Você está na página 1de 266

Feminino e sagrado

Feminino e sagrado

Diálogos entre a literatura e a filosofia

Organizadora
Maria Simone Marinho Nogueira
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Arte de Capa: Kate Bedell - https://www.katebedell.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


NOGUEIRA, Maria Simone Marinho (Org.)

Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia [recurso eletrônico] / Maria Simone Marinho Nogueira (Org.)
-- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

265 p.

ISBN - 978-65-5917-393-8
DOI - 10.22350/9786559173938

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Feminino; 2. Sagrado; 3. Literatura; 4. Filosofia; 5. Coletânea; I. Título.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Nota da organizadora

Os textos aqui reunidos são fruto dos trabalhos realizados para o


Componente Curricular Literatura e Sagrado, ministrado por mim no se-
gundo semestre de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Interculturalidade/PPGLI da Universidade Estadual da Paraíba/UEPB. São
de autoria de mestrandas e mestrandos, contando alguns poucos com a
participação de professoras e professores do Programa. O Componente
Curricular teve como tema O sagrado a partir da literatura de autoria fe-
minina e o seu objetivo geral foi pensar o sagrado em suas diferentes
perspectivas, tomando como horizonte de sentido textos escritos por mu-
lheres na Idade Média e na Contemporaneidade. Em um primeiro
momento houve uma abordagem do referencial teórico sobre literatura e
sagrado, e posteriormente procurou-se repensar a categoria do sagrado
sob o viés da mística, sobretudo da mística feminina. Para tanto, foram
analisados os textos de autoria feminina, focando nas suas características
literário-filosóficas como recursos de expressão do sagrado, e nove mulhe-
res foram abordadas a partir dos respectivos temas que aparecem a seguir:
O sagrado na mística sufi de Rabiaa Al Adawiyya (ca. 715); Orewoet van
minnen como sagrado nas poesias de Hadewijch da Antuérpia († 1248); A
teologia natural e a intuição feminina do divino em Christine de Pisan
(1364-1430)1; O sagrado na Autobiografia espiritual de Simone Weil
(1909-1943); A última aparição do sagrado em Maria Zambrano (1904-
1991); A ausente Presença na lírica de Hilda Hilst (1930-2004); Erotismo,
mística e morte: a tríade Adelina (Adélia Prado, 1935)2; O feminino e o sa-
grado em Julia Kristeva (1941) e Catherine Clément (1939).

1
A aula sobre Christine de Pizan contou com a colaboração do Prof. Dr. Evaniel Brás, da Universidade Federal de
Sergipe.
2
As aulas sobre Hilda Hilst e sobre Adélia Prado contou com a colaboração da Profa. Dra. Cleide Oliveira, do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, e que gentilmente engrandece este livro com o Prefácio.
De qualquer modo, é importante fazer uma observação em relação
aos textos aqui publicados. Com exceção de dois deles, que têm por base
as pesquisas já desenvolvidas na Pós-Graduação, todos os outros se cons-
tituem num esforço por parte das mestrandas e dos mestrandos em
realizar uma investigação sobre uma escritora até então desconhecida ou
nunca trabalhada por elas e eles, valorizando-os ainda mais porque pos-
suem o sabor da descoberta e do encanto que deve ser um dos
pressupostos da pesquisa quando se trata, sobretudo, das humanidades.
Área tão necessária e importante quanto mal compreendida no atual con-
texto em que vivemos. Nesta direção, o solicitado no Componente
Curricular foi que ao final do semestre fosse entregue um artigo sobre o
tema abordado a partir das mulheres apresentadas ou de outras que pu-
dessem acrescentar novas perspectivas à discussão. Assim, dentre as
estudadas, se apresentaram textos sobre Hadewijch da Antuérpia, Simone
Weil, Hilda Hilst e Adélia Prado. A estes, acrescentaram-se textos sobre
Isabel Machado, Catarina de Siena, Etty Hillesum, Clarice Lispector e Dôra
Limeira. Logo, da Idade Média à Contemporaneidade, partindo dos Países
Baixos, passa pela Itália, França e Portugal, cruza o Atlântico e chega ao
Brasil, recortando diferentes paisagens. Neste percurso, vê-se um coro de
vozes, na verdade, de escritas que desenham o sagrado ou que expressam
um experienciar dele. Seja como for, cada uma à sua maneira, cada uma
na sua língua, escreve para si e para quem tiver a disponibilidade da escuta
para o indizível, isto é, para aquelas e aqueles que têm sede do infinito e a
quem, naturalmente, tudo não basta. Aproveitando a metáfora do desejo,
que não baste, desta forma, este livro, e que suas leitoras e seus leitores se
sintam sedentos por provar um pouco mais.

Maria Simone Marinho Nogueira


Campina Grande/PB, julho de 2021.
Sumário

Prefácio 11
Cleide Oliveira

1 14
Um pouco da religiosidade medieval a partir das experiências místicas de Catarina de
Siena
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos

2 37
“Cristo desceu e tomou conta de mim”: a mística em Simone Weil
Luiza Benício Pereira
Maria Simone Marinho Nogueira

3 60
Crítica à instituição igreja e a recusa de Simone Weil ao batismo em carta a um
religioso
Luana Micaelhy da Silva Morais

4 77
Simone Weil e o acesso ao divino por meio do infortúnio
Jaqueline Vieira de Lima

5 92
A espera de Deus em Simone Weil: reflexões sobre justiça e caridade
Erica Dayana Monteiro Cavalcante

6 106
Testemunho e sagrado em Simone Weil
Jéssica da Silva Nascimento
Reginaldo Oliveira Silva

7 129
A experiência mística na escrita de si em Etty Hillesum
Solange Alves de Almeida
8 149
Entre o feminino e o sagrado: um estudo sobre a relação com o divino em D. Isabel de
Aragão no medievo europeu
Francisco Edinaldo de Pontes
Aldinida Medeiros

9 180
Peças do inespecífico: o mosaico do amor na poética de Hadewijch da antuérpia
Itamar Mateus Muniz de Melo

10 193
Entre o real e o sagrado: uma leitura possível do conto Búfalo, de Clarice Lispector
João Aleixo da Silva Neto

11 203
Dimensões do sagrado em Hilda Hilst, Obscena Senhora D.
Julian Bohrz

12 226
A experiência divina em Adélia Prado: uma ligação mística do eu-lírico em
Consanguíneos e O amor no Éter
Pedro Caio Sousa Almeida

13 240
A presença do sagrado na escrita de autoria feminina em O beijo de Deus, de Dôra
Limeira
Ana Flávia da Silva Oliveira

Autoras e autores 262


Prefácio

Cleide Oliveira

Das muitas possibilidades de compreensão dos substantivos sagrado


e feminino, e das possíveis pontes de intercessão entre eles, quero chamar
atenção para a pluralidade de cores e matizes hermenêuticas que tornam
difícil, se não impossível, que a conceituação precisa e inequívoca recaia
sobre esse binômio singular. Em tempos em que, por um lado, complexi-
ficam-se as designações de gênero e, por outro lado, problematiza-se o
conceito de sagrado – que precisa ser circunscrito a essa ou aquela percep-
ção teórica – não é óbvio do que se trata um livro sobre feminino e sagrado.
Mas tal dificuldade é minimizada quando folheamos as páginas dessa pu-
blicação e constatamos que uma certa unidade se impõe à aparente fluidez
desses treze ensaios que se debruçam sobre o feliz binômio, perscrutando
as possibilidades de interação, influência e confluência entre esse irromper
do Completamente Outro – na esteira da compreensão de Rudolf Otto do
sagrado, autor que frequenta amiúde os diversos textos aqui presentes – e
a sua recepção/percepção/reflexão por um eu que se diz no feminino.
Os textos que ora se dispõem à fruição do leitor curioso tem em
comum o foco em personagens femininas – históricas ou ficcionais – em
embate com um sagrado, no mais das vezes de tradição judaico-cristã, que
irrompe de forma tempestuosa e se impõe como força que a si tudo
conclama e seduz. São textos como o de Ana Rachel G. C. de Vasconcelos,
que escreve sobre a espiritualidade mística da também medieval Catarina
Benincasa de Siena, que exerceu importante papel político no medievo.
Ainda os textos de Luiza Benício Pereira e Maria Simone Marinho
Nogueira, de Luana Micaelhy da Silva Morais, de Jaqueline Vieira de Lima,
12 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

de Erica Dayana Monteiro Cavalcante e de Jéssica da Silva Nascimento e


Reginaldo Oliveira Silva, que abordam diferentes facetas da vida e obra da
filósofa e mística Simone Weil. Outra filósofa abordada, no artigo de
Solange Alves de Almeida, é Etty Hillesum, onde, por meio da análise dos
Diários da autora, é enfatizada a força combativa que a escrita de si possui,
e o papel de resistência que tal escrita assumiu na vida de Etty Hillesum,
no contexto terrível da Segunda Guerra Mundial e do nazismo. Se os
primeiros textos se voltam para figuras histórias para compreender o
apelo místico a que todas elas atenderam, os demais possuem como objeto
de estudo a literatura, tanto em prosa quanto na poesia. A questão do
sagrado amarra com fios delicados cada um dos textos, por exemplo o de
Francisco Edinaldo de Pontes e Aldinida Medeiros, que analisam a
personagem D. Isabel de Aragão, personagem do romance histórico A
Rainha Santa (2017), de Isabel Machado, em sua sede pelo divino no
contexto teocêntrico da Idade Média. Ou o de Itamar Mateus Muniz de
Melo, que discorre sobre o poema Strophische Gedichten V da mística
medieval Hadewijch da Antuérpia († 1248), na tentativa de entender como
se configura o tema do amor em sua poesia mística. Ou João Aleixo da Silva
Neto, que visita a narrativa Búfalo, de Clarice Lispector, a partir de um
instrumental teórico lacaniano, e formula como hipótese interpretativa a
sobreposição entre o conceito de Real, em Lacan, e Sagrado, para a análise
do conto. Ainda, a instigante personagem Senhora D., de Hilda Hilst,
comparece no ensaio de Julian Bohrz, que se detém na construção
memorialística dessa obscena senhora, focando principalmente as agudas
reflexões da narrativa hilstiana sobre o divino. De igual modo, o texto de
Pedro Caio Sousa Almeida propõe uma leitura de dois poemas de Adélia
Prado, Consanguíneos e O Amor no Éter, os quais tratam de uma complexa
relação entre o humano e o divino, essa “formidável parelha” que aponta
para uma espiritualidade tanto mística quanto ética nos textos adelianos.
Cleide Oliveira | 13

Por fim, o texto de Ana Flávia da Silva Oliveira, sobre a escritora paraibana
Dôra Limeira, em especial sobre a narrativa O beijo de Deus (2007), texto
que enfoca a intercessão sempre surpreendente entre o erótico e o sagrado
na referida narrativa.
Entre o feminino e o sagrado os textos que aqui se dispõem estabele-
cem rico diálogo com a filosofia e com a literatura; fica a sugestão para que
o leitor aceite o convite e se embrenhe nessa floresta de signos tecida a
partir de uma multiplicidade de vozes que se conjugam no feminino e se
afinam no comum desejo de aceder ao sagrado.

Curvelo/MG, outubro de 2021.


1

Um pouco da religiosidade medieval a partir das


experiências místicas de Catarina de Siena

Ana Rachel G. C. de Vasconcelos

Introdução

O século XIV é visto, por muitos autores, como paradoxal, pois, se por
um lado, foi marcado por eventos como a Guerra dos Cem Anos, a Peste
Negra e o Grande Cisma, por outro, foi também a época em que viveram
grandes poetas, místicos e santos, como Boccaccio, Geoffrey Chaucer, Jo-
hann Tauler, Henrique Suso, Ruysbroeck, Brígida da Suécia e Catarina de
Siena. Por isto, ele é comumente descrito como uma era de destruição, mas
também de soerguimento; de terror apocalíptico, mas também de espe-
rança mística.
Nele, houve o colapso da ordem estabelecida pela Igreja, o esgota-
mento do modelo feudal, o surgimento do nacionalismo e das primeiras
divisões religiosas, contudo, espiritualmente, ele foi bastante profícuo,
uma época de bastante vitalidade espiritual que marcou a história do Oci-
dente (DAWSON, 2002).
A Itália, que viria a ser expoente do Renascimento, produziu, nos sé-
culos anteriores, uma literatura espiritual extremamente rica, “repleta de
devoção mística e fervor religioso” (KING, 2004, p.56). Embora alguns
místicos tenham se mantido propositalmente afastados das polêmicas,
preferindo enfatizar a necessidade de conversão pessoal e de uma mu-
dança interior; outros, como Catarina de Siena, sentiram-se compelidos
ao profundo envolvimento em defesa do papado e de uma reforma da
Igreja (MCGINN, 2005).
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 15

Catarina foi talvez a mais importante mística italiana do século XIV e


a primeira a deixar seus escritos em língua vernácula (MCGINN, 2016).
Autora de uma importante obra de espiritualidade e de um extenso epis-
tolário; possuidora de uma personalidade marcante, na esteira de Joaquim
de Fiore, Dante Alighieri, João de Parma, Francisco de Assis e Angela de
Foligno, a mística italiana, desde muito cedo, tomou ciência dos problemas
eclesiásticos e envolveu-se profundamente, – primeiramente como con-
templativa e, num segundo momento, também como profetisa e
embaixatriz de Siena e do Papa – doando-se pela unidade dos cristãos e
pela paz.
Neste escrito, faremos um breve estudo da experiência mística de Ca-
tarina Benincasa de Siena, figura importante não apenas para os estudos
de gênero e das relações de poder, mas também para a compreensão da
mística e da cosmovisão medievais.
Como sabemos, a reconhecida santidade, normalmente ligada à vir-
gindade, dava à mulher medieval autoridade para influenciar nas questões
temporais e espirituais, e Catarina é o perfeito exemplo de mulher que
exerceu fortemente esta atividade, entrando para a história pela atuação
pública, mas, antes disso, Catarina foi uma típica mística medieval e só
desempenhou aquele importante papel porque primeiro desenvolveu ple-
namente a sua vida interior.
Ela estabeleceu uma íntima relação com Deus, tendo como principais
notas de sua espiritualidade o severo ascetismo, a devoção à Paixão, ao
sangue e à eucaristia, os inúmeros êxtases, o recebimento de estigmas
(MCGINN, 2005) e outras experiências decorrentes daquela, como o casa-
mento místico, a troca de corações, a levitação etc.
O entendimento da mística catariniana a partir das suas próprias prá-
ticas, crenças e anseios é o objeto deste estudo. Primeiro, abordar-se-á o
sagrado, a partir das bases estabelecidas por Mircea Eliade, e alguns
16 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

aspectos definidores da espiritualidade medieval. Em seguida, após uma


breve exposição de Catarina como mística dominicana por excelência, pas-
saremos à exposição das suas práticas religiosas e experiências místicas.

A mística cristã medieval

O homem contemporâneo, de maneira geral, sente certo desconforto


em relação às manifestações do sagrado. Apenas com muito esforço, sua
mente materialista e pragmática consegue compreender o que representa
a hierofania – em especial a maior de todas, para os cristãos, a encarnação
de Deus – para o homo religiosus (ELIADE, 2011).
O homem ocidental contemporâneo olha para a sociedade medieval
com condescendência, tomando a sua religiosidade e as suas práticas como
sinais de profunda ingenuidade, quando não de tolice. É excruciante para
ele a ideia de que o sagrado possa, para o religioso, manifestar-se em um
pedaço de pão, por exemplo, porque ele olha para o pão e vê apenas pão,
enquanto o religioso considera que, embora a aparência não mude,
quando o sagrado se manifesta, aquilo torna-se outra coisa.
O pão e o vinho sagrados são adorados não pelo que são material-
mente, mas como hierofanias. Eles transmudaram-se para uma realidade
sobrenatural e passaram a revelar algo que já não é nem pão, nem vinho,
mas o sagrado sob aquelas espécies. Frequentemente o contemporâneo
olha para o medieval com lentes atuais e pressupostos inadequados, es-
quecendo-se que os fatos religiosos estão para além da apreensão
meramente histórico-cultural e que o fenômeno religioso tem caráter
trans-histórico (RIES, 2014). Para bem compreender a religiosidade me-
dieval, portanto, é necessário deixar que o próprio medieval explique a sua
experiência, pois o seu comportamento decorre inteiramente dela (RIES,
2014). Para ele, tudo possui valor e significado religioso ou espiritual. A
alimentação é valorizada, a vida sexual é ritualizada, o casamento é visto
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 17

como mais do que mera realidade natural, e tudo – a própria casa, a rotina
– é compreendido a partir de uma perspectiva que toma por base a trans-
cendência (ELIADE, 2011).
O sagrado, para ele, é a realidade por excelência, e ele deseja nunca
perdê-la de vista, mantendo-se, o máximo possível, perto de onde ele se
manifesta primordialmente, o templo, e dos objetos consagrados, dese-
jando santificar-se e viver num mundo santificado. A vida cotidiana é
valorizada no plano religioso e metafísico e é transfigurada, de forma que
até o gesto mais habitual pode significar um ato espiritual, e a vida mesma,
de muitas formas, é passível de ser santificada (ELIADE, 2011). Embora
muito do que Eliade descreve seja relativo a sociedades primitivas, as in-
formações supracitadas ajudam o ocidental contemporâneo a
compreender o pensamento cristão e a mística medieval, que se funda-
menta nesta necessidade que o religioso tem de santificar-se para entrar
em comunhão com Deus – tudo o mais se desenvolve a partir deste postu-
lado inicial (ADDISON, 1918).
O religioso considera haver no coração do homem uma inquietação1,
um abismo2, uma saudade profunda, um “desejo de Deus” intenso e ine-
xaurível, chamado pelos primeiros padres sírios de “sede da alma pelo
Deus vivo” (GEBHART, 1922). A partir deste ponto de vista, desde os pri-
mitivos, com seus rituais e sacrifícios, há uma busca do homem por algo
superior que o criou e com quem deve restabelecer o contato, por meio de
rituais religiosos e da observância de leis, de uma ética revelada por este
ser supremo a um pontífice, seja sacerdote ou profeta.

1 “Todavia, o homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te. Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor,
porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”. (AGOSTINHO,
1955, 1.1)
2 “O infinito abismo só pode ser preenchido por um objeto infinito e imutável, isto é, somente pelo próprio Deus”.
(PASCAL, 2001, VII, 425).
18 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Para o cristão medieval, isto decorre da comunhão perdida com a ex-


pulsão do Éden. Mas, se Adão e Eva fugiram e esconderam-se de Deus,
envergonhados, após a desobediência primeva, por estarem nus – algo que
só puderam notar porque, simbolicamente, perderam a visão vertical e
passaram a ter uma visão horizontal e rasteira –, sendo expulsos do para-
íso3, há esperança para a cristandade medieval com a Nova Criação,
inaugurada pela nova Eva4, Maria de Nazaré, e o novo Adão, Jesus Cristo.
Aquela, por sua obediência e submissão, e este, por sua encarnação e sa-
crifício, tornaram novamente possível a comunhão com Deus.
O místico cristão é a pessoa que consegue estabelecer, em vida, a
união pessoal com Deus, tornada possível pela Encarnação do Verbo. Adão
e Eva podem ser lidos, simbolicamente, como figuras5 dos místicos cristãos
(que não à toa frequentemente falam em nudez); todo o drama de Jó pode
ser resumido na luta do homem por encontrar e alcançar a Deus, e sua
vida é facilmente relacionada6 com o caminho místico. Da boca de Jó saem
palavras com as quais qualquer místico cristão concordaria: "Sim, hoje a
minha queixa é amarga, ainda que sua mão reprima meus suspiros. Oxalá
soubesse onde poderia encontrá-lo, para que eu pudesse chegar ao seu
trono!" (Jo 23, 2-3).

3 Gn 3, 23-24: "O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, para que ele cultivasse a terra “de onde havia tirado”.
E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados de uma espada flamejante, para guardar
o caminho da árvore da vida"
4 Maria de Nazaré é uma figura bastante cara aos medievais, que costumavam apontá-la como contrária a Eva: a
desobediência da primeira Eva ocasionou a queda; a obediência da nova Eva permitiu a Encarnação do Verbo; a
primeira Eva disse “não” a Deus, a nova Eva disse “sim” e concebeu do Espírito Santo; por meio da primeira Eva, o
pecado veio ao mundo; por meio da nova Eva, a redenção veio ao mundo. Se por meio da primeira Eva houve a
queda, pela intercessão da nova Eva Jesus iniciou seu ministério salvífico com o primeiro milagre (bodas de Caná)
etc. A nova Eva é amada triplamente por Deus: com amor de Criador, por Deus Pai; com amor de esposo, pelo
Espírito Santo; e com amor de Filho, por Jesus Cristo, sendo, por isso, considerada a maior e mais amada dentre as
criaturas. Se, com a expulsão do Éden, anjos foram colocados na porta para evitar a volta do casal caído e, em todo
o Antigo Testamento, os homens se prostram e não conseguem fitar os anjos, tamanho o seu esplendor; a nova Eva
é saudada alegremente pelo maior dos arcanjos e o fita com tranquilidade etc. A famosa Ladainha de Nossa Senhora
remonta ao século XIII.
5 Deus passeava no jardim à hora da brisa da tarde, em plena comunhão com os homens (Gn 3,8) [grifos nossos]
6 Jó se despoja de tudo e suporta o sofrimento pacientemente, perde bens, filhos e chega a ter o corpo coberto por
feridas – lembra o que ocorre com certa frequência na mística cristã.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 19

A peregrinação pelo deserto em busca da terra prometida, relatada


no Pentateuco; o livro dos Salmos, repleto de expressões que refletem a
via mística (não à toa, na Idade Média, era decorado e entoado pelos reli-
giosos), tais como:

Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por
vós, ó meu Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando
irei contemplar a face de Deus? Minhas lágrimas se converteram em ali-
mento dia e noite, enquanto me repetem sem cessar: “Teu Deus, onde está?”
[...] Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim?
Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu
Deus. Desfalece-me a alma dentro de mim; por isso, penso em vós do lon-
gínquo país do Jordão, perto do Hermon e do monte Misar. Uma vaga traz
outra no fragor das águas revoltas, todos os vagalhões de vossas torrentes
passaram sobre mim. Conceda-me o Senhor de dia a sua graça; e de noite eu
cantarei, louvarei ao Deus de minha vida. Sl 42, 2-4.6-9. (Destaques nossos)

Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro. Minha alma está se-
denta de vós, e minha carne por vós anseia como a terra árida e sequiosa,
sem água. Quero vos contemplar no santuário, para ver vosso poder e vossa
glória. Porque vossa graça me é mais preciosa do que a vida, meus lábios
entoarão vossos louvores. Assim vos bendirei em toda a minha vida, com
minhas mãos erguidas vosso nome adorarei. Minha alma saciada como de fino
manjar, com exultante alegria meus lábios vos louvarão. Quando, no leito, me
vem vossa lembrança, passo a noite toda pensando em vós. Porque vós sois o
meu apoio, exulto de alegria, à sombra de vossas asas. Minha alma está unida
a vós, sustenta-me a vossa destra. Sl 62, 2-9. (Destaques nossos)

Os livros dos profetas7, o Cântico dos Cânticos etc, todo o Antigo e o


Novo Testamentos estão permeados por expressões que remetem a uma

7 Por exemplo: "Buscai o Senhor, já que ele se deixa encontrar; invocai-o, já que está perto" Is 55,6.
20 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

busca8, uma espera9 do homem por Deus, com quem deseja estabelecer
uma relação pessoal. A mesma coisa é encontrada nos primeiros séculos
do Cristianismo e na Idade Média. "A teologia mística começa sustentando
que o homem se apartou de Deus e anseia por estar novamente unida a
ele" (GEBHART, 1922), este anseio, como dito, é o postulado da mística
cristã. O homem está incompleto, insatisfeito, e não se satisfará com nada
menos que Deus.
Mas, além da natural dificuldade, para o homem moderno, de com-
preender a cosmovisão medieval, no entendimento da mística medieval
sobrevém ainda o antigo problema da linguagem que, em certa medida,
foi responsável pelos clássicos embates entre teólogos especulativos e mís-
ticos; aqueles, buscando, a todo custo, enquadrar as ações divinas na razão
humana e em seus conceitos filosóficos e teológicos, e estes sem conseguir
expressar perfeitamente a experiência mística, utilizando termos inexatos,
inadequados, ou até mesmo, para os teólogos, exagerados, devido à limi-
tação da linguagem a qual os místicos sentem-se constrangidos a recorrer
por não haver outra opção, mesmo sabendo que fica muito aquém da ex-
periência inefável10 que tentam descrever (ROYO MARÍN, 1988).
Em certa ocasião, relata Raimundo de Cápua, Catarina afirmou: “Mas
aqui me falta a memória, e a pobreza da linguagem me impede de dar uma
descrição adequada destas coisas. Não obstante, lhe darei o que puder”
(CÁPUA, 1960, p. 76). Em outro momento, o confessor diz que Catarina de
Siena, durante uma de suas visões, repetiu em latim, por muito tempo,

8 Jo 14,8: Disse-lhe Filipe: "Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta".


9 João Batista, considerado o último profeta da Antiga Aliança, mandou perguntarem ao Cristo: “Sois vós aquele que
deve vir, ou devemos esperar por outro?” (Mt, 11,3).
10 Interessante destacar que o apóstolo Paulo, em II Cor, 2-4 – citação entendida por McGinn (2016, p. 242) como
"arquétipo de exaltação extática e exemplo da possibilidade de algum tipo de visão de Deus nesta vida” -, relata que
não é permitido repetir as palavras inefáveis ouvidas: “Conheço um homem em Cristo que há catorze anos foi
arrebatado até o terceiro céu. Se foi no corpo, não sei. Se fora do corpo, também não sei; Deus o sabe. E sei que esse
homem – se no corpo ou se fora do corpo, não sei; Deus o sabe – foi arrebatado ao paraíso e lá ouviu palavras
inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (Destaques nossos).
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 21

Vidi arcana Dei, vi os segredos de Deus. Muito tempo depois, quando vol-
tou a si, continuou repetindo as mesmas palavras. Por isso, quando
questionada acerca do motivo pelo qual repetia aquelas palavras sem ex-
plicá-las, como costumava fazer, respondeu:

Devo repreender-me pelo compromisso de expressar-lhe o que vi, como cul-


pada de proferir palavras vãs - parece-me que blasfemo contra Deus e o
desonro com minha fala. Tamanha é a distância entre o que meu espírito con-
templou, quando arrebatado por Deus, e tudo o que eu poderia expressar com
palavras que penso estar falseando ao falar-lhe dele. Não devo, portanto,
prestar-me a explicar para vós; tudo o que posso dizer é que vi coisas
inefáveis (CÁPUA, 1960, p. 115) [Destaques nossos]

Há, portanto, o caminho largo e seguido pela maioria e, mais adiante,


o “caminho da perfeição”, difícil de compreender e de ser explicado; es-
treito e difícil também de seguir, a princípio, mas que se vai tornando
suave e fácil aos que o escolhem por amor (ARINTERO, 1920).
O dominicano Tomás de Aquino diz, na Suma Teológica11 que, pela
graça santificante, que aperfeiçoa a criatura racional, o ser humano pode
fruir (potestatem fruendi divina persona) e gozar da pessoa divina (ut ipsa
persona divina fruendi). Por dom recebido do alto, a criatura racional
torna-se participante do Verbo divino e do Amor procedente, podendo co-
nhecer a Deus verdadeira e livremente e amá-lo retamente.
Deus confirma, em O Diálogo, esta afirmação, e deixa claro que deseja
unir-se às almas devotas: “Eu jamais cesso de fazê-los semelhantes a Mim,
contanto que não coloqueis obstáculos. O que em minha vida fiz, quero
renovar em vossas almas” (CÁPUA, 1960, p. 57). Em vários outros mo-
mentos, Ele descreve a união mística a Catarina:

11 ST I, q. 43, art. 3, resp.


22 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Estas almas lançadas no forno de minha caridade, sem que nada delas
reste fora de mim, ou seja, nenhum desejo seu, senão todos eles abrasa-
dos em mim, nada há que seja capaz de tomá-las e arrancá-las de mim e
minha graça, porque estão feitas uma só coisa comigo, e eu com elas. E
jamais delas me aparto por este sentimento de minha presença: seu espírito
me sente sempre consigo, enquanto que em outros, menos perfeitos, te disse
que ia e vinha, afastando-me deles quanto ao sentimento, embora não en-
quanto graça, e que isto fazia para levá-los à perfeição. (CATALINA DE SIENA,
1996, p. 193)

Catarina de Siena não apenas expôs, em seu livro (O Diálogo), a ex-


periência de união; ele mesmo, ditado por ela durante um êxtase, é fruto
da experiência mística da santa, e ela é um exemplo de mulher que, se-
gundo a explicação cristã, pela graça santificante, pôde passar por esta
experiência de união com Deus e fruir da Pessoa divina, como se verá no
terceiro ponto deste artigo.

Da cela para o mundo: Catarina de Siena, perfeita realização do carisma


dominicano

A Escola de Espiritualidade Dominicana, da qual Catarina fez parte,


como terciária, tem por lema contemplata aliis tradere, frase da Suma Te-
ológica12 que expressa o ideal da ordem de contemplar e levar ao próximo,
compartilhar, o fruto da contemplação.
Embora, para muitos, haja incompatibilidade entre a vida ativa e a
vida contemplativa, para os dominicanos, o apostolado não só não impede
a vida contemplativa, como deve advir de seu transbordamento. Royo Ma-
rín bem sintetiza o ideal da ordem: “O dominicano deve ser um monge
contemplativo que comunica aos demais, pelo apostolado da palavra e da
pluma, a verdade saboreada previamente no silêncio da contemplação”
(2019, p. 284).

12 ST II.IIae, q. 188, art. 6.


Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 23

A analfabeta, mas grandiosíssima escritora (LEONARDI, 2006), Ca-


tarina, em sua vida e em seus escritos – onde se nota claramente a doutrina
da Graça agostiniana e a assimilação de muito da filosofia tomista13 unidas
ao profundo conhecimento das Escrituras – estava em plena sintonia com
os ideais de sua ordem, unindo contemplação e ação.
Catarina de Siena passou a primeira parte de sua vida religiosa culti-
vando a vida interior. Foi só quando a desenvolveu plenamente e passou
pela experiência da “morte mística”, que começou, por ordem divina, a
influenciar o mundo político e eclesiástico, passando da contemplação à
ação, sem deixar de lado a vida interior, em busca da ordenação do mundo
exterior que, em sua época, estava em plena ebulição.
Pode-se dizer, portanto, que a mantellata14 Catarina de Siena é a per-
feita expressão do carisma da ordem de Domingos de Gusmão, Tomás de
Aquino, Alberto Magno, Mestre Eckhart, Johannes Tauler e Henrique Suso.
A vida de contemplação e ação se unem, tratando-se, sem sombra de dú-
vidas, de uma “mística missionária, uma mística do apostolado” (PETRY,
2006, p. 265).
Não obstante tenha viajado e pregado, em grande medida, sua atua-
ção pública esteve ligada à troca de cartas15 – escritas por seus secretários,
visto que foi por quase toda a vida analfabeta – com diversas pessoas, de
leigos e familiares a papas e reis (SIENA, 2016). Há sempre, em sua mís-
tica, um caráter profundamente intelectual e um aspecto marcadamente
filosófico e teológico (ROYO MARÍN, 2019).

13 Capítulos inteiros do Diálogo têm teor idêntico a questões da Suma Teológica;


14 Mantellate: mulheres piedosas da Ordem Terceira Dominicana que usavam hábito preto e capa branca e
dedicavam-se à caridade, normalmente eram viúvas e mulheres de idade;
15 “Suas cartas são ótima fonte para conhecer seu espírito de amante da vida espiritual e dos mais nobres valores
fundados na fé e na caridade de Cristo. Mostram Catarina como portadora de uma mensagem ligada a realidades
que lhe são infinitamente superiores” (CATARINA DE SIENA, 2016, p. 11)
24 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Catarina era uma grande pensadora e olhava o assunto principal sob diversos
pontos de vista. Tinha grande facilidade de palavras, férrea unidade e associ-
ação de ideias, ótima memória sobre afirmações feitas precedentemente
(INTRODUÇÃO, CATARINA DE SIENA, 2016, p. 18).

Nas Cartas, onde demonstra grande cultura e erudição, ela dá expli-


cações profundas, mas claras, sobre temas complexos da teologia católica
sem perder de vista a vida e a situação pessoal de seus destinatários. Sua
sabedoria, embora notadamente fruto de uma prolífica vida interior, em-
basada na filosofia e espiritualidade dominicanas, é também direcionada à
vida prática; Catarina dá conselhos aplicáveis à vida cotidiana, ilumi-
nando-a com uma visão mais profunda e sobrenatural (SESÉ, 1993).
Sua vida ativa, iniciada aos 24 anos, consistiu, resumidamente, na
atuação como embaixatriz na resolução da guerra entre Florença e a Santa
Sé; na promoção de uma cruzada contra o Islã, a fim de unir novamente
os cristãos em torno de um inimigo em comum; na defesa ardente de uma
reforma da Igreja que tivesse por base a santidade; na volta do Papa de
Avignon, onde estava há mais de sessenta anos, para Roma16, cidade esco-
lhida por Deus para ser o centro da cristandade; e na busca pela resolução
do Cisma do Ocidente, em que não obteve sucesso.
Comumente, os estudiosos focam na atuação política de Catarina,
mas o fato é que sua vida espiritual é tão interessante quanto, primeiro,
por ser o fundamento daquela e, segundo, pela diversidade e riqueza de
experiências místicas vividas e descritas pela santa e por seu confessor,
secretário e biógrafo, Raimundo de Cápua. Cumpre frisar que não fosse
por ele, dificilmente as obras de Catarina de Siena teriam sido escritas e
chegado até nós, e pouco saberíamos da sua vida; ela faz parte do extenso

16 Brígida da Suécia também agiu pelo mesmo propósito, mas não há registros de que tenha conhecido ou chegado
a se corresponder com Catarina.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 25

rol17 de mulheres que contaram com parceiros homens que creram na ve-
racidade das experiências místicas e ajudaram a registrar e divulgar as
suas mensagens.
Os escritos de Catarina são uma verdadeira joia não apenas quando
lidos em busca de informações históricas ou sociológicas, para uma melhor
leitura da sociedade italiana medieval, mas também – e principalmente –
por sua beleza e riqueza espiritual. Tanto o Epistolário como as Orações e
seu O Diálogo foram escritos em língua vernácula, não em latim; este úl-
timo, inclusive, “é uma das mais apreciadas joias da mística cristã de todos
os tempos” (ROYO MARÍN, 2019, p. 307), apontado, por muitos, como um
clássico da língua italiana sendo a contrapartida mística em prosa da Di-
vina Comédia.
Doutrinariamente, Catarina ecoa os grandes ensinamentos dos cris-
tãos de seu tempo, o que faz com que seja parte, portanto, de uma tradição;
mas, ao mesmo tempo, ela inova trazendo conceitos e reflexões próprias,
com ênfases bastante particulares, de tal forma que resta difícil definir a
espiritualidade catariniana apontando uma única característica. Quatro
elementos importantes permeiam os seus escritos: o conhecimento de si,
que, juntamente com o conhecimento de Deus, leva à santidade; o amor
ao próximo como forma de pôr em prática o amor a Deus, ou seja, o amor
a Deus no próximo; a caridade; e o sacrifício redentor de Jesus Cristo
(MCGINN, 2016).

17 Hildegarda de Bingen e Volmar de S. Disibodo; Elisabeth e Ekbert de Schönau; Christina de Markyate e Geoffrey
de St. Albans; Jacques de Vitry e Marie de Oignies; Lutgarda de Aywières e Thomas de Cantimpré; Matilde de
Magdeburgo e Enrique de Halle; Christine de Stommeln e Peter de Dracia; Elsbeth Stagel e Henrique Suso; Dorothea
de Montau e John Marienwerder; e Angela de Foligno e Irmão A. (NEWMAN, 1995) são alguns exemplos. Ademais,
Jerônimo e Paula, João da Cruz e Teresa d’Ávila, Francisco de Sales e Joana de Chantal e Vicente de Paula e Luisa de
Marillac (ROYO MARÍN, 1988) são exemplos de mútua influência sobrenatural.
26 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

A vida mística de Catarina: práticas religiosas e experiências


extraordinárias

Como dito, a vida interior de Catarina é bastante rica e comumente


relegada em nome da ênfase em sua atuação política. Parece-nos impor-
tante, então, após explicar um pouco da cosmovisão medieval e da vida
pública de Catarina, destacar algumas de suas principais práticas religio-
sas, devoções e, principalmente, experiências místicas, tais como: o
casamento místico, os estigmas, a troca de corações, a levitação, a morte
mística, a sobrevivência pela ingestão unicamente da eucaristia por anos
e, por fim, a experiência de carregar sobre os ombros o peso da Igreja.
Experiências místicas eram usuais na sua vida. Normalmente, du-
rante as experiências místicas, Catarina de Siena contraía as mãos e os pés
violentamente, de tal forma que era impossível arrancar os objetos que
tinha em mãos, no entanto, embora o comum seja a insensibilidade e imo-
bilidade, em alguns momentos, tal qual Madalena de Pazzi, durante o
êxtase, Catarina não tinha uma suspensão completa dos sentidos, de ma-
neira que, por vezes, podia falar do objeto de sua visão contemplativa e
ditar as revelações recebidas (TANQUEREY, 1948). Deus mesmo justifica:

Unidas todas estas potências e imersas no fogo do Meu amor, o corpo perde o
sentido de modo que, vendo, o olho não vê; a língua, mesmo falando, não
fala; a mão, apalpando, não toca; e os pés, se movendo, não caminham.
Algumas vezes, pelo transbordamento do coração, permito que a língua
se mova, pronunciando palavras para desafogar o coração e para glória e
louvor do Meu nome. (CATALINA DE SIENA, 1996, p. 194-195) [grifos nos-
sos]

A primeira visão de Catarina ocorreu quando ainda era criança. Aos


seis anos de Idade, em 1353, viu Cristo, Pedro, Paulo e João pairando acima
da igreja de São Domingos. Um ano depois, contrariando sua família, con-
sagrou sua virgindade a Jesus Cristo (MITCHELL, 2007), algo bastante
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 27

valorizado na Idade Média, que certamente fortaleceu a sua autoridade


para o exercício da posição de destaque que ocuparia anos mais tarde
(LACEY, 1999). Mesmo não sendo freira, como mantellata, desde muito
nova viveu num ambiente propício ao florescimento da vida mística, em
que as leituras em voz alta, as conversas, as imagens, os pensamentos e
afetos remetiam a Deus, sendo o êxtase quase que uma consequência na-
tural (ROYO MARÍN, 1988).
Desde cedo dedicou-se às penosas práticas ascéticas, fazendo jejuns –
buscando aniquilar em si quaisquer afetos pelas coisas do mundo e forta-
lecer o autodomínio, desenvolvendo a virtude da temperança –, dormindo
pouquíssimas horas por noite e passando bastante tempo adorando a Eu-
caristia, com uma intensa vida de oração. Aos 20 anos, Catarina de Siena,
após meses de experiências místicas, casou-se espiritualmente com Cristo.
Raimundo de Cápua descreve (1960, p. 57-58):

Um dia, ao aproximar-se o tempo sagrado da Quaresma (...) Catarina retirou-


se para sua cela para desfrutar seu esposo mais intimamente com jejum e ora-
ção; ela reiterou seu pedido com maior fervor, e Nosso Senhor respondeu:
“porque evitaste as vaidades do mundo e os prazeres proibidos, fixando so-
mente em mim todos os desejos do seu coração, pretendo, enquanto sua
família se regozija em festas e festivais profanos, celebrar o casamento para
unir-me à tua alma. Vou, de acordo com a minha promessa, desposar-te na
fé”

Em seguida a Virgem Maria apareceu, com João Evangelista, Paulo,


Domingos de Gusmão e Davi, com sua harpa, e oficiou a cerimônia, to-
mando a mão de Catarina e apresentando-a a Jesus, pedindo-lhe que se
casasse com ela. Jesus consentiu amorosamente e colocou no dedo de Ca-
tarina o anel de ouro incrustado com pedras preciosas. Em seguida, cessou
a visão, e o anel permaneceu no dedo de Catarina, mas invisível aos de-
mais, de forma que apenas ela o enxergava.
28 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Para os cristãos medievais, o casamento místico é uma experiência –


embora não essencial – por meio da qual a pessoa passa a ter uma partici-
pação mais íntima nos sofrimentos do Cristo. O embasamento para tal
vem da própria Bíblia. No Novo Testamento, por exemplo, Paulo, em
mais18 de uma ocasião19, estabelece o paralelo entre o matrimônio e a união
de Cristo com a Igreja.
Segundo Hugo de São Vítor, o matrimônio espiritual não é uma rea-
lidade menos verdadeira que o matrimônio terreno, antes, é este que não
passa de uma sombra, uma figura daquele, ou seja, falar em matrimônio
não é mera figura de linguagem ou recurso retórico dos místicos, ao con-
trário, a união mística é a experiência real, e o matrimônio que
conhecemos a figura; o matrimônio é o que é pela união entre Cristo e a
Igreja, de forma que “o que há na experiência humana de intimidade, fe-
cundidade, alegria e grandeza não passa de frieza, desamparo, tristeza e
desânimo em relação à união espiritual da alma transformada em Deus”
(ROYO MARÍN, 1988, p. 742).
Catarina tinha grande devoção pelo corpo, a Eucaristia, e pelo sangue
de Cristo – o centro da teologia mística dela, “nenhum teólogo deu ao san-
gue mais atenção que Catarina de Siena” (MCGINN, 2016, p. 208). Em
uma de suas experiências místicas, bebeu do sangue da lateral do corpo
dele. Segundo Raimundo de Cápua, a partir deste momento, seus êxtases
eram quase que contínuos e ela passou a viver como que em permanente
estado de contemplação, “com seu espírito de tal modo absorto que é como
se estivesse fora dos sentidos” (CÁPUA, 1960, p. 95), não mais conseguindo
ingerir alimento algum.

18 2Cor 11, 2: “"Eu vos consagro um carinho e amor santo, porque vos desposei com um esposo único e vos apresentei
a Cristo como virgem pura"
19 Ef 5, 25-27. 32: "Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-
la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem
ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível [...]"Esse mistério é grande, quero dizer,
com referência a Cristo e à Igreja."
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 29

A Eucaristia também figura frequentemente em seus textos e experi-


ências místicas. O que o crucifixo era para outros místicos, como Francisco
de Assis, a Eucaristia era para Catarina: o símbolo que fitava e estimulava
a sua atenção, provavelmente ajudando-a a ter visões (ADDISON, 1918).
Como Teresa de Jesus, Micaela do Santíssimo Sacramento e tantas outras,
Catarina de Siena teve uma fome e sede tão devoradoras, um desejo tão
ardente por ela, que não passava um único dia sem receber a Comunhão.
O biógrafo Raimundo de Cápua descreveu que, certa vez, “recebida a Co-
munhão, pareceu que sua alma entrava no Senhor, e o Senhor nela, como
o peixe entra na água e a água o envolve por completo” (CÁPUA, 1960, p.
207).
Tamanha era a sua devoção pela Eucaristia que, por oito anos, tempo
muito superior ao naturalmente suportado pelo corpo – que resiste por
algumas poucas semanas -, viveu em jejum absoluto, alimentando-se ex-
clusivamente dela, sem perder peso, sem ter a saúde fragilizada ou perder
a energia para as atividades cotidianas, antes, tendo ainda mais vitalidade
e sendo ainda mais ativa (ROYO MARÍN, 1988). Viver da ingestão apenas
da Comunhão por muitos anos não é peculiaridade de Catarina, antes, é
evento comum na vida de muitos estigmatizados, e normalmente vem
acompanhado da privação de sono (TANQUEREY, 1948, p. 788).
Nos escritos dela percebemos a sua grande devoção pelos sofrimentos
do Cristo Crucificado (GRAEF, 1970), pelo precioso sangue derramado em
sua Paixão e pela Eucaristia (KING, 2004).

O Senhor lhe guiava pessoalmente pelos caminhos da santidade aparecia a ela


com frequência, rezava com ela o Breviário, e alguma vez lhe deu Ele mesmo
a Sagrada Comunhão, assim como deu a ela de beber de seu próprio lado
aberto pela lança. Seus êxtases e arroubos eram quase contínuos (ROYO
MARÍN, 2019, pp. 305-306).
30 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

A mística de Catarina tem esta grande nota – comum aos místicos


católicos – de sofrimento, ela sofria com dores lancinantes20. Comumente
nos questionamos acerca da necessidade do sofrimento, para grande parte
dos místicos cristãos, no processo de união com Deus. Pode-se dizer que,
para o cristão tradicional, o sofrimento é compreendido como uma conse-
quência da mútua entrega e da transformação da alma em Deus
(TANQUEREY, 1948). Da mesma forma que os cônjuges precisam se adap-
tar à nova realidade, o místico cristão precisa se configurar ao esposo –
um Deus que sofre e quer ser consolado.
O místico cristão repete em seu coração as paradoxais palavras de
Paulo, para quem as marcas são sinais de triunfo, um troféu de vitória:

Ele me disse: “Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela


totalmente a minha força”. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fra-
quezas, para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria
nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no pro-
fundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sinto fraco,
então é que sou forte"(2Cor 12, 9-10) [destaques nossos].

Assim como Francisco de Assis21, tamanha foi a união com Cristo que
Catarina chegou a receber os estigmas, mas pediu – e foi atendida – que
ficassem invisíveis para os demais. A própria Catarina descreve o aconte-
cimento ao seu confessor e biógrafo:

Eu vi o Senhor crucificado descendo para mim em uma grande luz…. Então,


pelas marcas de Suas feridas mais sagradas, vi cinco raios vermelho-sangue

20 Na carta 373, de despedida ao Frei Raimundo de Cápua, ao descrever as fortes dores e agonias, ela revela uma
visão na qual o próprio Cristo a conforta: “Abraçou-me e disse palavras com muita ternura, mas não as direi”.
(CATERINA DA SIENA, 1939, p. 1239)
21 Francisco de Assis é considerado o primeiro estigmatizado da História do Cristianismo; quem não o considera,
normalmente vê nas declarações de Paulo (Gl 6, 17: carrego em meu corpo as marcas de Jesus; II Cor 12,7: foi-me
dado um espinho na carne; Gl 2,20: já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; Col 1, 24: Agora me alegro
nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo
que é a Igreja, etc) provas de que era estigmatizado.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 31

descendo sobre mim, os quais se dirigiam para as mãos, os pés e o coração do


meu corpo. Portanto, percebendo o mistério, exclamei imediatamente: “Ah!
Senhor, meu Deus, suplico-te, não deixes que as marcas apareçam externa-
mente no corpo”. [...] Sinto nestes cinco locais, especialmente em meu
coração, uma dor tão grande que, a menos que o Senhor faça um novo milagre,
não me parece possível viver neste estado, com tanta agonia. (CÁPUA, 1960 p.
123)

Os estigmas são o sinal por excelência da união do místico com o Cru-


cificado e da participação no seu martírio. Este fenômeno, que
normalmente vem acompanhado de fortes dores (TANQUEREY, 1948),
consiste no aparecimento, sem que sejam provocados, de estigmas ou cha-
gas, normalmente, nos mesmos locais e assemelhando-se às de Jesus.
Outra importante experiência mística de Catarina de Siena foi a troca
de corações com Cristo. Assim como Gertrudes de Helfta e Margarida Ma-
ria Alacoque, por exemplo, Catarina passou pelo fenômeno de extração de
seu coração e substituição pelo do próprio Cristo. Raimundo de Cápua as-
sim descreve:

O Senhor apareceu-lhe segurando em suas sagradas mãos certo coração hu-


mano vermelho e resplandecente (...) abrindo o seu peito esquerdo e
introduzindo o coração que segurava em suas mãos, disse: “eis aqui, caríssima
filha, assim como ontem te tirei o coração, te entrego agora o meu para que
vivas sempre por ele”. Dito isto, fechou e cicatrizou a ferida que havia aberto
em seu peito (...) e, como sinal do milagre, permaneceu naquele lugar a cica-
triz, como suas companheiras me asseguraram e a muitos outros tê-la visto
frequentemente; perguntando a ela mesma seriamente, não pôde negar, e
confessando ser verdade, confirmou (CÁPUA, 1960, p. 110-111)

Dentre as extraordinárias experiências de Catarina de Siena, encon-


tramos também a levitação, que normalmente ocorre durante o êxtase
místico, e consiste numa elevação não provocada do corpo no ar, sem
32 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

apoio ou causa aparente. São inúmeros os casos de levitação, como os de


Francisco de Assis, Felipe Nery, Teresa de Jesus e João da Cruz (ROYO
MARÍN, 1988). Num dos trechos mais bonitos de O Diálogo, Catarina atri-
bui a levitação à força da união mística:

Apesar de serem mortais, experimentam os bens imortais, e, suportando ainda


o peso do corpo, adquire a leveza do espírito. Por isso muitas vezes o corpo se
eleva da terra, pela perfeita união que a alma realizou comigo, como se o
corpo pesado se tornasse leve. Não é que se lhe tire o peso, mas porque a união
que a alma tem comigo é mais perfeita que a existente entre a alma e o
corpo, e por isso a força do espírito unido a mim levanta da terra o peso
do corpo, e este fica como que imóvel, todo desprendido pelo afeto da alma,
até o ponto que, como recordas ter ouvido de algumas pessoas, não seria pos-
sível viver se minha bondade não lhe cercasse com força. Compreenda que
maior milagre é ver que a alma não se separa do corpo nesta união do
que ver muitos corpos ressuscitados (CATALINA DE SIENA, 1996, p. 194)
[destaques nossos]

Em 1370, Catarina passou por um longo êxtase, conhecido como ex-


periência de morte mística. Segundo Raimundo de Cápua, foram três dias
e três noites sem sinais vitais: “Nossa virgem foi arrebatada em êxtase e
seu espírito subiu tão alto que, por três dias e três noites, ela não teve sinais
vitais” (CÁPUA, 1960, p. 68). Foi nesta ocasião que ela recebeu a ordem de
Deus para que deixasse a cela e começasse a influenciar diretamente a so-
ciedade, tendo em vista os tempos tão conturbados. Seguindo o mesmo
caminho de muitos contemplativos, Catarina, como dito no ponto anterior,
passou a atuar para ordenar as coisas exteriores, sem deixar de lado ou
comprometer sua vida contemplativa.
Após um breve período de paz com o papa tendo chegado a Roma, no
qual ocorreu a escrita de O Diálogo, irrompeu o Grande Cisma, provo-
cando imenso desgosto a Catarina, que empregou todas as suas forças na
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 33

sua resolução, mas sem sucesso. Ela ofertou a sua vida ao Esposo, ofere-
cendo-se para suportar o peso de todos os pecados do mundo, pela
unidade e reforma da Igreja.
Nos últimos três meses de vida, Catarina sentiu profunda agonia, su-
portando-a, paradoxalmente, com júbilo e contentamento. A nave de São
Pedro havia sido colocada sobre os seus ombros e a estava esmagando. Ela
escreve as últimas cartas, despede-se, confessa os seus pecados, pede a mi-
sericórdia divina, exclama “Sangue! Sangue!”, e entrega a sua alma a Deus
(ROYO MARÍN, 2019). Catarina, inteiramente unida a Cristo, faleceu em
um domingo, dia do Senhor, um mês após completar 33 anos, a idade com
que Ele morreu pelos pecadores.

