diante do instável é o serviço ne-
cessário descrito no último verso da estrofe.
Na estrofe seguinte, a poetisa retoma o tema da instabilidade, mas
realça um aspecto imprevisível do amor, ao dizer que “Las almas elevadas
que en Amor crecieron, / capaces de amar en la insatisfacción, / deben ser
siempre / fuertes y atrevidas, / dispuestas de continuo a aceptar / el con-
suelo o la aflicción / que Amor les reserve.” (ibid.). Ao observar os trechos,
percebe-se uma ideia de amor que foge ao sentido mais comum de alegria
plena, pois não são reveladas as qualidades desse amor, apenas se fala da
coragem que a amante deve ter. Por mais que haja uma imprevisibilidade,
em momento nenhum há uma esperança de que esse amor tem um vetor
de força maior para recompensas do que para coisas ruins.
Os quatro primeiros versos da terceira estrofe trazem uma nova pers-
pectiva desse amor, até então imprevisível e instável: “Los caminos de
Amor son inauditos, / como bien sabe quien pretende seguirlos; turban de
repente al corazón resuelto, el que ama no puede encontrar constancia.”
Itamar Mateus Muniz de Melo | 187
Quem ama é em primeiro lugar a mulher: não enquanto mãe, irmã, ou amiga,
mas na plena autoridade como porta-voz, serva do Amado. É o escravo que
tem, ao fim de contas, o poder. E o que está em causa não é só o facto de ser
de uma mulher mística a autora destes textos, mas também o público destina-
tário para o qual ela escreve os seus textos. Mulheres ainda jovens (pelo menos
que ainda não adquiriram o crescimento total no amor) mas que atestam,
compreendem e outras vezes contestam a própria direcção espiritual de Hade-
wijch. Elas compreendem, pois estão a ser iniciadas por Hadewijch, mestra na
vida amorosa com o supremo Amado, e elas próprias são objecto de amor, pois
participam nessa mesma afectividade. (SERRADO, 2004, p. 47)
Considerações finais
Referências
NASCIMENTO, Denise Silva Menezes do. A função poética dos textos de Hadewijch. Acta
Scientiarum Education. Maringá, v. 33, n. 2, p. 191-197, 2004.
OTTO, Rudolf. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis: Vozes, 2007.
SERRADO, Joana de Fátima Gonçalves Pita. Amar, Experienciar, Transformar: Minnen, Va-
ren, Verwandelen: Três verbos místicos em Hadewijch de Antuérpia. Dissertação
(mestrado em Letras) Faculdade de Letras, Universidade do Porto. Porto, p. 160,
2004.
Considerações iniciais
Do real ao sagrado
Porque não se pode começar pelo conceito, a ideia, a definição, pela expe-
riência o dado imediato ou o sensível” (2017, p. 8).
Há uma configuração própria, em Lacan, do modelo de organização,
ou operacionalização de tudo que rege, constitutivamente, os sujeitos. Tal
modelo vem como uma ruptura com a compreensão hegemônica das fun-
damentações freudianas. O inconsciente, que Freud constrói com base na
análise paulatina dos fenômenos histéricos, mostra-se similar a uma es-
trutura orgânica, constitutiva, que fragmenta mentalmente o indivíduo
em três instâncias que operam dinamicamente, a saber, as já muito conhe-
cidas: Ego, Superego e Id. No entanto, é a partir da leitura estruturalista
de Lacan, bem como de sua fundação teórica amparada por estudos lin-
guísticos, que o aforisma “o inconsciente é, em seu fundo, estruturado,
tramado, encadeado, tecido de linguagem” (LACAN, 1981, p. 135) distan-
cia-se de Freud.
A importância de apreender os três registros, em sua totalidade, dá-
se pela inerência que atravessam horizontalmente os três, é possível afir-
mar que não há uma compreensão do Real sem que percebamos as
incisões do Simbólico e Imaginário, essencialmente articulados, pois não é
em outro lugar senão nestes vértices que a justificativa do diálogo com
toda a sorte de expressões artísticas, em nosso caso específico a literatura,
é estabelecida e torna-se um espaço verdadeiramente produtivo.
Logo, Lacan propõe e teoriza, o Imaginário, o Simbólico e o Real como
as três estruturas, ou registros, que se sobrepõem atribuindo significados
e ressignificando as relações dos sujeitos com outros, com o mundo e, fun-
damentalmente, com a linguagem. Zizek (2010) nos traz uma metáfora
registros Simbólico e Real, dentro de uma percepção antagônica em certa
medida válida, tomando como referência um jogo de xadrez. No jogo, o
registro Simbólico é tido como as regras em si, a nomenclatura das peças
bem como suas limitações de movimento, já o Real pode ser percebido
196 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Lei, estrutura regulada sem a qual não haveria cultura. Lacan chama isso de
grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que
a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro
recíproco e simétrico ao Eu imaginário.
O conto escolhido aqui como corpus de análise nos traz uma narra-
tiva ambientada em um jardim zoológico, onde a personagem principal,
cujo nome não é dito, procura aprender a odiar com os animais. Há uma
tentativa constante da personagem de abdicar do sentimento de amor que
lhe consome, após um evento traumático de ruptura amorosa. De jaula em
jaula ela persegue esse ideal de ódio, no entanto, o que ela observa é um
traço humano em todos os animais, algo que em essência remete ao oposto
do que ela busca, ou seja, o amor.
Um dos pontos cruciais, que possibilita nossa leitura através da apro-
ximação entre Sagrado e Real, reside justamente nos trechos que a
personagem principal clama a Deus por uma didática do ódio, como fica
evidente em alguns trechos a seguir: “E enquanto fugia, disse: “Deus, me
ensine a odiar” (LISPECTOR, 1960, p.65); “No estômago contraiu-se em
cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa.” “Oh Deus,
quem será meu par neste mundo?” (LISPECTOR,1960, p. 66). Outras pas-
sagens do conto remetem diretamente ao Sagrado, no entanto, de maneira
mais secundária, especificamente um breve trecho onde Clarice faz uma
referência a uma igreja.
O conto nos interpela com uma personagem que perde o equilíbrio
em relação à realidade vacilante, a ruptura amorosa abre esta lacuna e,
com ela, surge a necessidade de preenchimento. Apesar da incessante
busca, não conseguia encontrar a ferocidade e a virulência que buscara no
zoológico. Podemos perceber que o búfalo, do alto de sua opacidade e in-
diferença, representa muito mais uma questão identitária da personagem
200 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
É capital demarcar que a busca por esse objeto (a) perdido pela per-
sonagem se converte, na realidade, na busca pelo que podemos chamar de
semblante do Real, ou semblante do sagrado, tomando em consideração
nossa aproximação didática. Um dos pontos principais do conto é confe-
rido ao momento de encontro com o búfalo, este traduzido em um animal
que exalava força e calmaria. Podemos conferir ao momento específico um
vislumbre que a personagem tem do objeto perdido, há ódio no olhar do
búfalo, como assim percebe a personagem. No entanto, percebemos que
tal vislumbre pode ser categorizado como parte do processo de identifica-
ção, numa imagem especular que relaciona diretamente a personificação
do objeto de amor perdido, sob a forma do animal pacato. Desta forma,
acreditamos que o verdadeiro encontro com o Real/Sagrado esteja melhor
ilustrado exatamente no último parágrafo do conto:
vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um
búfalo (LISPECTOR, 1960, p.69).
Está dada a chave para pensar o Real como uma espécie de passagens entre
tempos de negação. Para tanto é preciso pensar conjuntamente o Real como a
ação, ou o ato de realizar, o produto realizado, a realidade e o seu agente pro-
dutor, o movimento da consciência. (...) O conceito não é a representação desse
processo, mas a sua própria experiência de produção ou realização no tempo
em que o processo se dá (DUNKER, 2016, p.249).