Considerações finais

Neste breve estudo, buscamos inserir Catarina de Siena em sua


época, destacando a cosmovisão medieval e o pano de fundo teológico cris-
tão a partir do qual compreendemos no que ela cria, o que desejava e o
porquê de oferecer a própria vida como sacrifício, por meio de práticas
consideradas estranhas ou até doentias para a modernidade.
Primeiramente, expusemos brevemente, a partir dos conceitos de
homo religiosus e de hierofania, de Eliade, um pouco do pensamento da
pessoa religiosa. Em seguida, falamos especificamente do cristão medieval
e de aspectos de sua crença. A partir daí, inserimos Catarina de Siena, mu-
lher dominicana da Ordem Terceira, ou seja, leiga e solteira, como
exemplo por meio do qual é possível ilustrar melhor as práticas e os an-
seios do religioso cristão medieval.
Em Catarina encontramos uma mulher que encarna o ideal domini-
cano de atuação pública como desdobramento de uma rica e profunda vida
interior. Catarina desempenhou um papel decisivo na volta do papado de
Avignon para Roma e foi bastante influente na sociedade da época, tendo
34 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

trocado cartas com grandes personalidades e influenciado não apenas a


política eclesiástica, mas também a temporal, numa época em que facil-
mente ambas se confundiam.
Mas, para além do trabalho ativo, Catarina, como contemplativa se-
cular, conquistou o maior sucesso da perspectiva católica, e o que mais
desejava: a união mística com Jesus Cristo. Em sua vida, vemos o casa-
mento místico, os estigmas, a troca de corações, o profundo êxtase
conhecido por “morte mística”, a sobrevivência pela ingestão unicamente
da Eucaristia por oito anos, as sucessivas visitas de Jesus Cristo, a devoção
à Eucaristia e ao sangue de Cristo, o júbilo encontrado no sofrimento e o
oferecimento de si como holocausto e vítima de propiciação pelo bem da
Igreja.
Com sua vida e obras, a analfabeta Catarina, como Teresa de Jesus e
João da Cruz, por exemplo, esclarece, complementa e corrige os conceitos
definidos pelos grandes doutores, que empenharam as suas vidas ao es-
tudo da Filosofia e da Teologia, o que desconcertava – e ainda desconcerta
– sobremaneira as mentes mais racionalistas. Catarina é a mística medie-
val que, pela riqueza de experiências e profundidade de seus escritos, foi a
escolhida para ilustrar a relação entre o cristão medieval que de fato seguiu
o caminho proposto pela religião e o Sagrado.

Referências

ADDISON, Charles Morris. The Theory and Practice of Mysticism. New York: E. P. Dutton
Company, 1918.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1955.

AQUINAS, Thomas. Summa Theologiae. Prima Pars, 1-49. New York: Aquinas Institute,
2012.
Ana Rachel G. C. de Vasconcelos | 35

AQUINAS, Thomas. Summa Theologiae. Secunda Secundae, 92-189. New York. Aquinas
Institute, 2012.

ARINTERO, Juan Gonzalez. Cuestiones Místicas. Salamanca: Establecimiento Tipográfico


de Calatrava, 1920.

ARINTERO, Juan Gonzalez. Evolución Mística. Salamanca: Imprensa de Calatrava, 1908.

BÍBLIA SAGRADA AVE-MARIA. 9a. ed. São Paulo: Editora Ave- Maria, 2012.

CÁPUA, Raymond of. The Life of St. Catherine of Sienne. Dublin: James Duffy & Co. Ltda.
1960.

CATALINA DE SIENA. El Diálogo, Oraciones y Soliloquios. Madrid: Biblioteca de Autores


Cristianos, 1996.

CATARINA DE SIENA. Cartas Completas. São Paulo: Paulus, 2016.

CATERINA DA SIENA. Lettere. Firenze: Einaudi, 1939.

DAWSON, Christopher. The Vision of Piers Plowman, in Medieval Essays. Washington:


University of America Press, 2002.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

GEBHART, Emile. Mystics & Heretics in Italy at the end of the Middle Ages. London: George
& Unwin LTD, 1922.

GRAEF, Hilda. Historia de la Mistica. Barcelona: Herder, 1970.

LACEY, Antonia. Gendered Language and the Mystic Voice. Reading from Luce Irigaray to
Catherine of Siena. In: New Trends in Feminine Spirituality. Turnhout: Brepols,
1999, p. 329-342.
36 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

LEONARDI, Claudio (curatore). Testi Teologici e Spirituali da Riccardo di San Vittore a


Caterina da Siena. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2006.

MCGINN, Bernard. The Harvest of Mysticism in Medieval Germany. Vol. IV. New York:
Herder & Herder, 2005.

MCGINN, Bernard. The Varieties of Vernacular Mysticism (1350-1550). Vol. V. New York:
Herder & Herder, 2016.

MITCHELL, Linda. Family Life in the Middle Ages. London: Greenwood Press, 2007.

NEWMAN, Barbara. From Virile Woman to WomanChrist. Philadelphia: University of


Pennsylvannia Press, 1995.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

PETRY, Ray C. Late Medieval Mysticism. Louisville: Westminster John Knox Press, 2006.

RIES, Julien. O Sentido do Sagrado. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.

ROYO MARÍN, A. Grandes Mestres da vida espiritual. Campinas: Ecclesiae, 2019.

ROYO MARÍN, A. Teología de la Perfección Cristiana. Madrid: Biblioteca de Autores


Cristianos, 1988.

SESÉ, Javier. El Ideal Femenino en las Cartas de Santa Catalina de Siena. Anuario Filosófico,
Universidad de Navarra, 26, 1993, p. 635-651.

TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. Portugal: Editora


Apostolado da Imprensa, 1948.
2

“Cristo desceu e tomou conta de mim”:


a mística em Simone Weil

Luiza Benício Pereira


Maria Simone Marinho Nogueira

Considerações iniciais

O sagrado transcende os limites das normas religiosas institucionais


e se manifesta na interioridade de cada sujeito, consistindo em um ato ín-
timo, não categorizado pela linguagem. Esta, apesar de suas múltiplas
funcionalidades e riqueza, não encontra modos para defini-lo. Conforme
Rudolf Otto, as concepções teístas acerca de uma divindade tendem a con-
siderar indispensável a definição em torno das suas características,
direcionando-se aos campos da racionalidade e da individualidade na
constituição de uma concepção de Deus interligada às limitações humanas.
A racionalidade, de alguma forma, circunscreve o âmbito religioso, mas o
sagrado não pode ser pensado apenas partir dela, pois é “algo árreton [‘im-
pronunciável’], um neffabile [‘indizível’]” (OTTO, 2007, p. 37), porquanto
excede a categoria conceitual.
Neste direcionamento, destacamos, a mística, esta palavra plurívoca
(Cf. VELASCO, 1999), que apresenta diversas facetas pragmáticas, que
pode ser compreendida, de modo abrangente, a partir da colocação de No-
gueira (2019, p. 194), como um percurso que leva ao encontro do humano
com o divino. Acerca das suas especificidades (da mística) trataremos um
pouco mais adiante. No momento, cabe destacar que essa trajetória vivida
pelo sujeito com o sagrado é enxergada sem delimitações ou criações de
conceitos em si fechados, já que não é possível atribuir à mística uma
38 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

concepção estática e limitada, uma vez que ela é dinâmica e busca uma
experienciar do ilimitado.
A pensadora enfocada neste estudo é a filósofa francesa Simone Adol-
phine Weil1 – uma das mentes mais impactantes e inquietantes do século
XX –, que nasceu em Paris em 3 de fevereiro de 1909 e faleceu em 24 de
agosto do ano de 1943 no Reino Unido, “sem ter podido presenciar a der-
rocada do nazismo e a libertação da França do jugo da Alemanha hitlerista”
(PUENTE, 2020, p. 55). Em seu percurso de 34 anos, atuou não apenas no
campo das produções teóricas, mas também na filosofia, na docência,
como militante ativa dos movimentos sociais, na luta pelos mais pobres,
foi também “sindicalista, crítica do capitalismo (do colonialismo, do comu-
nismo, do marxismo, do totalitarismo, da revolução), anarquista,
operária” (NOGUEIRA, 2019, p. 204). A capacidade intelectual e a versati-
lidade são marcas constantes na vida e na escrita de Simone Weil, que
produziu obras acerca de diversas áreas do conhecimento: na teologia, ci-
ência, política, filosofia, literatura, sociologia, dentre outras, mantendo
aflorada até os últimos minutos de sua vida a ânsia por compreender a si
mesma e os acontecimentos que a cercavam, em sua totalidade.
Simone Weil preocupou-se com os mais pobres, com a classe traba-
lhadora, em uma visão que contemplava as categorias políticas e sociais,
refletindo sobre as causas que promoviam a miserabilidade do sujeito.
Eram essas as suas inquietações pessoais no desnudamento da caridade,
do amor, da partilha do sofrimento ou do querer sentir a angústia que
abarcava a tantos para, assim, sofrer na própria carne e entender na sua
vida as dimensões da alma humana e da realidade desumanizadora, bus-
cando sentir, simbolicamente, a cruz de Cristo, com todas as suas
contradições.

1 Nogueira (2019) destaca a existência da obra biográfica La vie de Simone Weil, datada de 1973, escrita por Simone
Pétrement, amiga da pensadora francesa.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 39

Nossa pensadora teve contato com a filosofia “antiga e moderna,


principalmente com Platão, Descartes e Kant, com a tradição literária e
[...] cristã, além de ser influenciada [...] por escritos da tradição hinduísta,
taoísta e certas tradições budistas” (MARIZ, 2016, p. 122). Assim sendo, o
trajeto da vida de Weil percorreu e absorveu diferentes tradições religio-
sas, mas sempre a conduziu aos braços do Cristo, e a sua “mística da cruz”
pode ser encontrada em todos os campos da sua breve e profunda existên-
cia, unindo temas que lhes eram caros, como, por exemplo, mística e
trabalho, chegando a falar de uma espiritualidade do trabalho no seu livro
A gravidade e a graça (1993), precisamente na sua última parte intitulada
Mística do trabalho.
Vemos, assim, que o período histórico, social, político e econômico
em que viveu fora marcado por guerras mundiais2, em uma época que
suscitou “intensos movimentos sindicais de luta por melhores condições
de trabalhos para os operários, [...] engajamento de intelectuais da época
para promover a formação educacional dos trabalhadores” (MARIZ, 2016,
p. 122). Dentro deste contexto, Weil elaborou ideias consistentes e críticas
contundentes a determinadas correntes teóricas. Leitora assídua de Marx,
escreveu em seus textos sua oposição à dimensão revolucionária, a partir
da experiência que adquiriu como operária nas fábricas e também conhe-
cendo o que se passava na então União Soviética depois da Revolução3.
Feitas estas breves considerações gerais, objetivamos apresentar
neste texto a mística weiliana, que não se fundamenta ou não deve ser
entendida unicamente através de uma via afetiva – característica frequen-
temente e erroneamente atribuída às mulheres místicas –, mas enquanto

2 Referimo-nos à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e à Segunda Guerra Mundial (1939-1945).


3 Como escreve Martins (2013, p. 55): “Simone Weil mantinha certo preço pelo marxismo, mas de forma crítica.
Aproximou-se do comunismo, mas tinha certeza de que o comunismo soviético de Stalin era tão opressor como
qualquer regime capitalista. Crítica Stalin por criar uma máquina burocrática e um Estado que não libertou os
trabalhadores, mas a opressão apenas trocou de mãos.”
40 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

união com o divino, e com o próximo, envolvendo, desta forma, suas per-
cepções, sua filosofia de vida, seus modos de enxergar o outro e os
problemas que o envolvem, sua reflexão do Cristianismo e de outras reli-
giões, assim como sua contemplação do Cristo. Para tanto, tomamos como
apoio a carta Autobiografia espiritual, e os ensaios O amor de Deus e o
infortúnio, que se encontram na obra Espera de Deus (2019)4.
Dessa forma, buscamos colocar em evidência um pouco do percurso
existencial de Simone Weil, dando destaque aos acontecimentos principais
de sua vida, visto ser esta bastante dinâmica e marcada por inúmeros fatos
importantes, inclusive, no que diz respeito ao seu percurso espiritual. Em
seguida, procuramos abordar a mística a partir dos aspectos conceituais e
terminológicos, com base no teólogo Juan Martins Velasco. Por último,
abordamos os textos da pensadora em tela, tendo como foco a sua mística.

Simone Adolphine Weil: professora, filósofa e mística francesa

Nesta seção, pretendemos apresentar outras informações do per-


curso de Simone Weil, não considerando suficiente as explicitadas
anteriormente em nossas considerações iniciais, por ter nossa pensadora
uma vida bastante efervescente e entrelaçada com a sua visão do Cristia-
nismo. Sabemos que Weil deixou uma extensa produção intelectual, o que
não nos permite fazer uso de toda sua obra. Todavia, mencionaremos de
uma forma geral alguns temas recorrentes nas produções da escritora
francesa.
Simone Weil pertenceu a uma família judia não praticante de classe
média alta. O pai, Bernard Weil, exercia a medicina, e a mãe, Selma Rei-
nherz, dedicava-se aos cuidados dos filhos e da casa. O irmão de Simone
Weil, André Weil (1906-1998), foi um matemático de prestígio do século

4 O título original é Attende de Dieu.


Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 41

XX. A relação dos irmãos foi regada de amizade e cumplicidade. Na infân-


cia, “estudaram em casa com diversos professores particulares e sob os
auspícios zelosos de sua mãe em função de mudanças constantes que tive-
ram de fazer devido aos sucessivos empregos do pai” (PUENTE, 2020, p.
55). Durante a fase adulta os laços de respeito e afeto não se desfizeram.
Como salienta Puente (2020), ao longo do tempo houve uma intensa troca
de correspondência entre os irmãos, marcada por profundas reflexões fi-
losóficas, científicas e matemáticas.
A origem socioeconômica elevada de Weil causava-lhe incômodo a
ponto de lamentar não ter nascido em uma família humilde. Ela trajava-
se de maneira desleixada, exibindo um visual excêntrico (CUGINI, 2010).
A personalidade irreverente e marcante a levou a ser chamada de “Marci-
ana”, por Alain – pseudônimo de Émile-Auguste Chartier5 –, que fora seu
professor e mestre no Liceu Henry IV, onde estudou ao longo dos anos de
1925 a 1928. O mestre Alain contribuiu com o aprofundamento das ideias
de Simone Weil durante a sua formação e a sua “influência no pensamento
weiliano se faz presente tanto no modo de leitura e intepretação dos textos
filosóficos, quanto na estreita relação empreendida por ele entre teoria e
prática” (MARIZ, 2016, p. 122), abarcando, inclusive, o olhar filosófico que
se estende e/ou se aplica aos fatores políticos e sociais.
Em 1931, Weil começa a lecionar em um liceu de Le Puy, destinado à
educação do público feminino. Neste mesmo ano, ela e Simone Prétement
fazem parte de “uma manifestação organizada por estudantes pacifistas
em honra de Aristide Briand, demonstração que degenera em confronto
com a polícia” (MARTINS, 2011, p. 161). A participação nas atividades de
protesto e reinvindicação dos direitos civis interessa muito à filósofa

5 Nasceu em 1868 e faleceu em 1951, na França. Além de professor de Filosofia, atuante nos liceus franceses, foi
jornalista e escritor. Os textos produzidos por Alain versam sobre diversos temas, da política à educação, publicados
no jornal francês La Dépêche de Rouen et de Normandie, e em outras fontes da época.
42 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

francesa, pois compreendia e defendia a importância da igualdade social,


pensamento presente em sua vida desde a infância.
Em 1934, divide-se entre a docência e o trabalho de operária – desejo
este que nutria desde 1924 –, entrando na fábrica Alsthom6, empresa do
ramo eletricista e mecânico, depois trabalhou na Carnaud e na Renault. A
experiência de sentir na pele a realidade opressora e desumana dos ope-
rários da época refletiu-se na filosofia weiliana e na maneira como
enxergou as relações de trabalho e as ideias revolucionárias provenientes
dos marxistas, passando a criticar de modo contundente os limites entre a
teoria da revolução incentivada e defendida nos postulados de Karl Marx
e Engels e a concretização desta na realidade massacrante que perdurava
nos anos 30. De acordo com Mariz (2016), Simone Weil colaborou com
uma nova concepção de trabalho cuja base respalda-se em uma visão de
vida e de mundo igualitária e espiritual no exercício da caridade cristã.
Publica em 1934, antes de trabalhar na fábrica, a obra Reflexões sobre
as causas da liberdade e da opressão social. Escreve em 1936, Diário de
fábrica, com as vivências adquiridas como operária. Em agosto de 1936,
resolve “se engajar na Guerra Civil Espanhola. Lutou ao lado dos republi-
canos na coluna comandada por Durruti, que dirigia a formação mais
importante das milícias da Central Sindical Anarquista” (PUENTE, 2020,
p. 56). A experiência que passou faz com que compreenda, de forma em-
pírica, a violência que afeta o ser humano, independente das suas raízes
ideológicas ou culturais. Os textos Reflexões sobre a barbárie e Ilíada ou o
poema da força destacam tais questões pensadas por Weil. Em 1940, co-
nhece o padre Joseph-Marie Perrin, que se torna seu grande amigo e com
quem refletiu acerca da religião cristã, expondo a sua perspectiva acerca
de Cristo e das normas instituídas pela igreja, dentre outros temas.

6 Simone Weil contou com a colaboração de Auguste Detoeuf, que a pedido de Boris Souvarine, oportunizou a sua
entrada na Alsthom em 04 de dezembro de 1934, permanecendo até o mês de abril do ano seguinte (MARTINS, 2011).
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 43

Conheceu por intermédio de Pe. Perrin o agricultor Gustave Thibon, e este


proporcionou a Simone Weil trabalhar nas vindimas, onde realizou um
trabalho duro e satisfatório7 (PUENTE, 2020).
Em maio de 1942, refugia-se com os pais em Nova Iorque, atemori-
zados pelas ações contra os judeus, entregando aos amigos, Gustave
Thibon e Pe. Perrin, os vários escritos que possuía. Ao primeiro, “deixou
vários Cadernos que registavam os seus pensamentos e reflexões” (LUZ,
2009, p.1532) e que resultaram na obra A Gravidade e a Graça, publicada
em 1947. Ao segundo, “confiou um conjunto de manuscritos de índole es-
piritual e de problematização de diversos temas ligados às contingências
mais dilacerantes da vida humana” (LUZ, 2009, p. 1532). A partir destes
textos, acrescentados de nove cartas, formou-se o livro Espera de Deus,
publicado em 1950 (LUZ, 2009).
A estadia de Simone Weil em Nova Iorque pode ser descrita como
apreensiva e contrária as suas vontades, uma vez que só realizou a viagem
para garantir a segurança dos pais, já que planejava voltar à França. La-
mentava “por não fazer nada e por não estar sofrendo junto com as
pessoas que lutavam contra a força hitleriana ou eram vítimas da guerra”
(MARTINS, 2011, p. 41). Diante da dificuldade da realização de viagens,
devido aos conflitos que estavam ocorrendo, pede ajuda ao amigo do
tempo de sua formação no liceu, Maurice Schumann, “que intercedeu
junto a Andre Philip, comissário do Interior e do Trabalho do comitê naci-
onal do France Libre” (MARTINS, 2011, p. 42), permitindo a partida de
Weil a Londres em novembro de 1942, onde colaborou com a resistência
francesa londrina, sendo direcionada a trabalhar nos trâmites do escritó-
rio, pois não tinha condições físicas, – devido à frágil saúde que

7 José Luiz Brandão Luz (2009) destaca, utilizando o registro de Gustave Thibon, que enquanto trabalhava como
operária, Weil não aceitou as confortáveis acomodações disponibilizadas pelo agricultor, preferindo “uma habitação
degradada que possuía numa propriedade de família” (LUZ, 2009, p. 1533).
44 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

apresentava – e também por ter tido o projeto enfermeiras de primeira


linha8 não aprovado por Charles de Gaulle (MARTINS, 2011).
Segundo Martins (2011), Weil escreveu em seus últimos meses de
vida a obra L’Enracinement, que apresenta uma reflexão acerca das mu-
danças nos sistemas políticos e sociais que poderiam ser adotadas em uma
França livre. Destarte, “este é o único texto sistemático escrito por ela, cer-
tamente um dos mais importantes” (MARTINS, 2011, p. 42). Em Londres,
não conseguiu ajudar aqueles que viviam as atrocidades da guerra, como
gostaria. Não sentiu os mesmos pesares daqueles que estavam imersos em
intenso calvário, não desceu a Gólgota, como tanto desejou. Diante da frus-
tação sentida, conforme aponta Maria Clara Bingemer (2011), Simone Weil
escreve a seguinte oração:

Pai, em nome de Cristo, concede-me: Que eu não possa corresponder a ne-


nhuma de minhas vontades com nenhum movimento do corpo, nem sequer
um esboço de movimento, como um paralítico completo. Que eu seja incapaz
de receber qualquer sensação, como alguém que fosse inteiramente cego,
surdo e privado dos três outros sentidos. Que eu fique fora do estado de enca-
dear pela menor ligação dois pensamentos, mesmo os mais simples, como um
desses idiotas completos que, além de não saber contar nem ler, não puderam
jamais aprender a falar. Pai em nome de Cristo, concede-me realmente tudo
isso... Que tudo isso seja arrancado de mim, devorado por Deus, transformado
em substância de Cristo, e dado de comer aos infelizes cujo corpo e alma care-
cem de toda espécie de alimento. E que eu seja um paralisado, cego, surdo,
idiota e lesado. Pai, porque és tu o Bem e eu sou o medíocre, arranca de mim
este corpo e esta alma para fazer deles coisas tuas, e deixa subsistir em mim,
eternamente, este desgarramento, ou então o nada. (WEIL, 1966, s.p, apud
BINGEMER, 2011, p. 171-172)

8 Em linha gerais, o projeto consistia no envio, por meio de paraquedas, de enfermeiras capacitadas ao campo de
combate para a prestação dos socorros necessários aos soldados feridos, a própria Weil preparou-se para tal tarefa
quando estava nos Estados Unidos (MARTINS, 2011). O projeto encontra-se nos Ecrits de Londres et dernières letres
e uma tradução para língua portuguesa pode ser encontrada no belo livro de Maria Clara Bingemer, Simone Weil. A
força e a fraqueza do amor, 2007, no Anexo III.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 45

A francesa em epígrafe é, sem dúvida, uma pensadora desafiante, a


sua vida fora marcada por fortes convicções filosóficas e místicas, interli-
gadas fortemente aos aspectos sociais. Do mesmo modo que não se
limitava a uma religião, também não se limitava a um único tipo de com-
portamento (mesmo com a saúde frágil que sempre a acompanhou). Pelo
contrário, a sua trajetória foi movida pela luta em busca de melhores con-
dições sociais para o outro que sofre, por uma reflexão profunda e ativa
dos contextos políticos, e por um olhar do cristianismo enriquecido e am-
pliado pela acolhida de outras tradições religiosas.
Encerramos esta parte, destacando que muitas são as informações
acerca da nossa filósofa que mereciam ser mencionadas, mas restringimo-
nos a estas, pelo espaço que aqui dispomos e por considerá-las suficientes
para uma primeira aproximação da mística weiliana, cuja contempl(ação)
alcança o próximo, os oprimidos, os marcados pela dor.

Mística: uma tentativa de compreensão

Apresentamos nesta parte as discussões que envolvem a mística, di-


ferenciando-a de outros tipos de vivências com Deus, as quais se
distanciam do que se compreende do que estamos entendendo por expe-
riência mística. Desse modo, caminhamos pela polissemia do termo e sua
etimologia; passamos pela categoria de adjetivo à de substantivo; e chega-
mos à conceituação do que foge a um determinado tipo de razão e a um
determinado conhecimento do divino. Acreditamos que tais reflexões po-
dem nos ajudar a melhor compreender, no sentindo de apreender, a
mística weiliana.
Conforme Velasco (1999), a palavra mística pode ser empregada em
diferentes conjunturas, entrando, obrigatoriamente, na dimensão da im-
precisão e das múltiplas significações. Isto constata-se, inclusive, nas
46 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

definições dicionarizadas, não alcançando, porém o rigor do seu signifi-


cado. Tal ambivalência, ou imprecisão, deve-se ao fato de que “o termo
ultrapassou o terreno religioso em que nasceu e começou a ser utilizado
para fazer referência a áreas limítrofes da experiência humana”
(VELASCO, 1999, p. 18, tradução nossa). Essa ambiguidade coloca a mís-
tica em um espaço nebuloso no que tange seu entendimento. Todavia,
tentaremos adentrar neste umbral de polissemias e aproximar-se do que
compreendemos por mística, caminho que nos levará a conhecer diferen-
tes contextos e suas interpretações.
Tendo esclarecido este ponto, vejamos o entendimento acerca da mís-
tica na perspectiva de Velasco (1999):

O termo «místico» é utilizado para designar esse mundo, essa «nebulosa», do


esotérico, do oculto, o maravilhoso, o paranormal, o parapsíquico de quem se
ocupa toda uma família de novos movimentos em que emerge o cansaço cul-
tural produzido por uma civilização unicamente técnico-científica incapaz de
responder às necessidades e aspirações muito profundamente enraizadas na
consciência humana. (VELASCO, 1999, p. 18, tradução nossa)

Os fenômenos que fogem dos mecanismos positivistas de compreen-


são e constatação experimental, o hermético, o que desafia, inquieta, o que
não é totalmente compreendido, nem poderia tornar-se, o que não se res-
tringe aos relatos tecnicistas, passam a ser denominados de místico. Isto
leva o termo para uma área semântica que em nada ajudar a entender o
seu real sentindo ou, ao menos, o sentido de uma cognitio Dei experimen-
talis. De toda forma, como visto no excerto acima, a mística também se
vincula ao que é impenetrável pela razão, ao que não é respondido de
forma simplista.
Segundo Velasco (1999), a mística é vista na religião como um enga-
jamento em função do “absoluto”, porém ainda não apresenta uma
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 47

exatidão no conceito. Isso ocorre em função da sua capacidade de nomear


diferentes fenômenos e das múltiplas perspectivas existentes entre os filó-
sofos, teólogos, historiadores, os quais se debruçam em sua
heterogeneidade. Nesse seguimento, como destaca Bernard Mcginn
(2012), a mística deve ser entendida como um componente que faz parte
das correntes religiosas e não como uma nova religião, ou seja, o elemento
místico encontra-se inserido nesse contexto religioso de contínua modifi-
cação.
O termo mística deriva do grego mystikòs, pertencendo ao grupo do
radical myo, que se refere ao desconhecido, ao incógnito, ao não revelado,
“[...] a ação de fechamento aplicada à boca e aos olhos, e que tem em co-
mum o referir-se a realidades secretas, ocultas, ou seja, misteriosas”
(VELASCO, 1999, p.19-20, tradução nossa). Não há recorrência do termo
no Novo Testamento ou entre os Padres Apostólicos, surgindo nos discur-
sos do cristianismo no século III, na construção de três significados
principais que estão presentes até os dias atuais. O primeiro consiste na
simbologia das religiões cuja presença contribui com as Escrituras Sagra-
das, atribuindo-lhe uma significação espiritual, que ultrapassa a dimensão
da literalidade, acepção empregada principalmente pelos padres Clemente
e Orígenes. O segundo relaciona-se com as cerimonias comuns do cristia-
nismo e os seus desdobramentos de celebração. No terceiro sentido, a
mística relaciona-se à espiritualidade, à teologia, aos fatos inenarráveis,
consiste, pois, em uma percepção particular. A mística nos três conceitos
ultrapassa os limites da religião, mesmo que, como salientado anterior-
mente, encontre-se ou seja percebida a partir dela (VELASCO, 1999).
Conforme apontado por Velasco (1999), a mística adquiriu estatuto
de substantivo nas décadas finais do século XVII. Assim, ocorreu
48 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

a utilização de «místicos» para designar as pessoas que vivem uma experiên-


cia especial ou têm essa forma peculiar de conhecimento de Deus conhecido
como conhecimento místico. A utilização do termo como substantivo é o sinal
do «estabelecimento de um âmbito específico». «Um espaço delimita, a partir
deste momento, um modo de experiência, um tipo de discurso, uma região do
conhecimento». (VELASCO, 1999, p. 21, grifos do autor, tradução nossa)9

O ato íntimo com Deus passou a ser denominado de saber místico.


Com este reconhecimento e com o uso da palavra “mística” pertencendo à
classe de palavras do substantivo, constituiu-se uma área de estudo e de
manifestações delimitadas, realizadas nas esferas dos discursos e nas for-
mas de contato com o divino. Como destaca Eduardo Losso, “a literatura
mística deu voz a relatos pessoais de relação com o divino, bem como a
reflexões, especulativas ou poéticas, sobre essa relação [...]” (LOSSO, 2016,
p. 12). Com este despontar de produções, a mística começou a ganhar des-
taque, os discursos dos sujeitos e suas experiências com o sagrado foram
evidenciadas ou recuperadas.
Em conformidade com Losso (2016), após o termo mística ser enqua-
drado como substantivo e atingir todo um conjunto de significado, nos
séculos XIX e XX, os olhares investigativos se expandiram, surgindo diver-
sas pesquisas acerca deste fenômeno. Com isto, vários filósofos foram
cobrados a emitir suas opiniões sobre a mística, nomes como, Henri Berg-
son, Theodor Adorno, Bertrand Russell, Martin Heidegger, Jean-Paul
Sartre, manifestaram suas impressões. Com o campo de debate mais pro-
fícuo, a mística continuou a ser o foco das discussões, alargando as
fronteiras dos saberes e transgredindo as epistemologias. Acerca disto,
cabe considerar que:

9 Para Certeau (2015), também, o surgimento do substantivo mística ocorre no século XVII, como podemos ler num
livro de referência para quem estuda a mística; A fábula mística. Séculos XVI e XVII.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 49

O estudo da mística abre novos horizontes para uma série de problemas, com-
plexifica falsas soluções teóricas e introduz nelas questões pouco ou nada
levadas em consideração, na Antiguidade, na Idade Média ou na Modernidade,
na filosofia, na teologia ou na literatura. As relações entre o racional e o irra-
cional, dogma e heresia, tradição e inovação, conservadorismo e modernismo,
metafísica e desconstrução ficam muito mais ricas e sutis quando o objeto em
questão está dentro do universo da mística. Ela desafia religiosos e ateus, es-
tetas e políticos, direita e esquerda, cristãos e outras religiões, e os obriga a
considerar o seu oposto, perceber os limites de sua posição e saber dialogar
sem preconceitos. (LOSSO, 2016, p. 21)

Neste sentido, a mística desafia o pensamento tradicional, abrindo


perspectivas investigativas não levadas em consideração por outras áreas
do conhecimento, em um movimento de exposição de objetos de estudos
antes não explorados e que ganham espaços dentro da mística. Ademais,
ela pode ser considerada provocadora, uma vez que coloca diante de dife-
rentes sujeitos concepções contrárias que convivem sob um mesmo olhar
e que projetam uma abertura para se pensar a relação humano-divino in-
dependente de convicções pessoais e sociais ou, pelo menos, diminuindo a
distância, quiçá, como pensa Simone Weil, habitando a contradição.
Nessa perspectiva, entende-se a mística, ainda que em termos gerais,
como as “experiências interiores, imediatas, fruitivas, que têm lugar em
um nível de consciência que excede o que rege a experiência ordinária e
objetiva” (VELASCO, 1999, p. 23, tradução nossa). É importante destacar
que não se deseja mensurar a mística em uma explicação limitada e posi-
tivista – isto é, empírica, em uma vivência que pode ser comprovada
racionalmente ou por métodos –, pois a ideia do não desvendável acom-
panha as religiões, sempre marcadas por buscas, encontros e desencontros
no que tange o Deus próprio de cada uma. Assim sendo, não é de se estra-
nhar que o percurso que leva ao divino seja visto como algo fugidio, que
não se pode capturar por palavras, por ações, mas que expressa sua
50 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

presença em mulheres e homens que se disponibilizam a abrir no mais


recôndito de seus seres um espaço para Deus.

Simone Weil e a mística

Simone Weil demonstrou interesse por diversos pensamentos religi-


osos, como já afirmamos, teceu críticas à igreja católica, mas o seu
percurso espiritual passa, necessariamente pelo cristianismo. Na sua Au-
tobiografia espiritual, uma carta escrita ao padre e amigo Joseph-Marie
Perrin, em meados de 15 de maio de 1942, Simone Weil oferece um verda-
deiro testemunho de fé cristã, presente em suas atitudes e pensamentos, e
manifestas independente da sua inserção oficial na igreja católica. A pen-
sadora explica ao Pe. Perrin os motivos pelos quais não deseja o batismo
da igreja10. Mesmo respeitando e admirando as celebrações católicas, acre-
ditava ser da vontade de Deus que permanecesse distante do corpo da
instituição.
No início da carta fala sobre a inspiração cristã ocorrida sem inter-
mediações, não sendo o padre ou qualquer outra pessoa quem a
direcionou à fé cristã, porque “isso não estava mais por fazer” (WEIL,
2019, p. 29). Simone Weil fala do arrebatamento que sofreu por meio de
Cristo, ocorrido em dois momentos: o primeiro, implícito, uma vez que
desde sempre teve comportamentos e pensamentos baseados no Evange-
lho. O segundo, consciente, a partir do encontro que tem com o próprio
Cristo, o qual se circunscreve em três períodos principais que marcam a
vida espiritual da filósofa. A comunhão com Deus, na perspectiva weiliana,
não deve ter interferência humana, pois poderia causar “a possibilidade do
erro” (WEIL, 2019, p. 206), o encontro verdadeiro é, portanto, ocasionado

10 Duas outras cartas que se encontram no mesmo livro onde está sua Autobiografia espiritual abordam também o
tema da sua não aceitação em ser batizada. Em relação à crítica que faz à igreja católica, pode-se ler Carta a um
religioso, 2016.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 51

pelo contato de Deus, que desce até o homem11. A pensadora revela que
nunca procurou Deus, tinha diante da vida uma posição agnóstica, consi-
derando este ato de “buscar” incorreto, que não lhe agradava,
evidenciando, naquela afirmação, que o divino veio até ela. Vejamos, en-
tão, aqueles três momentos que marcam a mística weiliana.
Assim, terminado o ano árduo de trabalho como operária – este que
levou Simone Weil a sentir a alma e o corpo estilhaçado pelo infortúnio do
outro, da dor, da miséria, cuja presença ceifou a sua juventude, cravando-
se no seu espírito e na sua carne – viaja em setembro de 1935, juntamente
com os pais, a Portugal, na esperança de se recuperar “deste aprendizado
por demais pesado para alguém de saúde tão frágil como era o seu caso”
(NOGUEIRA, 2019, p. 205). Afastando-se dos pais, fora a um vilarejo por-
tuguês, “estando de espírito e em estado físico miserável” (WEIL, 2019, p.
33) segundo nos relata. Ela conta que entrou sozinha no vilarejo onde
ocorria a festa do padroeiro e as mulheres dos pescadores contornavam os
barcos em cortejo e cantavam “cânticos certamente muito antigos, de uma
tristeza de cortar o coração” (WEIL, 2019, p. 34). O som entoado era tão
dilacerante, que nunca havia escutado algo desta natureza, relatando a di-
ficuldade na descrição ou explicação acerca do que tinha experienciado, e
frisa: “Lá eu tive de repente a certeza de que o cristianismo é por excelência
a religião dos escravos, que os escravos não podem deixar de aderir ao
cristianismo, e eu entre os outros” (WEIL, 2019, p. 35). Marcada pelo so-
frimento, pela dor, Simone Weil tem a sua experiência íntima com Cristo,
a partir deste momento ela entende que o seu lugar é no cristianismo,
neste sempre esteve e deveria permanecer unida aos infortunados.
Em 1937 houve o segundo encontro com o divino, em Assis, Itália, ao
visitar a capela romana de Santa Maria degli Angeli “incomparável

11 Michel de Certeau (2015, p. 249), acentua que “a mística é o anti babel”, remontando o mito da torre, de modo
inverso, o homem não sobe a Deus pelas paredes erguidas, é Deus que realiza a descida, vindo ao seu encontro.
52 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

maravilha de pureza” (WEIL, 2019, p.35), do século XII, frequentada por


São Francisco de Assis. Ao entrar na capela, Weil relata: “algo mais forte
do que eu me obrigou, pela primeira vez na minha vida, a me colocar de
joelhos” (WEIL, 2019, p. 35). A terceira experiência mística ocorre em 1938
em Solesmes durante as festividades do Domingo de Ramos. Nesta época,
as dores de cabeça sofridas por Weil estavam terrivelmente fortes e pare-
ciam contínuos golpes. Todavia, ela alcança através da beleza da palavra
poética a atenuação das suas dores, entendendo por analogia “a possibili-
dade de amar o amor divino através do infortúnio” (WEIL, 2019, p. 35).
Neste momento da sua trajetória espiritual, como ela relata, a paixão de
Cristo penetra profundamente no seu íntimo.
Escreve a pensadora parisiense que naquela época conheceu, em So-
lesmes, na França, um jovem inglês católico, “um verdadeiro mensageiro”
(WEIL, 2019, p. 35), que lhe apresenta poetas do século XVII, os metafísi-
cos, bem como o poema Love, do escritor George Herbert, que ela decorou
e passou a recitar atenciosamente durante as atormentadoras dores de ca-
beça. Acentua: “Eu acreditava que o recitava apenas como um belo poema,
mas, à minha revelia, essa recitação teve a virtude de uma oração” (WEIL,
2019, p. 36). Simone Weil registra que não imaginava “a possibilidade de
um contato real, de pessoa a pessoa, aqui embaixo entre um ser humano
e Deus” (WEIL, 2019, p. 36), mas, por meio do sofrimento, alcança a graça
de Cristo descer em seu socorro.
O sofrimento aparece de modo recorrente nas ideias weilianas, não
apenas no plano das elucidações filosóficas, mas nas vivências que ela se
dispôs a experimentar, sentindo na própria carne a realidade massacrante
dos operários, dos soldados, dos pobres, dos miseráveis, compadecendo-
se de suas condições a ponto de negar se alimentar adequadamente no
intuito de compartilhar da mesma dor daqueles que passavam fome. Nesta
doação de si ao outro a mística weiliana também se realiza, como podemos
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 53

perceber, ao darmos um pouco de atenção ao texto O amor de Deus e o


infortúnio.
Neste texto, que também se encontra no livro Espera de Deus, Simone
Weil fala do malheur, que é diferente do sofrimento que, para ela, afeta
somente o corpo: “Ele [malheur] toma conta da alma e a fere, até seu
âmago, como uma marca que só pertence a ele, a marca da escravidão”
(WEIL, 2019, p. 82). A escravidão da Roma antiga é um exemplo do que se
trata o malheur, pois além da limitação e aprisionamento do corpo, da li-
berdade, da autonomia e da identidade, o ser humano acaba tornando-se
objeto modelável de acordo com a vontade de seus senhores, que utiliza-
vam como mecanismo de subjugação o quebrantamento da alma12.
O malheur consiste em “um desenraizamento da vida, um equiva-
lente mais ou menos atenuado da morte, que se tornou irresistivelmente
presente à alma pela espera ou a apreensão imediata da dor física” (WEIL,
2019, p. 83). Esta aproximação da morte, refere-se à ausência da metade
da alma, ao desconsolo existencial e as fissuras que se abrem no espírito,
chegando a um estado extremo de violência, “como o de um condenado
obrigado a olhar durante horas a guilhotina que vai lhe cortar o pescoço”
(WEIL, 2019, p. 83). A pensadora destaca que apenas Cristo pode olhar por
meio dos olhos dos desafortunados e ajudar através do seu amor a aceitar
o infortúnio, a abandonar o estado de desespero e amargura para compre-
ender que é possível ser alcançado pela compaixão e graça de Deus.
A degradação social, além de sentida de modo particular na própria
vida, pode ser “compreendida por meio do ver o outro que sofre nessa
situação” (MARTINS, 2011, p. 117). A nossa filósofa é um exemplo disto,
fora tocada pelo infortúnio do próximo, “depois ela foi afetada pelo seu
próprio malheur ao ir, movida pela paixão e solidariedade, viver com esses

12 “Os antigos que conheciam bem a questão diziam: ‘um homem perde a metade da sua alma no dia em que se
torna escravo’” (WEIL, 2019, p. 82).
54 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

desventurados para ter a mesma experiência” (MARTINS, 2011, p. 117).


Desse modo, o malheur causa um esvaziamento profundo na vida do su-
jeito, afetando as dimensões subjetivas e as categorias externas:

Só há realmente infortúnio se o acontecimento que tomou conta de uma vida


e a desenraizou atingir diretamente ou indiretamente todas as suas partes:
sociais, psicológicas, físicas. O fator social é essencial. Não há realmente infor-
túnio onde não houver, sob uma forma qualquer, decadência social ou
apreensão de tal decadência. Entre o infortúnio e todos os males que, mesmo
sendo muito violentos, muito profundos, muito duráveis, são uma coisa dife-
rente do infortúnio propriamente dito, há, ao mesmo tempo, continuidade e
separação feita por um portal, como para a temperatura de ebulição da água.
Há um limite além do qual se encontra o infortúnio, mas não deste lado de cá.
Esse limite não é puramente objetivo; todos os tipos de fatores pessoais en-
tram nessa conta. O mesmo acontecimento pode precipitar um ser humano
no infortúnio, mas não um outro. (WEIL, 2019, p. 83-84)

O infortúnio não atinge apenas uma área da vida, mas todas elas, em
um movimento de padecimento físico, espiritual, psicológico, em que o su-
jeito se vê extenuado diante de tal circunstância, aproxima-se da morte
“capaz de transformar o homem em pedra ou coisa” (NOGUEIRA, 2020,
p. 153). Os marcados pelo malheur não têm condições de socorrer o outro,
bem como não anseiam ser ajudados, “assim a compaixão para com os
infelizes é uma impossibilidade” (WEIL, 2019, p. 85). Apenas a graça e a
compaixão de Deus alcançam os infortunados, fenômeno considerado
mais espantoso que o milagre do próprio Cristo ao andar nas águas do
mar da Galileia, ao restaurar a saúde dos enfermos e ao ressuscitar Lá-
zaro13.

13 Pode-se verificar as passagens mencionadas por Simone Weil na bíblia cristã nos seguintes evangelhos: Mateus
14: 22-33 (Jesus anda sobre as águas); Marcos 5: 24-34 (cura da mulher que sofria com fluxo de sangue); João 5: 1-
10 (cura do enfermo de Betesda); João 9: 1-12 (cura de um cego de nascença); João 11: 38-44 (ressureição de Lázaro).
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 55

O infortúnio (malheur) desola tão fortemente a alma que fez Cristo


“suplicar para ser poupado, a procurar consolo junto aos homens, a se
acreditar abandonado pelo pai” (WEIL, 2019, p. 85); e Jó, um justo na fé,
“gritar contra Deus” (WEIL, 2019, p. 85), não um brado de blasfêmia, mas
desenraizado pela dor. Weil continua dizendo que o malheur torna o ser
humano vazio de amor para com o próximo e por si “uma espécie de hor-
ror submerge toda a alma” (WEIL, 2019, p. 85), fazendo com que Deus se
distancie, “mais [...] do que um morto, mais ausente do que a luz em uma
masmorra completamente tenebrosa” (WEIL, 2019, p. 85). Para que Deus
se revele, a alma deve preservar a capacidade de amar no vazio, no espaço
despovoado e manter acessa a sua chama mesmo com a limitada partícula
de luz que lhe sobrara.
Os que experimentam o malheur não podem ser curados, apenas
manter-se no amor para evitar circunstâncias comparadas ao inferno, pois
ela afirma que “A própria graça de Deus não cura aqui embaixo a natureza
irremediavelmente ferida” (WEIL, 2019, p. 88). Contudo, Weil destaca que
o corpo de Jesus, repleto de chagas, carregou consigo, desde o tempo de
outrora, os infortúnios de cada um de nós.
A palavra de Deus, portanto, serve como unguento para a alma mar-
cada pelo malheur, que persiste no amor. Weil destaca: “os homens
atingidos pelo infortúnio estão aos pés da cruz, quase na maior distância
possível de Deus” (WEIL, 2019, p. 89). É importante destacar que no “ma-
lheur não há Deus presente, Ele se distanciou, se ausentou” (MARTINS,
2011, p. 123). O indivíduo sente o vazio e o silêncio. No entanto, posto aos
pés da cruz, conserva o amor e a esperança de que Deus rompa o afasta-
mento e desça ao seu encontro.
Podemos compartilhar do desespero de Cristo e sentir a ausência de
Deus no infortúnio, sendo esta “a única possibilidade de perfeição” (WEIL,
2019, p. 91), conforme a pensadora francesa. Essa ausência de Deus
56 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

propicia um encontro com ele, que desce e concede a graça aos que man-
tém acesa a capacidade de amar. A cruz de Cristo representa então a nossa
esperança e, no limite entre o humano e o divino, habitamos a contradição
entre o infortúnio e a esperança, entre a presença e a ausência, entre o
próximo e o distante.
Weil frisa: “o infortúnio é uma maravilha da técnica Divina” (WEIL,
2019, p. 99), através dele torna-se possível uma alma finita conhecer a
“força cega, bruta e fria” (WEIL, 2019, p. 99) e diminuir a distância infinita
entre Deus e o ser humano. A criatura recebe o amor do criador por meio
da graça, a qual permeia o âmago da alma transpassada pelo prego, im-
plantado “no centro do universo” (WEIL, 2019, p. 99), que não pode ser
dimensionado em posição, localizado no espaço ou circunscrito no tempo,
pois este centro é o próprio Deus.