Referências
CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e cultura, São Paulo, SP, v. 24,
n. 9, p. 803-809, 1972.
DURÃO, F. Reflexões sobre a metodologia de pesquisa nos estudos literários. DELTA, n. 31,
p. 377-390, 2015.
LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora, 1985.
ZIZEK, S. Bem vindo ao deserto do Real! Rio de Janeiro: Boitempo Editora, 2003.
11
Julian Bohrz
Considerações iniciais
Instâncias narrativas
e o outro. Ehud figura então como um misto de beleza e sujeira, “um todo
de carne repulsiva, um esgarçoso de brilho e imundície” (HILST, 2001,
p.52). É assim que, em um diálogo com o marido no pós-morte, é possível
desenhar em linhas tênues o conceito de vida após a morte implícito no
texto:
político, é Deus todo dia dentro da boca, de dia Deus, de noite a teta de
uma, a pomba de outra” (HILST, 2001, p.38), os vizinhos também auxi-
liam a demonstrar a complexidade, a libertinagem, e a abjeção nos
contatos sociais de Senhora D. Além dessas vozes, que surgem de forma
plana, mas se configuram como personagens, outras vozes não ganham
maior detalhamento ou corporificação, porém definem a protagonista: os
editores, os familiares e, até as últimas páginas do livro, o Menino-Porco.
A categoria Narrador é complexa em Obscena Senhora D. O texto é
narrado em primeira pessoa, porém a narradora brinca de ser onisciente,
por exemplo, ao imaginar\saber o que os vizinhos falavam dela e, logo
após, relatar uma cena de contato com os vizinhos que corrobora sua im-
pressão. Além disso, a narradora viaja entre tempos diversos, avançando
até um eventual futuro pós-morte, onde dialoga com o Senhor e com o ex-
marido. Nem sempre a voz narrativa deixa explícitas essas mudanças de
tempo, como se passado, presente e até futuro se confundissem nas me-
mórias.
Portanto, o tempo também é uma categoria híbrida. Embora não
existam demarcações cronológicas, a leitura permite entender que a per-
sonagem é idosa e vários eventos possíveis de se demarcar em linha do
tempo a modificaram. Além disso, o tempo passa de maneira diversa por-
que está vinculado à rememoração da personagem. Sua forma de lembrar
vividamente, como se o passado estivesse ocorrendo, problematiza o cará-
ter narrativo da memória. Ao reviver recordações, Senhora D. mostra que
alguns acontecimentos não se perderam no tempo, pelo contrário, segui-
ram acontecendo. Assim, a memória é o principal fator de composição da
personagem, uma vez que cria um fluxo de consciência no qual a lem-
brança do passado se entrecruza com as percepções e os sentimentos do
presente.
210 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
Você está me ouvindo Hillé olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não
está aí, ouviu? Nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima,
será que você não entende que não há resposta? Não, não compreendia nem
compreendo, no sopro de alguém, num hálito, num olho mais convulsivo, num
grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de coisas secas, de es-
trume, um dia um dia um dia (HILST, 2001, p. 25).
mistério tremendun, o mistério arrepiante. Essa sensação pode ser uma suave
maré a invadir o nosso ânimo, num estado de espírito a pairar em profunda
devoção meditativa. Pode passar para um estado de alma a fluir continua-
mente, em duradouro frêmito, até se desvanecer, deixando novamente a alma
no profano. Mas também pode eclodir no fundo da alma em surtos e convul-
sões. Pode induzir estranhas excitações, inebriamento, delírio, êxtase. Têm
suas formas selvagens e demoníacas. Pode decair para o horror e estremeci-
mento como que diante de uma assombração. (...) Pode vir a ser o
estremecimento, o emudecimento da criatura a se humilhar perante - bem,
perante o que? Perante o que está contido no inefável mistério da criatura.
(OTTO, 2004, p. 48)
A vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca
compreender. Por isso é que me recusava muitas vezes. queria o fio lá de cima,
o tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes? Que OUTRO mamma mia?
DEUS DEUS, então tu ainda não compreendes? (HILST, 2001, p. 28).
Quando eu não estiver mais evita o silêncio, a sombra, procura o gesto, a carí-
cia, um outro, (...) e que ele conheça o teu corpo como eu conheci, ensina-o se
for inábil e tímido, busca tua salvação, empurra o espírito para uma longa
viagem, afasta o espírito (HILST, 2001, p. 84).
Hillé, minha filha, boas e vadias e solenes ilusões, movemo-nos pelas ilusões,
gigantescas e fofas (...) Hillé, anos apenas, mas que deliciosa deixação as ilu-
sões, pai? E que desgostoso compreender, saber à frente dos passos (...)
senhora D, deixa teu pai morrer, fica, Hillé, deita-te aqui comigo, traz um es-
pelho, pra quê? quero ver minha cara (HILST, 2001, p.88).
E se o sagrado fosse essa percepção inconsciente que o ser humano tem de seu
insustentável erotismo: sempre nas fronteiras da natureza e da cultura, do
animal e do verbal, do sensível e do nominável. E se o sagrado, em lugar de
ser a necessidade religiosa de proteção e de onipotência que as instituições
recuperam, fosse o gozo dessa clivagem - dessa potência\impotência - desse
desfalecimento delicado? (CLEMÉNT e KRISTEVA, 2001, p. 21).
Considerações finais
Referências
BÍBLIA. Ezequiel. In: Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Tradução João Ferreira de
Nascimento. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
DINIZ, Cristiano. Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo:
Biblioteca Azul, 2013.
FERREIRA, Fernanda Pacheco; OLIVEIRA, Regina Herzog; SALES, Jôse Lane. Clivagem: a
noção de trauma desestruturante em Ferenczi. Arquivos brasileiros de psicologia.
Rio de Janeiro, p. 60-70. 2016.
HILST, Hilda. Obscena Senhora D. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2001.
OTTO, Rudolph. O sagrado. Tradução: Walter Schlupp. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
Considerações iniciais
1
Aula sobre Adélia Prado ministrada no componente curricular Literatura e Sagrado no período 2020.2. com a
participação especial da Profa. Dra. Cleide Maria de Oliveira do CEFET-MG.
Pedro Caio Sousa Almeida | 227
Quando em Gênesis 18.27 Abraão ousa falar com Deus sobre a sorte dos sodo-
mitas, ele diz: "Tomei a liberdade de falar contigo, eu que sou poeira e cinza."
Trata-se de um sentimento confesso de dependência que, além de ser muito
mais do que todos os sentimentos naturais de dependência, é ao mesmo tempo
algo qualitativamente diferente (OTTO, 2007, p. 41).
Ciências e Letras de Divinópolis. Sua obra foi escrita sob forte influência
da religião, e em 1971 compôs sua primeira obra, em parceria com Lázaro
Barreto, A Lapinha de Jesus. Sua apresentação como autora individual
aconteceu em 1975, quando já era casada e mãe de cinco filhos, e teve re-
percussões pela escrita de suas poesias, impulsionadas pelo renomado
escritor Carlos Drummond, que as enviou para a Editora Imago, sendo
publicada no livro chamado Bagagem (1975). A escolha dos títulos de suas
obras, e de seus poemas, possuem, em grande parte, referência a textos
bíblicos, que estão dentro do eixo da mística, sendo um dos três eixos da
tríade citada pela pesquisadora Oliveira (2012), como basilares da obra
Adeliana.
Na obra da escritora em questão, há uma atribuição do valor simbó-
lico ao cotidiano vivido pelo eu lírico, que demonstra com mais força e
intensidade as formas e experiências vividas. Há sempre presente uma
certa conexão do sujeito pecador que busca a exortação de Deus, que pode
ser percebida através de relatos das experiências divinas. Dessa forma,
surge a busca pela transcendência, a partir da elevação dos sentimentos a
Deus, para que se adequem ao sagrado divino. O erotismo entra como
forte elemento simbólico dessas idas e vindas dos eus líricos expressos nos
poemas, na busca incessante de alcançar o divino.