Considerações finais

A filósofa francesa Simone Weil é uma pensadora que desafia o modo


de percepção acerca dos “objetos” espirituais, filosóficos e sociais. As suas
ideias amplificam o pensar, e desafiam a própria vivência. Uma mulher
do século XX, marcada pela compaixão para com o próximo, pelo engaja-
mento social e pelas ideias complexas. Cabe salientar que as palavras aqui
registradas não descrevem – nem poderiam – a nossa pensadora em suas
múltiplas facetas. Apenas tentamos, ao longo da nossa exposição, apresen-
tar um pouco da riqueza da sua mística e do seu pensamento como um
todo.
Como discutido, baseado em Velasco (1999), entender a mística é um
desafio, por causa, principalmente, de sua polissemia, ambiguidade e dos
variados conceitos utilizados por diferentes estudiosos, de diferentes áreas
do saber que, por um lado, fortalecem a sua característica imprecisa; e,
por outro, a importância que vem ganhando nas últimas décadas. A
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 57

mística esteve presente em diferentes períodos e foi empregada como


substantivo apenas a partir século XVII, época em que se começou a pensá-
la como a experiência da presença do sagrado e que se reconheceu a exis-
tência da figura dos místicos e das místicas e suas possíveis escolas,
alargando-se as fronteiras das investigações teóricas e críticas a respeito
deste fenômeno.
Já o que diz respeito a Simone Weil, procuramos mostrar que o seu
percurso místico foi marcado, de alguma forma, pelo malheur. Esta nossa
afirmação parte do conhecimento de que após a difícil experiência nas fá-
bricas, onde trabalhou com a finalidade de viver a realidade operária e
experimentou o infortúnio de modo que a sua alma e seu corpo ficaram
devastados, o próprio Cristo desceu e veio ao encontro dela, tomando-a
em seus braços. Do mesmo modo, ao visitar a aldeia portuguesa e ouvir os
tristes cantos entoados pelas mulheres dos pescadores, Weil entendeu que
o cristianismo é a religião dos sofredores, dos escravos e que ela não po-
deria deixar de segui-lo, já que se sentia, ela própria, uma desafortunada.
Ainda, Na capela romana de Santa Maria degli Angeli sente a forte e im-
pactante presença de Deus e se prosta diante dela. Por fim, ao conhecer o
poema Love, recitado como uma oração durante suas dores de cabeça,
Cristo vem até ela e oferece a sua graça, o seu cuidado.
Deste modo, a mística de Simone Weil, mesmo bebendo da fonte de
diversas tradições religiosas, pode ser compreendida como uma mística
fortemente marcada pela presença de Jesus Cristo e da sua mensagem.
Para ela, Cristo e seu exemplo de vida não pode estar circunscrito aos li-
mites de uma determinada instituição religiosa, mas transcende às
normas, aos dogmas, e concretiza-se na compaixão para com os que so-
frem, no padecimento do outro. Portanto, a mística weiliana não se
manifesta apenas na experiência pessoal com o divino, mas se estende ao
58 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

outro em um exercício pleno de atenção, constituindo-se numa verdadeira


mística do amor.

Referências

BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada: contendo velho e novo testamento. Tradução de João
Ferreira de Almeida. São Paulo: Casa publicadora paulista, 2012.

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Simone Weil. A força e a fraqueza do amor. Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Mística e profecia feminina: notas para ler algumas
místicas contemporâneas. Rhema, v. 15, n. 48/49/50, p. 149-180, jan./dez, 2011.
Edição Unificada.

CERTEAU, Michel. A fábula mística. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forence
Universitária, 2015.

CUGINI, Paolo. Para uma espiritualidade encarnada: a mística do amor em Simone Weil.
Dialagesthai, v. 5, p. 1-19, 2010.

LOSSO, Eduardo Guerreiro. Prefácio. In: BINGEMER, Maria Clara; PINHEIRO, Marcus
Reis. (Org.). Narrativas místicas: antologia de textos místicos da história do
cristianismo. São Paulo: Paulus, 2016, p. 09-24. Coleção Amantes do mistério.

LUZ, José Luís Brandão. Simone Weil e a grandeza da infelicidade humana. Razão e
Liberdade. Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira. CFUL, Lisboa, p. 1531-
1549. 2009.

MARIZ, Débora. A percepção do pensamento de Simone Weil: um diálogo com a tradição


filosófica francesa. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea. Brasília, v. 4, n.
1, p. 122-134, 2016.

MARTINS, Alexandre Andrade. A pobreza e a graça. Experiência de Deus em meio ao


sofrimento em Simone Weil. São Paulo: Paulus, 2013.
Luiza Benício Pereira; Maria Simone Marinho Nogueira | 59

MARTINS, Alexandre Andrade. A pobreza e a graça: um estudo sobre o malheur e a


experiência da graça na vida e no pensamento de Simone Weil. 167f. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC, São Paulo, 2011.

MCGINN, Bernard. O desenvolvimento da mística. De Gregório Magno até 1200: tomo II, a
presença de Deus: uma história mística ocidental. Tradução de José Raimundo
Vidigal. São Paulo: Paullus, 2012.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Filosofia e espiritualidade em Simone Weil à luz da


miséria humana. Aufklärung – Revista de Filosofia. João Pessoa, v. 7, p. 147-160,
2020. Edição Especial.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Aniquilamento e descriação: uma aproximação entre


Marguerite Porete e Simone Weil. Trans/Form/Ação. Marília, v. 42, n. 4, p. 193-216,
2019.

OTTO, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007.

PUENTE, Fernando. Simone Weil. Mulheres na Filosofia. Campinas. V. 6, n. 3, p. 55-69,


2020.

VELASCO, Juan Martins. El fenómeno místico. Madrid: Trota, 1999.

WEIL, Simone. Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro a 26 de maio de 1942.


Tradução de Karin Andrea de Guise. Petrópolis: Vozes, 2019.

WEIL, Simone. Carta a um religioso. Tradução de Monica Stahel. Petrópolis/Rj: Vozes,


2016.

WEIL, Simone. A gravidade e a graça. Tradução de Paulo Neve. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
3

Crítica à instituição igreja e a recusa de


Simone Weil ao batismo em carta a um religioso

Luana Micaelhy da Silva Morais

Simone Weil: primeiras palavras sobre a vida e obra

“Os mistérios da fé são degradados se transformados em objetos de afirmação


e negação, quando na realidade eles deveriam ser objetos de contemplação.”
(Simone Weil)

A vida de Simone Weil foi muito curta, porém, seu legado foi consis-
tente e seus escritos servem como base para compreender alguns
questionamentos referentes à sua vivência e atuação enquanto sujeito hu-
mano ativo e que usava de sua posição e compreensão crítica do mundo
para falar sobre as relações humanas.
Simone Adolphine Weil nasceu em Paris no ano de 1909 e faleceu em
1943 em Ashford, Reino Unido. Foi uma notável filósofa, mística, escritora,
pensadora e pacifista. Um dos seus principais objetivos de vida era a busca
pela justiça, e uma possível compreensão das relações humanas. Era des-
cendente de família judia, porém, não praticante. De acordo com
Bingemer, ela nunca conseguiu sintonizar com o judaísmo. Dessa forma,
mesmo pertencente a uma família de judeus, tinha inspiração cristã. Con-
soante a essa questão, Nogueira (2020, p. 205) destaca: “Embora venha de
uma família de judeus não praticantes e demonstre toda sua acolhida às
mais diversas concepções religiosas, Simone Weil, como ela mesma es-
creve, sempre teve uma inspiração cristã, apesar de todas as críticas que
fez à Igreja católica”.
Luana Micaelhy da Silva Morais | 61

Simone Weil foi uma criança abastada e culta, lia em várias línguas,
incluindo grego e latim e teve na infância uma boa educação. Seu irmão
André Weil, um notável matemático, era reconhecido por sua exímia inte-
ligência. Ela, por sua vez, julgava-se medíocre na comparação de suas
faculdades intelectuais com as de seu irmão (Cf. WEIL, 2019). Foi leitora e
apreciadora de obras de tradição filosófica e literária grega, como Platão e
Homero. Todo esse contexto familiar proporcionou à pensadora parisiense
se tornar uma mulher inteligente e engajada nas questões sociais. Estudou
Filosofia na Sorbonne e foi aluna, além de grande admiradora, de Alain
Chartier.
As temáticas abordadas nos escritos de Weil se constituem a partir de
obras filosóficas que exploram, por exemplo, os pensamentos de Descartes
e Espinosa, Platão e Marx e questões que abordam a opressão da classe
trabalhadora. Também tece críticas às teorias da revolução e formula no-
vas ideias. Ela se interessa e escreve sobre o ser humano e a teologia (Cf.
PUENTE, 2020). Nessa perspectiva, NOGUEIRA (2020, p. 149) comple-
menta: “Em geral seus escritos podem ser divididos em duas fases, a
primeira inclui um pensamento mais social e político e a segunda, um pen-
samento mais filosófico e religioso”, embora, como ressalta a estudiosa,
essas fases não devem ser vistas como antagônicas, mas complementares.
Deste modo, dentre as atuações profissionais da pensadora em
apreço, destacamos que ela lecionou filosofia em escolas públicas às alunas
de nível médio. Uma atitude que chama a atenção neste período de docên-
cia é que Weil distribuía o seu salário aos operários em situação de
vulnerabilidade, vivendo apenas com o honorário correspondente ao
abono de desemprego (LUZ, 2009). Isto, dentre outras coisas, mostra que
a solidariedade sempre fez parte de sua vida.
62 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Para além dessa atuação, foi uma participante ativa das reivindica-
ções sindicais em favor da classe trabalhadora, porém nunca se filiou a
partido algum. Como bem destaca Puente:

Simone Weil viveu em uma época marcada não somente pelas duas Grandes
Guerras, mas também por intensos movimentos político-sociais de luta por
melhores condições de trabalho para os operários, bem como por um engaja-
mento dos intelectuais na formação educacional dos trabalhadores. Tudo isso
se manifesta fortemente em sua produção filosófica (PUENTE, 2020, p. 55).

Em meio a tal contexto, Weil decide pedir uma licença de seu trabalho
como professora e trabalhar como operária no chão fabril com o objetivo
de compreender a opressão vivenciada pelos operários. No período de
1934 a 1935 trabalhou em algumas fábricas francesas e tais experiências
lhe proporcionaram fazer uma comparação empírica e teórica acerca das
condições dos proletariados. No ano de 1936 lutou na guerra espanhola
junto aos republicanos e, por ser pacifista, recusou-se a pegar em armas,
porém, este pacifismo não resistiu ao avanço do nazismo no mundo (Cf.
PUENTE, 2020).
O estado de saúde de Weil em toda sua vida foi crítico, a saúde fragi-
lizada somadas a suas experiências na fábrica e na guerra lhe levavam a
um estágio cada vez mais doentio. Conforme explica Luz (2009),

A convivência com as dores, que persistentemente a acompanhavam, e o es-


treito contacto com diversas formas de degradação humana talvez tornem
compreensível à íntima associação que Simone Weil estabelece entre infelici-
dade e a angústia que acompanha a dor física e a degradação social (p. 1537).

Todas estas experiências somadas à fragilidade corporal deixaram-


na muito debilitada, além do mais, Weil sofria de fortes dores de cabeça
decorrentes de enxaqueca. Desde criança se recusava a comer uma
Luana Micaelhy da Silva Morais | 63

refeição maior que a oferecido aos soldados da guerra, por este motivo sua
saúde se fazia cada vez mais debilitada. Suas ações eram com base em uma
solidariedade desenvolvida ao longo da vida. Como podemos observar a
partir das suas próprias palavras: “Quanto ao espírito de pobreza, eu não
me lembro de nenhum momento onde ele não tenha estado em mim, na
medida em que, infelizmente fraco, ele era compatível com minha imper-
feição” (WEIL, 2019, p. 32). Com isto entendemos que o olhar caridoso de
Weil para com os menos abastados se manifestava de modo que o sagrado
se fez presente em sua vida pela via dos oprimidos.

Manifestações do sagrado na vida de Simone Weil

Na carta autobiográfica que se encontra no livro Espera de Deus


(2019), escrita ao Padre Joseph-Marie Perrin, é possível perceber as mani-
festações do sagrado vivenciadas pela filósofa ao longo de sua vida. É
interessante mencionar que Weil escreve ao amigo-padre e relata suas ex-
periências, enfatizando que ainda não fez uma leitura aprofundada dos
místicos.
Para Otto (2007), conceitos esgotam a ideia de divindade, portanto a
religião não se esgota em seus conceitos enunciados. Descrever e reconhe-
cer o sagrado não é pensar com conceitos. O sagrado foge a apreensão
conceitual. Este é uma categoria inderivável. O sagrado se manifesta a par-
tir de situações que envolvem determinados sentimentos como amor,
compaixão, felicidade, tristeza, sofrimento, enfim, sentimentos que fazem
parte da natureza humana. Este mistério divino está no aqui e no agora.
São essas manifestações que identificamos nos relatos da filósofa francesa.
“A linguagem da mística é a mais adequada para falar de Deus. Simone
coloca este problema no contexto da cultura contemporânea, seguindo um
percurso místico” (NICOLA, DANESE, 2009, p. 17). Para Maria Clara
64 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Bingemer, em entrevista ao IHU on-line, a mística de Simone Weil consiste


em:

Comungar com o sofrimento do outro, e não apenas fazer teorias sobre ele;
participar das aflições do outro, e não apenas dissertar sobre elas; mergulhar
profundamente na dor do mundo até o ponto de fazê-la sua, não ficando longe
dela e tratando-a assepticamente (BINGEMER, 2009, p. 20).

Fato este que se concretiza no interesse e na ação de trabalhar nas


fábricas e nos campos, de servir nas guerras e de se colocar, literalmente,
no lugar daqueles que sofrem. Simone Weil partiu da experiência para es-
crever e tentar compreender as relações humanas no contexto do
sofrimento e da infelicidade. Com a experiência na fábrica ela conclui que
o trabalho ali é tão árduo ao ponto de incapacitar as pessoas de pensarem
e tomarem atitudes para reverter a situação de desumanização a que são
submetidas.
Por meio dos escritos de Weil é possível identificar sua ligação com o
sagrado. Em Autobiografia Espiritual, a escritora inicia falando a partir de
uma concepção agnóstica de vida enquanto crença religiosa, destacando
que Deus nunca a quis na Igreja. Mas é notável sua tendência ao cristia-
nismo católico. Neste sentido, três experiências místicas marcantes em sua
vida são descritas na referida carta. Estas experiências constituem para
Weil uma revelação do mistério do Divino. Nesse sentido, destacamos as
considerações de Teixeira acerca do pensamento de Maria Clara Bingemer.
Segundo o estudioso, para Bingemer as experiências místicas constituem-
se a partir de um diálogo inter-religioso capaz de possibilitar o reconheci-
mento da mensagem divina. A pesquisadora parte da definição que o
místico se constitui do conhecimento de Deus pela experiência (Cf.
TEIXEIRA, 2004).
Luana Micaelhy da Silva Morais | 65

Assim, a primeira experiência mística de Simone Weil se deu em uma


viagem feita com seus pais a Portugal após sua experiência na fábrica1. Na
viagem, em um determinado momento, ela se separa dos pais e vai sozinha
a um vilarejo muito humilde. Neste vilarejo ela presencia uma procissão
feita por mulheres de pescadores. Era Semana Santa e as mulheres ento-
avam cânticos muito tristes. "As mulheres dos pastores andavam em volta
dos barcos, em procissão carregando Círios e cantando cânticos certa-
mente muito antigos de uma tristeza de cortar o coração" (WEIL, 2019, p.
34). Naquele momento ela não sabe definir o que lhe tinha acontecido, mas
é por meio desta experiência que ela chega à conclusão de que o cristia-
nismo é por excelência a religião dos escravos (Cf. WEIL, 2019) e de que
ela se sente ali incluída.
Depois da experiência em Portugal, em 1937 visitou a capela de São
Francisco de Assis. Lá, relata Weil, "algo de mais forte do que eu me obri-
gou, pela primeira vez na minha vida, a me colocar de joelhos" (WEIL, 35,
2019). Assim, podemos perceber que o místico se manifesta nesta experi-
ência por meio do que nos apresenta Otto (2007), é uma sensação de se
sentir pequeno diante de algo que não é visível, podendo causar êxtase ou
reverência. Neste caso, a obriga a se ajoelhar diante da beleza.
Em seguida, em Solesmes, na França, sentia fortes dores de cabeça, e
ao participar de uma celebração eucarística, visualizou um jovem receber
a eucaristia e verificou nele uma luz recobrindo seu corpo. Este mesmo
jovem lhe apresentou o poema Love. Decorou o escrito e passou a recitá-
lo em suas constantes dores de cabeça, "Foi durante uma dessas recitações
que, como lhe escrevi, o próprio Cristo desceu e tomou conta de mim”
(WEIL, 2019, p. 36).

1 Simone Weil passou um ano trabalhando como operária. Esta rotina dura aliada a seu estado de saúde frágil e seus
hábitos alimentares a deixaram muito debilitada. A viagem foi uma tentativa dos pais em lhe proporcionar uma
recuperação.
66 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Weil também fala sobre o silêncio e como é possível contemplar a


verdade a partir dele. Em relação a esta questão, na arte e na natureza,
segue um relato:

O primeiro silêncio, com duração de apenas um instante, que se produz atra-


vés de toda alma em favor do amor sobrenatural, é semente lançada pelo
Semeador, é a semente de mostarda quase invisível que um dia se tornará a
Árvore da Cruz. Do mesmo modo, quando se presta perfeita atenção a uma
música perfeitamente bela (e vale também para arquitetura, a pintura etc.), a
inteligência não encontra nela nada a afirmar ou negar. Mas todas as faculda-
des da alma, inclusive a inteligência, fazem silêncio e ficam suspensas à
audição. A audição se aplica a um objeto incompreensível, mas que encerra
realidade e bem. E a inteligência não capta nele nenhuma verdade, mas en-
contra um alimento (WEIL, 2016, p. 38- 39).

Para Weil, sua crença com relação ao belo na natureza e nas artes é
um reflexo sensível do mistério da fé. Com isto notamos que a pensadora
deixa documentado em seus escritos reflexões relacionadas aos diversos
aspectos de manifestações do sagrado.

Igreja e batismo em carta a um religioso

Com base nas leituras e estudos realizados acerca da vida e obra de


Simone Weil é possível identificar uma crítica direcionada à Igreja (en-
quanto instituição). Para tanto, nossa análise recai sobre o livro Carta a
um religioso (2016), no qual a filósofa enumera críticas e questionamentos
referentes aos dogmas religiosos instituídos pela Igreja católica ao longo
da história e, em especial, ao batismo e por qual motivo ela não o aceita.
Com relação a esta obra, Nicola e Danese (2009, p. 17) afirmam que
“[...] As Cartas a um religioso parecem acentuar as dificuldades já expres-
sas em outros textos”. Dificuldades estas que se referem à adesão ao
batismo, a aceitação a determinadas regras impostas pela Igreja, bem
Luana Micaelhy da Silva Morais | 67

como sua atuação na sociedade ao longo da história. Conforme Candiotto,


na obra de Weil é possível identificar um paradoxo, como podemos perce-
ber pela citação abaixo.

De um lado, a crítica incômoda ao cristianismo católico que, ao contrário de


sua adjetivação, historicamente expurgou para além de seus limites os teste-
munhos de uma experiência cristã por considerá-los desviantes dos dogmas
cristãos. Weil denomina esse cristianismo de “cristianismo de fato”. De outro
lado, seu elogio à atitude cristã, fundada em uma concepção de vida que se
estende àqueles que buscam a verdade, mesmo sem ter recebido o Batismo. É
a adesão ao “cristianismo de direito” (CANDIOTTO, 2012, p. 160-161).

Neste sentido, a filósofa parisiense espera que o cristianismo seja de


direito a todos àqueles que procuram a verdade em Deus sem, necessaria-
mente, adesão ao batismo ou a qualquer imposição da Igreja, já que “Sendo
o cristianismo católico de direito e não de facto, vejo como legítimo da mi-
nha parte ser membro de direito da Igreja e não de facto, não apenas por
um tempo, mas, se for caso disso, durante toda a minha vida.” (WEIL,
2019, p. 68). Dito de outro modo, ela acredita que se deve estar disposto a
receber o amor de Deus, ou seja, ele quem vem ao encontro daqueles que
estão dispostos a recebê-lo. Deste modo, o batismo enquanto sacramento
deveria ser para Simone Weil um chamamento de Deus, não havendo in-
termédio da Igreja ou de qualquer outra pessoa. Neste direcionamento,
vejamos uma passagem de Nicola e Danese acerca da questão do batismo
na vida da nossa mística:

Ele, de fato, prometeu ir habitar junto a quantos o amam e prenunciou um


“exame final” não baseado sobre os sacramentos recebidos ou sobre a simples
adesão às verdades, mas sobre os pequenos gestos de caridade com o próximo
(“Tive fome e me deste de comer...”), gestos pelos quais a vida de Simone foi
tecida (NICOLA, DANESE, 2009, p. 16).
68 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Fica evidente a concepção de que o batismo para Weil era um sacra-


mento, como os pesquisadores nos apresentam na citação anterior, mas
sua adesão, ou sua não adesão, nunca impossibilitou que a filósofa fizesse
o bem e cuidasse daqueles que sofriam. Convicta de suas ações, ela enfatiza
que, “Cristo não salva todos os que dizem: ‘Senhor, Senhor.’ Mas salva
todos os que, com coração puro, dão um pedaço de pão a um faminto, sem
pensar nem um pouco nele” (WEIL, 2016, p. 23).
Deste modo, segundo Candiotto (2012), Weil acreditava que o cristi-
anismo não é católico (no sentindo etimológico que o termo implica), e se
fosse para ela entrar na Igreja através do batismo, só o faria se o cristia-
nismo fosse de fato e de direito. Sobre a religião cristã, a pensadora
francesa diz que:

Para que o cristianismo se encarne verdadeiramente, para que a inspiração


cristã impregne a vida integralmente, antes é preciso reconhecer que histori-
camente nossa civilização profana provém de uma inspiração religiosa que,
embora cronologicamente pré-cristã, era cristã em sua essência. A Sabedoria
de Deus deve ser vista como caminho único de toda a luz neste mundo, até
mesmo das luzes fracas que iluminam as coisas deste mundo (WEIL, 2016, p.
12).

Na obra objeto desta parte do nosso estudo, Carta a um religioso


(2016), Simone Weil apresenta trinta e cinco opiniões, todas acompanha-
das, conforme pondera, “por um ponto de interrogação”. É válido salientar
que os argumentos apresentados por ela não são verdades absolutas, mas
sim, afirmações advindas de sua compreensão e convicção perante a reli-
gião que critica. No seguinte fragmento, a escritora ressalta suas
argumentações acerca dos pensamentos que a afastam da Igreja e a pouca
esperança de algum dia receber os sacramentos.
Luana Micaelhy da Silva Morais | 69

À medida que cresce, os laços que me vinculam à fé católica tornam-se cada


vez mais fortes, cada vez mais arraigados no coração e na inteligência. Mas, ao
mesmo tempo, os pensamentos que me afastam da igreja também ganham
força e clareza. Se esses pensamentos são de fato incompatíveis com o ressen-
timento à Igreja, há então pouca esperança de que algum dia eu possa
participar dos sacramentos. Se assim for, não vejo como poderei evitar con-
cluir que tenho por vocação ser cristã fora da igreja (WEIL, 2016, p. 6).

Conforme apresenta em Carta a um religioso, nós podemos identifi-


car as comparações e similaridades feitas por Weil acerca da tradição cristã
a outras religiões, fato este que se exemplifica em certos momentos como
forma de crítica ao modo como o cristianismo foi instituído em diversas
regiões, como quando ela trata sobre os missionários e a “imposição do
cristianismo” a culturas diversas que já possuíam suas religiões, porém,
foram submetidas ao catolicismo por intermédio dos missionários. Tal
prática para Weil destruiu sem nenhuma piedade as outras religiões, tor-
nando o cristianismo cada vez mais soberano. “Por um lado, está escrito
que a árvore é julgada por seus frutos. A Igreja trouxe muitos frutos ruins
para que não tenha havido um erro já de início” (WEIL, 2016, p. 20). A este
respeito, chamamos a atenção para o que ela vem colocar inicialmente na
Carta em análise. Sua primeira opinião consiste em dizer que “Acreditar
que Deus possa ordenar aos homens atos atrozes de injustiça e de cruel-
dade é o maior erro que se pode cometer a seu respeito” (WEIL, 2016, p.
7). Posto isso, resgata alguns atos desempenhados por parte dos seguido-
res do cristianismo.
Simone Weil argumenta sobre o que está escrito na Bíblia e como
estes escritos são interpretados, a ação dos missionários é um tanto impo-
sitiva, e isto lhe desagrada. “Cristo disse: “Ensinai as nações e batizai os
que creem”, ou seja, os que creem nele”. “Ele nunca disse: ‘Obrigai-os a
renegar tudo o que seus pais consideram sagrado e a adotar como livro
70 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

sagrado a história de um pequeno povo que não conhecem’” (WEIL, 2016,


p. 20-21).
Para confirmar sua concepção com relação à religião católica, no que
concerne à valorização e constituição desta a partir de inúmeros elementos
de outras religiões e manifestações culturais, a escritora explicita:

A religião católica contém explicitamente verdades que outras religiões con-


têm implicitamente. Mas, reciprocamente, outras religiões contêm
explicitamente verdades que só são implícitas ao cristianismo. O mais instru-
ído cristão ainda pode aprender muito sobre as coisas divinas em outras
tradições religiosas, embora a luz interior também possa fazer com que ela
perceba tudo através da sua. Contudo, se essas outras tradições desapareces-
sem da superfície da terra, seria uma perda irreparável. Os missionários já
fizeram desaparecer demasiadas (WEIL, 2016, p. 21-22).

Diante do exposto, ela declara, conforme indica Candiotto, que “qual-


quer um que procure a verdade e faça o bem é tomado por Deus, ainda
que fora da Igreja’’ (CANDIOTTO, p. 161, 2012). Dessa forma, “[...] Deus é
Amor”. E, se Ele recompensa os que o procuram, Ele dá a luz aos que se
aproximam dele, sobretudo se desejam a luz” (WEIL, 2016, p. 24). De
acordo com Candiotto:

No cristianismo, Simone não vê um culto ou um dogma estabelecido, mas uma


tradição cultural cujo sentido é mais estético que prescritivo. A perspectiva
cristã encarna aspirações universais que se encontram presentes no pensa-
mento de outras culturas e noutras épocas (CANDIOTTO, 2012, p. 164).

Cabe aqui ressaltar a pretensão de Weil em estabelecer um diálogo


inter-religioso e cultural, ao passo que a Igreja aceite e respeite as distintas
culturas e seus ritos. Neste mesmo pensamento, notamos que a concepção
de cristianismo compreendido por ela refere-se a uma junção de diversas
tradições religiosas e culturais. Por sua vez, a Igreja, de certo modo, não se
Luana Micaelhy da Silva Morais | 71

compreende por esta perspectiva, contribuindo, assim, para a exclusão e


certo desprezo às outras religiões.
Apesar de suas críticas contundentes à Igreja, Weil declara que esta
reconhece que a diversidade de vocações é preciosa, no entanto, enfatiza a
necessidade de estender esse pensamento às vocações situadas fora da
Igreja. Considera que este é um meio pelo qual poderia pensar em ser ba-
tizada.
Com base no que é apresentado em Carta a um religioso, observamos
que a filósofa reflete sobre o batismo, de modo a compreendê-lo como um
sacramento instituído pela Igreja, o qual não a convida a recebê-lo por crer
que se assim fizer terá de abrir mão de coisas que a Igreja abomina e, por
sua vez, que ela própria admira. Como sinaliza Candiotto (2012) “A des-
peito do contato cada vez mais manifesto com o cristianismo, Weil jamais
será batizada por opção própria, por entender que tal fato limitaria seu
contato com outras religiões, notadamente o hinduísmo e o judaísmo” (p.
163). Deste modo, vejamos na sequência uma citação referente ao chama-
mento que Weil esperava para se fazer presente na Igreja. Caso Deus não
a chamasse, ela permaneceria fora da Igreja até o dia que Deus a quisesse:

Acreditava sinceramente que o próprio Deus lhe solicitava que permanecesse


fora da Igreja. Simone acredita que, já que não percebe este impulso irresistí-
vel, provavelmente o próprio Deus a queira longe da Igreja por alguma
misteriosa razão que corresponde para ela a uma vocação. Simone esperou até
o fim um sinal da precisa vontade de Deus: “Se a vontade de Deus é que eu
entre na Igreja, Ele me imporá esta vontade no mesmo momento em que me-
recerei o que ele me impõe. No segundo caso, se sua vontade é que eu não
entre nela, como poderei entrar?” (NICOLA, DANESE, 2009, p. 15. Grifos do
autor).

Para a Igreja Católica, o batismo é o primeiro sacramento que per-


mite a alguém tornar-se um cristão, ou seja, a porta de entrada para a vida
72 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

cristã. No entanto, Weil acreditava que todos os que creem podem verda-
deiramente estar na presença de Cristo:

A palavra “Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem ao
mundo” contradiz absolutamente a doutrina católica do batismo. Pois sendo
assim, o verbo habita em segredo todo homem, batizado ou não; não é o ba-
tismo que o faz entrar na alma (WEIL, 2016, p. 45).

Para a Igreja, o batismo significa a presença do Espírito Santo na vida


do sujeito, e a citação anterior expressa o que está na Bíblia, ou seja, a luz
do Espírito Santo está presente em todo o homem que vem ao mundo, o
que Weil entende como independente de aderir ou não ao sacramento ba-
tismal. A Igreja deixa claro que a pessoa deve receber o batismo, mas no
caso de Simone Weil, ela acredita ser Deus quem a queira primeiro, es-
tando ela disposta e de coração aberto a aceitá-Lo. Dessa forma, como
escreve Candiotto: “Em vida sempre permanecerá às portas da Igreja,
sendo que somente no arrebatamento da morte espera ser transportada
eternamente até o Santíssimo Sacramento exposto no altar”
(CANDIOTTO, p. 161, 2012). Nesse sentido, apresentamos em seguida o
argumento acerca da salvação fora da Igreja exposto pela filósofa.

Não há salvação sem “novo nascimento”, sem iluminação interior, sem pre-
sença de Cristo e do Espírito Santo na alma. Se, portanto, há possibilidade de
salvação fora da Igreja, há possibilidade de revelações individuais ou coletivas
fora do cristianismo. Neste caso, a verdadeira fé constitui uma espécie de ade-
são muito diferente da que consiste em acreditar nesta ou naquela opinião. É
preciso pensar de novo a noção de fé (WEIL, 2016, p. 30).

Para Weil, o amor e a busca pela verdade sempre fizeram parte de


sua vida como energia propulsora que a levou a seguir uma vida baseada
no amor e na caridade. Em sua linguagem mística Weil nos apresenta belas
Luana Micaelhy da Silva Morais | 73

palavras acerca da virtude da caridade. Para ela, a presença de Deus em


virtude da fé e da caridade está intimamente ligada, embora distintas, am-
bas são inseparáveis. A nossa escritora ainda afirma que “Quem é capaz
de um movimento de compaixão pura para com um infeliz (coisa muito
rara) possui, talvez implicitamente, mas sempre realmente, o amor de
Deus a fé” (WEIL, 2016, p. 23). As atitudes de amor e caridade que sempre
fizeram parte da vida da escritora se concretizam em seus escritos. Para
Weil,

A virtude da caridade é o exercício da faculdade de amor sobrenatural. A vir-


tude da fé é a subordinação de todas as faculdades da alma à faculdade de amor
sobrenatural. A virtude da esperança é uma orientação da alma no sentido de
uma transformação depois da qual será integral e exclusivamente amor. [...]
Para subordinar-se à faculdade de amor, cada uma das outras faculdades deve
encontrar nela seu próprio; e particularmente a paciência, que é a mais preci-
osa depois do amor; assim é, efetivamente (WEIL, 2016, p. 37).

Para finalizar, Weil destaca que suas argumentações no decorrer da


Carta estão tecidas a partir de suposições e, desta forma, espera respostas
para que assim possa pensar em aceitar ou não o batismo. Em vida ela
nunca obteve tais respostas. Pondera no final da Carta que o escrito está
no campo da suposição, mas há uma quase certeza: “É a de que quiseram
nos esconder alguma coisa; e conseguiram. Não é por acaso que há tantos
textos destruídos, tantas trevas a respeito de uma parte tão especial da
história. “Provavelmente houve uma destruição sistemática de documen-
tos” (WEIL, 2016, p. 55).
No entanto, existem testemunhos de que no leito de morte Weil tenha
solicitado o batismo.

Foi batizada de maneira reservada, por uma pessoa de seu círculo, Simone
Deitz, que era então sua melhor amiga, e que o reconhece, que o afirma, que
74 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

é, para dizer a verdade, a única testemunha do fato, mas que não quer que se
publique o seu nome...”. Simone Deitz manteve, de fato, secreto o fato por
quase meio século, embora já J. Cabaud e Simone Pétrément tivessem tido
notícia disso, sem nomear a autora do batismo, que queria permanecer desco-
nhecida (NICOLA, DANESE, 2009, p. 16).

Conforme observamos, apesar de toda sua recusa ao longo da vida


por aderir ao sacramento do batismo, existe um testemunho que demons-
tra a adesão de Weil no leito de morte a este sacramento. Como exposto,
tratou-se de um batismo de urgência realizado por uma leiga, no entanto
com um significado de extrema importância para o legado de uma mística
fascinante.

Considerações finais

Por tudo que foi discutido até aqui a respeito da vida e do pensamento
de Simone Weil, é possível verificar que sua recusa ao batismo se dava pelo
fato de não querer se submeter aos dogmas, regras e imposições da Igreja
católica a seus fiéis. Se assim fosse, Weil acreditava não poder mais con-
templar as outras coisas que ela considerava boas e que a Igreja não
aceitava e, de certa forma, ainda nos dias atuais não aceita.
Se considerar cristã da porta para fora era exatamente não aceitar
deixar de lado a diversidade de culturas, crenças e credos existentes ao
longo da história que não eram reconhecidos pela instituição Igreja. Neste
viés, notamos a tentativa da escritora em promover um diálogo inter-reli-
gioso, ao passo que a Igreja exclui inúmeras práticas que seriam para Weil
importantes e essenciais, por isso ela se considera uma cristã da porta da
Igreja para fora.
Verifica-se, portanto, que a mística weliana é penetrante e atual.
Como também é notável que em toda sua vida até a morte sua ação se
constitui em comungar com o sofrimento do outro, admirar a beleza do
Luana Micaelhy da Silva Morais | 75

Divino através da natureza, do amor, do sofrimento, da alegria e também


da infelicidade.

Referências

BINGEMER, Maria Clara: Simone Weil. A vida em busca da verdade. Revista do Instituto
de Humanistas Unisinos (IHU on-line). Filosofia, mística e espiritualidade. Simone
Weil, cem anos Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/313 São
Leopoldo, 03 de novembro de 2009 | edição 313.

CANDIOTTO, Jaci de Fátima Souza. Por um Cristianismo Encarnado: Sobre o Pensamento


de Simone Weil. Goiânia, v. 10, n. 2, p. 145-156, jul./dez. 2012. Disponível em:
http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/2569/1588 Acessado
em: 10 de janeiro de 2021.

LUZ, José Luís Brandão da. Simone Weil e a grandeza da infelicidade humana. Razão e
Liberdade. Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira. CFUL: Lisboa. 2009. p.
1531-1549. Disponível em: http://www.pucsp.br/rever/ Acessado em 10 de janeiro
de 2021.

NICOLA, Giulia Paola di. e DANESE Attilio: A busca da verdade pautada pela mística Revista
do Instituto de Humanistas Unisinos (IHU on-line). Filosofia, mística e
espiritualidade. Simone Weil, cem anos Disponível em: http://www.ihuonline.
unisinos.br/edicao/313 São Leopoldo, 03 de novembro de 2009 | edição 313.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Aniquilamento e descriação: uma aproximação entre


Marguerite Porete e Simone Weil. Trans/Form/Ação. Marília. V. 42, n. 4, p. 193-216,
2019.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Filosofia e Espiritualidade em Simone Weil à Luz da


Miséria Humana. Revista AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.7, n.esp, Nov., 2020,
p.147160. Disponível em: https://periodicos. ufpb.br/ojs2/index.php/arf/article/
view/56749/32231. Acessado em 10 de janeiro de 2021

OTTO, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007


76 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

PUENTE, Fernando. Simone Weil. Mulheres na Filosofia. Campinas. V. 6, n. 3, p. 55-69,


2020.

TEIXEIRA, Faustino (org.) No Limiar do Mistério: Mística e Religião, Paulinas: São Paulo,
2004.

WEIL, Simone, 1909-1043. Carta a um religioso. tradução de Monica Stael. - Petrópolis, RJ:
Vozes, 2016. - (Série Clássicos da Espiritualidade).

WEIL, Simone. Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro a 26 de maio de 1942.


Tradução de Karin Andrea de Guise. Petrópolis: Vozes, 2019.
4

Simone Weil e o acesso ao divino por meio do infortúnio

Jaqueline Vieira de Lima

Mística feminina ou a união da mulher com o divino: algumas reflexões


iniciais

Desde a Antiguidade a união da figura feminina com o divino tem


sido realizada por diferentes mulheres e de variadas maneiras. Dentre es-
sas, destacam-se, no contexto medieval, Beatriz de Nazaré (1200–1268),
Hildegard von Bingen (1098–1179), Hadewijch d’Anvers (Ca.1200–1248),
cujo acesso ao divino manifestava-se por meio de visões, e Marguerite Po-
rete (†1310), que mantinha essa relação através de uma intensa reflexão
(Cf. NOGUEIRA, 2015). Quanto a estas duas últimas, é pertinente observar
que foram beguinas1, mulheres que se destacaram, para além de outros
feitos, por serem solidárias aos menos favorecidos e viverem as suas espi-
ritualidades de forma livre, uma vez que não aceitavam as regras impostas
pela Igreja.
No contexto do século XX, destaca-se uma mulher mística que tam-
bém viveu sua espiritualidade livremente e, indo contra o egoísmo que,
supostamente, se esperava do ser humano inserido em um período mar-
cado por guerras e conflitos2, mantinha a compaixão pelos mais
necessitados. Estamos nos referindo a Simone Weil (1909–1943), filósofa

1“As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas marcadas por uma
espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas “Begijnhof”, “Béguinages”, conforme a
região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias,
viúvas, algumas casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de trabalho
autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da época, alimentadas por uma
espiritualidade singular, de caráter leigo” (CALADO, 2012, p. 47 apud NOGUEIRA, 2013, p. 158).
2 Segundo Serrato e Souza (2018), Simone Weil viveu em uma época histórica de muitos desafios: um período entre
guerras, entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
78 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

e mística francesa que merece destaque tanto pelo seu modo singular de
vida como também pela maneira que experienciou o divino.
Neste sentido, vale salientar que, com base nos estudos da pesquisa-
dora Maria Simone Marinho Nogueira, entendemos que independente dos
tempos, das culturas e vertentes, a mística é sempre a união do humano
com o divino. No que tange, especificamente, à mística feminina, segundo
esta estudiosa, trata-se de um “movimento feito por mulheres que busca-
vam o divino a partir da união de instâncias afetivas e intelectivas [...]”
(NOGUEIRA, 2015, p. 94). Logo, compreendemos que esta união é pautada
em uma intensa e subjetiva relação entre a figura feminina e o divino e
não está necessariamente ligada à religião institucionalizada.
Posto isto, destacamos que Simone Weil, mesmo carregando uma
inspiração cristã, era agnóstica, como bem ela indica em sua Autobiografia
Espiritual3, pois nunca procurou Deus, e quando o encontrou foi sem ne-
nhuma intermediação dos seres humanos. Consoante a essa questão, é
pertinente observarmos o que Nogueira enfatiza acerca das mulheres mís-
ticas medievais que, ao nosso ver, relaciona-se bem à mística
contemporânea em destaque neste breve estudo. Conforme esta pesquisa-
dora, as místicas daquele contexto pensavam e viviam o divino em sua
plenitude, ou seja, “sem limites, sem objeções, sem intermediários (sine
medio), o que leva todas elas a ideia do aniquilamento, representado de
diferentes modos e expresso por diferentes termos” (NOGUEIRA, 2015, p.
96).
Desse modo, nota-se que essas mulheres esvaziavam-se de si e de
tudo, e ao fazerem isto era como se abrissem um espaço vazio na alma
para que Deus ali se colocasse (Cf. NOGUEIRA, 2015, p. 97). Em vista disso,
podemos dizer que quando isto acontece, ou seja, quando o divino se

3 Carta autobiográfica escrita ao Padre Joseph-Marie Perrin contida no livro Espera de Deus (2019).
Jaqueline Vieira de Lima | 79

conecta à alma totalmente vazia, algo inexplicável, impossível de ser ex-


pressado ocorre, uma vez que tamanho é o mistério que o envolve. Diante
do exposto, cabe aqui enfatizar a ideia de Rudolf Otto acerca do conceito
de mistério, já que este está diretamente relacionado às experiências mís-
ticas. Para Otto (2007, p. 45), “mistério designa nada mais que o oculto,
ou seja, o não evidente, não apreendido, não entendido, não cotidiano,
nem familiar, sem designá-lo mais precisamente segundo seu atributo”.
Logo, compreendemos que as experiências místicas encontram-se no
campo do irracional postulado por Otto (2007), já que estas experiências
sentidas profundamente não são passíveis de serem explicadas pela lógica
da razão, mas apenas sentidas.
Com base nesses pressupostos, constatamos que Simone Weil, no de-
correr da sua trajetória espiritual, foi envolvida por tal mistério ao passar
por suas três experiências místicas: a primeira durante uma viagem reali-
zada com os pais a Portugal. Após trabalhar um ano em uma fábrica e estar
fragilizada de corpo e alma, assim, ao ir a um pequeno e pobre vilarejo
sozinha à noite, no dia da festa do padroeiro, e ver as mulheres dos pesca-
dores, em procissão, carregando círios e cantando cânticos antigos e
tristes, passou por algo inexplicável: “Nada pode passar a ideia do que foi
aquilo. Jamais ouvi nada tão pungente, com exceção do canto dos reboca-
dores do Volga” (WEIL, 2019, p. 35). Segundo ela, foi lá que teve a certeza
de que o cristianismo é a religião dos escravos, “que os escravos não po-
dem deixar de aderir ao cristianismo, e eu entre os outros” (WEIL, 2019,
p. 35). A segunda, quando em Assis, no ano de 1937, em uma pequena
capela romana do século XII, Santa Maria dos Anjos, local em que São
Francisco orou frequentemente, algo de mais forte do que ela a obrigou,
pela primeira vez na vida, a se colocar de joelhos. E a terceira aconteceu
enquanto esteve em Solesmes, em 1938, ao assistir a uma celebração e ou-
vir um jovem católico recitar o poema Love, de Georg Herbert. Este
80 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

acontecimento a fez se interessar pelos poetas ingleses do século XVII e lê-


los, chegando a decorar o poema e quando estava com fortes dores de ca-
beça recitava-o aplicando nele toda a sua atenção e unindo-se de toda a
sua alma à ternura que ele passava, assim: “foi durante uma dessas reci-
tações que [...] o próprio Cristo desceu e tomou conta de mim” (WEIL,
2019, p. 36).
Conforme verificamos, Simone Weil vivenciou três momentos espe-
cíficos e profundos de acesso ao divino. Contudo, levando em consideração
que toda a sua trajetória de vida foi um constante doar-se aos menos fa-
vorecidos, aos infelizes do mundo, sofrendo na própria pele e na alma as
dores do outro, neste estudo pretendemos analisar o ensaio O amor de
Deus e o infortúnio, inserido no livro Espera de Deus (2019). Escrito que
faz parte, segundo Nogueira (2020), da última fase das suas produções4.
Neste sentido, o nosso principal objetivo é compreender como o conceito
de infortúnio é abordado neste texto, procurando mostrar que por meio
dele Simone Weil acessa o divino.
Contudo, antes de focarmos na análise do ensaio, levando em consi-
deração que as experiências vivenciadas pela filósofa estão diretamente
relacionadas aos seus escritos, enfatizaremos um pouco a sua trajetória
dando enfoque à solidariedade e a resistência como aspectos marcantes da
sua vida.

4 De acordo com Nogueira (2020, p. 149), em geral os escritos de Simone Weil podem ser divididos em duas fases:
“a primeira inclui um pensamento mais social e político e a segunda, um pensamento mais filosófico e religioso.
Mesmo assim, essas duas fases não devem ser vistas como antagônicas ou como se existissem duas ‘Weil’, afinal,
num colóquio realizado na Sorbonne em maio de 1999, cujo título foi “Simone Weil: espiritual ou política”,
apresentou-se nas discussões realizadas no próprio colóquio essa dicotomia como um falso dilema, pois, conforme
Silva (2009, p.7), a mística iluminava seu engajamento político e a política transportava para a mística a densidade
do sofrimento humano”.
Jaqueline Vieira de Lima | 81

Solidariedade e resistência: breves notas acerca da trajetória de vida de


Simone Weil

Falar sobre Simone Adolphine Weil (1909-1943) pressupõe reconhe-


cer as marcas da solidariedade e resistência que desde cedo estiveram
atreladas à sua trajetória de vida. Neste sentido, a princípio, achamos per-
tinente trazer à tona algumas definições disponibilizadas pelo Dicionário
Michaelis5 acerca de tais termos. De acordo com esse dicionário, solidarie-
dade trata-se do “sentimento de amor ou compaixão pelos necessitados ou
injustiçados, que impele o indivíduo a prestar-lhes ajuda moral ou mate-
rial”. Já pelo termo resistência, entende-se o “ato ou efeito de resistir”,
“capacidade que uma força tem de se opor a outra”; “capacidade que o ser
humano tem de suportar a fome e a fadiga”; “não aceitação da opressão”.
Ainda no que diz respeito a esta última, buscando a definição de Cristina
Scheibe Wolff (2019) entendemos que “[...] a resistência nem sempre se
expressa em aberta rebeldia, ela se dá em gestos, muitas vezes introspec-
tivamente, mas permite que o sujeito se afirme mesmo em um contexto
de total negação de seus direitos, suas vontades, seus prazeres” (WOLFF,
2019, p. 648-649).
Partindo desses pressupostos, descobrimos que a curta, porém in-
tensa vida de Simone Weil está diretamente relacionada a acontecimentos,
tanto pessoais como coletivos, por meio dos quais se nota os gestos de re-
sistências e solidariedade praticados pela filósofa e mística francesa. Weil,
desde a infância mostrava-se resistente diante dos problemas de saúde que
já lhe acometiam e que se prolongaram no decorrer da sua existência. Se-
gundo Serrato (2015), aos três anos e meio ela sofreu de apendicite aguda,
foi operada e o médico não acreditou que sobreviveria, no entanto, ela con-
seguiu resistir à doença. Também na infância já é possível notar a

5 Versão online disponível em: https://michaelis.uol.com.br/modernoportugues/busca/portugues brasileiro/


resist%C3%AAncia/ Acesso em: 19 Dez. 2020.
82 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

solidariedade “que mais tarde a levaria para junto dos oprimidos”


(SERRATO, 2015, p. 26), presente nos atos da então menina Simone. Du-
rante a Primeira Guerra Mundial, período em que estava com cinco anos
de idade, sentiu compaixão pelo sofrimento de um soldado que agia na
linha de frente da guerra e privou-se de açúcar e outras guloseimas para o
ceder. Outro ato solidário é notado quando sua prima fica órfã, ela com
apenas nove anos, fez de tudo para agradá-la e diminuir o seu sofrimento.
A solidariedade também marcará a adolescência e a fase adulta de
Weil. Assim, quando tinha vinte anos e viu a sua avó padecer com câncer,
não sabendo como confortá-la e sentindo na própria pele a dor da ente
querida, encontrou um modo de diminuir o seu sofrimento e distraí-la que
era lendo Os miseráveis (1862), de Victor Hugo, como também a ajudou a
aceitar a ideia da morte (Cf. SERRATO, 2015, p. 134). Ainda neste período,
outros atos solidários podem ser observados nas ações da filósofa, um de-
les é ir trabalhar com os pescadores e suas famílias enquanto esteve de
férias com os pais em Neville. De acordo com Martins (2011, p. 26), “nessa
época ela já tinha em mente o projeto que mais tarde a levaria para o tra-
balho como operária em uma fábrica”.
Aos vinte e um anos quando se tornou professora numa escola se-
cundária para moças em Le Puy, passou a participar dos movimentos
sindicais, organizar reuniões militantes, colocando-se ao lado dos desem-
pregados. Isso porque “Simone Weil tinha muita esperança nos sindicatos
e não acreditava nos partidos políticos que, para ela, estavam corrompidos
pelo uso da propaganda” (MARTINS, 2011, p. 34). Logo, podemos observar
a atuação política de Simone, bem como a resistência frente ao poder do-
minante. Fato que também pode ser notado enquanto esteve em outras
regiões como Auxerre, em 1932, dedicando-se às lutas e discussões no seio
da Federação Unitária da Educação, um sindicato formado por velhos re-
formistas; e em Roanne, em 1933. Neste período, “sente compaixão
Jaqueline Vieira de Lima | 83

particular pelas prostitutas e quer conhecer seu contexto e toda sua misé-
ria, entende que experimentá-la desde dentro e compreendê-la lhe dará
meios para superá-la” (SERRATO, 2015, p. 128).
Embora acometida pela fragilidade do corpo e por fortes dores de ca-
beça desde o período que trabalha no liceu de Puy, em fins de 1934 ela
pediu licença do magistério e foi procurar emprego em uma fábrica, a
Alsthom. Ela queria sentir na pele a experiência operária. Depois que tra-
balhou nesta fábrica, afirma sentir-se como os escravos que eram
marcados pelos romanos a ferro e fogo. Durante esse tempo a fadiga do-
minava-a e as dores de cabeça aumentavam cada vez mais, de modo que
não conseguia acompanhar o ritmo dos demais operários nem correspon-
der às exigências dos patrões. Fere-se durante o duro trabalho, contudo
mostra-se resistente diante dessas situações desgastantes e, para além
dessa fábrica, trabalhou nas Carnoud e Renault. Nessas também teve uma
experiência sofrida, chegando a pedir demissão desta última em 22 de
agosto de 1935. (Cf. MARTINS, 2011, p. 37-38).
Em outubro de 1935 foi nomeada para o Liceu de Bourges, mas em
março de 1936 decidiu pedir licença de um ano para viver a experiência de
vida agrícola e, assim, participar diretamente da vida dos camponeses, tra-
balhando com eles no campo na época da colheita e nos vinhedos na época
da safra.
Outro aspecto marcante de solidariedade e resistência na vida de Weil
diz respeito a quando ela queria escrever sobre a guerra e para isso foi
para Barcelona, em agosto de 1936, para vivenciá-la. No mês de outubro
desse mesmo ano ela retornou para a França, e em 1942, ao chegar a Nova
York, foi chamada pelo governo francês para ir em missão para a Ingla-
terra. Em Londres, segundo Martins (2015) foi encarregada de textos, fez
planos e redigiu sobre os direitos e deveres recíprocos ou conjuntos do
84 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Estado e do ser humano, uma vez que ela queria compartilhar essas expe-
riências com a população francesa.
Fragilizada em virtude do intenso trabalho e por recusar a alimenta-
ção prescrita pelos médicos como um ato de solidariedade com os
franceses que sofriam com a falta de alimentos, Simone Weil faleceu em
24 de agosto de 1943, no momento estava sozinha no “despojamento de
sua condição humana, no esgotamento de todas as tentativas de retornar
e estar ao lado de seu povo” (MARTINS, 2015, p. 140).