Adélia possui origem católica, o que comparece fortemente em seus
escritos, principalmente por sua prática da experiência divina relatada nas
poesias. O primeiro poema que analisaremos é o Consanguíneos, em que
a autora fala sobre dor, Deus, amor, mãe, clemência, dormir e descanso.
Como se pode perceber, em um pequeno poema de sete versos, se tem
uma diversidade de temas evocados, e que possuem uma ligação entre
eles, sobretudo, levando em conta que o texto poético, por ser escrito em
forma “reduzida” com relação à prosa, normalmente fornece uma densi-
dade maior de significados em cada palavra utilizada, normalmente
Pedro Caio Sousa Almeida | 233
Nesse poema, o eu lírico diz que sente uma dor, mesmo que não haja
ninguém que a tenha causado, a não ser Deus, pois este pede o amor dela,
e a faz sentir dor, não sendo este um pedido qualquer, pois há uma forte
ligação entre filho e mãe. Mesmo considerando que a mãe o rejeita, e por
isso necessita de remédio para poder respirar, alcançando a clemência en-
tre eles, para estarem “jungidos”. A experiência divina é exposta pelo eu
lírico, de sua relação com Deus, e também da noção de sagrado, primeiro
pela presença de Deus, seguido pelo pedido incessante de amor, e não um
amor qualquer e meramente sentimental2; depois pela clemência e final-
mente pela ligação de amor que haveria de se restabelecer entre ambos, a
união que atinge a finalidade desse amor, a amizade entre eles.
Parece haver também uma espécie de sentimento de culpa e, logo em
seguida, a busca da reconciliação, dado pela “clemência” e posteriormente
pelo “jungidos”; e que, conforme afirmado por Bingemer, sobre outra
obra da autora Adélia, Os Componentes da Banda, tem-se que: “Ao mesmo
tempo, em meio a essa culpa e essa tortura de sentir-se mesquinha, par-
tida, pecadora, experimenta um imenso desejo da santidade e de plena
2
Nesse sentido, está se dizendo que o amor em questão é o dos seguidores de Jesus, filho de Deus, conforme deixado
nas Escrituras, ou seja, não se trata de um sentimentalismo da modernidade, mas da fidelidade daquele que busca
seguir as leis divinas deixadas para os homens.
234 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
comunhão com Deus”, algo que demonstra a forte ligação entras suas
obras, que se relacionam mesmo que por narrativas diferentes, com a ideia
de conexão com Deus, apresentando a culpa e a reconciliação, um tema
presente em toda a passagem de Jesus descrita na Bíblia, dos pecadores
que buscam unir-se a Ele, e que a autora incorpora em suas narrativas.
Segundo uma linha que segue uma perspectiva mais próxima do cris-
tianismo, a dor que o eu lírico sente não é uma dor qualquer, mas aquela
dor de rejeitar Deus, Aquele que está sempre na busca do amor de seus
filhos, e que nunca falha. Enquanto o eu lírico rejeita, quem sente a dor é
ele mesmo, por isso necessita de remédio para poder “respirar melhor”, e
dessa forma obter clemência, que pode ser interpretada pela indulgência
do sacramento da confissão, restabelecendo então o perdão. Desta forma,
agora estando “jungidos”, tal qual a finalidade da criação do homem, amar
a Deus, e dessa forma, enquanto “Ele não dorme eu não descanso”, visto
que o amor perfeito dEle não falha, enquanto a falta de amor e a rejeição
do pobre homem pecador, na carne, necessita do remédio. Interessante
notar que o uso do “remédio”, que denota a utilização de um produto aces-
sório e terreno, que o eu lírico precisa para se acalmar diante da dor, é
oposto a Deus, que é celestial e não precisa, pois já é perfeito em si.
No segundo poema, O Amor no Éter, há uma descrição maior do que
foi relatado com relação ao poema Consanguíneos. Em O Amor no Éter, a
descrição dada é sobre o que há dentro do eu lírico, descrito por uma bela
paisagem e a busca mais profunda dos sentimentos que brotam dela
mesma, mas que não possuem origem nela, e sim em outro:
Considerações finais
Referências
CERTEAU, Michel de. A Fábula Mística. Séculos XVI e XVII. Volume I. São Paulo:
Gen/Forense Universitária, 2015.
Pedro Caio Sousa Almeida | 239
OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Petrópolis: Vozes, 2007.
13
Considerações iniciais
“Assim, contrita”; “Duas Igrejas”; “Maná dos céus” e “Gozo”. Isto se dará
de forma aleatória, independentemente de estarem inseridos na primeira,
segunda ou terceira parte do livro, pois consideramos serem estes os que
melhor se enquadram ou podem corresponder ao objetivo estabelecido
para o presente estudo.
1 Para Otto (2007), a experiencia do sagrado está relacionada ao domínio do sentimento e por isso é irracional, uma
vez que os mistérios da religião não podem ser conceituados ou explicados pela razão. “Mas não causa surpresa que
o racional necessariamente ocupe o primeiro plano, uma vez que toda linguagem, enquanto constituída de palavras,
pretende transmitir principalmente conceitos. E quantos mais claros e unívocos os conceitos, melhor a linguagem”
(OTTO, 2007, p. 34).
246 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
uma religiosidade, seja de qual crença for. Assim, sobre a diferença entre
religioso e sagrado, as estudiosas ponderam:
Quanto ao religioso, não posso imaginá-lo sem organização. Com um clero sob
a autoridade papal, como no catolicismo, ou como uma questão comunitária,
como no Islã, a função do religioso retorna sempre à organização do culto:
entra-se por aqui, passa-se por ali, aqui se reza, lá a gente se prosterna, se
começa e se termina, em suma, o tempo e o espaço estão bem administrados.
O sagrado faz exatamente o contrário: eclipsa o tempo e o espaço. Passa para
um ilimitado sem regras nem reservas que é o próprio do divino. Em suma, o
sagrado é um acesso imediato ao divino, enquanto o religioso acomoda um
acesso balizado, com mediações previstas para os casos difíceis (CLÉMENT;
KRISTEVA, 2001, p. 42, grifos da autora).
Era jovem e treinado, não tinha medo. Subiu a escada, assim, desprotegido,
imprudente. De repente, uma descarga elétrica, uma convulsão repentina, e o
funcionário estrebuchou, sem vida, entre os fios. [...] Distraídos, os fios de ele-
tricidade balançaram ao vento, sob o olhar displicente de Deus (LIMEIRA,
2007, p. 36, grifos nossos).
Caminhou até cumprir o último item do destino. No final, olhou para trás.
Como se fosse uma câmera de cinema, seu olhar percorreu todo o caminho
andado. Ano após ano, tinha subido uma longa escadaria. Agora, ao atingir o
último degrau, sentiu-se tonto e seu corpo despencou eternidade abaixo. Num
relance, Deus, o contemplou assim prostrado, estatelado. E Deus falou para si
mesmo: ‘Quão perfeita são minhas obras’. Despreocupado, o Poder Supremo
foi embora, montado no dorso de um anjo (LIMEIRA, 2007, p. 85, grifos nos-
sos).
Passaram-se anos. Nesta capela, vi meu esposo pela primeira vez. Aqui rezei
quando criança, fiz minha primeira comunhão. Neste momento, as paredes
choram. Eu era viva quando da última vez que percorri esta igreja. Hoje, as-
sim, fantasma, apenas vagueio em meio à neve retorcida pela desmemória.