Simone Weil e a união com o divino por meio do infortúnio: reflexões acerca
do ensaio o amor de deus e o infortúnio

O ensaio O amor de Deus e o infortúnio, embora seja um texto curto


em sua estrutura, apresenta um conteúdo denso e profundo e, nesse sen-
tido, é considerado por Maria Clara Bingmer como “um texto essencial
para conhecer o pensamento de Simone Weil” (BINGEMER, 2006, p. 228
apud MARTINS, 2011, p. 116). Neste texto, a filósofa francesa reflete acerca
de um dos conceitos centrais das suas obras que é o malheur, traduzido6
para o português como infelicidade, desgraça ou infortúnio (esse último é
o termo usado na edição da obra utilizada neste breve estudo).
Para Simone Weil, o infortúnio não se restringe a um simples sofri-
mento ou acontecimento infeliz, pelo qual nós, seres humanos, podemos
passar e sair, de certa forma, ilesos. O infortúnio trata-se de algo irredutí-
vel, específico, que acomete o indivíduo de corpo e alma, deixando marcas
profundas para o resto da vida. É a partir dessa ideia que ela inicia a sua
reflexão no texto em análise. A autora, a princípio, procura esclarecer que
o infortúnio e o sofrimento físico são inseparáveis e ao mesmo tempo dis-
tintos, ou seja, é possível que este ocorra sem que, necessariamente, haja

6 De acordo com Martins (2013), embora façam traduções deste termo, elas não têm o peso semântico do termo
original em francês.
Jaqueline Vieira de Lima | 85

aquele. Neste caso, a dor sentida pelo indivíduo não afeta profundamente
a sua alma. Já o infortúnio, além do sofrimento físico, afeta a alma de
forma violenta a tal ponto que a pessoa que é acometida por ele mantém
apenas metade dela. Sendo assim, Weil o define como:

[...] um desenraizamento da vida, um equivalente mais ou menos atenuado da


morte, que se tornou irresistivelmente presente à alma pela espera ou a apre-
ensão imediata da dor física. Se a dor física estiver totalmente ausente, não há
infortúnio para a alma, pois o pensamento vai ser atraído por qualquer outro
objeto (WEIL, 2019, p. 83).

Nota-se, portanto, que é preciso que haja a dor física, nem que seja
leve para que ocorra o infortúnio para a alma, uma vez que tal dor não
possibilita a dispersão do pensamento, obrigando-o a reconhecer a pre-
sença do infortúnio. Para exemplificar este fato, Weil cita a possível
situação de um condenado a olhar durante horas a guilhotina que vai lhe
cortar o pescoço. Nesta situação, o indivíduo passa por um estado violento
intenso, já que seu pensamento é levado, obrigatoriamente, a reconhecer
a presença do infortúnio.
Dessa maneira, segundo Weil, só há verdadeiramente infortúnio se
as dimensões sociais, psicológicas e físicas forem atingidas. No que tange
à parte social, a autora enfatiza que é um aspecto fundamental, logo, “não
há realmente infortúnio onde não houver, sob uma forma qualquer, deca-
dência social ou apreensão de tal decadência” (WEIL, 2019, p. 83-84).
Assim, a pessoa tomada pelo infortúnio assemelha-se a um verme, de
modo que parece estar destituído da sua própria personalidade. Vejamos
o que a mística em carta endereçada ao Pe. Perrin fala acerca da sua expe-
riência na fábrica e o infortúnio:

Estando na fábrica, confundida aos olhos de todos e a meus próprios olhos


com a massa anônima, a infelicidade dos outros entrou na minha carne e na
86 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

minha alma. Nada me separava, pois eu tinha realmente esquecido do meu


passado e não esperava nenhum futuro, podendo dificilmente imaginar a pos-
sibilidade de sobreviver a essas fatigas. O que eu suportei ali me marcou de
maneira tão duradoura, que ainda hoje, quando um ser humano, não importa
quem seja, em qualquer circunstância, me fala sem brutalidade, eu não posso
deixar de ter a impressão que deve haver ali algum erro e que o erro vai, sem
dúvida, infelizmente se dissipar. Recebi ali, para sempre, a marca da escravi-
dão, como a marca feita a ferro que os romanos colocavam sobre a testa dos
seus escravos mais desprezados. Desde então, passei a me ver como uma es-
crava (WEIL, 2019, p. 34).

Com base nesse excerto podemos notar que Weil foi acometida pelo
infortúnio enquanto esteve na fábrica. Como também é possível verificar
o fato de que a pessoa que passa pelo infortúnio, mesmo depois de superar
tamanha dor, não consegue apagar as marcas. O fato é que o infortúnio é
algo tão profundo que os indivíduos que passaram por algum tipo de so-
frimento, mas que não passaram pela sua experiência propriamente dita,
jamais saberão o que seja, assim como não é possível dar a um surdo-
mudo a ideia do que seja o som (Cf. WEIL, 2019).
Outro aspecto relacionado às pessoas que passam pelo infortúnio é
que elas se sentem completamente sozinhas e tornam-se incapazes de ofe-
recer ajuda ao próximo, como também de serem ajudadas. Logo, “[...] a
compaixão para com os infelizes é uma impossibilidade. Quando ela real-
mente se produz, é um milagre mais surpreendente do que caminhar
sobre as águas, a cura dos enfermos e até mesmo a ressureição de um
morto” (WEIL, 2019, p. 85). Nogueira (2020), em suas reflexões acerca do
texto em análise, enfatiza que esse milagre acontece quando os seres hu-
manos tornam-se capazes de negar o seu eu (egóico) e abrem um espaço
para que Cristo possa habitar neles (Cf. NOGUEIRA, 2020, p. 155). Acres-
centa ainda que “A habitação de Cristo em nós, entretanto, está para além
do plano meramente religioso, no sentido da igreja enquanto coisa social”
Jaqueline Vieira de Lima | 87

(Ibidem, p. 155). Nesta perspectiva, levando em consideração a trajetória


de vida de Simone Weil e, mais diretamente, o seu contato com o infortú-
nio, notamos que há, por parte dela, essa negação do eu (egóico), uma vez
que ao sentir compaixão e doar-se de corpo e alma aos infelizes do mundo,
ela abre esse espaço, o vazio na alma, e Deus ali habita, sem intermédio
religioso.
No texto em análise Weil segue a sua reflexão enfatizando que o in-
fortúnio é o grande enigma da vida humana e não o sofrimento. Sendo
assim, na concepção dela, não é surpreendente que pessoas inocentes se-
jam mortas, expulsas dos seus países, condenadas a viverem na miséria,
escravidão, ou fechadas em campos e calabouços, pois para que isso acon-
teça existem os criminosos que cumpre tais ações. Assim como não é
surpreendente que a doença imponha longos sofrimentos paralisando a
vida do indivíduo e dando uma sensação de morte, pois a natureza é sub-
missa a um jogo cego de necessidades mecânicas. O fato que surpreende é
“que Deus tenha dado ao infortúnio o poder de capturar a própria alma
dos inocentes e apoderar-se dela como mestre soberano” (WEIL, 2019, p.
84).
Em estado de infortúnio, a pessoa sente-se abandonada por Deus e
chega a clamar contra Ele. No texto, a filósofa e mística francesa dá exem-
plos fiéis do infortúnio, a partir dos quais podemos compreender a
intensidade da dor de corpo e alma que ele é capaz de causar. A autora
exemplifica a partir do infortúnio sofrido por Cristo, que o obrigou “a su-
plicar para ser poupado, a procurar consolo junto aos homens, a se
acreditar abandonado pelo seu Pai” (WEIL, 2019, p. 85). Outro exemplo de
infortúnio é o de Jó, homem justo, “tão perfeito quanto a natureza, talvez
ainda mais” (Ibidem, p. 85), que ao ser cometido pelo infortúnio, gritou
contra Deus: “‘Ele ri do infortúnio dos inocentes.’ Não é uma blasfêmia, é
um grito autêntico arrancado da dor” (Ibidem, p. 85).
88 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

O que constitui um ponto fundamental no texto é o fato de Simone


Weil enfatizar que, embora nesses momentos a pessoa não tenha nenhum
motivo para amar, mas sim para gritar contra Deus, uma vez que uma
espécie de horror toma conta da alma, tornando Deus “mais ausente do
que um morto, mais ausente do que a luz em uma masmorra completa-
mente tenebrosa” (Ibidem, p. 85). O indivíduo deve se manter firme no
amor de Deus para que a alma não se torne cúmplice do infortúnio, pois
caso isto aconteça, a ausência de Deus se tornará definitiva. Dessa forma:

É preciso que a alma continue a amar o vazio ou ao menos que ela queira amar,
mesmo com uma parte infinitesimal de si mesma. Então, um dia, Deus virá se
mostrar a ela e revelar-lhe a beleza do mundo, como aconteceu com Jó. Mas
se a alma parar de amar, ela cairá em algo quase igual ao inferno (WEIL, 2019,
p. 85).

Com base na afirmativa de Weil, podemos observar que a perseve-


rança no amor é o ponto chave para que o indivíduo consiga passar pelo
infortúnio, já que é neste momento, em que se sente abandonado por to-
dos e até pelo próprio Deus, que o amor divino vem ao seu socorro. Na
carta ao Padre Perrin, ao relatar sua terceira experiência mística, ela fala
acerca da possibilidade de amar o amor divino através do infortúnio, como
podemos conferir na citação a seguir:

Em 1938, passei dez dias em Solesmes, do Domingo de Ramos à Terça- feira


de Páscoa, seguindo todos os ofícios. Tive dores de cabeça intensas; cada som
me doía como se fosse um golpe; um extremo esforço de atenção me permitiu
sair desta carne miserável, deixando-a sofrer sozinha, recolhida em seu canto,
e encontrar uma alegria pura e perfeita na beleza inusitada do canto e das
palavras. Essa experiência me permitiu por analogia melhor compreender a
possibilidade de amar o amor divino através do infortúnio. É natural que no
curso desses ofícios o pensamento da paixão de Cristo tenha entrado em mim
de uma vez por todas (WEIL, 2019, p. 35).
Jaqueline Vieira de Lima | 89

Desse modo, compreendemos que ela, ao permanecer firme no amor


divino, mesmo sofrendo fortes degradações, é capaz de sentir alegria. A
autora conclui o texto com uma citação de São Paulo que diz: “Estejais
enraizados no amor para seres capazes de compreender o quão são a lar-
gura, o comprimento, e a profundidade e conhecer aquilo que ultrapassa
todo o conhecimento: o amor de Cristo” (WEIL, 2019, p. 100). A nosso ver,
era neste amor que Simone Weil estava enraizada e, estando firme nele,
era capaz de passar por todo infortúnio e se compadecer pelos que tam-
bém passavam por ele.

Considerações finais

Ao pensarmos como indivíduos do século XXI, marcado por injusti-


ças, egoísmo e variados tipos de conflitos, não é difícil nos questionarmos
como uma menina-mulher inserida em um contexto de duas grandes
guerras fosse capaz de amar ao seu próximo da forma mais pura e pro-
funda possível. Talvez possamos encontrar na afirmação de outra Simone,
a Beauvoir, uma possível resposta para este questionamento, pois, se-
gundo ela, Simone Weil possuía “um coração capaz de bater através do
universo inteiro” (BEAUVOIR, 2009, p. 182 apud NOGUEIRA, 2020, p.
149).
Ao voltarmos o nosso olhar para o ensaio O amor de Deus e o infor-
túnio, percebemos que neste texto o conceito de infortúnio é discutido de
maneira que mostra que ele consiste em uma dor profunda sentida de
corpo e alma, e que afeta as dimensões sociais, psicológicas e físicas, dei-
xando o ser humano acometido por ele, totalmente fragilizado, desprezado
e humilhado. Nesse sentido, embora o indivíduo carregue para sempre as
marcas ocasionadas por este estado, só há um modo de superá-lo que é
através do amor divino.
90 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Portanto, podemos dizer que Simone Weil sentiu na pele o infortúnio


e permaneceu firme no amor de Deus. Amor este que é refletido nas ações
da mística francesa ao se compadecer pelos infortunados do mundo, e é
nessa perspectiva que constatamos que ela acessava o divino.

Referências

MARTINS, Alexandre Andrade. A pobreza e a graça: um estudo sobre o “malheur” e a


experiência da graça na vida e no pensamento de Simone Weil. (Mestrado em Ciências
da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- Puc/SP. 2011, 167 f.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Filosofia e Espiritualidade em Simone Weil à Luz da


Miséria Humana. Revista AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.7, n.esp, Nov, 2020, p.147-
160.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Aniquilamento e descriação: uma aproximação entre


Marguerite Porete e Simone Weil. Revista Trans/Form/Ação, Marília, v. 42, n. 4, p.
193-216, 2019, Edição Especial.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. A filosofia de Simone Weil: uma mística da ação e da
contemplação. Revista Sísifo, Feira de Santana, v. 1, n. 6, p. 1-11, 2017.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Mística feminina - Escrita e transgressão. Graphos,


João Pessoa, v. 17, p. 91-102, 2015.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. A escrita feminina medieval: mística, paixão e


transgressão. Mirabilia. v. 17, p. 153-173, 2013.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis; Vozes, 2007.

RESISTÊNCIA. In: DICIONÁRIO MICHAELIS (Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa).


Disponível em:https://michaelis.uol.com.br/modernoportugues/busca/portugues
brasileiro/resist%C3%AAncia/ Acesso em: 19 dez. 2020.
Jaqueline Vieira de Lima | 91

SERRATO, Andréia Cristina. Mística e corporeidade: experiência, ética e práxis em Simone


Weil. 327 f.; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Departamento de Teologia, 2015.

SERRATO, Andréia Cristina; SOUZA, Waldir. Práxis místico-ética em Simone Weil: a


compaixão pelo outro sentida à flor da pele. Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor, Curitiba,
v. 10, n. 2, p. 308-337, maio/ago. 2018.

SOLIDARIEDADE. In: DICIONÁRIO MICHAELIS (Dicionário Brasileiro da Língua


Portuguesa). Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/modernoportugues/
busca/portugues brasileiro/resist%C3%AAncia/ Acesso em: 19 dez. 2020.

WEIL, Simone. O amor de Deus e o infortúnio. In.: Espera de Deus: cartas escritas de 19 de
janeiro a 26 de maio de 1942. Trad. de Karin Andrea de Guise. Petrópolis, RJ: Vozes,
2019, p. 82-100.

WEIL, Simone. Autobiografia Espiritual. In.: Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro
a 26 de maio de 1942. Trad. de Karin Andrea de Guise. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019,
p. 29-50.

WOLFF, Cristina Scheibe. Resistência. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro
Antônio (org.). Dicionário crítico de gênero. 2. ed. Dourados, MS: Ed. Universidade
Federal de Grande Dourados, 2019.
5

A espera de Deus em Simone Weil:


reflexões sobre justiça e caridade

Erica Dayana Monteiro Cavalcante

Considerações iniciais

“Se fosse concebível que nos condenamos obedecendo a Deus e nos salvamos
desobedecendo-lhe, eu escolheria, assim mesmo, a obediência” (WEIL, 2019,
p. 13).

Esse estudo tem por objetivo tratar brevemente de alguns aspectos


da vida da filósofa francesa, Simone Weil. Uma mulher que veio a falecer
precocemente, embora seja proprietária de uma vida intensa, cheia de de-
safios. A escritora, de conhecimento incondicional, entendia sobre
assuntos das mais variadas culturas, surpreendendo aqueles que a conhe-
ciam por meio do diálogo e de suas ações.
A partir dessas indagações, o trabalho em destaque visa retratar al-
guns momentos da vida de Simone Weil, o engajamento social pertencente
a ela, evidenciando a ligação entre sua vida e sua obra. Portanto, para dar
embasamento aos fatos aqui expostos, ressaltamos a utilização dos seguin-
tes textos que foram de fundamental importância para a pesquisa, são eles:
CUGINI (2010), PUENTE (2020) e WEIL (2019). Vale salientar que o cor-
pus deste trabalho partiu especificamente da Autobiografia Espiritual
(2019), texto pertencente a escritora em evidência, complementado pelos
demais textos de apoio, objetivando relacioná-los com os aspectos presen-
tes na pesquisa.
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 93

Mediante o exposto, ao longo das leituras dos textos, preferimos focar


nos dados biográficos no intuito de ajudar leitores futuros a conhecerem
um pouco mais sobre o perfil de escrita da francesa Simone Weil. Pensou-
se neste quesito, em virtude da complexidade de algumas obras da escri-
tora, e através da ligação entre vida e obra da estudiosa, percebeu-se a
necessidade de alguns esclarecimentos que facilitem a compreensão do
contexto de produção e dos fatos vividos por ela.
Desse modo, esperamos que a leitura desse estudo seja uma ferra-
menta facilitadora em especial nos quesitos relativos à vida da intelectual
que ao longo de sua trajetória tentou unir o conhecimento científico ao seu
modo de ver e sentir os fatos ao seu redor, mediante o pragmatismo de
suas ações, atentando ainda para a sua maneira singular de compreender
o divino ao longo de sua existência.
Ademais, tornamos explicíta as nossas contribuições sobre Simone
Weil, destacando que se trata de um estudo motivador para que outros
que assim desejarem sintam-se convidados a conhecer de modo mais pro-
fundo e com mais presteza a vida e as produções dessa escritora ainda
pouco conhecida por uma infinita massa de leitores e estudiosos das lite-
raturas. Em especial, as que fazem referência a mulheres de grande
relevância no campo científico e filosófico.

Sobre a vida de Simone Weil: uma síntese

Simone Adolphine Weil era francesa, mística, filósofa, escritora, den-


tre outras denominações, e nasceu no ano de 1909 em Paris e faleceu em
1943, em Ashford, Reino Unido, vítima de tuberculose. Weil, desde muito
jovem, teve a saúde fragilizada, sofria de miopia e, mais adiante, teria pro-
blemas de saúde advindos de fortes enxaquecas. Apesar dessas condições
adversas, ela sempre obteve destaque por meio da sua inteligência e busca
pelo conhecimento, fato que pode ser percebido ao longo de sua breve vida
94 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

quando nos deparamos com a diversidade cultural e a bagagem de leitura


que a filósofa expressava mediante as suas vivências, que tendem a fazer
ponte entre a teoria e a prática – vida e obra inteiramente interligadas –
dos assuntos por ela estudados e defendidos.
Vinda de uma família de origem judia, não praticante, o seu pai era
um médico com ascendência francesa e a sua mãe era uma dona de casa,
de genealogia russa, que se dedicava à instrução dos filhos, que eram dois:
Simone Weil e André Weil, o qual também obteve um bom desempenho
nos estudos, em especial, nas ciências exatas, tornando-se muito conhe-
cido na sua época, como eminente matemático. Os dois jovens de
comportamento semelhantes trilharam caminhos que os endereçaram
para o universo científico, tornando-os pessoas esclarecidas e conhecedo-
res de diversas áreas do conhecimento, cada qual ao seu modo e
especificidade.
Weil formou-se em filosofia pela Sorbonne Université e lia em latim
e grego, idiomas que foram aprendidos pela jovem ainda na sua adoles-
cência. Ademais, foi uma assídua leitora e apreciadora de obras da tradição
filosófica e literária grega, a exemplo de Homero, Platão, Descartes e Kant.
Além disso, podemos ainda classificá-la como discípula do filósofo Alain e
também realizou uma leitura atenta dos postulados de Karl Max.
Assim, a filósofa pode ser considerada uma mulher à frente de seu
tempo, pela maneira como se comportava e defendia seus ideais. Mesmo
tendo a saúde frágil, Weil enfrentava diversas situações, e se dispunha a
realizar atividades ousadas com o objetivo de viver e perceber verdadeira-
mente as situações apresentadas em seu entorno, com comprometimento
e entrega de si mesma. Em acréscimo, Simone presenciou as duas Guerras
Mundiais (1914-1918/1939-1945), o avanço do nazismo e suas consequên-
cias na Europa. A partir disso, percebemos a força e a coragem da francesa,
pois:
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 95

[...] após muitos percalços e muita pertinácia da parte dela, Weil consegue
juntar-se à resistência francesa em Londres: no final de novembro de 1942 ela
consegue chegar a Liverpool. Restarão para ela apenas mais nove meses de
vida. Meses de intensa produção teórica e de engajamento prático na resistên-
cia. Ela sente-se fracassada por não conseguir a autorização do General De
Gaulle, chefe da resistência francesa em Londres, para poder realizar o projeto
relacionado às enfermeiras de fronteira, por ela idealizado. O plano consistiria
em lançar de paraquedas, nos campos de batalha, um grupo de jovens mulhe-
res com algum conhecimento em enfermagem (a própria Weil capacitou-se
rapidamente para poder ser enviada) a fim de socorrer os aliados, mas tam-
bém seus inimigos, o que deveria ocorrer no próprio campo de batalha
(PUENTE, 2020, p. 59-60).

Conforme o exposto, vemos que a vida de Weil pode ser lida como
uma constante e intensa transgressão, pois a todo instante ela saía da sua
zona de conforto e estava em busca “da entrega si” em prol dos menos
favorecidos, pois, para ela, o bem deveria ser feito ao próximo sem ne-
nhum interesse. Desse modo, referente à entrega de si, percebemos que
esse ato tinha como principal exemplo a “Paixão de Cristo”, pois era um
momento exemplar de amor ao próximo que a motivava em seus gestos
caridosos.
Ainda sobre a compaixão de Weil, muitas vezes, para praticar a cari-
dade, esquecia-se da sua fragilidade física: “É interessante notar que essa
atitude remete à decisão tomada durante a Primeira Guerra Mundial, com
apenas seis anos de idade, [...] recusar-se a comer açúcar porque os solda-
dos que lutavam nas trincheiras estavam privados de consumir açúcar”
(PUENTE, 2020, p. 60).
Diante disso, compreendemos que os seus atos de caridade – para ela,
uma ação de justiça – chegam ao ponto de não se prender a essas condições
adversas, pois, todo o contexto que a cercava lhe servia de combustível
96 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

para habitar cenários outros que, talvez, por sua constante saúde delicada,
fosse impedida de adentrar. Fato que não a intimidava diante de seus ob-
jetivos enquanto filósofa, professora – trabalhadora braçal por um período
–, dentre as mais variadas situações que ela se propôs a cumprir.
Simone Weil nasceu no berço de uma família abastada, onde recebeu
uma excelente educação, inicialmente, por incentivo dos pais e ao longo do
seu crescimento o interesse pelo conhecimento partia de seu próprio des-
pertar. As obras que lia incentivavam-na a estudar e tinham para si um
caráter esclarecedor que a ajudava compreender melhor o comporta-
mento humano – em especial, na relação com o divino –, de modo a fazê-
la perceber as mazelas humanas e as circunstâncias que ela podia ou não
estar inserida, mediante as situações de “enquadramento” presentes na
sociedade.
Ainda no que diz respeito à infância de Weil e a sua condição social e
financeira estável, mesmo sempre tendo o melhor ofertado pelos seus pais,
a filósofa, já na sua idade pueril, mostra-se uma pessoa bastante espiritu-
alizada e caridosa, ao ponto de abster-se do consumo de doces durante a
infância, como já foi dito anteriormente, acontecimento que ela julga como
sendo um ato de justiça, semelhante ao jejum praticado por algumas reli-
giões. Mas no tocante à caridade, desde muito cedo, essa virtude fazia parte
das práticas de Simone Weil, como podemos ver quando ela afirma que
“sempre teve, desde a primeira infância, a noção cristã de caridade ao
próximo, à qual ela deu o nome de justiça, [...]” (WEIL, 2019, p. 30, grifo
nosso).
Sendo assim, todo o seu comportamento era vivenciado como uma
forma de praticar a caridade e o despojamento do seu querer em benefício
dos mais necessitados, antes mesmo que Deus a encontrasse, quando, en-
tão, saiu da condição de agnóstica para a condição de escrava do Cristo,
por quem ela se sentia completamente apaixonada e mergulhada no mais
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 97

belo sentimento. Fato que ocorre durante uma de suas viagens com seus
pais, que pode ser vista como a sua primeira experiência mística, num pe-
queno vilarejo, quando a tristeza de muitos que ali habitavam se faz
perceber semelhante à sua. Com isso, ela compreende que para o indivíduo
ser feliz é preciso passar pela tristeza, esvaziando-se de si mesmo para as-
semelhar-se ao Cristo.
A partir desse seu primeiro episódio místico e dos gestos concretos
para com o próximo, percebemos na filósofa a incessante “espera por
Deus”, por mais que ela nunca o tenha buscado. Através de algumas expe-
riências místicas, o divino, mais tarde, se revela, quando ela descobre sua
afeição pelo cristianismo, embora o critique por sua maneira dogmática de
se estabelecer diante dos que o seguem, recusando o batismo – momento
em que o padre Perrin adentra a sua história, embora não logre êxito no
que diz respeito a este tema. Pois, Weil julgava desnecessário aquele ato,
visto que ela não lhe atribui sentido, como ela mesma afirma:

É claro, eu sabia muito bem que a minha concepção de vida era cristã. É por
essa razão que nunca me passou pela cabeça que eu poderia entrar no cristia-
nismo. Eu tinha a impressão de ter nascido em seu interior. Mas acrescentar
a essa concepção de vida o próprio dogma, sem ser a isso obrigada por uma
evidência, teria me parecido uma falta de probidade (WEIL, 2019, p. 33).

Para ela, o batismo iria direcioná-la para o cumprimento de regras


que a impediria de conhecer outras religiões. A partir disso, surge, então,
a negação do dogma, pois nada acrescentaria na relação sagrado e hu-
mano, caso viesse a adquiri-lo. Destarte, a jovem Simone compreendia que
o encontro entre ambos (Deus e ela) deveria acontecer sem intervenções
alheias, mas sim, por meio da prática do bem, para que o divino, a partir
disso, viesse ao encontro do humano. Como podemos ver, temos essa afir-
mação quando Weil diz em um trecho de sua Autobiografia Espiritual,
98 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

afirmando: “Posso dizer que em toda minha vida jamais, em momento al-
gum, busquei Deus [...]” (WEIL, 2019, p. 30). Ela defende a ideia de que o
próprio Cristo é quem veio ao encontro dela.
Além disso, ao longo de sua vida, nos deparamos com algumas oca-
siões em que o seu lado místico é despertado. Na sua Autobiografia
Espiritual, percebemos em três momentos algumas experiências que a fi-
zeram se aproximar do cristianismo mesmo sem vínculo com religião
alguma. Ainda nesse período, ela enfrenta diversas situações a contragosto
em busca pela “verdade”. Assim como quem costura um tecido com o in-
tuito de unir os pedaços ao ponto de se tornarem uma bela tapeçaria,
Simone Weil buscava, através do conhecimento, o entendimento dos acon-
tecimentos da vida humana. Isto é, uma verdadeira união entre as
experiências terrenas (humanas) interligadas ao mundo do sagrado.
Embora, inicialmente, seja percebida como agnóstica, a vida lhe apre-
senta contextos adversos (e diversos) que, outrora, não percebia. Como
acontece na sua primeira experiência mística, ao se deparar com uma pro-
cissão num pequeno vilarejo em Portugal. Assim, ao ouvir cantos
chorosos, a mesma se identifica com o sofrimento daqueles que, motivados
pelo cristianismo, se entregam sem reservas, enlevados pelo ato de “crer”
numa divindade, no próprio Cristo, que se aproximava de cada um e de
todos pela condição miserável e infeliz que estavam a contemplar em meio
a sua existência. Nesse momento, ela compara a sua tristeza a tristeza da-
quele povo, envolto a tantas ausências e injustiças por ela observadas:

[...] entrei naquele vilarejo português – que era, aliás, também muito miserá-
vel – sozinha, à noite, sob a lua cheia, no dia da festa do padroeiro. Era à beira-
mar. As mulheres dos pescadores andavam em volta dos barcos, em procissão,
carregando círios e cantando cânticos certamente muito antigos, de uma tris-
teza de cortar o coração. [...] Lá eu tive de repente a certeza de que o
cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que os escravos não
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 99

podem deixar de aderir ao cristianismo, e eu entre os outros (WEIL, 2019, p.


34-35).

A partir desse momento, a pensadora francesa percebe que a infelici-


dade era uma forma de redenção, de aproximação com o sagrado, já que,
para se aproximar d’Ele, segundo ela, era preciso esvaziar-se, desprender-
se da materialidade presente no mundo. Ademais, sobre o momento em
que Simone Weil escreve a sua Autobiografia Espiritual, a filósofa se en-
dereça ao padre Perrin, um grande amigo, com quem ela costumava
conversar. Nessa carta, Weil começa apresentando seus argumentos sobre
o porquê de não desejar o batismo, pois o próprio Cristo viria ao seu en-
contro, ao invés de ela ir até ele. Assim, Simone afirma:

Posso dizer que em toda minha vida jamais, em momento algum, busquei
Deus. Por essa razão talvez, sem dúvida subjetiva demais, essa é uma expres-
são que eu não gosto e que me parece falsa. Desde a adolescência eu achava
que o problema de Deus é um problema cujos dados estão faltando aqui em
baixo e que o único método eficiente para resolvê-lo de maneira errada, o que
me parecia ser o maior mal possível era não perguntando. Dessa maneira eu
não perguntei. Eu não afirmava nem negava. Parecia-me ser inútil resolver
esse problema, pois eu pensava que, estando neste mundo, cabe a nós adotar
a melhor atitude possível para com os problemas dele, e que essa atitude não
dependia da solução do problema de Deus (WEIL, 2019, p. 30).

Atitude essa, portanto, que traz para nós reflexões sobre o nosso com-
portamento de espera, mediante os conflitos existentes no mundo, assim
como fez a escritora francesa no decorrer de sua jornada diante de suas
lutas em favor dos menos favorecidos; em defesa de causas das classes
minoritárias, objetivando, com isso, “resolver os problemas da forma mais
adequada possível”, o que a impulsionava a ter uma postura de modo pa-
cífico e racional.
100 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Isso posto, compreendemos que Simone Weil estava também direta-


mente ligada às condições que envolviam o proletariado, fato que a fez
pedir licença da escola onde lecionava para poder experimentar o trabalho
exaustivo em uma fábrica – momento que proporcionou a Weil observar
as relações que se passavam naquele ambiente –, pois ela havia estudado
sobre a temática, mas agora, a filósofa desejava vivenciá-la para melhor
compreendê-la.
Ainda em sua Autobiografia Espiritual, a escritora expõe sua condi-
ção interior, no que diz respeito ao seu lado espiritual, pois por ser tão
jovem e virtuosa, o padre Perrin desejava tê-la como participante da reli-
gião católica, como se, pelo batismo, fosse possível um encontro com
Cristo. Mas para Weil, o encontro já havia acontecido sem intermediações,
pois, para ela, não existia essa necessidade:

O senhor não me trouxe a inspiração cristã em Cristo, pois quando eu o en-


contrei isso não estava mais por fazer; já tinha sido feito sem a intermediação
de nenhum ser humano. Se assim não fosse, se eu não tivesse sido arrebatada
por Cristo, não apenas implícita, mas conscientemente, o senhor nada teria
me dado, pois eu nada teria recebido do senhor (WEIL, 2019, p. 29).

Mediante o exposto, notamos nesse momento um tom de recusa, não


do divino, mas sim, do dogma. Percebemos, por conseguinte, de acordo
com o pensamento de Weil, que a inspiração cristã vem de dentro do ser,
a partir das reflexões e ações. Ou seja, da consciência que se cria sobre o
divino, vindo a se concretizar no momento de aproximação entre Cristo e
o ser humano ao longo da espera de Deus.

O afastamento da vaidade é reflexo do amor: Simone Weil e as obras do


Cristo

Simone Weil é um dos mais visíveis exemplos de simplicidade e de-


sapego aos bens materiais e das sensações egoístas imbuídas no ser
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 101

humano. Embora seja advinda de uma família de origem abastada, ela


sempre procurava se distanciar do que poderia gerar ou expressar desi-
gualdade no contexto onde vivia. A figura de uma jovem mulher com vasta
bagagem cultural e, também, pertencente à classe burguesa, despertava
inconformismo de muitos pela maneira que ela se vestia, pois, para eles,
aquele modo de se vestir não era compatível com a condição socioeconô-
mica de Weil: “Era acostumada a vestir-se com roupas simples, até
transcurada, parecendo um pouco desleixada, ao ponto de as pessoas mais
próximas, além de repreendê-la, às vezes, sentiam vergonha de sair com
uma mulher trajada daquele jeito esquisito” (CUGINI, 2010, p. 2).
Tendo em vista que esse era o desejo de Weil, estar e viver o desapego
em solidariedade para com os menos favorecidos, sua maneira de se vestir,
comumente referenciada por alguns estudiosos da vida da francesa, serve
para refletirmos a fim de perceber a crítica da filósofa diante das inúmeras
situações de desigualdades existentes no mundo. Desse modo, a postura
de Weil foi impactante e até hoje ainda o é, pois, todos os que leem seus
textos não saem isentos da carga reflexiva no que diz respeito às estruturas
sociais que nos cercam. Ela nos põe em uma situação de desconforto para
conosco e em relação ao mundo, propondo-nos refletir, especialmente, so-
bre o amor, a caridade e a justiça que devemos utilizar no convívio social
em relação ao próximo e no tocante as nossas incompreensões passíveis
de entendimento.
Portanto, Simone Weil, a partir de seu exemplo, nos cobra uma pos-
tura completamente concatenada de estar no mundo, como também ela
fez ao longo da sua vida, participando por meio de inúmeros atos em prol
de si e, em especial, do outro; relacionando, de modo intrínseco, o ser e o
estar no mundo, semelhante a si mesma que fez uma extensão entre vida
e obra através de sua extrema espiritualidade e compaixão. Dessa ma-
neira, assemelhando-se ao Cristo em sua paixão, podemos dizer, como
102 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

afirma Cugini (2010), que o modelo de tudo isso para Weil é a cruz de
Cristo. “Se quisermos que o amor de Deus molde todo elemento da exis-
tência humana, então, não tem outro caminho que fitar os olhos em Deus
e manter o olhar fixo Nele.” (CUGINI, 2010, p. 08).
Assim, a mística francesa nos propõe uma reflexão sobre as estrutu-
ras sociais, em especial, representada pelas religiões, a exemplo da
católica. Ademais, ela também nos coloca numa postura reflexiva sobre o
mundo diante do outro que sofre. Além disso, apesar de sua forte afeição
por Cristo, Simone Weil não se prende a nenhum credo em específico. Ela
se apropria dos mais variados conhecimentos que possa lhe favorecer uma
aproximação cada vez mais íntima com o amor, com Cristo, pois: “Nin-
guém pode pensar em ter o monopólio do amor. Não existe religião ou
sociedade que possa argumentar de ser o dono do amor” (CUGINI, 2010,
p. 12).
Destarte, a caridade, ou como ela mesma chama “a justiça”, é uma
das manifestações do profundo amor a Deus, refletido no amor ao próximo
por meio da defesa de causas que venha beneficiar os pobres e miseráveis
como ela mesma os define. De modo que, “A justiça, considerada pela Weil
como uma virtude sobrenatural, manifesta esta qualidade sobrenatural
quando num relacionamento de forças desiguais o superior trata como
igual o inferior” (CUGINI, 2010, p. 12-13). Em síntese, a partir das consi-
derações do fragmento acima e voltando o nosso olhar para a própria Weil,
enquanto “virtude sobrenatural”, ela não aprendeu e não adquiriu esse
mérito através da educação de qualidade por ela recebida, mas sim, a filó-
sofa já nasceu e se constituiu com tal propriedade ao ponto de apenas ser,
de somente expressar o que havia dentro de si através de seus atos de jus-
tiça e/ou caridade.
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 103

Considerações finais

Existem vários aspectos da vida da escritora que podem ser analisa-


dos, e essa é uma das grandes dificuldades dos que se dispõem a estudar a
vida e a obra dessa filósofa, visto que esses dois nichos (vida e obra) se
entrelaçam na mesma intensidade e contexto. Diante disso, vemos que a
vida de Weil está intrinsecamente ligada às suas obras, pois observamos
que todas as suas produções escritas fazem referência a um determinado
ideal por ela defendido. Isto é, está relacionado a um momento da movi-
mentada vida de Weil, que morreu tão cedo, aos 34 anos, mas que deixou
um grande legado por meio de seus escritos, na sua incansável busca por
conhecimento e reconhecimento das lutas de classes minoritárias, que
ainda podem ser definidas, também, como sendo uma luta weiliana.
Não obstante, Simone Weil se engajava em movimentos em defesa
do proletariado e desejava participar de trabalhos voluntários com o in-
tuito de ajudar os mais necessitados. Desse modo, Weil prezava pela
experiência prática das situações que ela defendia, fazendo-se indiferente
às suas limitações, assim como aconteceu no fim da sua vida. De tal modo:

[...] ela que já se alimentava parcamente e fumava desenfreadamente, dei-


xando de comer, pois se recusava a ingerir mais do que um francês na França
dominada pela Alemanha nazista poderia fazer. É interessante notar que essa
atitude remete à decisão tomada durante a Primeira Guerra Mundial, com
apenas seis anos de idade, de recusar-se a comer açúcar porque os soldados
que lutavam nas trincheiras estavam privados de consumir açúcar. Por fim, já
enfraquecida, ela acaba adoecendo em Londres, sendo transferida em seguida
para um hospital na cidade de Ashford e vindo a falecer em agosto do ano de
1943, aos 34 anos de idade. Lá se encontra a sua sepultura (PUENTE, 2020, p.
60).

E assim se deram os gestos de justiça da francesa ao longo de sua


vida, participando indiretamente das guerras e diretamente de alguns
104 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

movimentos no decorrer de sua jornada como mulher e professora, sem-


pre buscando fazer a sua parte enquanto ser humano. Assim, Weil nos
ensina, mediante essas situações, a compaixão pelo próximo e diferentes
maneiras de expressar e fazer o bem pelos que vivem em condições desi-
guais, visto que vivemos em uma sociedade desigual e cheia de injustiças.
Um corpo social em que o amor fica à margem de qualquer sentimento,
em um mundo pós-moderno cheio de relações rasas, desprovido de cari-
dade para com o outro, afastando-se, por conseguinte, dos ideais de paz e
compaixão ao próximo.
Portanto, tratar de Simone Weil é estar aberto a mergulhos profun-
dos no que diz respeito à condição humana, suas misérias, suas limitações,
egoísmos e reflexões sobre o amor à figura divina. Estudá-la é refletir so-
bre os muros impostos pelos dogmas, em especial, os da Igreja Católica,
dentre outras instituições civis e partidárias, que tentam doutrinar o indi-
víduo a se comportar seguindo restrições que engessam a visão humana
sobre como proceder com suas crenças e descobertas.
Em conclusão, podemos observar nesse estudo, a partir de Simone
Weil, uma espera de Deus composta pelas boas ações que o indivíduo rea-
liza em favor do outro, ou seja, seus atos de misericórdia, assemelhando-
se à figura de Cristo, através do afastamento da vaidade e da crítica às
situações de opressão presentes no mundo. Assim, foi possível evidenciar
atos de paz e benevolência para com os menos favorecidos, pois, “[...] é
Deus quem se manifesta [...] em favor de um outro, sobretudo se for mais
fraco e, por isso, mais invisível, é a justiça de Deus que se manifesta [...]”
(CUGINI, 2010, p. 14).

Referências

CUGINI, Paolo. Para uma espiritualidade encarnada: a mística do amor em Simone Weil.
Dialesthai. Revista Telemática di Filosofia. Roma. vol. 11, 2010. p. 01-19. Disponível
Erica Dayana Monteiro Cavalcante | 105

em: https://mondodomani.org/dialegesthai/articoli/paolo-cugini-03. Acesso em: 15


de dezembro de 2020.

PUENTE, Fernando. Simone Weil. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas:


Mulheres na Filosofia. Campinas. v. 06, n. 03, 2020. p. 55-69. Disponível em:
https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/simone-weil/. Acesso em: 20
de dezembro de 2020.

WEIL, Simone. Autobiografia Espiritual. In: Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro
a 26 de maio de 1942. Tradução de Karin Andrea de Guise. Petrópolis: Vozes, 2019.
p. 29-40.
6

Testemunho e sagrado em Simone Weil

Jéssica da Silva Nascimento


Reginaldo Oliveira Silva

Considerações iniciais

Simone Adolphine Weil foi uma filósofa, mística e escritora que nas-
ceu em 1909 na cidade de Paris, França, e faleceu no ano de 1943 em
Ashford, Reino Unido. Vinda de uma família de origem judaica não prati-
cante, foi criada em meio ao agnosticismo, juntamente com seu irmão
André Weil, conhecido matemático da época. Sempre muito estudiosa, na
juventude entrou para o Liceu Henri IV, onde estudou com Émile Chartier,
conhecido pelo pseudônimo Alain, o qual influenciou largamente seu pen-
samento. Na sequência, formou-se em Filosofia pela Sorbonne Université,
sendo uma das primeiras mulheres a estudar lá, juntamente com Simone
de Beauvoir.
Simone Weil foi também professora de filosofia de alunas em escolas
públicas de nível médio. No período de docência, distribuía o seu salário
aos operários em situação de vulnerabilidade, vivendo apenas com o ho-
norário de desemprego. Nessa época também participava de lutas sindicais
a favor da classe trabalhadora.

Simone Weil viveu em uma época marcada não somente pelas duas Grandes
Guerras, mas também por intensos movimentos político-sociais de luta por
melhores condições de trabalho para os operários, bem como por um engaja-
mento dos intelectuais na formação educacional dos trabalhadores. Tudo isso
se manifesta fortemente em sua produção filosófica (PUENTE, 2020, p. 55).
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 107

Para entender melhor a luta trabalhadora, em um período entre 1934


e 1935, aos vinte e cinco anos, consegue uma licença de um ano do trabalho
como professora e passa a trabalhar em fábricas. A partir desse trabalho,
ela percebe o esgotamento pelo qual os trabalhadores passavam, notando
que nessas condições não tinham nem como pensar sobre sua condição.
Em 1940 embarca para Marselha com os pais, fugindo da perseguição aos
judeus, para em seguida levá-los para Nova York. Um ano depois começa
a ter contato com o Padre Joseph-Marie Perrin, a quem escreveu diversas
cartas que foram publicadas posteriormente por ele. Nessa época resolve
que precisa conhecer a realidade do campo e por intermédio do Padre Per-
rin vai para a fazenda de Gustave Tibon, onde tem experiências de
trabalho no campo. No ano de 1942, começa a fazer parte da resistência
francesa em Londres no período de dominação e invasão nazista. Tenta ir
para campo na França, mas não recebe autorização para isso devido a sua
saúde frágil. Morre em 1943 por complicações referentes à tuberculose.
Nota-se a partir da biografia de Simone Weil que ela nunca foi uma
simples teórica. A exemplo de sua estadia na fábrica e no campo, a filósofa
sempre buscou conhecer a fundo aquilo sobre o que falava. Estava cons-
tantemente em busca da ação, de ver por si os acontecimentos e ajudar
aqueles que precisavam e só não fez mais porque sua saúde fragilizada não
lhe deu oportunidade. Dessa forma, Simone Weil não somente escrevia
sobre a miséria, pobreza e sofrimento humanos como tentou de diversas
formas ter a experiência de tais situações para falar com uma maior pro-
priedade.
Diante disso, percebemos que a filósofa procedia da mesma maneira
em relação ao sagrado, buscando pensá-lo a partir de suas experiências.
Estas podem ser consideradas místicas, pois Simone Weil não buscava a
Deus através da religião e sim por uma ligação direta com ele e é também
por isso que não consegue aceitar ser batizada por Padre Perrin, além do
108 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

fato de já se sentir cristã e por não querer abrir mão do que as outras
religiões têm a oferecer. Assim, ao falar sobre o sagrado, o faz por meio do
testemunho de suas vivências em relação a ele. Desta feita, pretendemos
analisar de que forma sagrado e testemunho se relacionam em algumas
cartas (“Hesitações diante do batismo”, “Mesmo assunto”, “Sobre a sua
partida”, “Autobiografia espiritual” e “Últimos pensamentos”) escritas por
Simone Weil a Padre Perrin, publicadas no livro “Espera de Deus” (Ed.
Vozes, 2019). Entendemos que ao tentar explicar ao Padre Joseph-Marie
Perrin o porquê de não querer ser batizada, Simone Weil fala de Deus e de
diversas situações relacionadas ao Sagrado a partir do testemunho de sua
relação com elas.
A fim de refletir sobre a cartas da autora e as relacionar ao testemu-
nho, utilizaremos como referenciais teóricos Agamben (2008) e
Seligmann-Silva (2008, 2010) para entender o que é a literatura de teste-
munho, Conceição (2011), sobre o testemunho no âmbito religioso, Otto
(2007) em relação às características do sagrado, mais especificamente do
numinoso, Certeau (2015), para compreender como se caracteriza a escrita
mística, bem como Nogueira (2015), sobre a mística feminina.

Literatura de testemunho: narrar o inenarrável

De saída, consideramos necessário situar o testemunho em face do


fim da narrativa, da transmissão da experiência. Walter Benjamin (1989)
defende que após as novas técnicas de reprodução, por meio das quais tor-
nou-se possível reproduzir em massa diferentes tipos de arte, bem como
do surgimento do cinema, o qual aumentou o valor de exibição e a percep-
ção distraída, rompendo com a tradição aurática, houve diversas
modificações nas artes. Uma delas foi o surgimento do romance, que in-
tensificou as mudanças, por proporcionar a possibilidade de uma leitura
solitária e de tratar temas individuais, o que para Benjamin era como a
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 109

morte da narrativa pois essa, segundo ele, deveria ser relacionada à cole-
tividade, à capacidade de compartilhar experiências, tal como consistia a
relato do marinheiro que retorna de terras estrangeiras ou o camponês
sedentário, para o alemão, os narradores genuínos.
Segundo Benjamin (1989), os homens voltavam da guerra sem con-
seguir mais se expressar, em decorrência do que haviam sofrido. A
experiência da guerra seria assim o golpe final para a narrativa, pois não
havia linguagem para simbolizar a sua experiência, mas também, não ha-
via a quem as comunicar. No entanto, ao que parece, o testemunho, e a
literatura que dele e com ele surge, desafia o confinamento que silencia as
vivências, e insiste em tornar-se letra.
Agamben (2008) afirma que em latim há dois termos para represen-
tar a testemunha:

O primeiro, testis, de que deriva o nosso termo testemunha, significa etimolo-


gicamente aquele que se põe como terceiro (*terstis) em um processo ou em
um litígio entre dois contendores. O segundo, superstes, indica aquele que vi-
veu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho
disso (AGAMBEN, 2008, p.27)

Dessa forma, testis seria um testemunho de fora da situação, como


terceiro, enquanto superstes seria relativo a alguém que vivenciou a situ-
ação de dentro. Ao comentar sobre essa diferenciação, Seligmann-Silva
(2010) defende que não devemos separar totalmente os dois sentidos.
Afirma que

Ao invés de reduzir o testemunho ao paradigma visual, falocêntrico e violento


(que tende a uma espetacularização da dor), e sem esquecer testis a favor ape-
nas de superstes, minha proposta é entender o testemunho na sua
complexidade enquanto misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de
110 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

julgar: um elemento complementa o outro, mas eles relacionam-se também


de modo conflituoso (SELIGMANN-SILVA, 2010, p.5).