Meus filhos, netos, bisnetos, minha cidade, onde estão todos? Como é rápido
o esquecimento. Como é tão frágil a lembrança. Essas paredes de alvenaria
ainda resistem, contorcidas, ao abandono. Carcomidas e soterradas pelo
tempo, estão minhas concepções de Deus, todas transformadas em pó
(LIMEIRA, 2007, p. 67, grifos nossos).
da última vez que percorri esta igreja”. Na sua concepção, além da família,
Deus também a abandonou. Ao mesmo tempo, o ambiente considerado
sagrado para o catolicismo, onde se busca tranquilidade e paz interior, a
capela/igreja, surge como um lugar que atormenta e reaviva o sofrimento
através da lembrança de um tempo feliz que já não existe mais.
É importante observar que, nas três diminutas narrativas analisadas
até aqui, a temática norteadora é a morte, até mesmo em “Abandono” que,
ainda estando viva, como supomos, a personagem se sente morta, como
um fantasma. Para Bataille (1987), “a morte tem o sentido da continuidade
do ser” (BATAILLE, 1987, p. 11), no entanto, nesses textos, a morte não
aparece como uma possibilidade de transcendência, de continuidade, por-
que Deus, enquanto divindade, não oferece essa oportunidade aos seres
humanos representados por tais personagens. Nesses relatos, ao morrer,
“despenca-se eternidade abaixo”.
Nos próximos escritos, é possível perceber, na nossa concepção, o
fato de as personagens buscarem em Deus uma esperança de salvação.
Além disso, consideramos marcante a presença de um erotismo subver-
sivo nesses textos. Consoante Bataille (1987), o erotismo já se configura
como a transgressão por excelência, por ser uma infração às regras dos
interditos, regras estas que tem como objetivo colocar o erotismo fora das
convenções morais e sociais estabelecidas. Desse modo, a relação entre o
sagrado e o erótico apresentada nos escritos analisados reflete uma insu-
bordinação, por parte da escritora, à ordem religiosa, tendo em vista que
coloca Deus como alguém a quem as personagens desejam entregar-se
para obter a salvação ou proteção desejada. Em “O beijo de Deus” – nar-
rativa que é homônima ao título da obra –, a entrega da personagem teria
como recompensa não ser comida pelos vermes após a morte:
Ana Flávia da Silva Oliveira | 251
Neste ataúde hídrico, repouso meu corpo, e descanso dos meus pensamentos.
Aqui deitada, guardo-me em silêncio. Depois que morri, sou mais bonita, o
rosto mais delgado. Meus lábios bem feitos esperam os beijos de Deus. Se Deus
beijar minha boca, estarei imune a vermes. Ninguém saberá de mim, na paz
deste meu descanso (LIMEIRA, 2007, p. 78, grifos nossos)
Senhor, toma conta de mim, tua serva tão frágil, lacrimosa. Toma conta do
meu universo: minha casa, meus filhos e todos os meus amores. Senhor, assim
contrita, imploro. Não me permitas morrer de maremoto, de raio, trovão, ou
bala perdida. Hoje, vesti meu vestido mais bonito. Vestido preto de tafetá an-
tigo, modelo corpo de princesa. Há muitos anos que não me visto assim. Mas
hoje é um dia especial: estou com medo de tudo. Aqui, sentada no chão da sala
de visitas, tenho medo de ladrão, e temo a escuridão, a terra e seus tremores.
Por tudo isso é que estou assim, contrita, trajada neste vestido tão bonito. Se-
nhor, não permitas que alguma coisa de ruim aconteça a meus filhos. Em troca,
252 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia
ofereço-te minha alma, meus seios e meus pensamentos, minhas partes íntimas
e minha imaginação. E se tudo isso que estou te oferecendo ainda for pouco,
rasga-me o vestido de tafetá antigo e decepa-me (LIMEIRA, 2017, p. 27, grifos
nossos).