O testemunho é uma atividade elementar daqueles que passam por


uma situação radical de violência, como por exemplo os Lager (campos de
concentração). Seligmann-Silva (2008, p. 66) afirma que aqueles que pas-
sam por tais circunstâncias têm uma carência de narrar, usam o
testemunho para estabelecer uma ponte com os outros, se despedir do La-
ger. “Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido
primário de desejo de renascer” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.66). Além
disso, há uma responsabilidade em manter a memória desses lugares:
“Nestas situações, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em
massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é
sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória indivi-
dual e outro construído pela sociedade.” (SELIGMANN-SILVA, 2008,
p.67). O intuito de não esquecer tais acontecimentos é manter uma refle-
xão sobre eles, para que não se repitam.
Apesar de ter uma relação estreita com a coletividade, o testemunho
é também individual, isto porque

Todo testemunho é único e insubstituível. Esta singularidade absoluta condiz


com a singularidade da sua mensagem. Ele anuncia algo excepcional. Por ou-
tro lado, é esta mesma singularidade que vai corroer sua relação com o
simbólico. A linguagem é um constructo de generalidades, ela é feita de uni-
versais. O testemunho como evento singular desafia a linguagem e o ouvinte
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p.72).

Mesmo sendo sobre um mesmo evento, cada pessoa tem uma expe-
riência pessoal do acontecimento e o desafio é narrar, através da
linguagem, algo tão singular. Agamben (2008) afirma que o testemunho
traz uma lacuna, pois as pessoas não conseguem descrever tudo que
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 111

viveram, bem como aqueles que sobreviveram não passaram por tudo que
o Lager podia fazer com a pessoa, pois aqueles que vivenciaram tudo não
sobreviveram. Desta feita, aquele que testemunha, encontra diversas difi-
culdades e deve mostrar em seu testemunho, através de uma não-língua
(porque a língua conhecida não dá conta) a impossibilidade de testemu-
nhar.

Isso significa que o testemunho é o encontro entre duas impossibilidades de


testemunhar, que a língua, para testemunhar, deve ceder o lugar a uma não-
língua, mostrar a impossibilidade de testemunhar. A língua do testemunho é
uma língua que não significa mais, mas que, nesse seu ato de não significar,
avança no sem língua até recolher outra insignificância, a da testemunha in-
tegral, de quem, por definição, não pode testemunhar (AGAMBEN, 2008,
p.48).

Há no testemunho, Agamben assim o compreende, um paradoxo,


pois ao mesmo tempo que não há possibilidade de testemunhar integral-
mente, há uma responsabilidade em contar o que aconteceu nesses
lugares, inclusive em respeito à memória daqueles que não podem mais
falar sobre o que foi vivido.
É nesta linha, do fim da narrativa e da retomada do relato, como se
vê no testemunho, mesmo que circunscrito ao impossível de narrar, que
encontramos nas cartas de Simone Weil um tipo de testemunho um pouco
diferente, relacionado ao sagrado, mas estreitamente ligado às caracterís-
ticas do que é teorizado por Agamben e Seligmann-Silva. O testemunho
do qual falamos é comentado por Conceição (2011) ao analisar a obra de
Adélia Prado. Ele afirma que a literatura de testemunho é marcada pela
“experiência radical, limite e extraordinária por parte daquele que decide
testemunhar tal experiência” (CONCEIÇÃO, 2011, p.490) e que “É nesse
caminho que posso correlacionar o tipo de experiência que é produzido no
112 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

âmbito da religião e a que é representada no campo da literatura de teste-


munho.” (CONCEIÇÃO, 2011, p.490).
Segundo Conceição (2011), a experiência com Deus é intensa, pro-
funda. Por ser tão excepcional, aquele que passa por ela sente a
necessidade de testemunhá-la: “É a luta contra o esquecimento de um
evento profundo que traz a lembrança de uma experiência excepcional à
superfície da literatura de testemunho” (CONCEIÇÃO, 2011, p.491). É essa
a situação que encontraremos no testemunho de Simone Weil, eventos ex-
traordinários em relação ao sagrado, os quais ela tem necessidade de
testemunhar, ao mesmo tempo que enfrenta dificuldades em fazê-lo.

Do numinoso às escrituras místicas: diferentes formas de pensar o sagrado.

Quando nos referimos ao sagrado podemos estabelecer diversos sen-


tidos, relacionados a diferentes religiões ou não. É por isso que Rudolf Otto
o pensa de forma distante de conceitos. Ele afirma que a categoria do sa-
grado “apresenta um elemento ou ‘momento’ bem específico, que foge ao
acesso racional no sentido acima utilizado, sendo algo árreton ["impro-
nunciável"], um ineffabile ["indizível"] na medida em que foge totalmente
à apreensão conceitual” (OTTO, 2007, p.37). Otto (2007) explica que era
utilizado o termo Heilig, um equivalente para sagrado, o qual não dava
conta, porque seu uso não é rigoroso e sempre subentende “algo mais”. A
fim de exprimir o “algo mais” que caracteriza o sagrado, ele emprega o
conceito de “numinoso”:

Portanto é necessário encontrar uma designação para esse aspecto visto isola-
damente, a qual, em primeiro lugar, preserve sua particularidade e, em
segundo lugar, abranja e designe também eventuais subtipos ou estágios de
desenvolvimento. Para tal eu cunho o termo "o numinoso" (já que do latim
omen se pode formar "ominoso", de numen, então, numinoso), referindo-me
a uma categoria numinosa de interpretação e valoração bem como a um estado
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 113

psíquico numinoso que sempre ocorre quando aquela é aplicada, ou seja, onde
se julga tratar-se de objeto numinoso. Como essa categoria é totalmente sui
generis, enquanto dado fundamental e primordial ela não é definível em sen-
tido rigoroso, mas apenas pode ser discutida (OTTO, 2007, p.38).

Como não pode conceituar tal termo, ele apresenta características


que seriam próprias dele. Apresentaremos algumas que podem ser relaci-
onadas com nosso trabalho. A primeira delas é o sentimento de criatura.
Otto (2007) nega a tese segundo a qual a percepção do sagrado passa pela
autopercepção, a referência na verdade é o numinoso. Sendo assim, o sen-
timento de criatura é “o sentimento da criatura que afunda e desvanece
em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura” (OTTO, 2007,
p.41). Dessa forma, porque existe algo maior que eu, me sinto pequeno,
pois há uma superioridade absoluta do numinoso.
Uma outra característica é o Mysterium Tremendum:

Essa sensação pode ser uma suave maré a invadir nosso ânimo, num estado
de espírito a pairar em profunda devoção meditativa. Pode passar para um
estado d'alma a fluir continuamente, em duradouro frêmito, até se desvane-
cer, deixando a alma novamente no profano. Mas também pode eclodir do
fundo da alma em surtos e convulsões. Pode induzir estranhas excitações, ine-
briamento, delírio, êxtase. Tem suas formas selvagens e demoníacas. Pode
decair para horror e estremecimento como que diante de uma assombração
(OTTO, 2007, p.44-45).

O Mysterium Tremendum se caracteriza pelos aspectos Tremendum


(p.45), que seria um tremor, temor não do tipo que fujo e sim do que fico
paralisado, fascinado, Avassalador (p.51), o qual se caracteriza pelo poder
do numinoso, uma sensação de afundar, ser nada em relação a ele, Enér-
gico (p.55), que se refere à energia do numinoso, expressa na “vivacidade,
paixão, natureza emotiva, vontade, força, comoção, excitação, atividade,
114 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

gana” (OTTO, 2007, p.55), e Mysterium, que estaria relacionado ao que


não é evidente ou entendido, causando estranheza. Otto (2007) afirma que
“as reações de sentimento diante do mysterium em nós se confundem fa-
cilmente com as reações diante do aspecto tremendum” (OTTO, 2007,
p.57), por isso falaríamos de um Mysterium Tremendum, o qual nos para-
lisa, causa temor e estranheza, mas também fascínio e admiração.
Desta feita, entendemos que existem várias formas de falar e/ou ter
uma experiência relacionada ao sagrado, através de instituições ou não.
Nos referimos à “mística” quando tal processo se dá sem intermediários.
Nogueira (2018) afirma que “A mística de todos os tempos e de todas as
culturas é sempre a união do humano com o divino, independente de que
forma esse divino seja nomeado” (NOGUEIRA, 2018, p.5). Tal termo pode
se relacionar a um tipo de experiência, pensamento, escrita, dentre outras
coisas. Quando falamos em textos místicos, estes são caracterizados como
a escrita de algo que alguém experienciou. É por isso, por exemplo, que
Certeau na introdução de “A fábula mística”, afirma que seu livro “se apre-
senta em nome de uma incompetência” (CERTEAU, 2015, p.1), pois fala da
mística sem ter passado por uma experiência do tipo. Ele afirma também
que a mística não pode ser enquadrada ou reduzida a uma só definição,
porque atua em relação a diversos âmbitos.
Para o historiador, “A mística é o anti Babel; é a busca de um falar
comum depois de sua fratura, a invenção de uma língua ‘de Deus’ ou ‘dos
anjos’, que atenua a disseminação das línguas humanas” (CERTEAU, 2015,
p.249). Esse trecho reforça a ótica de que a mística é uma experiência com
o sagrado sem intermediações, pois nele Certeau (2015) defende que ela
se dá através de uma relação direta com Deus, a partir de uma linguagem
comum. Além disso, o pesquisador afirma que “Quaisquer que sejam as
saídas que as comunicações místicas vão abrir, os dois verbos, falar e ou-
vir, designam o centro, incerto e necessário, em torno do qual se produzem
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 115

círculos de linguagem” (CERTEAU, 2015, p.253) Para que alguém fale, en-
tão, é necessário que outro escute, que haja um diálogo.

A ciência mística interroga, pois, ao mesmo tempo, a natureza da palavra


(vinda de uma voz), a da crença (atenção de um ouvido, fidex ex auditu) e a
do saber. Ela se fixa aí, no limiar onde a possibilidade de falar mede uma pos-
sibilidade de conhecer: como a alocução pode dar origem a um saber do outro?
(CERTEAU, 2015, p.253-254).

Como veremos, esse é um problema que Simone Weil enfrenta em


relação a seu testemunho, pois ela acredita que não tem quem a escute, as
pessoas não lhe dão importância. Ademais, as experiências dela com o sa-
grado são muito pessoais, então sente dificuldade em relação a como
contá-las a outros de forma compreensível se eles não viveram o mesmo.
Para que ocorra o diálogo supracitado Certeau afirma que é necessá-
rio um querer inicial, ao qual ele chama volo. Este é anterior ao discurso:

Em particular, o postulado desse modus loquendi se opõe à prática da lingua-


gem apologética, ou em uma pregação, que estabelece, no início, enunciados
comumente admitidos pelos interlocutores, e se propõe, nessa base, a obter no
fim uma adesão (uma “conversação” etc), isto é, uma mudança na vontade dos
destinatários. Aqui o volo é o a priori e não o efeito do discurso (CERTEAU,
2015, p. 263).

Dessa forma, não há um convencimento e sim um testemunho, para


o qual o outro está aberto. Quando pensamos dessa maneira, notamos a
importância da figura do Padre Perrin para o testemunho de Simone Weil,
pois ele foi aberto ao diálogo com alguém de fora da Igreja e talvez bem
diferente dele, invés de julgá-la por não querer o batismo, se tornou um
interlocutor para o testemunho de suas experiências e pensamentos em
relação ao sagrado.
116 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Como dito, as experiências vivenciadas por Simone Weil e sua escrita


podem ser consideradas místicas. Quando se trata da mística feminina,
Nogueira (2015) afirma que

De qualquer forma, podemos dizer que a mística feminina pode ser definida
por um movimento feito por mulheres que buscavam o divino a partir da
união das instâncias afetivas e intelectivas, às vezes acompanhado de visões
(como em Hildegard von Bingen e Hadewijch d’Anvers), outras vezes seguido
apenas por uma intensa reflexão (como em Marguerite Porete)” (NOGUEIRA,
2015, p.94).

O artigo escrito pela pesquisadora se refere às místicas medievais,


mas pode facilmente ser aplicado à Simone Weil, isto porque ela buscava
o divino a partir de uma experiência pessoal, sem interferências externas,
tinha vivências extra-sensoriais (como quando disse ter sido “tomada por
Deus”) e procurava sempre refletir sobre suas experiências, dando grande
importância à inteligência e buscando pensar criticamente sobre o que vi-
venciava. Dessa forma, as duas características propostas por Nogueira
(2015) para a mística feminina, a transgressão e a paixão pelo divino, po-
dem ser encontradas em Simone Weil. Assim, notaremos que tais aspectos
têm grande importância para entender o testemunho da filósofa. Isto por-
que, como veremos a partir de agora, ela testemunha suas experiências
com o sagrado, as quais podem ser vistas como místicas.

Testemunho e sagrado em Simone Weil

Como dito anteriormente, utilizaremos para nossa análise algumas


cartas que Simone Weil escreveu para Joseph-Marie Perrin, publicadas no
livro “Espera de Deus” (ed.Vozes, 2019), são elas intituladas: “Hesitações
diante do batismo”, “Mesmo assunto”, “Sobre a sua partida”, “Autobiogra-
fia espiritual” e “Últimos pensamentos”. Por estarem todas reunidas na
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 117

mesma obra, utilizaremos sempre a mesma referência e explicitaremos de


qual carta estamos falando somente quando necessário.
Primeiramente, é importante enfatizarmos a relevância da carta, gê-
nero textual dos escritos por nós analisados, no contexto da obra de
Simone Weil. Moraes (2007) afirma que podemos encontrar três vieses de
estudo do gênero epistolar:

Pode-se, inicialmente, recuperar na carta a expressão testemunhal que define


um perfil biográfico. Confidências e impressões espalhadas pela correspon-
dência de um artista, contam a trajetória de uma vida, delineando uma
psicologia singular que ajuda a compreender os meandros da criação da obra.
A segunda possibilidade de exploração do gênero epistolar procura apreender
a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período.
[...] Um terceiro viés interpretativo vê o gênero epistolar como “arquivo da
criação”, espaço onde se encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de
elaboração de uma obra artística, desde o embrião do projeto até o debate so-
bre a recepção crítica favorecendo a sua eventual reelaboração (MORAES,
2007, p.30).

Notamos que as cartas de Simone Weil têm um forte caráter biográ-


fico, pois nelas a filósofa conta os acontecimentos recentes para seu amigo
Padre Perrin e assim podemos recuperar muitos passos de sua trajetória.
Na carta “Autobiografia espiritual”, por exemplo, ela faz uma verdadeira
autobiografia, só que dos aspectos espirituais de sua vida. Dessa forma,
suas cartas adquirem um caráter fortemente testemunhal.
Simone Weil dizia nas cartas não gostar de falar de si, por não se
considerar boa suficiente ou digna de muita atenção. No entanto, se vê na
necessidade de falar por conta do interesse que Padre Perrin lhe devota:
“Estou cansada de falar de mim, pois é um assunto deplorável; mas sou
obrigada a voltar a ele por causa do interesse que o senhor me dedica de-
vido à sua caridade” (WEIL, 2019, p.9). Tal interesse se dava porque ele
118 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

tinha a intenção de que Simone passasse pelo batismo, por gostar muito
dela e acreditar que tal experiência seria algo bom e necessário para as
pessoas. Ela, no entanto, não queria ser batizada e escreve algumas cartas
para explicar o porquê da sua negativa. Ao tentar dar tal explicação, pre-
cisa esclarecer como para ela deveria ser a relação com Deus e o faz a partir
de seu testemunho, demonstrando que verdadeiramente existem outras
formas de se relacionar com o sagrado.
Diante dessa situação, Weil apresenta diversos motivos pelos quais
não quer se batizar. Antes de tudo, ela acredita que Deus não deseja que
ela participe da Igreja: “O tipo de inibição que me mantém fora da Igreja é
devido ou ao estado de imperfeição em que me encontro, ou pelo fato da
minha vocação e da vontade de Deus se oporem a isso” (WEIL, 2019, p.12).
Diz que nunca teve nenhum sinal de que Ele quisesse isso e que sempre
iria seguir Sua vontade, por mais que o contrário parecesse muito bom.
Ao falar das características da Igreja, afirma: “Eu amo a liturgia, os
cantos, a arquitetura, os ritos e as cerimônias católicas. Mas eu não tenho,
em grau algum, amor pela Igreja propriamente dita, fora da sua relação
com todas essas coisas que eu amo” (WEIL, 2019, p.15). Ela critica o fato
de a Igreja só aceitar tudo do jeito dela, principalmente a forma de falar e
se relacionar com Deus e afirma que por isso, para fazer parte da Igreja,
ela teria de se separar de sua maneira de pensar e de sua inteligência, o
que não estava disposta a fazer. Diz também que não poderia se “[...] se-
parar da massa imensa e infeliz dos fiéis” (WEIL, 2019, p. 13) e nem
“abandonar meus sentimentos relativos às religiões não cristãs e a Israel”
(WEIL, 2019, p.38).
Enquanto comenta os motivos de não querer ser batizada acaba te-
cendo críticas à Igreja enquanto instituição, principalmente sobre sua
relação com o social – “O que me dá medo é a Igreja como coisa social”
(WEIL, 2019, p.17) – e a necessidade de uma coletividade. Afirma que
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 119

Uma coletividade é guardiã do dogma; e o dogma é um objeto de contemplação


para o amor, a fé e a inteligência; três faculdades estritamente individuais.
Surge daí um mal-estar do indivíduo no cristianismo, quase desde a origem, e
sobretudo um mal-estar da inteligência. Não podemos negá-lo (WEIL, 2019,
p.46).

Weil defende que para a pessoa ter verdadeiramente uma conversa


com Deus é necessário que esta seja individual. Dessa forma, a coletividade
necessária para conservar o dogma da Igreja faz com que os indivíduos
não consigam ter uma relação próxima com Deus. Ela não nega, no en-
tanto, que essa coletividade traga alegrias, mas defende que sem ela
também podemos ser cristãos e que ela é um exemplo disso: “Pois se Deus
quiser realmente me ajudar, eu testemunharei que sem essa alegria [fazer
parte do corpo místico de Cristo, a coletividade da Igreja] podemos, con-
tudo, ser fiéis a Cristo até a morte” (WEIL, 2019, p. 48). Assim, é para isso
que testemunha, para mostrar que existem cristãos fora da Igreja.
Diante disso, percebemos que Simone Weil fala do que se relaciona
ao Sagrado a partir de sua experiência, do testemunho de sua relação com
Deus. Em “Autobiografia Espiritual” isso fica ainda mais claro, pois ela fala
das experiências místicas e do catolicismo. Logo no início da carta a filósofa
francesa explica o porquê de estar escrevendo: “Penso que se o senhor pu-
desse realmente compreender qual é a minha situação espiritual não
lamentaria de modo algum não ter me levado ao batismo” (WEIL, 2019,
p.29). Ela afirma que Padre Perrin não lhe trouxe uma inspiração cristã
porque quando o conheceu isso já tinha acontecido sem intermediação de
nenhum ser humano.
Confessa, então, jamais ter buscado a Deus, mas que as atitudes cris-
tãs sempre estiveram nela naturalmente. Algumas dessas atitudes que cita
são acreditar no momento da morte como norma e objetivo de vida, o
120 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

espírito de pobreza, a caridade ao próximo, que para ela é justiça, e a noção


de pureza (WEIL, 2019, p.30). Diante disso conclui que por isso nunca pen-
sou em entrar para o cristianismo, pois sua concepção de vida já era cristã
e não poderia entrar onde já estava.
Desta feita, conta que não frequentava a Igreja por lhe faltar o dogma,
mas que mesmo fora dela teve três contatos com o catolicismo “que real-
mente valeram a pena” (WEIL, 2019, p.33). O primeiro contato se deu após
a saída de Simone Weil da fábrica, na qual, como dissemos, ela sofreu e
viu muito sofrimento. Era noite e ela entrou em um vilarejo onde estava
acontecendo a festa do padroeiro, à beira mar. As mulheres dos pescadores
faziam uma procissão em volta dos barcos, cantando

[...] cânticos certamente muito antigos, de uma tristeza de cortar o coração.


Nada pode passar a ideia do que foi aquilo. Jamais ouvi nada tão pungente,
com exceção do canto dos rebocadores do Volga. Lá eu tive de repente a certeza
de que o cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que os escravos
não podem deixar de aderir ao cristianismo, e eu entre os outros (WEIL, 2019,
p.34-35).

Ela viu nesse momento a tristeza do canto dessas mulheres, ao


mesmo tempo que a entrega delas, percebendo a força da figura de Cristo
pois seu sofrimento é central para o cristianismo.
O segundo contato aconteceu em Assis, na capela Santa Maria dos
Anjos, onde “[...] algo de mais forte do que eu me obrigou, pela primeira
vez na minha vida, a me colocar de joelhos” (WEIL, 2019, p.35). Tal situa-
ção se justifica pelo fato de Simone Weil não se ajoelhar para rezar,
costume herdado dos vestígios do judaísmo em sua família, pois os judeus
rezam em pé. O terceiro contato da escritora parisiense com o cristianismo
se deu, segundo ela, em Solesmes, do domingo de Ramos à Terça-feira de
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 121

Páscoa, quando teve fortes dores de cabeça e escutou os cantos que vinham
dos ofícios da Igreja que faziam com que doesse ainda mais.

[...] cada som me doía como se fosse um golpe; um extremo esforço de atenção
me permitiu sair desta carne miserável, deixando-a sofrer sozinha, recolhida
em seu canto, e encontrar alegria pura e perfeita na beleza inusitada do canto
e das palavras. Essa experiência me permitiu por analogia melhor compreen-
der a possibilidade de amar o amor divino através do infortúnio (WEIL, 2019,
p.35).

Nota-se que até o momento a filósofa testemunha momentos relati-


vos ao sagrado relacionados à Igreja, os cantos das devotas no vilarejo, o
ajoelhar-se na capela e a melhora das dores relacionada aos cantos da
Igreja. No entanto, ela também descreve situações que não são intermedi-
adas pela instituição, experiências místicas.
A primeira delas é relacionada ao poema “Love”. Ainda em Solesmes,
Weil conheceu um jovem inglês que lhe apresentou os poetas ingleses do
século XVII, conhecidos como metafísicos, a partir dos quais teve contato
com o poema intitulado “Love”. Ela conta que o decorou e o recitava
quando tinha crises violentas de dor de cabeça. Nesse momento ainda não
percebia que estava orando, algo que nunca foi propensa a fazer. “Foi du-
rante uma dessas recitações que, como lhe escrevi, o próprio Cristo desceu
e tomou conta de mim” (WEIL, 2019, p.36). Afirma que nesse contato
“nem os sentidos nem a imaginação tomaram parte nessa repentina as-
cendência do Cristo sobre mim; eu apenas senti através do sofrimento a
presença de um amor análogo àquele que lemos no sorriso de um rosto
amado” (WEIL, 2019, p.36). Nota-se que tal experiência foi algo pouco
compreensível, um Mysterium, nos dizeres de Otto (2007), se tratou de
sentir o amor de Cristo diretamente, situação alheia à Igreja e sem inter-
mediários, uma experiência mística. Ela conta que sua inteligência tentou
122 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

desacreditar dessa situação, e que por isso agradece não ter lido os místicos
antes, pois assim sabe que não fabricou esse contato.
Outra situação foi em relação ao Pater, o Pai Nosso, o qual Simone
Weil resolveu decorar. Na mesma época começou a trabalhar na vindima
e recitava-o em grego todos os dias antes do trabalho. Se durante a recita-
ção se distraísse, recomeçava até fazê-lo com atenção absoluta. Ela
descreve essa experiência da seguinte maneira:

Às vezes, as primeiras palavras já arrancam o meu pensamento do meu corpo


e o transporta a um lugar fora do espaço de onde ele não tem nem perspectiva
nem ponto de vista. O espaço se abre. A infinitude do espaço ordinário da per-
cepção é substituída por uma infinitude à segunda ou, às vezes, à terceira
potência. Ao mesmo tempo, essa infinitude de infinitude se preenche de um
lado ao outro se silêncio, um silêncio que não é uma ausência de som, que é o
objeto de uma sensação positiva, mais positiva do que o som, Os barulhos, se
houver, só chegam até mim após terem atravessado o som (WEIL, 2019, p.39).

Podemos perceber na descrição de Weil a força desse momento de


oração, ao qual ela se entregava totalmente, em que até o silêncio toma
forma, que a transportava para um lugar desconhecido, dentro de si
mesma e da oração. Ela afirma que por vezes nesse momento “Cristo está
presente em pessoa. Mas uma presença infinitamente mais real, mais pun-
gente, mais clara e mais plena de amor do que na primeira vez em que Ele
me arrebatou” (WEIL, 2019, p.39). Notamos que apesar de dizer que a
presença de Cristo agora é mais real, ela não explica exatamente como isso
acontece, como também não deixa claro as sensações que sente ao recitar
o Pater. Isso porque tais experiências, da mesma forma que a anterior re-
lacionada ao poema “Love” são o que Conceição (2011) chama de evento
profundo, algo radical, extraordinário. Estariam relacionadas ao mistério,
energia e poder, citados por Otto (2007) em relação ao Mysterium Tre-
mendum do numinoso. Tudo isso preenchido de um infinito amor, mas
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 123

não totalmente compreensíveis. É por tais características que não pode


apreender plenamente que sente dificuldade em escrever, ao mesmo
tempo que considera necessário testemunhar suas vivências para mostrar
a possibilidade de tais sensações e de um contato direto com Deus, sem
intermediações e sem se submeter a todas as restrições impostas por aque-
les que fazem parte da Igreja.
Simone Weil diz também que está perto da morte, por conta da atu-
ação na guerra, e que por isso não pode deixar de contar suas experiências
e dar sua opinião sobre o que se relaciona a Deus: “[...] não tenho o direito
de me calar sobre essas coisas. Pois, afinal de contas, em tudo isso, não se
trata de mim. Trata-se apenas de Deus. Eu realmente não conto. Se pu-
déssemos supor haver erros em Deus, eu acharia que tudo isso caiu sobre
mim por engano” (WEIL, 2019, p.40). Não se sente boa o suficiente para
todas as situações que presenciou com Deus e por isso acredita que nada
disso se trata dela e sim do próprio Deus, que Ele proporcionou tudo isso
a ela para que pudesse dar seu testemunho, fazendo com que ela se sinta
responsável por tal tarefa. O seguinte trecho reforça essa ideia:

Devo lhe passar a impressão de um orgulho luciferiano falando dessa maneira


de coisas que são elevadas demais para mim e para as quais eu não tenho o
direito de compreender coisa alguma. Não é culpa minha. As ideias vêm pou-
sar em mim por engano; em seguida, ao reconhecer seu erro, querem
absolutamente sair. Não sei de onde elas vêm nem qual o seu valor; mas, por
via das dúvidas, não acredito ter o direito de impedir essa operação (WEIL,
2019, p.49).

A filósofa não sabe de onde vêm todas as ideias que tem em relação a
Deus e a Igreja, mas ao se dar conta delas, precisa que saiam da sua mente
e para isso tem que falar sobre elas. Essa necessidade, como comentamos
anteriormente, é característica marcante das testemunhas, as quais
124 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

necessitam expurgar as lembranças tanto para seguir em frente quanto


para refletir sobre os acontecimentos lembrados.
Um exemplo desse tipo de situação é o momento que Weil escreve
sobre o que para ela seria ser santo e afirma que o mundo precisa de uma
nova santidade, necessitando que os santos sejam gênios para reformulá-
la. Nesse momento, diz que tem muitos pensamentos e não sabe que uso
dar a eles. Isso porque, segundo ela, a sua própria imperfeição e covardia
fazem com que ela não consiga elevá-los à relevância. Afirma ainda ser
uma pena não conseguir chamar a atenção necessária para eles:

Se ninguém consentir em dar atenção aos pensamentos que, não sei como,
pousaram em um ser tão insatisfatório quanto eu, eles serão enterrados co-
migo. Se, como eu acredito, eles contêm alguma verdade, isso seria uma pena.
Eu os prejudico. O fato de eles se encontrarem em mim impele que se dê aten-
ção a eles. Eu só vejo o senhor a quem posso implorar atenção em favor desses
pensamentos. É uma grande dor para mim, temer que os pensamentos que
desceram em mim sejam condenados à morte pelo contágio da minha insufi-
ciência e da minha miséria. Eu jamais consigo ler a figueira estéril sem
estremecer. Acredito que ela seja o meu retrato. A natureza nela também era
impotente e, no entanto, ela não foi desculpada. Cristo a amaldiçoou (WEIL,
2019, p.67).

Podemos perceber que Simone Weil se culpa por não conseguir que
seus pensamentos tenham a atenção necessária. Destarte, além do fato de
esses pensamentos terem origem em situações tão indescritíveis, dificul-
tando sua escrita, a filósofa tem problema em ser ouvida. Esse aspecto é
importante tanto em relação à mística, pois segundo Certeau (2015) ela é
necessariamente dialógica, quanto ao testemunho, pois sem quem escute,
ele não pode existir. Assim, Padre Perrin se faz importante enquanto in-
terlocutor das cartas de Simone Weil, porque se não soubesse que ele se
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 125

importava com o que ela vivenciava e com sua situação espiritual ela não
teria testemunhado todas as experiências que vivenciou.
Fica clara a necessidade que a filósofa tinha de narrar o inenarrável.
Isso porque ela encontra grandes dificuldades em narrar o que acha ne-
cessário, principalmente por serem situações extremas, intensas e muito
pessoais, precisando subverter a linguagem para dar conta delas. Além
disso, como vimos, tinha dificuldade em se fazer ouvida, acredita que as
pessoas não querem escutar seus pensamentos. Mesmo diante de tais em-
pecilhos, escreve seu testemunho, através das cartas ao Padre Perrin e ele
faz com que elas cheguem às pessoas, publicando-as, conseguindo assim
ouvintes para Weil.
Diante disso, o testemunho de Simone Weil nas cartas analisadas se
dá com o intuito de explicar o porquê de não querer ser batizada. Ao tentar
construir tal explicação, precisa testemunhar sobre diversas situações que
demonstram que uma pessoa pode ter uma relação próxima com Deus
sem a Igreja intermediando. Dessa forma, testemunho e sagrado se relaci-
onam em sua obra porque ela fala do sagrado a partir do testemunho de
suas experiências, refletindo sobre elas.

Considerações finais

Pudemos perceber pela biografia de Simone Weil que ela sempre foi
uma pessoa de ações. Não se contentando só com a teoria para conhecer a
realidade sobre o que falava, precisava vivê-la. Foi assim por exemplo em
relação à fábrica e ao trabalho no campo. Da mesma forma agia em relação
ao sagrado, pois falava dele a partir de suas experiências.
Foi instigada a escrever para explicar ao Padre Joseph-Marie Perrin o
porquê de não querer ser batizada. Ao tentar esclarecer, demonstra acre-
ditar haver uma possibilidade de aproximação de Deus sem a
intermediação da Igreja. Como prova disso, dá o testemunho de suas
126 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

experiências, mostrando que mesmo sem participar da Igreja Deus se


aproximou dela. Afirma que como acredita não merecer essa aproximação,
essa não seria por acaso e sim para que ela pudesse falar, testemunhar
sobre tudo que lhe acontece e assim mostrar que é possível esse tipo de
relação. Dessa forma, se sente responsável por esse testemunho, para
mostrar uma outra forma de ser cristão.
As experiências místicas por ela citadas em “Autobiografia espiritual”
são o que Conceição (2011) chama de evento profundo, pois são extraordi-
nárias e não podem ser totalmente apreensíveis, se relacionam ao
Mysterium Tremendum do numinoso, reação de estranheza e fascínio, cu-
nhado por Otto (2007). Por serem pouco compreensíveis e de difícil
explicação, podem ser comparadas às das testemunhas de guerra citadas
por Agamben e Selligmann-Silva. Dessa forma, há grande dificuldade em
escrever seu testemunho, pois a linguagem não consegue simbolizar efi-
cazmente tais acontecimentos. Outro motivo para que tal escrita não seja
fácil é a dificuldade em encontrar quem verdadeiramente a escute. É por
isso que conta suas vivências e dá sua opinião sobre o sagrado nas cartas
para Padre Joseph-Marie Perrin, alguém disposto a lhe escutar.
Apesar de todas essas dificuldades, sente a necessidade de colocar
para fora os pensamentos que tem, pois, como dito, acredita que eles vêm
diretamente de Deus e Ele lhes deu para que pudesse disseminá-los. Assim,
precisa falar sobre os acontecimentos tanto para expurgar sua mente,
quanto para refletir sobre eles. Então, descreve as situações por ela viven-
ciadas, não para convencer as pessoas do que seja certo ou errado em
relação a Deus, mas para testemunhar a possibilidade de uma forma dife-
rente de ser cristão, sem ser por intermédio da Igreja.
Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III).
Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
Jéssica da Silva Nascimento; Reginaldo Oliveira Silva | 127

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução: José


Martins Barbosa e Hermerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras
escolhidas, v.3).

CERTEAU, M. A fábula mística. Tradução: Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2015.

CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Expressando a fé: experiência religiosa, testemunho


autobiográfico e religioso na poesia de Adélia Prado. Atualidade Teológica (PUC). Rio
de Janeiro, Ano XV nº39, p.487-502, setembro a dezembro de 2011

MORAES, Marcos Antonio de. Epistolografia e crítica genética. Ciência e Cultura (SBPC),
São Paulo, v. 59, n. 1, p. 30-32, janeiro a março de 2007.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Mística feminina – escrita e transgressão. Revista


Graphos. João Pessoa, v.17, nº2, p.91-102, 2015.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. A filosofia de Simone Weil: uma mística da ação e da
contemplação. Revista Sísifo. Feira de Santana, v.1, nº6, 2017. Disponível em
http://www.revistasisifo.com/2017/11/a-filosofia-de-simone-weil-uma-
mistica.html Acesso em 27/02/2021.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Tradução: Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis:
Vozes, 2007.

PUENTE, Fernando. Simone Weil. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas:


Mulheres na Filosofia, v. 6 n. 3, p. 55-69, 2020. Disponível em: https://www.blogs.
unicamp.br/mulheresnafilosofia/wp-content/uploads/sites/178/2020/03/PDF-
Simone-Weil.pdf. Último acesso em 19/01/2021 às 18:00hrs.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma – a questão do testemunho de catástrofes


históricas. Psicologia clínica. Rio de Janeiro, v.20, nº1, p.65-82, 2008.
128 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e argumento. Florianópolis,


v.2, nº1, p.3-20, janeiro a junho de 2010.

WEIL, Simone. Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro a 26 de maio de 1942.


Tradução: Karin Andrea de Guise. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
7

A experiência mística na escrita de si em Etty Hillesum

Solange Alves de Almeida

Considerações iniciais

A literatura de cunho íntimo é uma correspondência marcada pela


subjetividade, pois está centrada no sujeito, fala de um eu que tenta despir
a sua vida, revelando para si um elo íntimo desconhecido para o público.
Mas o que leva um indivíduo a arquivar sua própria vida, isto é, guardar
materiais ligados diretamente à escrita de si?1 Sabemos que o indivíduo,
na tentativa de construir uma identidade para si, constitui, também, a ne-
cessidade de se expressar. Os diários se constituíram como um modo típico
da escrita de si, e mesmo quando as mulheres não tinham o direito de
reconhecimento da sua escrita, o diário serviu como um instrumento para
a construção deste ser, sendo esta uma maneira de se conhecer e de se
fazer conhecer.
Ao se colocar as mulheres como protagonistas destas produções, se
faz necessário perceber a característica desta prática por uma perspectiva
de gênero, pela oportunidade da descoberta e preservação desta fonte, as-
sim como pela reflexão da originalidade da memória feminina enquanto
protagonista do seu próprio eu. O método utilizado para trabalhar com
diários pessoais está em problematizar a fonte, tendo em vista que ela não
é portadora da exatidão e, portanto, as informações devem ser cruzadas
com outras fontes. É importante, também, interpretarmos os diários como

1 Termo que caracteriza a narrativa em que um narrador em primeira pessoa se identifica explicitamente como o
autor biográfico, mas vive situações que podem ser ficcionais e se delineia como um exercício literário típico da
modernidade. (ARAUJO, 2011, p. 8)
130 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

escritos que também criam realidades. Logo, é necessário refletir com pon-
deração o que o diário de uma jovem pode nos dizer sobre a sociedade
holandesa em plena Segunda Guerra Mundial, no caso do diário de Etty
Hillesum.
Seu diário está inserido em um ambiente complexo, onde ela revela
as tensões do seu mundo numa linguagem intensa e rica. A obra é, por si,
reveladora e tem a naturalidade própria de um diário. As reflexões são
passadas claramente para o papel, sem estarem condicionadas a uma ave-
riguação. Por isso, com notável sinceridade, e com particularidades
íntimas da autora, com as suas dúvidas e análises, com os seus propósitos
e ideais, com seus conflitos e receios, seus escritos refletem a imagem de
si e do outro. Sua escrita também demostra sua fragilidade emocional e,
sobretudo, sua complexidade, fruto também dos seus estudos, como po-
demos ler na passagem que segue:

Acho que não vivo de maneira descomplicada o bastante no meu íntimo. En-
trego-me com muita devassidão aos bacanais do espírito. Talvez também me
identifique demais com tudo o que leio e estudo. Alguém como Dostoievski, de
uma forma ou de outra, ainda me deixa arrasada. Eu realmente tenho que ser
um pouco mais descomplicada. Permitir-me viver mais. Não querer ver desde
já os resultados da minha vida. (HILLESSUM, 2019, p. 89)

Deste modo, a leitura do Diário permite-nos aceder à realidade íntima


da autora, compreendendo, dentre outras coisas, como reflete Pita (2010),
a função da escrita como arma e forma de resistência contra todo o mal
que a rodeava. As páginas de seu diário mostram as causas ou as motiva-
ções, inconscientes talvez, daquela que abriu mão de desempenhar o papel
de vítima, enfrentou uma situação extrema, uma situação que não esco-
lheu, mas da qual também não procurou escapar. A esse respeito escrevia
Hillesum:
Solange Alves de Almeida | 131

Agora eu sei. Não vou incomodar os outros com meus medos, não ficarei
amargurada se os outros não compreenderem do que se trata para nós, Ju-
deus. Uma certeza não será corroída ou enfraquecida pela outra. Trabalho e
continuo a viver com a mesma convicção e acho a vida plena de sentido, apesar
de tudo, plena de sentido, ainda que eu não me atreva mais a dizer isso em
público. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas e os pés des-
truídos de tanto caminhar e o jasmim atrás do meu quintal, as perseguições,
as incontáveis crueldades sem sentidos, tudo e tudo é em mim como um
grande todo e aceito tudo como um todo e começo a compreender cada vez
melhor, assim, para mim mesma, sem que eu ainda consiga explicar a alguém,
como tudo se encaixa. (Hillessum, 2019, p. 217)

Etty Hillessum foi uma judia holandesa que morreu em Auschwitz2,


em 1943, deixando para trás centenas de páginas nas quais descreveu, en-
tre 1941 e 1943, com beleza e originalidade, aspectos do seu mundo interno
e externo, com a complexidade de interpelações que um texto desta natu-
reza suscita. Sendo judia, ela quis se associar ao destino trágico do seu
povo, quando a grande maioria dos perseguidos tentava livrar-se, fugir
para bem longe, para lugares seguros, onde a mão assassina não chegasse.
Mesmo assim, ao longo de quatro décadas não se falou de Etty Hille-
sum, até que, em 1981, foi descoberto e publicado o seu Diário,
multiplicando-se, posteriormente, as traduções de sua obra. No entanto,
deve-se a Julius Spier, um judeu alemão, psicoquirologista3 a quem ela se
referia simplesmente por S, a existência dos diários, visto que ele marcou
a vida de Etty, e foi também quem a convenceu a escrever, ajudando-a a
pôr em ordem sua mente, inicialmente confusa, como ela mesma diz:

2 Para mais informações sobre Auschwitz ver Primo Levi. Assim foi Auschwitz:1945-1986. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015.
3 Psicoquirologia é a interpretação dos códigos digitais da vida pela leitura das mãos.
132 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Lá estava eu agora, com um bloqueio espiritual. E ele poria ordem ao caos


interior, estaria à frente das forças opostas que atuam no meu conflito interno.
Ele por assim dizer pegou-me pela mão e disse, olhe, é assim que você tem que
viver. A vida inteira teve esse desejo: se pelo menos alguém me pegasse pela
Mão e cuidasse um pouco de mim: pareço forte e faço tudo sozinha, mas eu
gostaria tanto de poder me entregar. E esse perfeito desconhecido Sr. S, com
rosto complexo, conseguiu isso agora e em apenas uma semana; apesar de
tudo, tinha feito maravilhas comigo. (Hillessum, 2019, p. 22)

A escrita de Etty Hillesum é marcada pela sinceridade e profundi-


dade, seu escrito está inserido em um tempo de incertezas, quando o se
expressar era perigoso. No entanto, através de sua evolução espiritual, ela
dá exemplo de esperança para aqueles cujas vidas não importam para o
nazismo. A identidade de Hillesum está ligada ao seu lugar na família, e na
sociedade, assim como no seu modo de pensar seus dias. Etty tinha um
olhar atento aos detalhes humanos, e suas complexidades interiores, visto
que alguns eram difíceis de decifrar, como ela mesma diz neste trecho do
Diário:

Muitas pessoas ainda são hieróglifos para mim, mas bem lentamente aprendo
a decifrá-las. É a coisa mais bonita que conheço: a leitura da vida das pessoas.
Em Westerbork, às vezes era como se eu estivesse diante da paliçada nua da
vida. Estrutura interna da vida, desprovida de qualquer construção externa.
Agradeço-te meu Deus, por me ensinar a ler cada vez melhor. (HILLESUM,
2019, p. 313)

Seu crescimento espiritual foi acontecendo no campo de trânsito de


Westerbork4. Sua escrita nos traz uma discrição consistente dos movimen-
tos da sua vida e dos seus opressores. Através da sua escrita de si
acreditamos que pode ser percebido um pouco da sua mística, unindo a

4 Pequeno campo de trânsito judaico na Segunda Guerra Mundial, localizado perto da vila de Westerbork, no
nordeste rural da Holanda.
Solange Alves de Almeida | 133

sua fé com sua condição de ser mulher e judia, no momento de grandes


privações durante o Shoah.

A escrita de si: o eu que se revela no texto

De acordo com José Tolentino Mendonça (2020), o Diário de Hille-


sum era composto por oito cadernos quadriculados que se transformaram
em uma das aventuras literárias e espirituais mais significativas do século
XX. Acerca desta aventura, que se constitui enquanto uma escrita de si,
podemos ler a seguinte passagem do Diário:

Então vamos lá! Este é um momento doloroso e quase intransponível para


mim: confiar meu coração inibido a um tolo pedaço de papel pautado. Os pen-
samentos às vezes são tão claros e vívidos na minha mente, e os sentimentos
tão profundos, mas ordená-los por escrito ainda é difícil. Acima de tudo pela
vergonha, creio. Sinto uma grande inibição, não me atrevo a revelar as coisas,
deixar que jorrem livremente de mim, e, no entanto, é preciso, se eu quiser
dar à minha vida, a longo prazo, um propósito digno e satisfatório.
(HILLESUM, 2019, p. 17)

Nessa perspectiva a escrita de si se caracteriza por uma tentativa, por


parte do sujeito, de ambicionar o Eu que fala, ou seja, o Eu procura inves-
tigar, por meio da reflexão e da narração da própria vida, o que o
caracteriza e o define enquanto indivíduo. A narração feita por Etty Hille-
sum representa uma entrega amorosa, em tempos em que o ódio e a
degradação física (e psicológica) era algo fundamental para destruição do
povo judeu. É neste cenário de temor que pairava sobre os perseguidos
que Etty foi ao saguão da Gestapo, mesmo tendo informações de como os
judeus eram tratados pelos soldados. Etty era abastecida de paz e inclusive
se apiedava daqueles que maltratavam os judeus, como fica claro no relato
em que observa um jovem.
134 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Logo de cara um rapaz que andava pra lá e pra cá chamou atenção, rosto des-
contente e sem esconder em absoluto esse descontentamento, inquieto e
atormentado. Muito interessante de ver. Ele procurava pretextos para gritar
com os infelizes judeus: mãos para fora dos bolsos, por favor etc. Achei-o mais
digno de pena aos que os que eram tratados aos gritos, e os tratados aos gritos,
dignos de pena na medida em que tinham medo (Hillesum, 2019, p. 160)

A Holanda estava sob a ocupação nazista e, para Etty, escrever seria


uma oportunidade de contar um lado da história, ou seja, eternizar no papel
a sua escrita para o futuro. Considerava que sem a escrita, ela correria o risco
de perder o contato consigo mesma, como podemos ler na citação seginte.
“Tenho que cuidar para manter contato com este caderno, quero dizer, co-
migo mesma; de outra forma não estarei bem; ainda corro a todo instante o
risco de me perder de novo por completo, sinto isso um pouco neste mo-
mento.” (Hellisum, 2019, p. 43). Logo, para ela, escrever era uma forma de
resistência, pois ao escrever ela encontra razões para que a vida continue a
ter sentido, apesar do caos ao seu redor. Para Etty, escrever era um ato de
urgência que não podia ser adiado, afinal, a consciência da necessidade da
sua escrita era muito grande, como podemos ver no trecho do Diário a seguir.

E eu que deveria empunhar essa fina caneta-tinteiro agora como se fosse um


martelo e as palavras deveriam ser golpes nas tarefas de contar sobre o destino
e sobre um pedaço da história, como nunca antes existiu. Ao menos não dessa
forma maciçamente organizada e totalitária por toda Europa. Algumas pes-
soas têm que restar para serem no futuro cronistas desta época. Eu gostaria
muito de ser uma cronista futuramente. (HILLESSUM, 2019, p.252)

O seu diário é marcado por transparência e profundidade, pois Etty


passa a viver à procura de sentido, à procura da verdade, à procura da
beleza, à procura do amor, à procura de reencontrar Deus. Neste sentido,
seu texto é uma obra aberta, pois o mais importante é seu caminho em
direção a Deus. Ela cria um movimento em que sua alma, através do seu
Solange Alves de Almeida | 135

interior, passa a ser um receptáculo do próprio Eterno5. Escrevinhar é,


portanto, revelar-se, e fazer aparecer seu próprio rosto próximo do outro,
fazendo lançar sobre o outro que lê, o seu próprio olhar através do que lhe
é dito sobre si mesmo. A este respeito da escrita Foucault nos diz:

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’


[...] o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou
delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ou-
vida ‘em forças e em sangue’. (FOUCAULT, 1992, p. 143)

Logo, ao lermos o diário da jovem holandesa, constatamos uma es-


crita de amor e de renascimento, mais especialmente, uma escrita de
compaixão pelo outro, pois Etty tinha essa virtude, de olhar para aqueles
que mais sofriam. Ela compreendeu e praticou a compaixão, isto é, a com-
paixão tem a ver com a nossa capacidade de sofrer ao lado do outro,
significa nos colocarmos na mesma posição, e não olhar a partir de um
patamar mais elevado, mas sim de um olhar igual, entendendo a dor do
outro. Para a filósofa italiana Beatrice Iacopini, em entrevista concedida a
Vitor João Santos, a IHU On-line em jan. de 2019, diz que em Westerbork
Etty [...] carregou-se de primorosa ternura e, pelo menos, de compaixão
pelos milhares de rostos da miséria e da dor que encontrava todos os dias,
incluindo os dos agressores.”
Etty vislumbrou a humanidade, não como realidade genérica, mas
como uma terra de amor, de entendimento, de delicadeza e principal-
mente de fé. O desenvolvimento do seu percurso interior tornou-se
concreto quando ela chegou a Westerbork. Este campo foi instituído no
final de 1939 pelos holandeses com a finalidade de abrigar refugiados da
Alemanha, mas foi dominado pelos nazistas em sua ocupação e

5 O judaísmo chama Deus de Eterno, que não tem início, que "não envelhece" e não tem fim. Como nos explica o
Rabino Aryeh Kaplan, em seu livro A torá viva, 2018.
136 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

transformado em campo de trânsito. O campo ficava na província de Dren-


the, nas proximidades de Assen (Holanda, Norte - oriental) e transformou-
se, portanto, em 1942, em campo de concentração para trânsito, onde
cerca de mil judeus holandeses encontraram sua última parada antes do
extermínio em Auschwitz na Polônia.
Embora o trabalho de Etty no Conselho Hebraico a livrasse do interna-
mento em Westerbork, pouco depois de obter tal cargo solicitou
voluntariamente a transferência para o campo, assumindo ali a tarefa de as-
sistente social, no exato momento em que se iniciavam as deportações para
Auschwitz, como ela mesma relata em Carta datada de 3 de julho de 1943:

Na pressa, ainda vou desencadear um verdadeiro bacanal escrito aqui do meu


terceiro beliche. Daqui a alguns dias cairá a barreira para nossas escritas ili-
mitadas, então me tornarei interna do campo e só vou poder escrever uma
carta a cada catorze dias, carta que devo entregar aberta. E eu ainda quero
conversar com vocês sobre algumas coisinhas. (Hellisum, 2019, p. 367)

De julho de 1942 a setembro de 1944, a cada semana, foram cerca de


noventa e três trens carregados de judeus com o sombrio destino da morte
partindo de Westerbork para Auschwitz. Na mesma carta citada acima,
Etty descreve para seus queridos amigos as tristes condições desse campo
de trânsito, afirmando que a miséria que ali imperava era realmente in-
descritível: “Nos barracões grandes, as pessoas vivem como ratos num
esgoto. Veem-se muitas crianças moribundas”. (HELLISUM, 2019, p. 367).
Ou ainda, quando ela escreve: “Semana passada recebemos numa deter-
minada noite um transporte de prisioneiros. Rostos pálidos como cera,
transparentes. Nunca tinha visto tanta exaustão e esgotamento em rostos
humanos como naquela noite”. (HELLISUM, 2019, p. 367)
Etty não pensa ter desperdiçado nenhum segundo da sua vida em
ter socorrido os aflitos e desesperados, pois no dia 13 de outubro de 1942
escreve em seu diário: “Parti meu corpo como pão e o dividi entre os
Solange Alves de Almeida | 137

homens. Por que não? Tinham sempre tanta fome e estavam há tanto
tempo desprovidos.” (HELLISUM, 2019, p.362). E finaliza seu Diário afir-
mando que “Gostaria de ser um bálsamo para tantas dores” (HELLISUM,
2019, p. 363). Vemos, assim, que Etty, ao escrever o seu diário, desnuda
as suas dores, as suas dificuldades, e suas alegrias, legando à humanidade
a oportunidade de explorar, por meio das vivências dela (de Etty), uma
memória importante da sua história.
A escrita possibilitou para Etty um novo recomeço. Ela registrou sua
vida e a necessidade de comunicar as experiências vividas durante o perí-
odo nazista. Ela foi muito mais que uma cronista, ela foi a expressão do
amor em meio ao caos, a sua evolução espiritual transformou também
aqueles que estavam em desespero, pois encontraram em seus relatos uma
coragem interior, uma fé inabalável, uma alegria em meio a tristeza, um
bálsamo em meio a dor. Sua escrita de si foi capaz de ser reveladora, tam-
bém, do outro e, neste sentido, pôde proporcionar igualmente a este outro
um novo começo.