2 “Não é possível precisar a data de nascimento de Marguerite Porete, mas se pode dizer, com os dados que aparecem
nos autos do processo, que era da região de Hainaut1, que tinha como sobrenome Porete, embora Field (2012)
chame a nossa atenção para dizer que se as origens geográficas de Marguerite são tidas como certas, não
se pode dizer o mesmo do seu sobrenome, pois não sabemos nada sobre sua família e os documentos sobre o seu
julgamento se referem a ela como ‘Marguerite, chamada Porete’ e não simplesmente como ‘Marguerite Porete’. De
toda forma, foi assim que ficou conhecida e é deste modo que a ela os estudiosos se referem. Sabemos também pelas
Atas do processo que ficou presa por quase um ano e meio, sendo condenada à fogueira da Inquisição em 1310 e
queimada na praça de Grève, em Paris, em primeiro de junho daquele mesmo ano como herege recidiva, relapsa e
impenitente. A ‘causa’ da condenação foi o livro que escreveu, Le mirouer des simples ames anienties et qui seulement
demourent en vouloir et desir d’amour (na edição brasileira traduzido como O Espelho das almas simples e
aniquilidas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor)” (NOGUEIRA, 2020, p. 76, grifos da autora).
Ana Flávia da Silva Oliveira | 255
castidade”, o padre se sentia livre para desfrutar do que Paz (1994) diz ser
a ração do paraíso que cabe aos seres humanos: o sagrado.
Em “Maná dos céus”, observamos uma dupla subversão: o erotismo
em uma relação homoafetiva e seu acontecimento entre membros da Igreja:
Se é para não ficar sozinho, deito-me aqui perto. Caminho os dedos, de leve,
sobre seu corpo que dorme. Aos toques dos meus dedos, sua pele se contorce.
Beijo seu rosto, sua boca, meus dedos tamborilam suas reentrâncias de tantos
prazeres. Você se enrosca feito animal, e geme. Nos estertores de dor e gozo,
você me morde e lambe. Sem saber, você me conduz à presença de Deus
(LIMEIRA, 2007, p. 111, grifos nossos).
Considerações finais
Referências
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.
MICHELAZZO, José Carlo. Mística, heresia e metafísica. In.: TEIXEIRA, Faustino. (Org.).
Caminhos da Mística. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 261-279.
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho, Marguerite Porete: a mística como escrita de si.
Graphos, João Pessoa, v. 22, n. 3, p. 76-90, 2020.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Traduzido por Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis:
Vozes, 2007.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Mulheres representadas na literatura de autoria feminina:
vozes de permanência e poética da agressão. Campina Grande: EDUEPB, 2010.
SILVA, José Mário da. A arte ficcional de Dôra Limeira. Correio das Artes. João Pessoal,
agosto de 2015. p 17-20. Seção Memória. Disponível em: http://auniao.pb.gov.br/
servicos/arquivo-digital/correio-das-artes/2015/correio-das-artes-agosto-2015.
Acesso em: 21 de dezembro de 2020.
SILVA, Marcelo Medeiros. Palavra e desejo de mulher: notas sobre lírica e erotismo em
Graça Nascimento. Tabuleiro de Letras. Salvador, v. 13, n. 2, p. 58-74, 2019.
XAVIER, Elódia. Para além do cânone. In.: RAMALHO, Christina (Org.). Literatura e feminismo:
propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Ed. Elo, 1999. p. 15-21.
Autoras e autores
CAPÍTULO DO LIVRO: Entre o Real e o Sagrado: Uma leitura possível do conto Búfalo,
de Clarice Lispector
AUTOR: João Aleixo da Silva Neto (Mestrando do PPGLI/UEPB).
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DO MESTRANDO: Dimensões do Real em Meshugá – Uma
análise crítica a partir do materialismo lacaniano.
ORIENTADOR DA PESQUISA: Prof. Dr. Wanderlan Alves (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: joãoaleixonfl@hotmail.com
Autoras e autores | 265
www.editorafi.org
contato@editorafi.org