O diálogo: uma profunda comunhão com Deus

Etty Hillesum passou por uma profunda comunhão com Deus, pois o
próprio renascimento da vida circula no seu corpo, na sua mente, e no seu
espírito. Ela transborda de paz, o que a faz encarar momentos extrema-
mente difíceis dentro do campo de transição, suportando grandes
sofrimentos em auxílio espiritual do seu povo judeu. A atitude de Hillesum
e seu amadurecimento que brotam do amor, nos faz lembrar do que es-
creve Kierkegaard em relação ao amor: “O amor é um assunto da
consciência, e por isso deve proceder de um coração puro e de uma fé sin-
cera. [...] O amor só brota de um coração puro e de uma fé sincera quando
ele é uma questão de consciência” (KIERKEGAARD, 2005, p. 175). Ou
quando Etty fala sobre o sofrimento:
138 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Também é preciso ter forças para sofrer sozinho e não sobrecarregar os outros
com os próprios medos e fardos. Ainda temos que aprender isso e as pessoas
terão que educar umas às outras, se não com delicadeza, então com rigidez. Se
eu digo de uma maneira ou de outra acertei as contas com a vida, isso não é
resignação. Tudo é apenas um mal-entendido. Se eu alguma vez digo algo as-
sim, as pessoas interpretam de outra forma. Não é resignação, nunca. O que
eu quero dizer então precisamente? Talvez: que já vivi esta vida tantos milha-
res de vezes e já morri tantos milhares de vezes, que nada de novo pode
acontecer. Isso é uma espécie de descaso? Não. É viver a vida milhares de vezes
de minuto a minuto e faz parte disso dar espaço ao sofrimento. E na verdade
não é um lugar insignificante este que o sofrimento reivindica hoje em dia. E
em última instância, faz diferença se em um século é inquisição e, em outro
século, são as guerras e pogroms que causam sofrimento às pessoas? Sem sen-
tido, como elas mesmas dizem? O sofrimento sempre exigiu seu lugar e seus
direitos, e faz alguma diferença em que formato ele vem? O que importa é
como a pessoa o suporta e se a pessoa sabe categorizá-lo na sua existência e,
ainda assim, continua aceitando a vida. (HILLESUM, 2019, p. 213-214)

Como vemos, o seu sofrimento a fez olhar em profundidade para


dentro de si, mas acima de tudo abriu uma fresta para Deus. No domingo
à noite, quando ela está no banheiro, Deus surge pela primeira vez na es-
crita do seu no diário, sob a forma de uma confissão: “O mundo rola
melodioso da mão de Deus, essas palavras de Verwey6 não me saíram da
cabeça o dia inteiro. queria eu mesma rolar melodiosa da mão Deus”.
(HILLESUM, 2019, p. 24)
Etty imergiu em um mundo interior onde havia ruído, estrondo e si-
lêncio, este mundo interior lhe permitiu dominar o terror da guerra e
deixar um dos maiores testemunhos humanos e espirituais do nosso
tempo. O seu amadurecimento espiritual é uma transformação que se

6 Albert Verwey, poeta holandês. O verso citado é da cantada Honestum petimus usque de Henk Badings, com libreto
de Verwey.
Solange Alves de Almeida | 139

manifestou no seu íntimo e nas suas ações. Etty abriu uma fresta ao Eterno
e isto foi determinante na construção da nova ligação íntima e espiritual
com o sagrado e, assim sendo, ela foi reconhecida, também, por seu alegre
caminho espiritual. Por falar em espiritualidade, ela é uma característica
de todo ser humano (religioso ou não), ou seja, ela estimula o ser humano
pela busca do sagrado e pela experiência com o transcendente. A espiritu-
alidade não é de domínio exclusivo das religiões ou de alguma corrente
espiritual. Ela é intrínseca ao ser humano e pode ser o caminho que leva
alguém para além da sua prática comum, pois ela propõe ao ser humano
um possível encontro face a face com o divino, sem deixar, entretanto, de
mergulhar em si próprio.
De acordo com Giovanetti, a espiritualidade significa a possibilidade
de uma pessoa mergulhar em si mesma. O termo ‘espiritualidade’ designa
toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem
e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens.
(GIOVANETTI, 2005 p, 137). A espiritualidade também tem relação com
valores e significados como Giovanetti nos diz: “O espírito nos permite fa-
zer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar
que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir
um sentido para a existência” (GIOVANETTI, 2005, p, 138). Desta forma,
podemos dizer que a espiritualidade de Hellisum a fez entender que o des-
tino do seu povo seria o extermínio, porém ela dizia: “Mas vamos suportá-
lo, de preferência com graça (HILLESUM, 2019 p.350). Ou quando ela es-
crevia: “Não há um poeta em mim, há sim um pedacinho de Deus em mim,
que poderia se transformar em poeta. Num campo assim é preciso que
haja um poeta que viva a vida, também ali, como poeta e que seja capaz de
cantá-la.” (Hillesum, 2019, p.350).
Dentro do campo de Westerbork, vendo todo o sofrimento em meio
a camas de campanha, onde mulheres e crianças sonhavam, ou choravam
140 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

baixinho, Etty queria ser identificada como o coração pensante daqueles


que perderam a capacidade de reflexão diante do sofrimento, e sobre isto
ela dizia: “Permite então que eu seja o coração pensante deste barracão.
Quero ser isso novamente. Gostaria de ser o coração pensante de todo um
campo de concentração.” (Hellisum, 2019, p. 351).
Etty foi um testemunho de fé, esperança e amor entre aqueles aban-
donados. O seu trabalho essencial foi o de erguer uma barreira interior
para evitar que o desânimo tomasse conta de si e dos seus companheiros.
Estava ali naquele verdadeiro hospício, motivo de vergonha para três sé-
culos. Sua voz içava-se das sombras como brasa nas cinzas reconstruindo
a esperança. Na companhia de Deus aprendeu a amar a vida nos seus mais
cotidianos detalhes, a cantar com alegria, com o brilho nos olhos, o desafio
do mundo em aberto, com o espírito cheio de paz. Com Deus soube reco-
nhecer que o mundo não poderá se firmar a não ser no interior e que a
vida aqui, sim, é o que há de grandioso. Essa esperança foi a força singela
que tomou de assalto o coração dessa jovem judia. O segredo maior dessa
esperança foi seu sentimento da presença de Deus. Sua vida, como ela
mesma relatou em carta de 18 de agosto de 1943, foi sempre um ininter-
rupto diálogo com Deus.

Minha vida se tornou contínuo diálogo contigo, meu Deus, um grande diálogo.
Quando estou num cantinho do campo, meus pés plantados sobre tua terra, o
rosto elevado para o teu céu, então às vezes correm-me pela face as lagrimas,
nascidas de uma emoção e gratidão internas que procuram uma maneira de
sair. Também à noite quando estou deitada na minha cama e descanso em ti
meu Deus, às vezes correm-me pelo meu rosto as lágrimas de gratidão e esta
é então minha oração. (HILLESUM. 2019, p, 379).

O seu diálogo com Deus se deu quando ela se permitiu se perder para
se achar, perdeu-se nos labirintos da dúvida, da incerteza, dos questiona-
mentos aos princípios mais arraigados, da abertura para as versões
Solange Alves de Almeida | 141

diferentes, do contraditório, tudo o que se construiu em matéria de conhe-


cimento. Etty precisou submergir para dentro de si e escutar o que estava
dentro dela. Este encontro com Deus deu a ela um novo caminho, um novo
sentido para sua vida. Mesmo quando estava esgotada, ela sentia uma
força, e um equilíbrio sustentando o seu interior, mesmo se sentindo cer-
cada por todos os lados pelo horror da guerra, a presença de Deus
amenizava seu sofrimento. As suas lágrimas deram a certeza de que Deus
era o centro de todas as coisas, que ele possuía um amor incondicional por
ela. Etty percebeu que na maior parte das vezes não importa quanto co-
nhecimento o ser humano tenha a respeito de Deus, pois a conexão com
ele não acontece por meio do conhecimento adquirido de fora, mais pela
sabedoria que brota de dentro, quando de fato se estabelece um diálogo
profundo, sincero, verdadeiro e irrevogável, este dialogo se torna perma-
nente. Esta conexão profunda entre Etty e Deus deu a ela a certeza que não
importava mais o que iria acontecer, se Deus tivesse segurando sua mão.

“A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, meu Deus”

Em Westerbork, Etty Hillesum pôde mostrar toda a força e o poten-


cial de sua esperança e reconciliação consigo e com o mundo. Ela foi se
familiarizando com essa escuta interior, esta atenção ao mundo da pro-
fundidade (Hineinhorchen7). Escreveu em uma página de seu diário, em
17 de setembro de 1942:

Será que mesmo tendo mal físico, a mente pode continuar a trabalhar e a ser
produtiva? E a amar e a ouvir o que vem de dentro de si e dos outros, e das
conexões dessa vida e de você. Hineinhorchen [ouvir o que vem de dentro]
gostaria de encontrar uma boa expressão holandesa para isso. Na verdade,
minha vida é um constante ouvir o que vem de dentro, de mim, e dos outros,

7 Palavra Alemã que significa escutar, no sentido de auscultar, ou escutar nos detalhes. Etty Hillesum em quase todo
o seu diário escrevia muitas palavras em alemão.
142 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

de Deus. E quando eu digo ouço o que vem de dentro, na verdade é Deus que,
em mim, ouve o que vem de dentro. O mais essencial no outro. (Hillessum,
2019, p. 308-309)

Esta experiência faz Etty começar a ter um diálogo ininterrupto com


Deus, brotando dentro dela uma fé indescritível pela presença do divino.
É como se seu interior tivesse sido tomado por algo maior que ela, e assim
tornado o seu eu em uma oração contínua. Etty não associa o nome de
Deus a qualquer tradição religiosa, visto que ela própria nunca se relacio-
nou a uma religião, nem tão pouco as observâncias religiosas judaicas da
qual fazia parte. Em sua trajetória espiritual, ela estava decidida a se afas-
tar do ódio e da crueldade e repousar em Deus. A prática da oração
alimentava sua alma, a oração até podia ter o nome de meditação, embora
para ela fosse mais a ideia de fazer silêncio dentro de si. Uma prática roti-
neira através da qual foi criando forças para enfrentar as dificuldades que
apareceram no decorrer de sua breve vida. A este respeito ela escreve:

Acho que devo fazer isso: de manhã, antes de começar a trabalhar, pegar meia
hora para me interiorizar, ouvir o que está no meu íntimo. Imergir. Também
se pode chamar de meditação. Mais ainda acho essa palavra um pouco apavo-
rante. Mas por que não? Meia hora de silêncio em si mesmo. Não basta
movimentar apenas braços e pernas e todos os músculos de manhã no ba-
nheiro. O ser humano é corpo e espírito. (HIllEsum, 2019, p. 56)

O silêncio demanda prática, mas não é necessário a ausência das pes-


soas, e sim, silenciar seus pensamentos, suas ansiedades e preocupações
para ouvir a Deus. É um dirigir-se a Deus em silêncio interior. É entrar em
comunhão com o mais profundo de seu ser. É mergulhar dentro de si e
fazer de Deus um hóspede da sua alma, como lemos, por exemplo, na es-
critora Adélia Prado: “Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa”
(PRADO, 2015, p. 345). O silêncio e a solidão fazem bem à alma. Sempre
Solange Alves de Almeida | 143

nos conduz a uma reflexão sobre a nossa existência. Este momento de si-
lêncio e meditação, que muitas vezes Etty praticava, exigia aprendizado,
ou seja, um constante exercício de eliminar todo o sofrimento interior, e
cultivar sentimentos de desapego e libertação. Hillesum nos faz ver que,
por dentro, o ser humano é capaz de se tornar uma campina vasta na qual
o verde não encobre a paisagem. Como se Deus penetrasse com o seu amor
puro e incondicional nesta vasta paisagem. Segundo Chardin, para se cres-
cer espiritualmente é preciso silenciar e meditar:

Então, pela primeira vez de minha vida (eu, que supostamente devo meditar
todos os dias!), eu tomei a lâmpada e, deixando a área aparentemente clara de
minhas ocupações e de minhas relações de cada dia, desci ao mais íntimo de
mim mesmo, ao abismo profundo de onde eu sinto que emana confusamente
meu poder de ação. Ora, à medida que eu me distanciava das evidências con-
vencionais, pelas quais é superficialmente iluminada a vida social, eu me dei
conta de que eu me escapava de mim mesmo (CHARDIN, 2010, p. 44).

Esse silêncio maior, que também encontramos em Etty, foi o que a


ajudou a perceber que por trás de todo esse campo de dor existe um ritmo
mais profundo que deve procurar sentir e irrigar a sua fé. Ela, apesar de
tudo, jamais entrou em conflito com Deus e junto a ele encontrou o abrigo
que precisava. Foi nesse diálogo interior com o sagrado que reuniu as for-
ças transformadoras para levar em frente o seu sonho de esperança e
amor, foi com Deus que o interior de seu coração ganhou maior relevância,
podendo o receber de forma completa.
A capacidade de afeição foi um dos grandes valores presentes na traje-
tória de Etty Hillesum. Ela se deixou receber pelo outro (e se deu ao outro
também) no espaço mais íntimo da vida e ali se desenvolveu e transmitiu
uma mensagem de amor à humanidade. A trajetória de fé de Etty Hillesum
foi uma a trajetória de assistência, de propagação da alegria, da esperança e
144 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

da gentileza. aA sua fé foi construída através da oração, e dessa forma a seu


diálogo com Deus transportava em seu coração acolhendo o outro como se
fosse a si próprio. No dia 7de setembro de1943, Jopie descreve sua partida,
junto com sua família no trem que os levaria para a morte em Auschwitz.
Viajaram em vagões diferentes, e é possível que seus pais tenham morrido
ainda durante a viagem de três dias. Segundo ela, estavam todos fortes e
calmos: ela, seus pais e seu irmão Mischa. Relata ainda que todos deixaram
o campo cantando. Segundo documentos da Cruz Vermelha, Etty morreu
em Auschwitz em 30 de novembro de 1943, aos 29 anos de idade.

Considerações finais

Não há dúvida que as vozes que recuperamos de tempos tão marcan-


tes e traumáticos, como o Holocausto, devem ser frisadas como forma, não
só de lembrar, mas também de prevenir. Tais vozes são o legado vivo de
seus mortos, sua escrita materializada, o eco de seu sofrimento, angústia,
ou mesmo de seu elevado espírito junto as suas crenças em Deus e na hu-
manidade, como é o caso de Etty Hillesum.
Disseminar tais obras é de extrema relevância e torná-las conhecidas
se mostra como um trabalho importante na formação de uma memória
que, de individual (testemunho), passa para o plano da coletividade
quando compartilhada em forma de textos (memória). Afinal, o ser hu-
mano se constrói também pela sua experiência e pela do outro, sobretudo
quando a experiência do outro nos toca de diferentes formas e nos ensina
também a lidar com situações esmagadoras, como nos mostra a escrita de
Etty Hillesum, com a sua esperança pela vida e sua fé inigualável. Na sua
escrita temos não só um testemunho sobre o Shoah, como também um
amadurecimento espiritual que a transforma completamente. Etty era
uma judia, dentro de um contexto que queria eliminar os judeus do
mundo.
Solange Alves de Almeida | 145

Apenas este ponto já faria por si seu relato fora do padrão, pois ela
teve a oportunidade de liberdade de trânsito e comunicação, mais de uma
vez por motivo de doença, chegando a enviar cartas e receber ajuda de
alguns amigos. No entanto, o mais relevante reside na maneira como Hil-
lesum lidou com a situação que foi imposta aos judeus de forma distinta
da maioria, o que chega a ser até curioso, tendo em vista que enquanto
muitos questionavam a Deus, perdendo sua fé na proporção do aumento
das adversidades, ela fez o caminho inverso, o descobrindo e o semeando
cada vez mais.
Estes acontecimentos são de uma singularidade notável, pois em-
bora em muitos outros livros a respeito do Shoah apareçam passagens
relacionadas à fé, tendo em consideração que o povo judeu é, geralmente,
bastante temente a Deus, há outros também que relatam a não existência
da figura divina em meio ao horror. Mesmo figuras que posteriormente
empreenderam grandes feitos a favor de seu povo, como Elie Wiesel, titu-
bearam em sua fé durante o período nos campos de concentração. Já Etty
Hillesum, que era anteriormente perturbada em sua vida por muitos mo-
mentos de tristeza e desmotivação, citando várias vezes que se sentia sem
rumo e sem propósito definido, o que a incomodava profundamente, pa-
rece ter tido na adversidade um gatilho para mudança. Sua jornada de
autoconhecimento e crescimento espiritual ocorre em proximidade tem-
poral com o agravamento da situação que ela e todos os judeus vivem.
A razão desta mulher, que dispunha de privilégios capazes de levá-la
a uma sobrevivência, ao menos provável, ter optado voluntariamente por
encaminhar-se ao campo de trânsito, mostra como ela queria resgatar os
corações aflitos e distantes de Deus. Etty tinha uma alma elevada, capaz de
encarar seu fim nos braços de Deus, como ela escreve. Portanto, seus es-
critos são uma verdadeira fonte de inspiração e crescimento espiritual, a
evolução relatada por ela se deu de forma lenta e contínua, mas da forma
146 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

mais real possível, o que faz de seus Diários um testemunho único de sua
elevação espiritual.
Através da sua escrita de si, Etty conseguiu trazer um equilíbrio ne-
cessário capaz de nos lembrar que, em meio a tanta brutalidade, terror,
morte, angústia, solidão, ela redigia de si para os outros e também para si
mesma, realizando um serviço excepcional à humanidade e às futuras ge-
rações. Deixando seu relato vivo, Etty ensinou que em um mundo de ódio
ainda existe a luz, existe o amor ou a realidade de Deus para cada um. Ela
lançou-se nesta busca pelo compromisso com a humanidade, e isto nos faz
lembrar uma história contada pelo Rabi Mordehai:

A visita de um tzadik8 oferece muitos aspectos. Há os que procuram o tzadik


para saber como se reza com amor e temor; outros vão aprender como se
estuda a Torá por amor à Torá; outros para galgar escalas mais altas da vida
espiritual, e assim por diante. Mas nada disso deve ser o propósito essencial.
Cada uma dessas coisas é atingível, sendo depois desnecessário empenhar-se
mais por elas. Na verdade, o único propósito essencial é a busca da realidade
de Deus. Esta não tem medida nem fim. (BUBER, 1995, p. 206)

Assim, seja qual for o período histórico, muitos sempre buscaram a


realidade de Deus, realidade esta, que deve tornar-se presente e real, visto
que Deus é um ser que é diretamente próximo e eternamente presente a
nós. Ainda hoje vemos sofrimento por conflitos e adversidades, porém Etty
nos ensinou que trazemos Deus dentro de nós e devemos cuidar do seu
templo em nossas almas para permanecermos envoltos em sua paz, inde-
pendente das aflições que nos rodeia. Seu crescimento interno é, portanto,
um alerta para aqueles que, do mesmo modo, em um mundo onde o aba-
timento é comum, possam seguir o mesmo acesso na evolução espiritual

8 Tzadik: Título dado a personalidades da tradição judaica consideradas justas, como figuras bíblicas e mestres
espirituais.
Solange Alves de Almeida | 147

ou na busca da tranquilidade da sua alma e da sua consciência. Naquele


campo não restava mais nada a Etty a não ser a alma de milhares de cati-
vos. Ela estava movida pelo sentimento de amor universal, que envolvia
nazistas, holandeses, judeus, cristãos, enfim, a humanidade na sua diver-
sidade, e ela foi capaz de amar a todos, sem fazer distinção como ela
mesma escreve:

O grande ódio contra os alemães, que envenena a própria alma, é um pro-


blema atual. Expressões como «deixe que todos se afoguem, corja, têm que
ser dedetizados» fazem parte das conversas cotidianas e às vezes dão a sensa-
ção de que não é mais possível viver nestes tempos. Até que de repente,
algumas semanas atrás, de súbito surgiu o pensamento libertador, despon-
tando hesitante como uma folhinha de grama nova num terreno baldio
coberto de erva daninha: ainda que existisse apenas um alemão decente, vale-
ria a pena protegê-lo contra todo o bando de bárbaros, e em respeito a esse
único alemão decente as pessoas não poderiam derramar seu ódio contra todo
um povo. (HILLESSUM, 2019. p, 29-30)

O amor incondicional foi o alicerce da espiritualidade de Etty Hille-


sum. Ela foi oprimida, massacrada pela máquina de matar, mais foi
acolhida nos braços daquele a que ela entregou a sua vida. Deus foi seu
refúgio, seu grande abrigo, seu melhor amigo. O amor foi a força mais
poderosa que ela dispunha e este amor foi o elo que a levou a enxergar em
cada pessoa um espaço para cultivar o divino. Isso nos faz pensar que o
verdadeiro amor não depende de quem o recebe, a pessoa que ama decide
amar porque quer amar. Sendo assim, o amor é uma decisão poderosa,
como foi poderosa a forma como Etty Hillesum decidiu amar a si mesma
e à humanidade por meio do seu amor a Deus.

Referências

BARTHOLO Jr., Roberto. Você e eu: Martin Buber, presença palavra. Rio de Janeiro:
Garamond, 2001.
148 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

BUBER, Martin. Eu e tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro,
2001.

BUBER, Martin. Histórias do rabi. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.

CHARDIN, Pierre Teilhard de. O meio divino. Petrópolis: Vozes, 2010.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veiga,1992.

GIOVANETTI, José Paulo. O Sagrado na psicoterapia. In: ANGERAMI-CAMON, Valdemar


Augusto (org.) Vanguarda em Psicoterapia Fenomenológico-Existencial. São Paulo:
Pioneira, 2004, p.1-26.

HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida. Diário de Etty Hillesum, 1941-43. Tradução de
Mariângela Guimarães. Belo Horizonte/Veneza: Editora Âyiné, 2019.

IACOPINI, Beatrice. Uma fé ainda possível. Entrevista concedida a João Vitor Santos. In:
Revista IHU Online, 26 de Jan 2019. Disponivel em http://www.ihu.unisinos.br/
585814 Acesso em 18/Jun. de 2021.

KAPLAN, Aryeh. A Torá Viva. 2ª ed. São Paulo: Editora Maayanot, 2018.

KIERKEGAARD, Soren. As obras do amor. Tradução de Álvaro L. M. Valls; Rev: Else


Hagelund. Petrópolis: Vozes, 2005.

MONTEIRO, Gustavo F. Analisando a escrita do passado: sobre o conceito de literatura de


Testemunho. Revista Vernáculo, n. 41, São Paulo, 2018.

O prefácio de José Tolentino Mendonça para o Diário de Etty Hillessum in:


https://www.dn.pt/cultura/o-prefacio-de-tolentino-mendonca-para-o-diario-de-
etty-hillesum-12137250.html Acesso 18mai2021

PRADO, Adélia. Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015.

Bakhtin Mikhail. Da teoria literária à cultura de massa. Tradução Robert Stam. São Paulo:
Ática, 1992.

UGGOCIONI, Cristina. Etty Hillesum, a jovem que encontrou Deus durante o Shoah.
Tradução André Langer. Revista IHU Online, Nov.18. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/584987-etty-hillesum-a-jovem-que-
encontrou-deus-durante-o-shoah>. Acesso em: 10 jan. 2021.
8

Entre o feminino e o sagrado:


um estudo sobre a relação com o divino em
D. Isabel de Aragão no medievo europeu

Francisco Edinaldo de Pontes


Aldinida Medeiros

Considerações iniciais

“– Sinto um chamamento, meu pai... Aquilo fora um sussurro. Mas, num ápice,
Pedro III chegou o corpo robusto à frente. – Sentes o quê? – tentou certificar-
se. De cabeça baixa, a princesa repetiu: – Sinto um chamamento, senhor. [...]
– Mas deveis saber que o que vos acabei de dizer é o destino que Deus me
impõem, também a mim, senhor” (MACHADO, 2017, p. 38).

Considerada como “uma das religiões do livro”, conforme Rafael Car-


molinga (2008), o cristianismo moldou a imagem de Deus ao ideal do
masculino1 que consiste nas tintas do sistema patriarcal, proliferando,
dessa forma, o androcentrismo, o falocentrismo e o pensamento hegemô-
nico supremacista; “tendo em vista que o sexo masculino sempre teve
condições mais favoráveis para se destacar em certos aspectos”
(NOGUEIRA, 2013, p. 154). É essa ideologia patrística, de acordo com Sílvia
Schwartz (2010), que revela a predominância da misoginia do mundo cris-
tão na Idade Média, uma vez que religiosos e estudiosos dessa conjuntura
afirmavam a irracionalidade das mulheres, considerando-as incapazes de

1 “[...] Foram então integrados os valores ‘masculinos’ (um reino estruturado com um certo tipo de poder) com os
‘femininos’ (amor e misericórdia), mas para depois desta vida, o que permitia a sua manipulação através dos tempos:
em épocas de dificuldade prevaleciam os valores ‘femininos’ e em épocas de ascensão, os ‘masculinos’ Assim, no
começo, o cristianismo era matricêntrico, mas aos poucos foi se tornando patriarcal, no sentido em que fazia
prevalecer a estrutura sobre o amor, submetendo o oprimido a valores postergados para depois da vida [...]”
(MURARO, 2002, p. 103).
150 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

estabelecer uma relação com o sagrado, por serem consideradas extrema-


mente sensuais e predispostas ao pecado2. Esta leitura negativa do
feminino, de certa forma, proíbe as mulheres, no contexto da Europa Me-
dieval, de estarem aptas para expressar o sagrado assim como os homens
o faziam.
Isso posto, mesmo diante dessa proibição das mulheres de atuarem
nas instituições religiosas durante a Idade Média, consoante Sílvia
Schwartz (2010) e Marcos Costa e Rafael Costa (2019), surgem diversas
intelectuais e místicas3 – pertencentes ou não à uma ordem religiosa4,
como o caso das beguinas5 – que almejavam viver as suas experiências
com o divino sem interferências, proibições ou julgamentos das institui-
ções, já que o direito a uma vida de espiritualidade lhes foi censurada.
Dentre estas, destacamos alguns nomes: Marguerite d’Oingt, Marguerite
Porete, Hildegard von Bingen, Hadewijch de Antuérpia, Catarina de
Siena6. Pois, “o papel da mulher em determinados setores da sociedade

2 “[...] A casta dominante cristã desprezava não apenas a carne, as emoções, mas tudo o que estava associado a elas:
a sexualidade, a mulher, o trabalho ao nível de subsistência, antes valorizado, a fim de justificar guerras santas,
conquistas, reis, imperadores e, por fim, o poder dos poderes [...]. O prazer e as mulheres eram considerados
culpáveis, porque afastavam o homem de Deus e da transcendência; eram, portanto, o pior dos pecados, pior do que
a busca desenfreada do poder e da riqueza” (MURARO, 2002, p. 103).
3 “Apesar de todo esse percurso, podemos dizer que o termo mística, por mais transformações e desgastes que tenha
sofrido ao longo do tempo, ainda traz consigo a ideia que remete para o seu sentido etimológico, ou seja, mística
deriva do verbo grego mýô, que significa fechar-se. Sem parecer forçado, podemos relacionar a noção de tal verbo à
ideia de recolher-se. Ora, o místico é aquele que se recolhe e que neste recolhimento se despoja de tudo que pode
constituir um empecilho no caminho de sua união com o divino” (NOGUEIRA, 2013, p. 157, grifo da autora).
4 “[...] independente do contexto em que se encontram, dentro, fora ou à margem das Instituições religiosas; nos
limites dos muros de suas Ordens ou das beguinarias; escrevendo para Papas, príncipes, reis ou simplesmente para
as suas irmãs; pregando para eclesiásticos ou apenas para o povo; enclausuradas em suas celas ou em seus corpos;
livres de determinados poderes que lhe eram externos ou completamente livres de suas vontades ou ‘quereres’, não
importa: a par das diferenças constatadas, as mulheres pesquisadas são, verdadeiramente, trovadoras de Deus,
anunciadoras do Divino [...]” (NOGUEIRA, 2015, p. 95).
5 “‘As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas marcadas por uma
espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas ‘Begijnhof’, ‘Béguinages’, conforme a
região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias,
viúvas, algumas casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de trabalho
autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da época, alimentadas por uma
espiritualidade singular, de caráter leigo [...]’” (CALADO, 2012, p. 47 apud NOGUEIRA, 2015, p. 158-159).
6 “O fato é que estas almas, que se tornam reflexos de Deus, são ‘almas femininas’ numa época em que não cabia às
mulheres o ‘dom’ de pregar, ensinar ou escrever, sobretudo o que elas pregaram, ensinaram e escreveram”
(NOGUEIRA, 2013, p. 162).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 151

como um todo é fruto de um processo histórico-cultural e na Filosofia não


poderia ser diferente” (NOGUEIRA, 2013, p. 154). É através dos escritos ou
feitos dessas mulheres que marcaram a História, que conseguimos visua-
lizar, segundo Sílvia Schwartz (2010), uma boa representação do feminino
e do sagrado mediante as suas experiências com o divino e “fenômenos
paramísticos”7.
O objetivo do nosso artigo consiste em fazer uma análise sobre a per-
sonagem romanesca D. Isabel de Aragão, protagonista do romance
histórico contemporâneo português A Rainha Santa (2017), de Isabel Ma-
chado, mostrando como a Rainha de Portugal estabelece uma relação com
o sagrado, algumas vezes através de intermediações, outras, por meio de
uma relação direta com o divino; uma vez que, D. Isabel, em seus verdes
anos, almejava o celibato para conseguir atingir a castidade e a santidade
mediante a vida de noviça, o que se configura como uma maneira de esta-
belecer uma conexão mais direta com o sagrado no seu contexto.
Portanto, como ideia-tese, compreendemos a conexão da persona-
gem feminina com o divino através de intermediações, expressões do
sagrado e de relações diretas com a deidade, mostrando-nos a forma como
essa mulher demonstrava a sua ligação com o sagrado no contexto religi-
oso e teocêntrico da Idade Média. Assim, observamos que, para estabelecer
uma vinculação com o divino, a protagonista encontra intermediações em
representações do feminino como a Virgem Maria e Santa Isabel da Hun-
gria. Com relação à expressão do sagrado, percebemos aspectos como o
cuidado com os enfermos, a partilha de pães e a maternidade. No que con-
cerne à relação direta com o divino, destacamos o milagre das rosas.

7 “O páthos das mulheres citadas atravessa os seus escritos e oscila entre o corpo (que muitas vezes fala através de
jejuns, visões, êxtases e penitências) e o intelecto (como o caminho percorrido serenamente por Marguerite Porete,
por exemplo)” (NOGUEIRA, 2015, p. 98, grifo da autora).
152 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Além disso, o presente estudo justifica-se pela necessidade de inves-


tigar o modo como essa personagem feminina expressa a sua relação com
o sagrado em um contexto, muitas vezes, repleto de imposições e regras
ditadas pelas instituições religiosas, o que, de certa maneira, controla as
formas de conexão com o divino impostas pela Igreja. Ademais, é de
grande importância entendermos o modo como D. Isabel estabelece a sua
conexão com a divindade, tendo em vista que, até nesse âmbito, ela, na
maioria das vezes, era silenciada por expressar, de jeitos diferentes, o seu
desejo de Deus. Uma vez que observamos que, para manter o contato com
o sagrado – até mesmo como um meio de não ser mal vista pela sociedade
cristã –, essa rainha precisou, necessariamente, do religioso com o intuito
de reafirmar a sua experiência com o divino. Em acréscimo, a nossa pes-
quisa justifica-se, também, pela necessidade de dar visibilidade a uma
mulher que agora, após a contribuição dos estudos culturais, dos estudos
de gênero e, mais especificamente, da crítica literária feminista, se torna
além de lenda e mito, protagonista de vários romances, evidenciando, as-
sim, o protagonismo feminino no romance histórico contemporâneo em
tela.
No que diz respeito ao encaminhamento metodológico, o nosso artigo
consiste em uma pesquisa de cunho bibliográfico, com uma abordagem de
interpretação textual, remetendo-se ao método indutivo. Além disso, utili-
zamos como principal instrumento de análise da obra literária o estudo de
cunho estruturalista. Ou seja, uma análise estrutural da narrativa, em que
realizamos as nossas reflexões através de uma leitura crítico-reflexiva do
romance.
Para a fundamentação teórica, recorremos às concepções de Simone
Alves (2013); Leonardo Boff (2012); Joseph Campbell (2015); Isabel Costa
(2019); Catherine Clément e Julia Kristeva (2001); Simone Ferreira (2017);
Carlos Gimenez (2005); Aldinida Medeiros (2013, 2019); Rose Muraro
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 153

(2002); Maria Simone Nogueira (2013, 2015); Rudolf Otto (2007); Joana
Ramôa (2010); António Rebelo (2018); e, Sílvia Schwartz (2010).

O feminino e o sagrado8: a relação de D. Isabel de Aragão com o divino


através de intermediações

A Rainha Santa, de Isabel Machado (2017), tem como pano de fundo


os conflitos entre três reinos da Península Ibérica, durante os séculos XIII
e XIV: Portugal, Aragão e Castela, além da sua constante luta contra a in-
vasão dos mouros na Ibéria Medieval. Ademais, a obra é narrada em
terceira pessoa, por um narrador onisciente e em primeira pessoa, pela
protagonista D. Isabel. Tendo o enredo o objetivo de mostrar a trajetória
– do nascimento ao falecimento – da figura histórica de D. Isabel de Ara-
gão, Rainha de Portugal e Santa da Igreja Católica Apostólica Romana.
Dentre as temáticas que conseguimos identificar ao longo da narrativa,
enfatizamos: a representação feminina no medievo europeu, o amor cor-
tês, a maternidade, o patriarcalismo, a guerra civil, o autoritarismo
monárquico, a diplomacia, o teocentrismo, tendo mais destaque, a política
e o sagrado. Entre Ficção e História, a personagem romanesca D. Isabel
tenta lidar com diversos aspectos no decorrer da trama, mas, os que se
sobressaem e moldam a imagem da referida protagonista consistem na
sua maternidade, nos seus feitos diplomáticos e políticos e na sua forte
relação com o divino.
De acordo com Carlos Gimenez (2005) e Aldinida Medeiros (2019),
em 14 de fevereiro de 1272, nasce D. Isabel9, no paço de Saragoça, no reino
de Aragão, e falece em 04 de julho de 1336, na alcáçova de Estremoz, em
Portugal. Era, portanto, uma infanta aragonesa, neta de D. Jaime I de

8 Referência à obra O Feminino e o Sagrado (2001), de Catherine Clément e Julia Kristeva. Para mais informações,
conferir as referências bibliográficas.
9 “Recebeu o nome de Isabel em homenagem à princesa Isabel da Hungria, irmã de Violante da Hungria, segunda
mulher de Jaime I, avô de Dona Isabel de Aragão” (RAMÔA, 2010, p. 63).
154 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Aragão, o Conquistador, e de D. Violante da Hungria. Sendo, por conse-


guinte, filha do infante D. Pedro III, o Grande, herdeiro do trono de Aragão
e de D. Constança Hohenstaufen, filha de Manfredo da Sicília e neta do
imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Frederico II. Segundo
Gimenez (2005) e Aldinida Medeiros (2019), apesar de ter nascido entre
os seus, D. Isabel foi levada por seu avô para a alcáçova de Barcelona, onde
viveu com ele até o falecimento desse último, quando ela tinha seis anos
de idade.
Ademais, consoante os estudos biográficos e historiográficos de Car-
los Gimenez (2005) e Aldinida Medeiros (2019), essa enigmática princesa,
considerada por toda a Europa Medieval como a pérola da Casa de Aragão,
deve, portanto, toda a sua educação formal e religiosa10 ao seu avô, D.
Jaime I, que a educou estritamente dentro dos preceitos da Santa Madre
Igreja Católica Apostólica Romana. Pois ele acreditava que, mesmo ainda
criança, Isabel era portadora de uma alma rara – como mostraremos adi-
ante –, e que faria justiça à estirpe aragonesa que o seu avô cultivara,
fazendo com que a princesa construísse uma ligação com o divino a ponto
de mudar o trilhar do seu caminho. Assim como aconteceu com a sua tia-
avó, Santa Isabel da Hungria, a quem D. Isabel recorreu por toda a sua
vida.
Destarte, levando em consideração o sagrado religioso presente nas
relações da nossa protagonista, e a respeito da religiosidade das mulheres
na Era Medieval, Simone Alves (2013) nos diz que: “Isso se deve, princi-
palmente, ao fato da sensibilidade religiosa da época, que na passagem do
século XIII para o século XIV, ‘o cristianismo do Ocidente Medieval foi mar-
cado profundamente pela inclusão de novas práticas da experiência

10 “Uma das estratégias utilizadas por homens do período patrístico para considerar as mulheres como semelhantes
a Deus, e que perdurou através da Idade Média, foi o modelo da femina virilis ou virago. Uma vez que a alma era
considerada como espiritualmente masculina em relação ao corpo, ela normativamente se manifestava em corpos
masculinos” (SCHWARTZ, 2010, p. 111, grifos da autora).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 155

religiosa’” (GIMENEZ, 2005, p. 86 apud ALVES, 2013, p. 27). Corrobo-


rando, consequentemente, com as ações da Rainha de Portugal nos seus
primeiros dias de vida, isto é, logo na abertura do romance, e perdurando
no decurso do enredo, o que representa a sua forte conexão com o sagrado.
Em relação ao nascimento de D. Isabel de Aragão, segundo Aldinida
Medeiros (2013), uma membrana misteriosa que a envolvia suscitou uma
tese – por autoridades religiosas do século XIII e, por isso, o seu avô D.
Jaime I a considerava uma alma rara – de que, esse acontecimento pre-
nunciava a ligação direta da infanta com o divino. E, por conseguinte,
consoante Carlos Gimenez (2005), ela teria um papel fundamental para
desempenhar na Península Ibérica, além de o fato de ser uma futura Rai-
nha, e que se confirma na escrita romanesca de Isabel Machado:

Dizem que o céu se abriu de um momento para o outro, deixando ver o sol
oblíquo de Inverno alumiar a cidade, e que o povo se deteve a admirar o fenó-
meno [...] A recém-nascida chegara ao mundo envolta numa membrana rara,
que espantara físicos, homens de Deus e leigos. E correra uma premonição:
vinha protegida a criança pelo bem que traria ao mundo. [...] No palácio real
de Aljefaría nascera a neta do rei Jaime I de Aragão, filha do príncipe herdeiro,
Pedro. Aquele rebento, que juntava os sangues dos mais ilustres reis da Cris-
tandade, trazia boa fortuna e promessas de sólidas alianças ao monarca,
merecidamente conhecido por o Conquistador. O avô da princesa juntara à
sua Coroa a ilha de Maiorca, o reino de Valência e o condado de Barcelona
(MACHADO, 2017, p. 17, grifo da autora).

Nesse sentido, de acordo com a nossa análise interpretativa e crítico-


reflexiva da narrativa, desde os seus primeiros momentos de vida, consta-
tamos que a Infanta de Aragão nutre uma ligação com o sagrado que não
passa despercebido aos que a cercam, pois, dentre diversos outros atos de
conexão com o divino, esse é o primeiro que ela protagoniza mesmo
156 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

recém-nascida. Também, a esse respeito, a estudiosa isabelina Joana Ra-


môa (2010) afirma o seguinte:

O nascimento da infanta de Aragão aparece, desde logo, associado à uma


lenda, segundo a qual Dona Isabel teria nascido envolta numa pele – manifes-
tando, assim, na própria chegada ao mundo e, portanto, desde a sua origem,
a vocação para uma existência excepcional (porque de forte comunhão com o
divino) que, ao longo de toda a sua vida, mais não terá feito do que consolidar
(RAMÔA, 2010, p. 64).

De acordo com as concepções de Simone Alves (2013) e Aldinida Me-


deiros (2013), vemos que, no momento em que veio ao mundo, D. Isabel
já mostrava prenúncios sobre o seu futuro como um ser de uma conexão
excepcional com o sagrado, deixando-se ser usada como instrumento do
divino para remediar os mais humildes e necessitados com caridade e
compaixão. Ademais, conforme Isabel Costa (2019), “a infanta aragonesa
nasceu conciliadora, promovendo a paz e a harmonia entre o seu pai e o
seu avô. Sabe-se que foi a neta mais querida do rei D. Jaime e a sua vida,
desde o nascimento, foi uma resposta afirmativa a Deus que a chamava
para a santidade” (COSTA, 2019, p. 26).
Mediante essas primeiras ações de D. Isabel já na infância, o primeiro
ponto de intermediação que ilustra uma maneira de atingir um contato
com o divino e o anseio pela santidade, consiste no fato de a protagonista
seguir como modelo de um sagrado feminino a Virgem Maria e a sua tia-
avó, Santa Isabel da Hungria. O que ilustra o seu desejo insaciável de al-
cançar a deidade, assim como essas últimas alcançaram. Dessa forma, em
oração, a personagem revela esse seu desejo de seguir os passos da Virgem
Santíssima11: “Dai-me saber que me ilumine, Senhora, certa que estou da

11 “Ao chegarmos ao século XIII, todas as catedrais já eram construídas em seu nome. Ela é mediadora, pois não
podemos nos aproximar de Deus diretamente – e isso é uma verdade indiscutível. [...] Por isso nos aproximamos
dele através da Mãe, através da fonte da nossa natureza, e ela roga por nós. Ela não é adorada, ela é venerada; ela é
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 157

vossa santidade em tudo sem mácula. Tomara eu seguir vossa luz e des-
cartar de mim a fraca condição de gente, que me apouca e desvirtua o vosso
exemplo12” (MACHADO, 2017, p. 154, grifos da autora).
De acordo com o excerto, percebemos o forte desejo da protagonista
em seguir os passos de Maria Santíssima e, com isso, saciar o seu anseio
de santidade por meio do exemplo de um sagrado feminino que consiste
na mãe de Jesus Cristo, tendo em vista que:

a tradição da fé concentrou o feminino em Maria, mãe de Jesus. Ali viu reali-


zada todas as possibilidades numinosos e luminosas do feminino a ponto de
ela ser simplesmente a Nossa Senhora: ela é virgem, é mãe, é esposa, é viúva,
é rainha, é a sabedoria, o tabernáculo de Deus, etc. [...] (BOFF, 2012, p. 16,
grifos do autor).

Sendo assim, no que concerne ao seu desejo de seguir a Virgem Maria


como um modelo de santidade, prostrada em seu genuflexório, em oração
à Nossa Senhora, a rainha diz:

Na determinação inabalável que tenho de levar aos outros o bem que posso,
iluminai o meu caminho. Nada do que possais enviar-me é demasiado para vos
servir. Aos Vossos pés, senhora, mãe de todos, confio o meu propósito: fazer-
me santa na Terra. Ajudai-me a seguir o exemplo de Cristo, calando desejos e
vontades, tornando-me capaz de seguir as virtudes que Ele nos mostrou. En-
tregai-me qualquer sacrifício (MACHADO, 2017, p. 26, grifos da autora).

Mediante o exposto no fragmento, vemos que, D. Isabel de Aragão,


desde a sua tenra infância percebe que a sua relação com o sagrado era
algo além do que o seu contexto religioso e as suas crenças suscitavam.

quase uma deusa. Sem chegar à essa condição, ela recebe o título hoje de cossalvadora” (CAMPBELL, 2017, p. 275,
grifos do autor).
12 Vale ressaltar que, o destaque em itálico do referido trecho não é nosso, mas consiste em uma opção da autora do
romance em dar destaque aos momentos de oração de D. Isabel.
158 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Dado que, o seu anseio por santidade e de doar-se ao próximo era maior
do que o que o contexto patriarcal impunha à sua condição de mulher13
em uma sociedade em que o pensamento supremacista masculino predo-
minava. “Mesmo assim, não faltaram aqueles que consideravam a mulher
na Idade Média um ser débil ou inferior ao homem, mesmo reconhecendo
que as supostas fragilidade e inferioridade não impediram algumas de ul-
trapassar os preconceitos e as barreiras do espaço e do tempo em que
estavam inseridas” (NOGUEIRA, 2013, p. 158).
Assim, para entendermos melhor essa admiração e devoção de D. Isa-
bel de Aragão para com a Virgem Maria, Leonardo Boff (2012) explica o
seguinte sobre esta última:

Sendo por isso o membro da Igreja, ela também ocupa um lugar correspon-
dente nos laços de mediação salvífica que envolvem a todos; ela é venerada
como a medianeira de todas as graças, porque, unida ao Espírito Santo, ao seu
Filho, ela é cheia da graça. Maria encontra-se de tal maneira associada ao seu
Filho, ao Espírito Santo e ao próprio Deus que é exaltada como corredentora.
A morte coroou-a a perfeição de tal vida. Ela foi assunta ao céu de corpo e
alma; antecipa assim o destino de todos os justos e concretiza o que deverá ser
a transfiguração universal de todo o universo no Reino de Deus (BOFF, 2012,
p. 23-24).

Conforme a citação de Leonardo Boff (2012), compreendemos, den-


tro da tradição religiosa da protagonista – além do seu desejo de tornar-se
santa e, assim, conseguir ser considerada como instrumento d’Ele, como
Maria o foi, seja através de intermediações ou não –, o motivo pelo qual
Maria é considerada como um modelo de um sagado feminino a ser se-
guido pela protagonista, visto que “todos os deuses vêm da Mãe: ela é a

13 “[...] Seu corpo é a sua magia: ele invoca o masculino e é também o vaso de toda vida. A magia feminina é,
portanto, básica e natural. O masculino, por outro lado, é sempre representado em algum papel, desempenhando
uma função, fazendo algo [...]” (CAMPBELL, 2015, p. 18).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 159

mãe da Forma, ela é a Mãe dos Nomes. Além dela, está a transcendência e,
portanto, ela representa o que é transcendente, tudo o que é potencial, que
está no futuro; ela é a fonte e o fim. Tal é a adoração enquanto veneração
do poder feminino no mundo ocidental” (CAMPBELL, 2015, p. 275). Em
acréscimo, a respeito dessa constante comparação de D. Isabel com a Vir-
gem Santíssima, percebemos que:

Tais e tantos são os fatos que a fé testemunha acerca de Maria. O povo de Deus
guarda a memória deles no culto e na devoção profundamente arraigada no
coração do catolicismo. Mas não só se mantém viva na memória tudo daquilo
que Deus fez por Maria. Procura-se também traduzir para a vida humana a
salvação operada em Maria, mediante um caminho de seguimento e de imita-
ção. A grandeza de nossa mãe se operou numa senda estreita na qual sempre
esteve presente o sofrimento, a pequenez e o anonimato (BOFF, 2012, p. 24).

Ao refletirmos sobre o que Leonardo Boff (2012) enfatiza e mediante


a admiração, a devoção e o culto da Rainha de Portugal à Maria, seguindo-
a como modelo de virgem, santa, mãe, corredentora, cossalvadora, inter-
mediadora, a progenitora de Jesus, desse modo, representa o divino
feminino, uma mediação máxima entre o feminino e o sagrado. “Assim,
Maria revelaria o ser humano ao próprio ser humano e revelaria também
uma faceta nova de Deus para o ser humano” (BOFF, 2012, p. 25).
Além disso, como mencionamos no início da nossa discussão, uma
outra maneira de intermediação com o sagrado que D. Isabel mantém ao
longo da narrativa, diz respeito ao seu outro modelo de sagrado feminino
que a protagonista elegeu, sua tia-avó, Santa Isabel da Hungria, recebendo
o nome dessa última como uma previsão sobre o seu futuro como Rainha
e Santa: “– Que lhe seja dado o nome da minha santa tia, a princesa Isabel
da Hungria, senhora de virtudes e milagres – ordenou o pai da criança. E
assim se fez” (MACHADO, 2017, p. 18).
160 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Dessa maneira, em oração, a personagem deixa claro ao leitor o seu


propósito, que consiste em seguir uma vida de santidade, mesmo estando
casada, assim como a sua tia-avó o fez:

Dai-me forças para acatar os mandos de meu pai, porque não estou fadada
para o matrimónio. Só encontro em mim a vontade de seguir o caminho da
santa tia de meu pai, Isabel da Hungria, de quem recebi o nome, entregue à sua
veneração desde que atingi o entendimento (MACHADO, 2017, p. 26, grifos da
autora).

Ao refletirmos sobre o trecho, compreendemos que a protagonista


revela, em viva voz, o seu anseio de seguir os passos da sua tia-avó, ou
seja, tornar-se santa e instrumento de Deus no plano terreno; visto que,
nesse sentido, percebemos que “suas almas se tornam espelhos cristalinos,
reflexos do divino” (NOGUEIRA, 2013, p. 162). Desse modo, com relação à
Santa Isabel da Hungria, Joana Ramôa (2010) afirma o seguinte:

Isabel da Hungria tinha então já sido beatificada, por Gregório IX, em 1235, a
pedido expresso do citado imperador – e é muito interessante que, num pro-
cesso certamente motivado, em larga medida, por esta mesma
consanguinidade, as iconografias das duas santas, da mais antiga Isabel da
Hungria e da posterior Isabel de Aragão, tenham tendido a aproximar-se de
forma apreciável. A mesma relação explica que Isabel da Hungria se integre,
como veremos, no grupo de personagens santas que figuram na arca tumular
da Rainha Santa como fatos particulares da sua devoção e garantias de sua
ligação excepcional ao divino (RAMÔA, 2010, p. 63-64).

Diante do exposto, compreendemos que D. Isabel adotou um modelo


de sagrado feminino que serve como uma boa representação sobre a rela-
ção entre o feminino e o sagrado: Santa Isabel da Hungria. Isto é, Deus
escolheu uma mulher, Ele escolheu o sexo feminino para agir como inter-
mediação entre o divino e a Sua criação. Assim, segundo o que Sílvia
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 161

Schwartz (2010) afirma sobre as conjecturas patrísticas do cristianismo na


Alta Idade Média, o fato de a escolhida ser uma mulher configura-se como
uma transgressão, posto que, na “doutrina cristã da criação da humani-
dade à imagem de Deus” (SCHWARTZ, 2010, p. 110), Ele sempre fala ou
age através dos homens, e não das mulheres. Tendo em vista que, elas são
consideradas “deficientes quanto à razão, mas também moralmente fracas
e consequentemente predispostas ao pecado, especialmente de natureza
sensual” (SCHWARTZ, 2010, p. 110).
Em suma, ao levarmos em consideração todas essas intermediações
que D. Isabel de Aragão mantém com o sagrado através de figuras e repre-
sentações femininas como a Virgem Maria e Santa Isabel da Hungria,
percebemos que há uma particularidade nessas medições que nos infere
que há uma forte relação entre “o feminino e o sagrado”, como defende
Catherine Clément e Julia Kristeva (2001), configurando, assim, essas duas
imagens femininas como representações do “divino feminino”14 para in-
termediações com o sagrado.

O rosto materno de Deus15: as expressões de D. Isabel de Aragão com o


sagrado através de intermediações

Além das conexões de D. Isabel com o sagrado através de figuras fe-


mininas que representam o que Joseph Campbell (2015) denomina como
“o divino feminino”16 e Catherine Clément e Julia Kristeva (2001) classifi-
cam como “o feminino e o sagrado”17, vemos que a protagonista também

14 Referência à obra Deusas: os mistérios do divino feminino (2015), de Joseph Campbell. Para mais informações,
conferir as referências bibliográficas.
15 Alusão à obra O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e as suas formas religiosas (2012),
de Leonardo Boff. Para mais informações, conferir as referências bibliográficas.
16 “Agora as mulheres devem nos contar do ponto de vista delas quais são as possibilidades do futuro feminino. E é
um futuro – é como se a decolagem já tivesse acontecido. [...] Repetindo mais uma vez o antigo mote de Goethe: ‘O
eterno feminino / nos leva adiante’” (CAMPBELL, 2015, p. 304).
17 “Não a religião, nem seu reverso que é a negação ateia, mas essa experiência que as crenças ao mesmo tempo
abrigam e exploram, no cruzamento da sexualidade e do pensar, do corpo e do sentir, que as mulheres realizam tão
162 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

tenta estabelecer uma relação com o divino através de expressões inter-


mediáveis como o cuidado com os enfermos, a partilha de pães e a
maternidade.
Ao levarmos em consideração as concepções de António Rebelo
(2018), constatamos que essas ações elencadas configuram o hábito fran-
ciscano da Rainha de Portugal. Além disso, o romance inicia-se com a flor
da casa de Aragão, ainda aos nove anos de idade, cuidando de um enfermo
com a suas próprias mãos, o que muitos não fariam por repulsa ao leproso.
Mas, “não era a primeira vez que andava pelos asilos e igrejas da cidade a
acudir a quem podia, mas mexer num homem ainda nunca fora visto e
não era coisa de decoro para as mãos do que mais castas da filha do rei de
Aragão” (MACHADO, 2017, p. 22). Por conseguinte, temos uma confirma-
ção das ações caridosas de D. Isabel para com o enfermo no seguinte
trecho, narrado pela própria protagonista:

Este pobre homem não irá juntar-se aos cadáveres que são descobertos todas
as manhãs, prostados nas ruas de Barcelona, onde são resistem ao frio do In-
verno. Acredito que o salvei, como seria fácil salvar tantos outros desgraçados,
se somente lhes fosse dado algum calor de gente, que honrasse a sua alma, e
tratamento para curar as chagas do corpo (MACHADO, 2017, p. 22).

Tendo em vista que, “o anjo que o devolvia à vida era apenas uma
menina” (MACHADO, 2017, p. 22). Esse é, portanto, apenas um dos muitos
exemplos que ilustram o cuidado com os doentes por parte da protagonista
no decorrer da narrativa. Levando em consideração o excerto, é a partir
dessa premissa de doar-se integralmente aos desvalidos que D. Isabel de-
senvolve as suas ações no desenrolar do romance, não só com o cuidado
aos doentes, mas também, com o saciamento da fome dos mais

intensamente sem preocupação alguma, e sobre a qual lhes resta – nos resta – tanto a dizer” (CLÉMENT; KRISTEVA,
2001, p. 08).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 163

necessitados. Uma vez que, “a sua relação, desde a infância, com a ordem
religiosa franciscana configura total importância para o seu espírito religi-
oso e magnânimo” (FERREIRA, 2016, p. 33).
Em adição, além do cuidado com os enfermos, apesar das muitas mu-
danças da corte para diversos lugares do reino de Portugal – visto que,
nessa época, a Corte Real Portuguesa, embora fixada em Coimbra, era
também itinerante –, D. Isabel não deixava de cuidar dos mais necessita-
dos tendo como uma das suas ações mais conhecidas até hoje na cultura
judaico-cristã, a partilha de pães: “Mas aquele excesso de pão eram ordens
da mulher, vagamente lhe disseram nos corredores por onde procurou,
sabendo ele [o Rei] que a ocultavam, que desculpavam todos os desejos da
rainha, que vivia para atender os outros” (MACHADO, 2017, p. 368, acrés-
cimo nosso). Um exemplo disso, vemos quando ela mesma solicita a
distribuição de pães aos criados na alcáçova de Coimbra, o que causa es-
tranhamento na Corte Portuguesa ao presenciar esse hábito da rosa da
Casa de Aragão:

Resolveu dirigir-se ela própria às cozinhas para deixar o pedido e garantir que
não haveria esquecimento e que as crianças enjeitadas receberiam diaria-
mente os seus alimentos à hora marcada. Notou alguns olhares cruzados entre
o pessoal, talvez pela estranheza da ordem. Na sua terra, era ela quem enchia
os cestos com pães ou com sobras de banquetes para entregar a um ou outro
asilo que conhecia, mas ocorreu-lhe que em Portugal talvez fizesse de outra
maneira... mas intimidou-se de perguntar. O importante era deixar consolo
certo aos meninos que não lhe saíam da cabeça (MACHADO, 2017, p. 113).

Esse é apenas um dos muitos exemplos que encontramos no decurso


do romance. Além disso, segundo a própria protagonista, não somente “o
mais simples gesto de compaixão pode alterar o rumo de uma vida, como
Jesus Cristo tantas vezes mostrou. Para viver, é preciso acreditar em al-
guma coisa” (MACHADO, 2017, p. 22). Portanto, apenas o cuidado dos
164 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

enfermos e a partilha de alimentos não saciou o desejo da Rainha de “se-


guir o exemplo de Cristo, calando desejos e vontades, tornando-me capaz
de seguir as virtudes que Ele nos mostrou (MACHADO, 2017, p. 26, grifos
da autora), dado que, a ação de doar-se de D. Isabel como Jesus Cristo fez,
vai muito mais além do que o seu contexto sócio, histórico, político, cultu-
ral e religioso permitia.
Em vista disso, conforme a nossa análise interpretativa e crítico-re-
flexiva da trama, D. Isabel de Aragão também construiu e ajudou a manter
financeiramente obras de caridade e locais ligados às instituições religio-
sas, tais como: o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra; o Hospital
dos Necessitados, próximo ao Mosteiro de Santa Clara; as Casas de Reco-
lhimento às Meretrizes, em Coimbra e em Torres Novas; o Hospital dos
Inocentes, em Santarém; além de orfanatos e casas de abrigo espalhadas
pelo reino de Portugal (Cf. MACHADO, 2017). Além disso, D. Isabel estava
“voltada sempre para rezas e jejuns, dava pouca importância à beleza ex-
terior. Desde cedo, procurou exaltar, em primeiro plano a beleza interior,
o sentimento de caridade e bondade para como os excluídos e que viviam
à margem da sociedade” (MEDEIROS, 2013, p. 05).
Outrossim, reiterando o que discutimos, essas ações e expressões
cristocêntricas de D. Isabel nos remete às características que Leonardo Boff
(2012) elenca sobre o perfil da Virgem Santíssima18: “Maria jamais viveu
em si e para si. Ela foi uma mulher sempre a serviço dos outros, ou de
Deus ou de Cristo ou da redenção ou da Igreja ou do sentido último da
história” (BOFF, 2012, p. 28). Ademais, “ela está presente em tudo, sempre
de forma discreta, mais cada vez plenamente” (BOFF, 2012, p. 29).

18 “O século XIII foi o século da Virgem. A Deusa retorna para a tradição cristã, antideusa, por meio da Virgem, Mãe
de Deus. Principalmente no catolicismo tem havido um crescimento constante da Virgem desde o século V até os dias
de hoje” (CAMPBELL, 2015, p. 269).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 165

Um outro elemento que conseguimos identificar sobre a relação de


D. Isabel com o divino consiste no modo como ela desempenha a materni-
dade. Destarte, percebemos que esse fato corrobora com o que Catherine
Clément e Julia Kristeva (2001, p. 21) definem como “uma forma de ex-
pressão do sagrado”, quando a protagonista desafia a autoridade do seu
próprio marido, o Rei D. Dinis, para proteger o seu filho, o infante D.
Afonso IV; além das ações apaziguadoras de D. Isabel nas contendas entre
pai e filho:

Meu filho, beijo a sua testa inocente. Tomara poder proteger-te toda a vida,
assim, como quando te tenho nos braços, livrando-te do mal. Que Deus te
guarde. Faço o sinal da cruz na tua pele macia, jurando que nunca te abando-
narei, mesmo que o mundo inteiro se resolva contra ti, Afonso, terás a tua mãe
(MACHADO, 2017, p. 191).

Em adição, depois de uma conversa conflituosa entre o rei D. Dinis e


a rainha D. Isabel, em que o rei acusara essa última de proteger o infante
D. Afonso IV e escondê-lo em suas terras – banindo D. Isabel da Corte Por-
tuguesa e destinando-a ao exílio, no Castelo de Alenquer, sob tais
acusações –, a própria rainha confirma o apoio ao filho, revelando o ins-
tinto de amor materno, mesmo estando inapta a interceder pelo filho
diretamente e em viva voz dentro da Corte Real Portuguesa:

Pudesse falar com el-rei, meu senhor, pudesse eu falar com o infante meu fi-
lho, sem nenhuma outra voz entre todos, para que sós os laços sagrados que
nos unem pudessem discorrer por si. Não abandonarei meu filho, nem com
excesso de fel que carrega apenas porque vive na crença do desprezo de seu
pai. Se o largar, quem lhe resta para lhe levar ao ouvido palavras de siso? Não
abandonarei Afonso nem esmorecerá a esperança de trazer harmonia aos que
têm o mesmo sangue, enquanto me restar vigor no corpo, sabendo que a fé
jamais me faltará (MACHADO, 2017, p. 326).
166 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Diante do exposto, ao analisarmos o que a protagonista enfatiza e as


reflexões de Aldinida Medeiros (2013), vemos uma constante dedicação,
sacrifício e abnegação da protagonista pelo seu filho, mesmo esse tendo
cometido graves ofensas contra o seu pai. Assim sendo, D. Isabel não o
abandona, pois ‘“nada é mais sagrado, para uma mulher, do que a vida de
seu filho’” (CLÉMENT; KRISTEVA, 2001, p. 73). Em acréscimo, com rela-
ção a esse sentido da vida que uma mãe tem ao garantir a segurança e
proteção do filho, as autoras acrescentam: “Só quero dizer que, no ponto
em que nos encontramos agora, entre a Virgem e suas ‘possuídas’, o tempo
e a ausência, a serenidade e a perda de si, acho que aquilo que nos retorna
como ‘sagrado’ na experiência de uma mulher é a ligação impossível, e, no
entanto, mantida, entre vida e sentido” (CLÉMENT; KRISTEVA, 2001, p.
22). Esse sentido, de fato, é expressado pela protagonista ao afirmar o seu
grande desejo de dedicação e cuidado para com o seu filho, isto é, o sentido
da maternidade19, o sagrado que nos revela a experiência do divino femi-
nino.
Além disso, um dos exemplos ao longo da narrativa que nos chama
atenção para esse “sentido da vida na maternidade” defendido por Cathe-
rine Clément e Julia Kristeva (2001, p. 21-22), diz respeito à intervenção
que D. Isabel faz em um conflito civil entre o rei D. Dinis e o seu filho:
“Passo as noites em desordem, certa da tormenta que se avizinha. Sinto
presságio de guerra no ódio que voltou a instalar-se entre os meus”
(MACHADO, 2017, p. 363). Quando, repentinamente, a rainha entra no
campo de batalha montada em uma mula:

– Parai! Parai, em nome de Cristo! Incrédulo, D. Dinis voltou a cabeça e depa-


rou-se com a figura da rainha montada numa mula, de coroa sobre o véu e a

19 “[...] Ela se ordena à maternidade. Aqui radica toda a grandeza de Maria. Ela não é apenas a consagrada de Deus.
É possuída por Ele. Torna-se a sua esposa. É a mãe de Jesus que é Deus [...]” (BOFF, 2012, p. 207).
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 167

mão direita elevada para ser vista. [...] Só o relinchar nervoso dos cavalos cor-
tava o silêncio que caíra no campo de batalha, enquanto a extraordinária visão
de uma mulher à garupa de uma mula avançava lentamente entre as duas
hostes em contenda. Isabel pensara em tudo e ia de coroa sobre o véu para que
a sua aparição fosse identificada de imediato. Só como rainha poderia alcançar
a paz, falhadas todas as tentativas como esposa e mãe dentro de portas. – Pa-
rai, senhores, e ouvi-me. E pararam todos a ouvi-la. – Que dois reis de
Portugal, presente e futuro, não derramem o seu sangue sobre o solo que os
deveria unir [...] Esta é uma guerra que nem Deus nem o povo deste reino
desejam (MACHADO, 2017, p. 364-365).

Conforme observamos no fragmento supracitado, percebemos clara-


mente em D. Isabel, essa busca constante em expressar o sagrado como
sendo a ideia do amor materno que parte da imagem da Virgem Maria20,
mulher pura e abnegada que viveu em função do filho, tese defendida por
Catherine Clément e Julia Kristeva (2001). De certa maneira, ela evoca essa
representação excelsa da maternidade como um sagrado feminino, como
podemos constatar na seguinte afirmação da protagonista: “Não julgo ser
a ambição que me move, mas sim um desejo puro de mãe, de proteger o
sangue do filho que se faz no meu ventre e medrou perante os meus olhos
repletos de amor” (MACHADO, 2017, p. 363). Isso porque, “em meio ao
patente do culto masculino do Antigo Testamento, desponta o Evangelho
de Lucas, onde a Virgem Maria concebe o Cristo de Deus. No ano de 431
da nossa era, o Concílio de Efésio (cidade de Artémis) declara que Maria
era verdadeiramente Theotokós – a mãe de Deus (CAMPBELL, 2015, p.
275, grifo do autor).
Logo, a respeito de toda essa dedicação e proteção que a protagonista
demonstra por seu filho, relacionamos com o que Catherine Clément e

20 “[...] Efetivamente Maria está ligada ao tempo; viveu a condição de peregrina, na fé e na esperança, era virgem,
tornou-se Mãe de Deus, fez-se junto da cruz corredentora de todos os homens, teve que esperar até ser glorificada”
[...] (BOFF, 2012, p. 27).
168 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Julia Kristeva (2001) denominam como o amor materno que faz alusão à
maternidade da mãe de Jesus. Isso posto, as autoras indagam: “Essa vida,
desejada e dirigida por uma maternidade amorosa não é um puro e sim-
ples processo biológico: eu falo do sentido da vida – de uma vida que tem
um sentido. [...] E se o que chamamos de ‘sagrado’ fosse a celebração desse
mistério que é a emergência do sentido?” (CLÉMENT; KRISTEVA, 2001,
p. 21).
Portanto, a partir das reflexões de Catherine Clément e Julia Kristeva
(2001) e tudo o que foi discutido até aqui, percebemos que essas expres-
sões do sagrado de D. Isabel configuram-se como meios de atingir o divino
através de intermediações. Tendo em vista que, constatamos que as ações
franciscanas e marianas da protagonista para com os mais necessitados
podem ser relacionadas com o que Rudolf Otto (2007, p. 200) chama de
“as obras do Cristo”. Sendo, por conseguinte, o amor materno relacionado
à imagem de mãe abnegada e totalmente dedicada ao filho que a Virgem
Maria foi configurando, desse modo, a sua maternidade como uma das
expressões que ilustram fortemente essa conexão para com o sagrado.
Uma vez que, “ela mesma [Maria] é uma questão fundamental que deve
ser refletida porque nela Deus é encontrado numa densidade apenas com-
parável com Jesus Cristo” (BOFF, 2012, p. 29, acréscimo nosso),
mostrando-nos, dessa forma, a representação de uma nova faceta na rela-
ção entre o feminino e o sagrado: o rosto materno de Deus.

A rainha santa: a relação de D. Isabel de Aragão com o sagrado sem


intermediações

De acordo com as reflexões de Rudolf Otto (2007), ao que concerne


essa relação direta com o sagrado – que o teórico define como “divinação”
– que configura o sujeito como um mediador, como é o caso da protago-
nista em tela, nem todos:
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 169

os indivíduos chegam a possuir in actu [realizar], geralmente ocorrendo ape-


nas em forma de especial talento e dote de uns poucos privilegiados. [...]
Somente pessoas com índole divinatória chegam a concretizá-la; nem o ser
humano de forma geral, como acredita o racionalismo, nem a massa indife-
renciada de sujeitos do mesmo tipo interagindo entre si, como imagina a
etnopsicologia moderna, é que são receptores e portadores das impressões do
supramundano, mas sempre privilegiados, ‘eleitos’ (OTTO, 2007, p. 185-186,
grifos do autor).

Desse modo, como uma ação máxima de estabelecer um contato di-


reto com o divino, D. Isabel protagoniza o “milagre das rosas”, o que nos
mostra uma relação com o sagrado sem mediações. Pois, nesse momento,
a protagonista e Deus tornam-se um só, proclamando sua fama de santa
por toda a cristandade da Península Ibérica Medieval, chegando, assim, aos
conhecimentos do Sacro Império Romano.
Assim, enervado pelo hábito de mãos estendidas da rainha, que sem-
pre distribuía pães aos mais necessitados, hábito franciscano de D. Isabel,
como enfatiza António Rebelo (2018) – o que, de certa maneira, segundo
António Rebelo (2018), incomodava o seu esposo, o rei D. Dinis, por con-
siderar a caridade de sua esposa um exagero –, D. Dinis sente a falta da
rainha no paço e decide procurar a esposa. Encontrando-a fora do paço
com os seus súditos, o rei a questiona: “– Onde ides, senhora? [...] – O que
trazeis no regaço? [...] – Trago rosas, senhor [...] – Rosas, senhora? Em
Janeiro? [...] – Descobri o vosso regaço – ordenou” (MACHADO, 2017, 368-
369).
No que concerne ao milagre, segundo Simone Ferreira (2017), ele in-
dica uma mudança de um estado físico de algo ou alguém. Os indícios
desse fato aparecem na narrativa logo após o diálogo acima, quando: “O
grito de uma ave cortou a espera ansiosa e o rei distraiu-se dela [D. Isabel],
olhando instintivamente para o céu, de uma limpidez de vidro puro, que o
170 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

sol atravessava. A intensidade da luz feriu-lhe a vista, mas logo regressou


ao seu intento, o regaço da rainha” (MACHADO, 2017, p. 369, acréscimo
nosso).
Já o modo como o milagre aconteceu, podemos observar no seguinte
trecho, no momento em que o rei D. Dinis testemunha o milagre das rosas
protagonizado pela sua esposa:

Pestanejou. Seria da cegueira do sol. Levou as mãos aos olhos e esfregou-os. E


voltou a fixar o regaço da mulher para confirmar que não era da sua vista.
Isabel baixara as mãos e dos pães brotavam rosas… Rosas… Nem a sua imagi-
nação de trovador lhe dera algum dia a experimentar tamanho fenômeno.
Procurou o seu escudeiro e não o viu. Não viu ninguém. El-rei estava sozinho
com a mulher, ou assim lhe pareceu, à primeira vista. Os únicos de pé
(MACHADO, 2017, p. 369).

Dessarte, conforme Rudolf Otto (2007), vemos que, “o sentimento do


sagrado no ser humano, de estimulá-lo, de fazê-lo eclodir, isto é, todos
aqueles elementos e circunstâncias de que se falou acima: o terrível, o ex-
celso, o avassalador, o assombroso e muito especialmente o misterioso e o
não-entendido, o portentum e o miraculum” (OTTO, 2007, p. 180, grifos
do autor); representam, de certa maneira, o milagre que D. Isabel prota-
gonizou, mediante a reação do seu esposo e das testemunhas que os
cercavam no momento em que o milagre aconteceu.
Desse modo, consoante Simone Ferreira (2017), e de acordo com a
nossa análise estrutural, interpretativa e crítico-reflexiva da obra, o mila-
gre de D. Isabel não poderia configurar-se como um delírio d’el-rei D.
Dinis: “Porque as gentes em redor do monarca se haviam afundado, de
joelhos no chão e mãos em prece, soltando pela boca louvores a Deus e à
rainha. É santa! – bradavam” (MACHADO, 2016, p. 369). Portanto, con-
forme Aldinida Medeiros (2019), a interpretação do seu milagre resultou
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 171

na sua imagem de santidade, de mediadora, de intercessora e de correden-


tora, quando o narrador onisciente nos mostra a avaliação de terceiros na
narrativa: “Uniam o nome do Senhor ao de Isabel, enquanto corriam a dar
a nova do milagre que acabara de acontecer. Não tardaria que a Cristan-
dade lhe aclamasse o nome e até o Papa se vergou aos pés da rainha de
Portugal. Santa, dissera a Igreja” (MACHADO, 2017, p. 369); tendo em
vista que a protagonista “nasceu no período em que a religião católica já
dominava ideologicamente a Europa” (MEDEIROS, 2019, p. 74).
Em acréscimo, ainda com relação ao milagre protagonizado pela rai-
nha, consideramos que se configura como uma manifestação do sagrado
na perspectiva da “divinação”. De acordo com Rudolf Otto (2007):

É convicção fundamental de todas as religiões e da religião em si que também


a segunda possiblidade é viável, que não só a voz interior, a consciência religi-
osa, o discreto sussurro do espírito no coração, o palpite e o anseio prestem
testemunho a seu respeito, mas que seja possível encontrá-lo em eventos, fa-
tos, pessoas, em atos de auto-revelação, ou seja, que além da revelação interior
no espírito também haja revelação exterior do divino. Essas revelações atuan-
tes, essas manifestações do sagrado em perceptível auto-revelação a
linguagem da religião chamam de ‘sinais’ (OTTO, 2007, p. 180).

Dessa forma, mediante as passagens do romance analisadas e o ex-


posto por Rudolf Otto (2007) sobre essa “revelação atuante”, podemos
considerar realmente o milagre das rosas como uma categoria do sagrado
denominada como “divinação”, como defendido pelo teórico. Pois, se-
gundo ele, a “divinação genuína nada tem a ver com lei natural, nem com
referenciamento ou não à mesma. Ela não se interessa pelo surgimento de
um acontecimento, seja ele um evento, uma pessoa ou um objeto, e sim
pelo seu significado, qual seja, o de ser um ‘sinal’ do sagrado” (OTTO,
2007, p. 182). Em conformidade com o que o teórico argumenta, temos
essa confirmação de “um sinal do sagrado” no seguinte trecho: “Mas a mão
172 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

do monarca, tomada de uma força súbita, agarrou no braço do homem. –


É santa, afinal? – gritou. O físico abeirou-se mais dele com modos bondo-
sos: – Repousai, senhor” (MACHADO, 2017, p. 369). Visto que agora, D.
Dinis tem a certeza que a ligação que D. Isabel tem para com o sagrado é
algo muito além do que a ortodoxia impunha aos religiosos de seu tempo,
sanando as suas dúvidas com relação à forte conexão que a sua esposa tem
com o divino.
Portanto, mediante a definição de Rudolf Otto (2007), consideramos
ser essa “revelação atuante” que identificamos na protagonista em tela
como uma manifestação ou sinal do sagrado. Segundo Isabel Costa (2019),
há uma repercussão a respeito de sua aura construída desde o nascimento
de D. Isabel, e que se consolida, consoante António Rebelo (2018), nas suas
ações ou atos franciscanos, cristocêntricos e marianos durante toda a sua
vida, denominando-a como: “a mediadora de Deus na terra”.
Essa ação da protagonista exposta nos trechos consiste no momento
em que D. Isabel percebe que não é uma mulher comum, que ela, assim
como Santa Isabel da Hungria, tinha uma missão divina para desempe-
nhar. Isso posto, ainda nos primeiros capítulos do romance, a Rainha de
Portugal revela ao leitor que reconhece a sua forte ligação com o divino,
que ela nasceu para seguir os passos de Jesus Cristo na terra. De fato, ao
observarmos a infância de D. Isabel no decurso da trama, vemos que, a
todo momento, a personagem afirma essa proximidade incomum que tem
com o sagrado.
Além disso, apesar de D. Isabel não ter conseguido seguir o seu desejo
desde a infância, que consistia em tornar-se abadessa e dedicar-se total-
mente às “obras de Cristo”, a Rainha não perdeu a sensibilidade nem a
consciência de que a sua relação com o sagrado suscitava algo muito além
dos dogmas ou da ortodoxia que o cristianismo na Idade Média impunha.
Destarte, a partir desse milagre da protagonista, há a confirmação de que
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 173

D. Isabel de Aragão não precisa mais de intermediações, de que ela mesma


é uma mediadora, uma intermédia entre Deus e a Sua criação, isto é, um
instrumento de Deus na terra.
Nessa perspectiva, com relação a esse milagre protagonizado por D.
Isabel, podemos associá-lo ao que, levando em consideração a espirituali-
dade feminina na Alta Idade Média, Sílvia Schwartz (2010) denomina
como “fenômenos paramísticos”21:

Segundo alguns pesquisadores, a espiritualidade feminina da alta Idade Média


era definida em termos de seu cristocentrismo, sua afetividade e emocionali-
dade, sua qualidade visionária-mística, sua corporalidade, particularmente em
relação ao ascetismo e seus fenômenos paramísticos. [...] Assim como o corpo
ferido de Cristo tornou-se a marca da presença de Deus no mundo criado e
sua redenção, as mulheres santas, com seus corpos sofredores, partilhavam o
sofrimento e a redenção de Cristo. Através de seu ascetismo corporal extremo,
jejuns, flagelações e seus feitos paramísticos, entendia-se que elas não só san-
tificavam seus próprios corpos, mas também curavam, santificavam e
ajudavam os outros, particularmente os homens (SCHWARTZ, 2010, p. 112-
113).

Por conseguinte, ao refletirmos sobre essas concepções de Sílvia


Schwartz (2010) e ao analisarmos toda a trajetória da protagonista, per-
cebemos que ela detém essas características que a teórico-crítica elenca.
Uma vez que, a personagem recebeu uma educação religiosa em que a or-
todoxia sempre se sobrepunha e que ela sempre mantinha uma
espiritualidade seguindo as tintas do “cristocentrismo”. Porém, vemos
que, por mais que D. Isabel siga esse modelo de espiritualidade da Alta
Idade Média, a relação dela com o sagrado está muito além da ortodoxia
cristocêntrica.

21 “A mística feminina medieval é fortemente marcada pela relação humano-divino e, neste sentido, aproxima-se
muito da religião, uma vez que esta também aborda aquela relação” (NOGUEIRA, 2015, p. 92).
174 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Em síntese, constamos que a protagonista mantém uma relação di-


reta com o sagrado de uma forma que não se limita apenas às suas práticas
dogmáticas ou ortodoxas que o seu contexto cristão patrístico a impunha.
Pois, conforme Rudolf Otto (2017), “uma coisa é apenas acreditar no su-
pra-sensorial; outra, também vivenciá-lo; uma coisa é ter ideias sobre o
sagrado; outra, perceber e dar-se conta do sagrado como algo atuante, vi-
gente, a se manifestar em sua atuação” (OTTO, 2017, p. 189). Sendo esse
último aspecto, de certa maneira, o que acontece com D. Isabel de Aragão:
o sagrado como uma manifestação atuante.

Considerações finais

Ao longo do nosso artigo, objetivamos fazer uma análise sobre D. Isa-


bel de Aragão, mostrando como essa personagem, alocada na Alta Idade
Média, mantinha a sua relação com o sagrado seja através de intermedia-
ções ou sem mediações. Portanto, para a nossa análise, selecionamos três
grupos de elementos que conseguimos identificar através dessa constante
conexão que a protagonista estabelece com o divino. Tendo em vista que,
o primeiro e o segundo grupos consistem em elementos que se configuram
como mediações, para que haja uma proximidade com o sagrado. En-
quanto o terceiro grupo, diz respeito à relação direta com o sagrado, isto
é, sem mediações.
Assim sendo, o primeiro grupo constitui as representações de um
sagrado feminino, tais como a Virgem Maria e Santa Isabel da Hungria. O
segundo, em expressões do sagrado, como o cuidado com os enfermos, a
partilha de pães e a maternidade. Já o terceiro e último grupo, diz respeito
ao contato com o sagrado sem necessidade de mediações, que consiste na
relação direta com o divino, como acontece no episódio do milagre das
rosas.
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 175

No que concerne ao primeiro grupo de elementos, percebemos, antes


de tudo, que D. Isabel de Aragão ilustra a consciência que ela tem sobre o
seu destino ligado ao divino. Desde a sua infância, considera-se como apta
para trilhar uma vida de santidade, sendo esse último o seu mais fervoroso
desejo. Para tanto, consoante Catherine Clément e Julia Kristeva (2001),
vemos que ela toma como um modelo de “feminino e sagrado”, as repre-
sentações de divindades femininas que permeiam o cristianismo europeu.
Com relação à Virgem Maria, vemos que, durante a narrativa, a pro-
tagonista sempre está se comparando com a Mãe de Jesus Cristo, além de
ilustrar a sua fervorosa devoção e admiração pela trajetória da Virgem
Santíssima, tomando-a como modelo para a sua própria jornada. Destarte,
a protagonista busca, como mediações para com o sagrado, a representa-
ção, de acordo com Joseph Campbell (2015), de “divino feminino” na
cultura cristã europeia. Desse modo, D. Isabel recorre à representação de
sua tia-avó, Santa Isabel da Hungria.
No que diz respeito ao segundo grupo de elementos, reconhecemos
que, para mostrar que a personagem constrói uma ligação com o divino,
nos valemos do que Rudolf Otto (2007) e Catherine Clément e Julia Kris-
teva (2001) classificam como “expressões do sagrado”. Isso posto, vemos
que, as expressões do sagrado que a protagonista nos mostra no decorrer
da narrativa como o cuidado com os enfermos e a partilha de pães está
relacionado ao que Rudolf Otto (2007) denomina como “as obras do
Cristo”. Além disso, uma outra expressão do sagrado consiste na tese de-
fendida por Catherine Clément e Julia Kristeva (2001), sobre a ideia de
amor materno que parte da imagem da “Virgem Maria”, mulher pura e
abnegada que viveu em função do filho. Dessa forma, percebemos que,
assim como Maria sacrificou-se desde a sua gravidez até à morte de seu
filho, D. Isabel tenta seguir os mesmos passos, embora ela demonstre essa
representação da maternidade à sua maneira: D. Isabel, segundo Aldinida
176 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Medeiros (2019, p. 75), sempre apresentando-se como uma “mãe extre-


mosa e sofrida pelas lutas do filho, D. Afonso, enquanto infante, contra o
pai”.
Portanto, as comparações que são traçadas pela protagonista de seu
filho com o “menino Jesus Cristo”, dela mesma com a “Virgem Maria”,
além da sua maternidade com a “maternidade humana e divina de Maria”,
de acordo com Leonardo Boff (2012), resultam em um “rosto materno de
Deus”, que suscita as intermediações que a personagem estabelece com o
sagrado através do feminino.
No que tange o último grupo de elementos, vemos que a protagonista,
nesse momento, não precisa mais das intermediações para estabelecer um
contato com o sagrado, pois ela mesma se apresenta como a própria me-
diadora. Desse modo, com relação à D. Isabel de Aragão, constatamos que
o milagre das rosas pode ser considerado como uma categoria das mani-
festações do sagrado, isto é, a “divinação”, que consiste na
“autorrevelação”. Portanto, o milagre, de acordo com as concepções de Ru-
dolf Otto (2007), pode ser considerado como “revelação” e o “sagrado
atuante”. Assim como para Sílvia Schwartz (2010), pode ser compreendido
como um “fenômeno paramístico” que caracteriza a espiritualidade femi-
nina na Alta Idade Média.
Por fim, percebemos que é através dessas mediações, intermediações
ou ela mesma apresentando-se como mediadora do divino na terra que D.
Isabel estabelece uma relação com o sagrado, de modo a ser considerada
como “o rosto materno de Deus”, mediante as suas especificidades. Dessa
maneira, vemos que, em muitos momentos, a Rainha de Portugal tenta
estabelecer uma conexão com o divino por meio de vias ortodoxas, cris-
tocêntricas e até mesmo marianas – levando em consideração o contexto
no qual a personagem está inserida. Em conclusão, constatamos que a pro-
tagonista reconhece um sagrado não somente como um rosto paterno de
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 177

Deus, como é pregado pela sociedade cristã patrística na qual ela está in-
serida. Mas D. Isabel de Aragão detém uma percepção do sagrado que se
caracteriza como um rosto materno de Deus, um Deus Mãe, isto é, um
divino feminino, configurando, desta forma, as relações entre o feminino
e o sagrado.

Referências

ALVES, Simone dos Santos. A Rainha Santa Isabel: mosaico de sua imagem no romance
histórico. 2013. 73f. Trabalho de Conclusão de Curso. Monografia (Graduação em
Letras com habilitação em Língua Portuguesa). Centro de Educação. Universidade
Estadual da Paraíba. Monteiro, 2013.

BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e as


suas formas religiosas. 11.ª edição. Petrópolis: Vozes, 2012.

CAMPBELL, Joseph. Deusas: os mistérios do divino feminino. Editado por Safron Rossi.
Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2015.

CARMOLINGA, Rafael. O Cristo da Fé: Fé Teológica x Fé Poética. In: FERRAZ, Samara;


MAGALHÃES, Antonio; et al (Org.). Deuses em Poéticas: Estudos de Literatura e
Teologia. Belém: UEPA; UEPB, 2008. p. 145-155.

CLÉMENT, Catherine; KRISTEVA, Julia. O Feminino e o Sagrado. Tradução de Rachel


Gutiérrez. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

COSTA, Isabel Maria Marques. Isabel de Aragão, Rainha Santa, no período medieval e na
atualidade, uma visão comparatista entre textos literários e historiográficos. 2019.
100f. Dissertação (Mestrado). Mestrado em Estudos Portugueses Multidisciplinares.
Universidade Aberta. Lisboa, 2019.

COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres intelectuais na idade
média: entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e
a mística. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.
178 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

FERREIRA, Simone dos Santos Alves. Mito e Criação Literária: o repensar paródico dos
mitos Inesiano e Isabelino. João Pessoa: Editora da UFPB, 2017.

GIMENEZ, José Carlos. A Rainha Isabel nas estratégias políticas na Península Ibérica: 1280-
1336. 2005. 211f. Tese (Doutorado). Doutorado em História. Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2005.

MACHADO, Isabel. A Rainha Santa. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2017.

MEDEIROS, Aldinida. Entre Ficção e História: Isabel, a Rainha Santa de Portugal. Revista
Graphos. Revista de Pós-Graduação em Letras (PPGL). João Pessoa. v. 15. n. 01, 2013.
p. 01- 11. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/
view/16313. Acesso em: 07 de setembro de 2020.

MEDEIROS, Aldinida. Mulheres no romance histórico contemporâneo português. Curitiba:


Appris Editora, 2019.

MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: uma história através dos tempos e
suas perspectivas para o futuro. 8.ª edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. A escrita feminina medieval: mística, paixão e


transgressão. Mirabilia. Jornal Eletrônico da Antiguidade e da Idade Média. [Online].
v. 17, n. 02, 2013. p. 153-173. Disponível em: https://www.revistamirabilia.com/
sites/default/files/pdfs/2013_02_07.pdf. Acesso em: 16 de junho de 2021.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Mística feminina: escrita e transgressão. Revista


Graphos. Revista de Pós-Graduação em Letras (PPGL). João Pessoa. v. 17, n. 02, 2015.
p. 91-102. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/graphos/
article/view/27290. Acesso em: 16 de junho de 2021.

OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Traduzido por Walter O. Schlupp. Petrópolis: Vozes, 2007.

RAMÔA, Joana. Isabel de Aragão, rainha e santa de Portugal: o seu jacente medieval como
imagem excelsa de santidade. Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias. Lisboa.
Francisco Edinaldo de Pontes; Aldinida Medeiros | 179

v. 27, 2010. p. 63-81. Disponível em: https://journals.openedition.org/cultura/356.


Acesso em: 20 de abril de 2020.

REBELO, António Manoel Ribeiro. O apreço da Rainha Santa Isabel pela espiritualidade
franciscana. Repositório Científico da Universidade de Coimbra. Coimbra. 2018. p.
73- 108. Disponível em: https://eg.uc.pt/handle/10316/81378. Acesso em: 22 de
abril de 2020.

SCHWARTZ, Sílvia. Marguerite de Porete: Mística, Apofatismo e Tradição de Resistência.


Numen. Revista de Estudos e Pesquisas da Religião. Juiz de Fora. v. 06, n. 01, 2010.
p. 109-126. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/
view/21648. Acesso em: 16 de dezembro de 2020.
9

Peças do inespecífico: o mosaico do


amor na poética de Hadewijch da antuérpia

Itamar Mateus Muniz de Melo

Considerações iniciais

Não se sabe ao certo a origem da poetisa Hadewijch, mas especula-se


que sua terra natal seja a Bélgica, mais especificamente a cidade da An-
tuérpia, daí ser denominada por Hadewijch da Antuérpia. Conforme
Tabuyo (1999), há hipóteses que sua produção literária tenha se dado no
início da Baixa Idade Média, entre os anos de 1220 a 1240. Além disso, ela
é considerada uma das maiores poetisas da língua flamenca.
Para alcançar esse status, naturalmente é preciso ter uma obra mag-
nífica. Logo, o que faz Hadewijch portar tal adorno simbólico é o modo
sensível de trabalhar a poesia mística, discutindo o tema do sagrado pelo
viés da mística. A poesia mística de Hadewijch “no tolera definiciones re-
ductoras, la mística de Hadewijch rompe el marco habitualmente trazado,
desde fuera, que quiere delimitar lo que pueda ser tal experiencia”
(TABUYO, 1999, p. 9). Percebe-se, então, que ela rompe barreiras diante
da produção feita anteriormente e, até, do que pregava a Igreja, detentora
das ideias do discurso sobre o sagrado, com uma linguagem dotada de pu-
dores e limitadora, diferente do que encontramos na poesia de Hadewijch.
Isso nos leva a pensar sobre sua obra, sobre o que há de inovador, e em
que medida ela quebra certas delimitações.
Não é preciso ir muito longe, pois, ao observarmos algumas de suas
produções, percebermos as especificidades da poesia de Hadewijch e o
porquê de ela ser uma das mais importantes poetisas da língua flamenca.
Itamar Mateus Muniz de Melo | 181

Tabuyo (1999) nomeia o conjunto das poesias de Hadewijch de El linguage


del deseo. Ora, o senso comum poder-se-ia indagar como uma autora, cujo
centro de sua poesia é Deus, teria uma linguagem do desejo. No entanto,
conforme a apresentação acima, a poetisa trabalha com uma linguagem
dos sentidos, da experiência, embora paradoxal frente à imagem de Deus.
Isso se materializa em nossas mentes facilmente quando lemos seus poe-
mas, na medida em que a autora traz à carne, ao humano, sua experiência
do sagrado. Esta relação (humano-sagrado) pode parecer abstrata, mas,
ao lembrarmos do título da obra dado por Tabuyo, onde ela reúne os poe-
mas da poetisa de Brabante, conseguimos traçar algumas linhas
imaginárias, afinal, Tabuyo elucida tal descrição ao comentar uma das vi-
sões da autora, relatando seu encontro com Cristo1: “En la Visión séptima
aplicará este bellísimo lenguaje a su encuentro con Cristo, y la descripción
que ofrece — ve a Cristo en persona, un hombre, y le experimenta y siente
con todo su cuerpo, y con parten el vino y el pan —” (TABUYO, 1999, p.
19). Hadewijch não apenas vê o Cristo, ela o sente, não de forma simbólica,
mas sensível, experienciando-o em sua carne, em seu corpo.
Deste modo, é possível perceber que, tendo como grande cerne o sa-
grado e usando a linguagem cujas escolhas lexicais criam um campo
semântico do desejo para traduzir suas experiências, Hadewijch encontra
no amor (Minnen) um modo de completude máxima do ser humano, na
medida em que isto significa o entregar-se a uma força superior, neste
caso, a Deus. Tomemos, então, esse verbo apassivado, entregar-se, para
iniciar a discussão aqui empreendida, afinal ele cria uma imagem da fun-
ção desse amor na poetisa em apreço. Nascimento (2011), por exemplo,
discute essa questão da entrega, afirmando que a poética de Hadewijch
tem um caráter pedagógico, pois, para ela, as virtudes morais, na esteira

1 A obra da poetisa mística não se limite aos poemas. Ela também produziu cartas e relatos de visões.
182 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

de Aristóteles, não são inerentes ao humano, elas o são ensinadas e isso,


em sua poesia, vem à tona, usando como ponto de partida o amor.
Este amor, então, visto de um panorama amplo, pressupõe entrega,
mas isso não é suficiente para dar uma completude à discussão aqui em-
preendida. Quando discutimos algumas definições sobre temas
relacionados a questões envolvendo o sagrado, nos deparamos com uma
barreira chamada inespecificidade, observada por exemplo em Otto
(2007) que, por sua vez, coloca o sagrado como indefinível, inominável.
Tabuyo (1999, p. 9), por sua vez, seguindo as mesmas ideias, inicia o livro,
onde reúne as poesias de Hadewijch, dizendo que “Los textos aquí reuni-
dos no necesitan justificación; ni siquiera habría que apelar a su origen,
pues se justifican plenamente por su audacia y su beleza.”. Percebemos,
então, que não há uma um aspecto definidor. O amor, assim como Deus,
é paradoxal, inespecífico. Assim, Hadewijch, ao trazer às linhas dos seus
poemas o tema do amor, desenvolve diferentes ideias, apresentando uma
multiplicidade de facetas que faz com que ele aparente ter apenas o caráter
da entrega por ser um elemento à primeira vista mais chamativo em sua
obra. Todavia, isto é o que ele pressupõe e não sua constituição. Com isso,
ao permitirmos que essas definições paradoxais ou inespecíficas sejam su-
ficientes, deixamos de entender quais são as caraterísticas e quais são as
concepções desse amor, fugindo de uma definição específica que poderia
tornar Deus em um objeto como qualquer outro. Portanto, o problema que
delineia este ensaio reside na questão de se seria possível mapear as espe-
cificidades ou nuances que constituem esse todo, o amor, na poética de
Hadewijch? Partimos do ponto de vista de que todo objeto que se propõe
como inespecífico tem aspectos que o caracterizam como tal. Sendo assim,
levantamos a hipótese do mosaico, cujo amor é a imagem final e as peças
são incompreensíveis dentro da sua compreensibilidade.
Itamar Mateus Muniz de Melo | 183

Um mosaico é um conjunto de peças abjetas, se as consideramos nas


suas individualidades, mas que, ao se juntarem, constroem uma imagem
final, na qual reside a importância dessas peças. A hipótese de metaforizar
o amor em Hadewijch através do mosaico toma um processo inverso, visto
que não é o resultado final que nos interessa, mas sim entender quais são
os aspectos que constituem esse mosaico. Portanto, o objetivo deste estudo
é analisar o Strophische Gedichten V de Hadewijch, que no livro organi-
zado por Tabuyo (1999) aparece identificado apenas pelo algarismo
romano III, apenas para tentar mostrar por quais formas o amor aparece
na poesia da mística de Brabante. A escolha desse poema se dá com base
no modo como ele condensa o tema do amor, cuja presença aparece em
toda sua obra, mas o escolhido consegue reunir em seus versos uma
grande riqueza de aspectos, daí analisarmos um poema, mas fazermos re-
ferência, sobretudo, à poesia da escritora Belga.
A relevância deste trabalho se assenta na escassez de pesquisas em
língua portuguesa sobre a autora. Além disso, sua produção é rica, mas
ainda pouco explorada (no Brasil), deixando questões ainda sem respostas
no que concerne a sua poesia, como a problematizada neste trabalho. Para
alicerçar a pesquisa, o respaldo teórico vem de autores que problematizam
o sagrado, como Otto (2007), e autores que discutem a produção de
Hadewjich, como Tabuyo (1999), Nascimento (2011) e Serrado (2004).

Revelando as peças do mosaico: os aspectos do inespecífico

O caminho empreendido neste estudo não é uma tarefa fácil, afinal


estamos tentando caracterizar algo que já é caracterizado como inespecí-
fico e paradoxal. Porém, sabendo disso, temos noção de que para que esta
definição seja dada, ela contém uma série de aspectos disformes entre si.
Inicialmente, tomemos consciência de que o eu-lírico dos seus textos, con-
forme Serrado (2004), não é totalmente impessoal, a sensibilidade e a
184 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

experiência pessoal são elementos-chave para compreender a poesia de


Hadewijch, a qual, a partir disso, rasura as fronteiras entre realidade e
ficção, trazendo às linhas do texto sua experiência, através da sua condição
de Beguina, grupo de mulheres autônomas na Idade Média, dentre o qual
encontramos algumas místicas, como Hadewijch, por exemplo.
Para a investigação das nuances desse amor, utilizaremos um dos po-
emas traduzidos por Tabuyo (1999) para o espanhol, o de número III,
como já afirmamos, ou o Strophische Gedichten V:

Por tristes que estén la estación y los pajarillos,


no debe estarlo el corazón noble.
Pero quien quiera afrontar los trabajos de Amor
de El sólo tendrá que aprender
—dulzura y crueldad,
alegría y dolor—
lo que hay que probar en el servicio de Amor.

Las almas elevadas que en Amor crecieron,


capaces de amar en la insatisfacción,
deben ser siempre
fuertes y atrevidas,
dispuestas de continuo a aceptar
el consuelo o la aflicción
que Amor les reserve.

Los caminos de Amor son inauditos,


como bien sabe quien pretende seguirlos;
turban de repente al corazón resuelto,
el que ama no puede encontrar constancia.
Aquel a quien Amor
toca en el fondo del alma
conocerá muchas horas sin nombre [de desolación].
Itamar Mateus Muniz de Melo | 185

Tan pronto ardiente, tan pronto frío,


tan pronto tímido, tan pronto audaz;
muchos son los caprichos del Amor.
Pero a cada momento nos recuerda
nuestra inmensa deuda
con su elevado poder
que nos atrae y nos reclama para Él solo.

Tan pronto gracioso, tan pronto terrible,


próxim o ahora, lejano después;
para quien le conoce y en él confía,
esto mismo es el gozo supremo.
¡Cóm o Amor abraza y golpea a la vez!

Tan pronto humillado, tan pron to exaltado,


oculto ahora, revelado después;
para ser colmada por Amor un día
hay que correr riesgos y aventuras
hasta alcanzar
el punto en que se degusta
la pura esencia de Amor.

Tan pronto ligero, tan pronto pesado,


oscuro ahora, claro después;
en la dulce paz, en la asfixiante angustia
dando y recibiendo,
ésa es la vida de aquellos
que se pierden
en los caminos de Amor.
(HADEWIJCH, 1999, p. 66-67)

Nos dois primeiros versos da primeira estrofe do poema, a autora


mostra as virtudes de um coração nobre, ao dizer que “Por tristes que es-
tén la estación y los pajarillos, / no debe estarlo el corazón noble.”.
186 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Percebemos que a poetisa começa seu poema com base numa dualidade
implícita, na medida em que só se pensa na ideia de coração nobre em
relação a outro que não o seja. A partir disso, construímos a imagem de
uma alma elevada, a qual não deve sucumbir à tristeza mesmo diante de
adversidades. Em seguida, nos próximos cinco versos, ela mostra ao que
este ser elevado deve estar pronto para enfrentar “Pero quien quiera
afrontar los trabajos de Amor / de El sólo tendrá que aprender / —dulzura
y crueldad, / alegría y dolor— / lo que hay que probar en el servicio de
Amor.” (ibid.), quer dizer, o amor espera este coração nobre, mas esta não
é uma tarefa simples, tendo em vista que ele se manifesta através da do-
çura e crueldade, da alegria e da dor. Com esta parte da estrofe, podemos
iniciar a construção das nossas peças, visto que é requisitado ao eu-lírico
dureza ou estabilidade, para se manter firme na instabilidade desse amor.
Essa capacidade de não se deixar abalar diante do instável é o serviço ne-
cessário descrito no último verso da estrofe.
Na estrofe seguinte, a poetisa retoma o tema da instabilidade, mas
realça um aspecto imprevisível do amor, ao dizer que “Las almas elevadas
que en Amor crecieron, / capaces de amar en la insatisfacción, / deben ser
siempre / fuertes y atrevidas, / dispuestas de continuo a aceptar / el con-
suelo o la aflicción / que Amor les reserve.” (ibid.). Ao observar os trechos,
percebe-se uma ideia de amor que foge ao sentido mais comum de alegria
plena, pois não são reveladas as qualidades desse amor, apenas se fala da
coragem que a amante deve ter. Por mais que haja uma imprevisibilidade,
em momento nenhum há uma esperança de que esse amor tem um vetor
de força maior para recompensas do que para coisas ruins.
Os quatro primeiros versos da terceira estrofe trazem uma nova pers-
pectiva desse amor, até então imprevisível e instável: “Los caminos de
Amor son inauditos, / como bien sabe quien pretende seguirlos; turban de
repente al corazón resuelto, el que ama no puede encontrar constancia.”
Itamar Mateus Muniz de Melo | 187

(ibid.). Não há garantias de que haverá um caminho de alegrias, apenas


advertências sobre a dificuldade que é entregar-se ao amor. Segundo Cir-
lot e Garí (1999, p. 42): “Na mística feminina, o amor não é uma ideia,
senão uma experiência terrível em que a alma arrasta o corpo para parti-
cipar dela. Gozo e dor constituem as duas faces de uma mesma experiência
que envolve a pessoa em sua totalidade.”
Isso torna evidente a totalidade que cerca a jornada nesse amor,
tendo em vista que, conforme as autoras, gozo e dor constroem essa expe-
riência. Então, podemos dizer que o imprevisível ou a ambiguidade são
elementos importantes para sua compreensão. As medidas, porém, não
são iguais, o próprio eu-lírico não dá pistas de recompensas
Até o momento, a impressão que ficava era a de que o eu-lírico co-
nhecia o amor e, por isso, aconselhava quem quisesse aventurar-se por
esse universo com cuidado e coragem, porém, no primeiro verso da estrofe
se afirma que os caminhos do amor são inéditos, desconhecidos e até
mesmo os que são fortes podem ter o coração perturbado, na medida em
que não há estabilidade. Essa leitura, no entanto, não significa que o eu-
lírico desconhece o amor, visto que ele pode ser inédito, não pelo fato de
não pertencer à experencia da lirista, mas por ter um caráter singular para
cada novo amante que pretende navegar em suas águas.
Serrado (2004) problematiza a rasura entre ficção e realidade nos
textos da poetisa. Isso incide nesse caráter singular do amor para cada in-
divíduo e, por mais que cada experiência seja única, o eu-lírico de
Hadewijch aconselha e guia. Para entendermos a função desse eu-lírico é
preciso identificar quem é esta voz que fala desse amor, tendo em vista
que todo texto é um produto totalmente ligado às ideias de quem o enun-
cia. Sendo assim, é válido pontuar que o ponto de vista de Hadewijch é o
da serva do Amado.
188 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Quem ama é em primeiro lugar a mulher: não enquanto mãe, irmã, ou amiga,
mas na plena autoridade como porta-voz, serva do Amado. É o escravo que
tem, ao fim de contas, o poder. E o que está em causa não é só o facto de ser
de uma mulher mística a autora destes textos, mas também o público destina-
tário para o qual ela escreve os seus textos. Mulheres ainda jovens (pelo menos
que ainda não adquiriram o crescimento total no amor) mas que atestam,
compreendem e outras vezes contestam a própria direcção espiritual de Hade-
wijch. Elas compreendem, pois estão a ser iniciadas por Hadewijch, mestra na
vida amorosa com o supremo Amado, e elas próprias são objecto de amor, pois
participam nessa mesma afectividade. (SERRADO, 2004, p. 47)

Segundo a autora, não é uma mulher na condição comum que fala,


sua autoridade advém por ela assumir-se enquanto serva do Amado. Além
disso, essa autoridade no tema não se dá apenas pelo fato de que a poesia
fala da sua experiência com Deus, mas, sobretudo, ela envolve a linguagem
e ostenta sua condição, pois, no momento em que Hadewjich enuncia as
nuances desse amor, ela está educando novas mulheres, novas beguinas
para sentir tais experiências, as quais poderiam ser ditas de outras formas,
porém há uma modulação na linguagem para que a carga afetiva das ideias
eduque e convide novas mulheres a sentirem tais sensações.
Os últimos versos da estrofe trazem uma espécie de condenação aos
que são tocados pelo amor “Aquel a quien Amor toca en el fondo del alma
conocerá muchas horas sin nombre [de desolación]” (HADEWIJCH, 1999,
p. 66). Então, até aqui, não há grandes esperanças ou vantagens àqueles
que se entregam ao amor, tendo em vista que os elementos bons são dis-
postos na mesma medida em que os ruins. As definições são duais e
paradoxais, não se sobrepondo ao que há de proveitoso.
Os paradoxos, nas próximas duas estrofes, são mais presentes. A
quarta é iniciada com “Tan pronto ardiente, tan pronto frío, / tan pronto
tímido, tan pronto audaz; / muchos son los caprichos del Amor.” (ibid.),
fazendo um jogo entre extremos opostos como quente e frio, tímido e
Itamar Mateus Muniz de Melo | 189

audacioso. Isso evidencia um caráter quase jocoso, como se o amor brin-


casse com seus servos, levando-os de um lado para outro. Contudo, ele não
permite fuga: “Pero a cada momento nos recuerda / nuestra inmensa de-
uda / con su elevado poder / que nos atrae y nos reclama para Él solo.”
(ibid.). Ou seja, o amor, embora brinque com os amantes através da sua
instabilidade, não permite afastamento, envolve-os, pois temos uma
imensa dívida com ele. A partir dessa estrofe é que a ideia de um amor
divino começar a surgir. O que permite isso é o verso sobre nossa imensa
dívida. Ora, o que deveríamos ao amor? Amar é um sentimento humano
sobre o qual temos um controle parcial, tendo em vista o caráter emocio-
nal. Todavia, esse amor é o amor de Deus. É a entrega ao divino, ao
Criador, nossa dívida, então, é pela existência concedida. Segundo Serrado
(2004, p. 43),

Crescer no Amor é voltar à unidade perdida, quando vivia no pensamento de


Deus Pai, antes da criação no e do tempo. A reclamação da Trindade é o apogeu
da dívida que temos de saldar. A relação mística é voltar à fruição da Trindade,
voltar ao que é por direito nosso, à totalidade de Deus – nada menos do que a
nossa própria essência.

Para a estudiosa, viver nesse amor é o que levaria o ser a encontrar


sua verdadeira essência, visto que retornaríamos, através do amor, à Trin-
dade, ocupando o lugar que é nosso, como filhos do Criador.
Sabendo que esse amor é um meio para retornarmos ao Criador, al-
gumas de suas nuances inespecíficas são explicadas. Segundo Otto (2007)
não há uma identificação para o sagrado, ele é o indizível, isso explica o
porquê desse amor ter aspectos são díspares e difusos, sem uma força cen-
trípeta que os unam, apesar da unidade que ele representa.
As estrofes finais iniciam-se realçando a instabilidade com os jogos
linguísticos. Assim, na quinta estrofe, lemos: “Tan pronto gracioso, tan
190 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

pronto terrible, próximo ahora, lejano después;” (HADEWIJCH, 1999, p.


67); na sétima: “Tan pronto ligero, tan pronto pesado, / oscuro ahora,
claro después;” (ibid.). Dentro da escrita indefinitiva de Hadewijch só há
unidade em um aspecto, o inespecífico, visto que desde o início do poema
o que fica para o leitor são características soltas, o amor, até aqui, assumiu
tons aparentemente pessimistas, pressupôs uma entrega cega e é algo sin-
gular para cada indivíduo. No entanto, o restante do poema ensaia,
finalmente, recompensas àqueles que amam, na quinta estrofe está dito
que “para quien le conoce y en él confía, / esto mismo es el gozo supremo
/ Cómo Amor abraza y golpea a la vez!” (ibid.). Eis a alegria encontrada
no amor, reservada aos que nele confiam. Então, embora não se saiba o
que há de vir, a alegria reside em apenas confiar, embora já fora mostrado
e é dito novamente no último verso que o amor abraça e golpeia, ao mesmo
tempo.
Os versos finais da sexta e da sétima estrofe trazem consigo o caráter
probatório desse amor: “para ser colmada por Amor un día / hay que cor-
rer riesgos y aventuras / hasta alcanzar el punto en que se degusta / la
pura esencia de Amor.” (ibid.), mais uma vez o elemento ambíguo é tra-
zido à tona, mas aqui ele é apresentado como uma forma de requisito para
que se alcance a essência do amor, haja vista que há riscos, nada é estável
e aceitar isso é uma prova de que realmente há uma vontade desse amor.
A partir disso, podemos dizer que este não é um amor dado ou inerente,
já que, segundo Nascimento (2011) “As virtudes não eram inatas nem cres-
ciam espontaneamente, ao contrário, deviam ser cultivadas no interior de
cada cristão, era uma questão de estudo, de exercício.” (p. 196). Uma das
virtudes era o amor, portanto ele deveria ser cultivado até se tornar um
amor conquistado e, sendo o maior dom humano, requisitava uma von-
tade cujas provas se dão através das aventuras em busca do Amado.
Itamar Mateus Muniz de Melo | 191

A poetisa finaliza o poema dizendo que “ésa es la vida de aquellos /


que se pierden / en los caminos de Amor.” (HADEWIJCH, 1999, p. 67).
Ora, eis a indagação perfeita para sabermos sobre esse amor de Hade-
wijch, qual é a vida dos que se perdem nos caminhos do amor? Pela análise
empreendida até aqui, esse amor possui nuances ambíguas, instáveis, sin-
gulares a cada sujeito que deseja aventurar-se nele, tem um caráter
probatório e, além disso, ele deve ser conquistado e não é inerente ao ser.
Então, respondendo à questão, a vida do ser que deseja o amado está fa-
dada ao desejo ou a percorrer o caminho, como o homo viator, e a enxergar
na falta de esperanças à primeira vista e na tristeza apenas meios para se
chegar e conquistar a essência, a verdadeira alegria, o amor divino.

Considerações finais

O amor sempre foi matéria nobre dos grandes artistas e filósofos. Um


dos maiores pensadores da humanidade, o filósofo Immanuel Kant, ao de-
senvolver embrionariamente as ideias sobre a ética moderna, toma o amor
como o modelo de virtude perfeita, pois o amor pressupõe uma entrega
maior do que qualquer outro sentimento àquilo que se faz.
A obra de Hadewijch da Antuérpia é densa e, com apenas um po-
ema, não queremos dar um panorama geral do que é o amor para ela.
Porém, através da análise realizada, conseguimos entender algumas nu-
ances das faces desse tema tão complexo na sua obra.
Devemos nos lembrar, antes de tudo, que Hadewijch não fala de um
amor entre humanos, mas sim de um amor místico, de um amor a Deus.
Esse amor divino é mostrado como a grande esperança e refúgio para os
seres humanos. No entanto, seus caminhos são tortuosos, conforme a aná-
lise empreendida, da qual resultou ainda a inespecificidade e o paradoxo,
mas uma inespecificidade mapeada e um paradoxo que ajuda a entender
a totalidade do amor divino. O amor de Hadewich se caracteriza por uma
192 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

ambiguidade e necessidade de entrega às cegas, devido à falta de recom-


pensas àqueles que estão em sua busca, mas essa lacuna de ganhos faz
parte do caráter singular; ora, a poetisa não pode afirmar como são os
caminhos para cada ser, apenas adverti-los das tristezas e dificuldades que
estão por vir. Porém, tudo isso acontece na medida em que este amor tem
aspectos probatórios, os seres precisam ser fortes, visto que, ao final da
jornada tortuosa, virá a alegria, o encontro com o Amado.

Referências

CIRLOT, Victoria. GARÍ, Blanca. La mirada interior: escritoras místicas y visionárias en


la Idade Média. Barcelona: Ediciones Martinéz Roca, 1999.

HADEWIJCH DE AMBERES. Poemas. Tradução de María Tabuyo. Madrid: Editorial Trotta,


1999.

NASCIMENTO, Denise Silva Menezes do. A função poética dos textos de Hadewijch. Acta
Scientiarum Education. Maringá, v. 33, n. 2, p. 191-197, 2004.

OTTO, Rudolf. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis: Vozes, 2007.

SERRADO, Joana de Fátima Gonçalves Pita. Amar, Experienciar, Transformar: Minnen, Va-
ren, Verwandelen: Três verbos místicos em Hadewijch de Antuérpia. Dissertação
(mestrado em Letras) Faculdade de Letras, Universidade do Porto. Porto, p. 160,
2004.

TABUYO, M. Introdução aos Poemas de Hadewijch de Amberes. Madrid: Editorial Trotta,


1999, p. 9-58.
10

Entre o real e o sagrado: uma leitura


possível do conto Búfalo, de Clarice Lispector

João Aleixo da Silva Neto

Considerações iniciais

Perceber a possibilidade de compreensão da literatura a partir de ou-


tras vertentes do saber, outras paralaxes que incidem sobre o objeto
literário, implica, de antemão, a adoção de uma forma de leitura que po-
tencialize toda a capacidade do texto em realizar conexões, desde o sujeito,
consigo, até a coletividade, atravessando diametralmente a cultura. É ne-
cessária, então, uma sensibilidade sutil da abordagem teórica, não apenas
uma hermenêutica que incida diretamente sobre a obra, mas algo que
tenda a um mutualismo entre o objeto estudado e a forma que se estuda,
algo que reaja ativamente a conexão dramática entre o texto e o leitor.
Nossa proposta visa, entre outras coisas, a sobreposição do conceito de
Real, em Lacan, e o Sagrado, a fim de levantar uma hipótese de leitura do
conto Búfalo, de Clarice Lispector, partindo do pressuposto que a litera-
tura, assim como outras manifestações artísticas, é dotada da capacidade
de expor com legitimidade os dois conceitos supracitados. Dentro das hu-
manidades, é capital o lugar que a produção literária ocupa, como afirma
Durão (2015), o cerne das ditas ciências humanas é a literatura, pois a
mesma atua como prisma catalizador da realidade, facilitando as urgências
da escrita de si, sobre si, sobre o outro e o mundo. E mais, “Discutir litera-
tura em sua acepção mais ampla terá sempre como pressuposto a
capacidade que a literatura exibe para ser algo epistemologicamente pro-
dutivo” (DURÃO, 2015, p. 379).
194 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Outro teórico, Antonio Candido (1972), afirma que a literatura é uma


das formas mais ricas de sistematizar o conteúdo fantasmático propria-
mente humano. Questiona-se o autor: teria a literatura também a função
de servir como conhecimento sobre as coisas? A pergunta refeita de ma-
neira mais clara: uma obra literária pode, ou deve, se permitir representar
sugestivamente a realidade do espírito, da psique, da sociedade? Sim, se-
guramente, na medida em que “podemos abordar o problema da função
da literatura como representação de uma dada realidade social e humana,
que faculta maior inteligibilidade com relação a esta realidade” (CANDIDO,
1972, p. 86). Prontamente, a literatura não é somente a expressão artística
mais hábil em representar e encenar a realidade, ela é condição inequívoca
de produção da realidade. Cabe aqui lembrarmos, também, algumas pon-
tuações de Slavoj Zizek (2010) que corroboram de certa forma com
Antônio Candido, quando afirma que, em outras palavras, a rigidez fanta-
siosa da qual se ergue o texto literário é dotada da condição de encenar a
realidade, de uma maneira mais real que a própria realidade, de perceber,
a partir do óbvio, leituras outras de um mesmo objeto.

Do real ao sagrado

Dada a justificativa para o emprego teórico do Real e do Sagrado em


associação direta com a literatura, é válido iniciarmos oferecendo um con-
torno ao Real lacaniano que destacaremos aqui, valendo-se aqui da
ressalva que o conceito encontra-se fragmentado em um número expres-
sivo de textos da obra lacaniana que, no entanto, não presenteia o leitor
com uma definição puramente objetiva, ou uma aplicabilidade prática, em
termos acadêmicos, do que seja o Real. Tal dificuldade, para além da es-
crita hermética lacaniana, situa-se nos termos aqui empregados por
Badiou, quando diz: “Porque é tão difícil começar quando se trata do real?
João Aleixo da Silva Neto | 195

Porque não se pode começar pelo conceito, a ideia, a definição, pela expe-
riência o dado imediato ou o sensível” (2017, p. 8).
Há uma configuração própria, em Lacan, do modelo de organização,
ou operacionalização de tudo que rege, constitutivamente, os sujeitos. Tal
modelo vem como uma ruptura com a compreensão hegemônica das fun-
damentações freudianas. O inconsciente, que Freud constrói com base na
análise paulatina dos fenômenos histéricos, mostra-se similar a uma es-
trutura orgânica, constitutiva, que fragmenta mentalmente o indivíduo
em três instâncias que operam dinamicamente, a saber, as já muito conhe-
cidas: Ego, Superego e Id. No entanto, é a partir da leitura estruturalista
de Lacan, bem como de sua fundação teórica amparada por estudos lin-
guísticos, que o aforisma “o inconsciente é, em seu fundo, estruturado,
tramado, encadeado, tecido de linguagem” (LACAN, 1981, p. 135) distan-
cia-se de Freud.
A importância de apreender os três registros, em sua totalidade, dá-
se pela inerência que atravessam horizontalmente os três, é possível afir-
mar que não há uma compreensão do Real sem que percebamos as
incisões do Simbólico e Imaginário, essencialmente articulados, pois não é
em outro lugar senão nestes vértices que a justificativa do diálogo com
toda a sorte de expressões artísticas, em nosso caso específico a literatura,
é estabelecida e torna-se um espaço verdadeiramente produtivo.
Logo, Lacan propõe e teoriza, o Imaginário, o Simbólico e o Real como
as três estruturas, ou registros, que se sobrepõem atribuindo significados
e ressignificando as relações dos sujeitos com outros, com o mundo e, fun-
damentalmente, com a linguagem. Zizek (2010) nos traz uma metáfora
registros Simbólico e Real, dentro de uma percepção antagônica em certa
medida válida, tomando como referência um jogo de xadrez. No jogo, o
registro Simbólico é tido como as regras em si, a nomenclatura das peças
bem como suas limitações de movimento, já o Real pode ser percebido
196 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

como o caráter contingente que atravessa a partida, um lapso mental que


fatalize o jogo, a mesa capenga que balança as peças e as derruba, encer-
rando a partida.
De maneira mais objetiva, é possível definir o registro simbólico, de
maneira bastante sucinta, como o código, a linguagem posta em prática, o
nome dado aos bois. Segundo Braga (1999, p.87):

Lei, estrutura regulada sem a qual não haveria cultura. Lacan chama isso de
grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que
a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro
recíproco e simétrico ao Eu imaginário.

A noção de Simbólico é retirada, por Lacan da antropologia, especial-


mente dos trabalhos de Levi-Straus, fusionando o conceito aos já
estabelecidos estudos linguísticos promovidos por Ferdinand Saussure.
Logo, partindo dessas duas concepções, o Simbólico se constitui funda-
mentalmente como um sistema estruturante, onde cada elemento é
despossuído de um caráter em si, fazendo sentido somente quando tais
elementos entram em contato com o conjunto das relações. É capital pon-
tuarmos a relação do Simbólico com a literatura, aqui, tendo em vista o
que objetivamos com o presente escrito, a saber, as conexões possíveis do
Real com a literatura. É perceptível a necessidade constitutiva da literatura
de fazer uso do registro Simbólico, afinal não é possível pensar uma coisa
destituída da outra, na medida em que o Simbólico é puro discurso, exis-
tindo somente enquanto há uma possibilidade de entendimento, no
horizonte dos diálogos, das leituras e da escrita.
Por conseguinte, o Imaginário é, em essência, o registro que, entre
outras coisas, produz ou reproduz a noção de si, através do recurso ima-
gético. É, num exemplo clássico, a partir da reprodução ótica do espelho
que constituímos nossa imagem. Lacan concebe o Imaginário variando em
João Aleixo da Silva Neto | 197

paralaxes, desde o momento fundante que ele atrela o registro às caracte-


rísticas biológicas do Homo Sapiens e sua relação com a imagem,
atravessando assim todo constructo com a percepção e interação com seus
semelhantes. Após isso, a noção de Imaginário passa a integrar um vértice
com a linguagem, especificamente na noção fantasmática da compreensão
total do discurso que emana do outro. A codificação e decifração que há
entre quem comunica e quem escuta resvala na literatura e, em certo sen-
tido, justifica o trabalho do leitor em decifrar o que fora escrito e, por outro
lado, do escritor que imaginariamente sustenta a ideia de fazer-se com-
preendido por quem o lê. O paralelo do Imaginário com a literatura
aprofunda-se no ponto que o autor percebe sua obra, identificando-se com
ela através dos personagens escritos, criando assim a miragem que com-
põe a relação entre o escritor e sua criação.
Logo, é possível questionar onde o registro do Real toca os outros
dois. Ora, o Real está presente exatamente no vácuo produzido pelo Sim-
bólico e Imaginário, um sustentáculo que fura toda a realidade especular
que condiciona as relações. O Real, em nenhuma instância, deve confun-
dir-se com a realidade, pois ele não é capturado pelo Simbólico e, ao
mesmo tempo, não é suplantado com uma face imagética pelo Imaginário,
o Real não se confunde por ser aquilo que é necessário ser retirado da re-
alidade para que esta construção simbólica e imaginária se apresente
enquanto ente totalitário. O Real é exatamente o que não é dotado de sen-
tido, deslocado de uma integração justaposta à realidade. O impensável, o
inominável.
Tomando como ponto de partida essa característica do Real como o
que faz furo tanto na realidade concreta como na definição simbólica, aqui
leia linguística, é possível perceber a aproximação do conceito com o que
o próprio Lacan, em seu Seminário XX (1985, p.51) chama de divino, ou,
para sugerir uma noção temporal, espaço divino.
198 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

O Outro, o Outro como lugar da verdade, é o único lugar, embora irredutível,


que podemos dar ao termo ser divino. Deus, para chamá-lo daquele nome,
para chamá-lo por seu nome. Deus é propriamente o lugar onde, se vocês me
permitem o jogo, se produz o deus-ser – o deuser – o dizer. Por um nada, o
dizer faz Deus ser. E enquanto disser alguma coisa, a hipótese de Deus estará
ai.

Por conseguinte, Lacan pontua a impossibilidade de nomear a Deus,


que é tratado por significantes como o Senhor, ou o altíssimo, na ausência
de um nome que seja capaz de significar a potência de sua totalidade.
Dessa forma, tanto o divino quanto o Real não podem ser acessados atra-
vés dos recursos significantes, só podendo ser acessados a partir da
vivência, ou da experiência fora da virtualidade do imaginário. Segundo
Braga (2014, p.158):

Cabe aqui chamar a atenção a semelhança que esta concepção de domínio do


divino tem relação às descrições de vivências espirituais. No que tange ao sen-
timento de impessoalidade frente ao encontro com o Real; é preciso deixar o
significante, desprender-se do nome, para que possa adentrar no terreno do
inominável. Além de Deus estar relacionado a essa impossibilidade de repre-
sentação, Ele também é referido como Aquele a quem o homem não pode ver
ou tocar, uma vez que não suportaria esse contato, tamanha é sua luz e seu
poder.

Em outras palavras, o Real e o Sagrado se confundem no limiar das


experiências fora das representações. Premonições, relatos de quase
morte, êxtase e epifanias que se caracterizam como rupturas podem, de
certa forma, serem observadas unitariamente. Partindo dessa suposição,
optamos por analisar, ainda que brevemente, algumas passagens do conto
da Clarice Lispector, visando o que Zizek (2003, p.33) afirma: “uma vez
que não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade e somos forçados
João Aleixo da Silva Neto | 199

a senti-lo como um pesadelo fantástico”. Aqui, o filósofo esloveno analisa


fenômenos de ruptura com a realidade, ou o que podemos chamar de en-
contro com o Real/Sagrado.

O búfalo e outros apontamentos

O conto escolhido aqui como corpus de análise nos traz uma narra-
tiva ambientada em um jardim zoológico, onde a personagem principal,
cujo nome não é dito, procura aprender a odiar com os animais. Há uma
tentativa constante da personagem de abdicar do sentimento de amor que
lhe consome, após um evento traumático de ruptura amorosa. De jaula em
jaula ela persegue esse ideal de ódio, no entanto, o que ela observa é um
traço humano em todos os animais, algo que em essência remete ao oposto
do que ela busca, ou seja, o amor.
Um dos pontos cruciais, que possibilita nossa leitura através da apro-
ximação entre Sagrado e Real, reside justamente nos trechos que a
personagem principal clama a Deus por uma didática do ódio, como fica
evidente em alguns trechos a seguir: “E enquanto fugia, disse: “Deus, me
ensine a odiar” (LISPECTOR, 1960, p.65); “No estômago contraiu-se em
cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa.” “Oh Deus,
quem será meu par neste mundo?” (LISPECTOR,1960, p. 66). Outras pas-
sagens do conto remetem diretamente ao Sagrado, no entanto, de maneira
mais secundária, especificamente um breve trecho onde Clarice faz uma
referência a uma igreja.
O conto nos interpela com uma personagem que perde o equilíbrio
em relação à realidade vacilante, a ruptura amorosa abre esta lacuna e,
com ela, surge a necessidade de preenchimento. Apesar da incessante
busca, não conseguia encontrar a ferocidade e a virulência que buscara no
zoológico. Podemos perceber que o búfalo, do alto de sua opacidade e in-
diferença, representa muito mais uma questão identitária da personagem
200 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

do que a imagem especular do ódio, procurado pela personagem. É válido


notar, também, as definições dadas aos animais em questão, como sugere
Sousa (2011, p.4):

Nada se refere a eles diretamente a eles – é de semântica pesada. Os leões são


loiros, a girafa é quase verde, quase paisagem, o hipopótamo é úmido, os ma-
cacos são nus, o elefante é velho e oriental, o camelo é paciente, o quati é
ingênuo. Nada neles remete a coisa em si que ela busca, por isso ela não os
quer por perto.

É capital demarcar que a busca por esse objeto (a) perdido pela per-
sonagem se converte, na realidade, na busca pelo que podemos chamar de
semblante do Real, ou semblante do sagrado, tomando em consideração
nossa aproximação didática. Um dos pontos principais do conto é confe-
rido ao momento de encontro com o búfalo, este traduzido em um animal
que exalava força e calmaria. Podemos conferir ao momento específico um
vislumbre que a personagem tem do objeto perdido, há ódio no olhar do
búfalo, como assim percebe a personagem. No entanto, percebemos que
tal vislumbre pode ser categorizado como parte do processo de identifica-
ção, numa imagem especular que relaciona diretamente a personificação
do objeto de amor perdido, sob a forma do animal pacato. Desta forma,
acreditamos que o verdadeiro encontro com o Real/Sagrado esteja melhor
ilustrado exatamente no último parágrafo do conto:

Lentamente a mulher maneava a cabeça, espantada com o ódio com que o


búfalo, tranquilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, maneado uma cabeça
incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo
dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de
sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como
se a sua mão estivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara.
Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta
João Aleixo da Silva Neto | 201

vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um
búfalo (LISPECTOR, 1960, p.69).

Por fim, situamos a nossa percepção do Real/Sagrado como este mo-


mento de suspensão entre o ato e o efeito, entre o agir e o não agir. Pensar
os conceitos quando vinculados a uma noção de temporalidade atribui ou-
tros sentidos possíveis à interpretação do conto. Se considerarmos essa
suspensão, na forma como Clarice deixa diversas questões em aberto,
como um possível suicídio da personagem, ou uma outra possibilidade, de
ela ter cometido um crime passional, assassinando seu companheiro, o
Real acaba sendo o meio-tempo entre dois eventos. O ponto de virada fica
a cabo da introdução da noção de temporalidade ao Real, ou ainda, de uma
nova possibilidade urgente, que o Real possa ser apreendido com, e pelo,
tempo.

Está dada a chave para pensar o Real como uma espécie de passagens entre
tempos de negação. Para tanto é preciso pensar conjuntamente o Real como a
ação, ou o ato de realizar, o produto realizado, a realidade e o seu agente pro-
dutor, o movimento da consciência. (...) O conceito não é a representação desse
processo, mas a sua própria experiência de produção ou realização no tempo
em que o processo se dá (DUNKER, 2016, p.249).

O conto é finalizado com outra aproximação direta entre Real e Sa-


grado, ao cair, a personagem visualiza duas coisas: O céu e os olhos do
búfalo. A redenção e o ódio, ou objeto procurado. Ambos compõem uma
percepção que transcende o objeto em si, estão para além das representa-
ções, é puramente o tempo infinito entre o desfalecimento e o nada, o vazio
após.

Referências

BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


202 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

BRAGA, G. Espiritualidade no divã: do tabu à universidade. UFRGS, 2014.

BRAGA, M. As três categorias peircianas e os três registros lacanianos. Psicologia USP. v.


10, n. 2, p. 81-91, 1999.

CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e cultura, São Paulo, SP, v. 24,
n. 9, p. 803-809, 1972.

DURÃO, F. Reflexões sobre a metodologia de pesquisa nos estudos literários. DELTA, n. 31,
p. 377-390, 2015.

LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora, 1985.

LISPECTOR, C. Laços de Família. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1960.

PRETTI, T.; SILVA, M. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, v. 1, n. 2, p. 250-266, 2012.

PORGE, E. Jacques Lacan um psicanalista: percurso de um ensino. Tradução de Cláudia


Yereza Guimarães de Lemos, Nina Virginia de Araújo Leite e Viviane Veras. Brasília:
Ed. UnB, 2006.

ZIZEK, S. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

ZIZEK, S. Bem vindo ao deserto do Real! Rio de Janeiro: Boitempo Editora, 2003.
11

Dimensões do sagrado em Hilda Hilst, Obscena Senhora D.

Julian Bohrz

Considerações iniciais

Hilda Hilst (1930 – 2004) é um fenômeno literário do século XX que


ainda exerce fascínio em seus leitores. Dona de um estilo singular, a escri-
tora, segundo seu site oficial, teve textos traduzidos para países como
Itália, França, Portugal, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e Argentina.
Segundo Diniz (2013), atualmente Hilda é conhecida por esgotar a venda
das edições de seus livros e por ser aclamada pela crítica. Entretanto, du-
rante sua vida, a escritora sofreu dificuldades com editores, com a falta de
leitores, e com a recepção crítica de seus textos, considerados excêntricos,
libertinos, incompreensíveis.
Segundo Hilda Hilst, em entrevista ao Jornal do Comércio, sua escrita
não é necessariamente fruto de emoções, e sim de uma necessidade, que
também é um sofrimento:

Meus poemas nascem porque precisam nascer. Nascem do inconformismo. Do


desejo de ultrapassar o Nada. As emoções sentimentais raramente inspiram
minha poesia, que quase sempre surge de um problema maior – o problema
da morte, morte não no sentido metafísico de tudo quanto possa advir depois
de acontecida. O que faz nascer minha poesia é a não aceitação de que um dia
a vida se diluirá e, com ela, o amor, as emoções do sonho e toda essa força em
potencial que vive dentro de nós. (DINIZ, 2013, p. 25).

O desejo de ultrapassar a presença de um Nada, entendido, neste ar-


tigo, também como a não compreensão ativa de si, do corpo e da finitude,
204 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

é latente no livro Obscena Senhora D. (1982). Mergulhando profunda-


mente em si mesma e no Outro depois da morte do marido, a protagonista
do livro revive cenas que a fazem questionar os limites da carne e da vida
material. Em um fluxo de consciência, a personagem opera uma cisão de
si em vários nomes, e o resultado é uma visão múltipla de sua identidade.
Em pleno gozo dessa clivagem, Senhora D recria e duplica a imagem
do ex-marido, situado no liminar entre os planos da lembrança, da con-
cretude e do conviver fantasmático. Por isso, e de várias formas, o sagrado
é para ela uma forma de questionar a finitude de um corpo que ainda está
vivo na memória. Há um convite para se pensar sobre a fala mística en-
quanto um desejo de diálogo inclusive com dimensões misteriosas da vida:
o plano dos mortos, o espaço divino e também a região vaga do sagrado
localizada entre as construções de puro e impuro, alto e baixo, corpo e
cadáver.
Desta forma, o objetivo deste artigo é analisar de que forma a perso-
nagem realiza, em suas memórias, um trajeto em camadas, entre elas o
corpo, a relação eu-outro, Deus, o sexo e as incompreensões do plano ma-
terial. Essas recordações sinalizam que Senhora D. é uma mulher mística
em contato com os aspectos (im)possíveis do sagrado e da materialidade.
Para desenvolver esse ponto, foram focalizados alguns tópicos da caracte-
rização da protagonista, visando redesenhar peças do mosaico móvel da
sua memória, entre elas o afeto, o amor, a identidade e a melancolia.
Parte-se da ideia de que o tempo, o espaço, as personagens e a nar-
radora, formam um todo interdependente que potencializa os sentidos do
texto. Por meio da análise das relações da protagonista com sua fragmen-
tação identitária, com Ehud, com Deus, constrói-se uma leitura sobre o
corpóreo e o abjeto operados como uma ponte e uma barreira no contato
entre dimensões sagradas e profanas.
Julian Bohrz | 205

Instâncias narrativas

Obscena Senhora D trabalha com diversas camadas de sensações. Du-


rante a leitura do texto, o leitor é convidado a rir, chorar, duvidar, chocar-
se, repensar categorias. O texto é construído de forma híbrida, a partir de
diversas junções: mistura prosa, poema e drama; mistura tempos, como a
juventude, o início do casamento, a morte do marido; mistura lembranças,
o enredo é revivido pela memória, embora a velhice e o tempo presente
sejam aspectos incontornáveis que modificam a percepção dos passados;
e mistura vozes, tanto no sentido gráfico (não há travessões ou marcas de
diálogo) quanto no semântico (sabe-se que o marido da personagem está
em outro lugar, então, em uma perspectiva literal, subentende-se que é a
própria Senhora D quem representa a voz do ex-marido, em uma recor-
dação viva ou personificadora, o que faz mais sentido ao analisar que ela é
a narradora ou que ele está em outro plano).
A narradora-protagonista produz um reflexo de si enquanto mulher
redimensionada pelo Tempo: “Senhora D é o Nada à procura da luz numa
cegueira silenciosa da idade - sessenta anos à procura dos sentidos das
coisas” (HILST, 2001, p.3). Tal busca pelos sentidos das coisas, tanto as
ocultas quanto as visíveis modificadas pelo que está oculto, é um motivo
que move a personagem no texto. Em exercício da dúvida, Senhora D se
entrega a um trajeto de não compreensão ativa que provoca um distanci-
amento de si em função da entrega ao Outro.
Para Zambrano (1995), o Nada não é o Ser nem o Não Ser, nem se
confunde exatamente com o sagrado, uma vez que está mais próximo de
uma sombra do sagrado que foge às categorizações. Segundo a autora, o
Nada reduz a cinza e pó os acontecimentos porque absorve o tempo. Ame-
aça, enquanto resistência divina, a estabilidade do homem, e assim penetra
uma abertura de sua alma. O Nada também revela o sentimento de ser
criatura (ser pó, cinza, nada) que, segundo Otto (2007), é a matéria-prima
206 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

da humildade religiosa. A sensação de ser ínfimo perante a grandeza e a


infinitude divina, para o autor, leva a aniquilação de si mesmo, sem que a
pessoa se torne o Outro. Nas palavras de Deus: “Quando tiveres renunci-
ado a ti mesmo eis que serei Eu e tu não serás” (OTTO, 2007, p. 132). Para
o autor, a pessoa imersa no nume mergulha em si e se funde ao seu pró-
prio nada e finitude: “Quanto mais clara e desnuda ela reconheça a
magnitude de Deus, mais nítida se lhe torna sua pequenez” (BOSTAMI
apud OTTO, 2007, p. 56). No caso de Senhora D, o sentimento numinoso
é intenso e ela própria se percebe como o Nada, sem, no entanto, conseguir
transcender sua animalidade.
O codinome Senhora D é uma espécie de acordo designativo feito en-
tre ela e o ex-marido: D significa Derrelição, Desamparo, um epíteto que
aponta para o abandono, tanto do outro quanto de si. Ao se construir sob
o signo do Nada, do Desamparo e do Abandono, a personagem se constitui
como uma mulher mística em trajeto de autoconhecimento por uma iden-
tidade inacabada, atuando ativamente sobre um diálogo interno que
transcende ela mesma.
Nas suas explicações de si, Senhora D busca entender suas identida-
des enquanto recorda o significado dos seus nomes. Senhora D é também
conhecida como Hillé e ao final do texto assume a identidade Senhora P
(de Porca). Esses nomes estão ligados a acontecimentos e sensações que
ocorrem com outras personagens ou a digressões temporalmente marca-
das, que agregam características singulares ao Eu da personagem: “Diante
da vila, das casas quase coladas, entre as gentes sou uma grande porca
acinzentada (...) diante da minha Mãe fui apenas pergunta, paradoxo, Hillé
diante do Pai foi o segredo, a escuta, a concha, o que é paixão? O que é
sombra?” (HILST, 2001, p. 21). Essas facetas se conectam para catalisar a
trama, pois as características da personagem variam segundo cada apelido
que, por sua vez, muda de acordo com a percepção que os outros têm dela.
Julian Bohrz | 207

A personagem possui diversas camadas que não se repelem: é meiga,


ousada, demanda amor, repele contatos, faz careta para a vizinhança,
odeia sexo, arde em fogos afetivos, conhece e desconhece os humanos. O
que pouco varia é a busca do sagrado em todas as coisas, fruto de um des-
conhecimento do incompreensível, de um não entendimento do homem,
das “armadilhas do corpo”, dos desígnios do Senhor-Menino. Sem saber o
que é esse sagrado que atravessa os mistérios da realidade material, a per-
sonagem come o corpo de Deus com o apetite de quem engole o Todo,
“Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome, engolia fundo, salivosa lambendo e
pedia: que eu possa compreender, só isso. Só isso, Senhora D? Compreen-
der o jogo brinquedo do Menino Louco” (HILST, 2001, p.9). Em uma
religação por um jogo que não conhece as regras, a personagem busca
compreender Deus dentro dela, e assim nega a morte: "e por não acreditar
na finitude me perdia no absoluto infinito” (HILST, 2001, p.11).
O marido de Senhora D, cujo nome Ehud pode ser um anagrama da
palavra Deus somado da letra que representa o vazio sonoro, deixa rastros
no texto que indicam caminhos vagos para a protagonista: o tempo, o sexo,
a imundície, a morte, a não-compreensão, o homem do aqui-agora, os si-
nais esmagadores do poder divino que são dados a conhecer na realidade
aparente, e “o olho obsceno de Deus” (HILST, 2001, p. 81). Douto de Filo-
sofia, Ehud é um homem que percebe o mundo a partir da experiência
concreta. A voz de Ehud, mesmo depois de sua morte, circunscreve as me-
mórias de Senhora D ao plano material. Por outro lado, isso estimula a
personagem a transgredir a voz masculina, inclusive através do corpo
como um suporte sensorial de significação.
O foco narrativo no marido de Hillé passa por transformação quando
a história, em movimentos elípticos, aproxima-se do centro gravitacional
morte de Ehud. Nesses momentos, ele é visto como tomado pelo Senhor e
ganha um status de mediador enunciativo ou até semiótico entre este lado
208 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

e o outro. Ehud figura então como um misto de beleza e sujeira, “um todo
de carne repulsiva, um esgarçoso de brilho e imundície” (HILST, 2001,
p.52). É assim que, em um diálogo com o marido no pós-morte, é possível
desenhar em linhas tênues o conceito de vida após a morte implícito no
texto:

Hillé, nada em mim é extensão em ti.


Não fizemos um acordo?
O que?
Não és pai?
Nem sei de mim, como posso ser extensão num outro?
Não houve um contrato?
Que? Está louca. Vivo num vazio escuro, brinco com ossos, estou sujo sono-
lento num deserto, há o nada e o escuro.
Não te escuto
Digo que durmo a maior parte do tempo, que estou sujo
O que? O que, meu Deus? Não te escuto (HILST, 2000, p.64).

Nesta passagem, é como se a Senhora D estivesse em contato com


um híbrido entre a sua visão de mundo e a visão do ex-marido, sendo o
espaço sagrado da casa e o lugar em que Ehud está depois de morto simi-
lares por suas características aparentes (escuridão, silêncio, sujeira) e
ocultas (lugar para se dialogar sobre o outro lado). Assim, a compreensão
de si e da alteridade (“não sou”, “como posso ser?”), sobretudo em con-
texto pós-morte, esbarra em desentendimentos comunicativos, marcados
nesse trecho pelos reiterados sinais de interrogação, e desenvolve-se em
silêncio (“O que, meu Deus? Não te escuto”).
Outro conjunto de personagens é a vizinhança, que aparece tanto
como algo homogêneo quanto singular, em situações de pausa tragicô-
mica. Além de trazerem uma visão crítica da religião, como se percebe na
seguinte passagem "e Deus? olhe, isso é assunto de padre, de ministro, de
Julian Bohrz | 209

político, é Deus todo dia dentro da boca, de dia Deus, de noite a teta de
uma, a pomba de outra” (HILST, 2001, p.38), os vizinhos também auxi-
liam a demonstrar a complexidade, a libertinagem, e a abjeção nos
contatos sociais de Senhora D. Além dessas vozes, que surgem de forma
plana, mas se configuram como personagens, outras vozes não ganham
maior detalhamento ou corporificação, porém definem a protagonista: os
editores, os familiares e, até as últimas páginas do livro, o Menino-Porco.
A categoria Narrador é complexa em Obscena Senhora D. O texto é
narrado em primeira pessoa, porém a narradora brinca de ser onisciente,
por exemplo, ao imaginar\saber o que os vizinhos falavam dela e, logo
após, relatar uma cena de contato com os vizinhos que corrobora sua im-
pressão. Além disso, a narradora viaja entre tempos diversos, avançando
até um eventual futuro pós-morte, onde dialoga com o Senhor e com o ex-
marido. Nem sempre a voz narrativa deixa explícitas essas mudanças de
tempo, como se passado, presente e até futuro se confundissem nas me-
mórias.
Portanto, o tempo também é uma categoria híbrida. Embora não
existam demarcações cronológicas, a leitura permite entender que a per-
sonagem é idosa e vários eventos possíveis de se demarcar em linha do
tempo a modificaram. Além disso, o tempo passa de maneira diversa por-
que está vinculado à rememoração da personagem. Sua forma de lembrar
vividamente, como se o passado estivesse ocorrendo, problematiza o cará-
ter narrativo da memória. Ao reviver recordações, Senhora D. mostra que
alguns acontecimentos não se perderam no tempo, pelo contrário, segui-
ram acontecendo. Assim, a memória é o principal fator de composição da
personagem, uma vez que cria um fluxo de consciência no qual a lem-
brança do passado se entrecruza com as percepções e os sentimentos do
presente.
210 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

A categoria espaço acompanha os movimentos de conexão entre di-


mensões da narrativa. É possível distinguir um espaço material, uma casa,
onde os eventos narrados acontecem. Além disso, há misturas entre ma-
terial e simbólico que se articulam na relação das personagens com os
espaços ocupados. Ehud habita um lado de cima da casa ou as escadas,
espaços não acessíveis à Hillé. Senhora D. habita um espaço limítrofe entre
alto, meio e baixo, o vão da escada, onde ocorrem os contatos da persona-
gem com as dimensões sagradas. O vão é um espaço escuro e silencioso
que estimula a personagem a recordar, refletir e tentar ouvir Ehud ou
Deus:

Você está me ouvindo Hillé olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não
está aí, ouviu? Nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima,
será que você não entende que não há resposta? Não, não compreendia nem
compreendo, no sopro de alguém, num hálito, num olho mais convulsivo, num
grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de coisas secas, de es-
trume, um dia um dia um dia (HILST, 2001, p. 25).

O vão da escada é um ponto de contato da personagem consigo


mesma e com o Outro. É onde a personagem passa a maior parte do
tempo. Além de ser o eixo norteador de memórias e de contatos com o
outro lado, o vão é o local onde Hillé se desprende da realidade material,
onde se permite não compreender, e onde entra em contato com o misté-
rio.

A incompreensão afetiva do corpo e o excesso de compreensão do outro

O afeto lírico-sexual em Obscena Senhora D é uma ponte de contato


entre o eu e o outro que sofre a influência de um grande mistério. Senhora
D, ao relembrar as palavras que o Pai dizia sobre os diversos tipos de pai-
xão, mostra como as sensações, as emoções e os desejos do corpo fazem
Julian Bohrz | 211

parte do mistério divino que movimenta o humano: “paixão é a grossa


artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púr-
pura sobre tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão é
esse aberto no teu peito, e também seu deserto” (HILST, 2001, p.16).
De acordo com essa passagem, entende-se que o afeto é o que colore
a vida de Senhora D, mas essas cores também fazem parte das ilusões da
percepção sensorial, nesse caso a paixão. Assim como a boca é o nosso
contato material com o universo desconhecido dos pensamentos e da pa-
lavra, a paixão e a volúpia são o nosso contato material com emoções ou
sensações inexplicáveis que conseguimos expor de peito aberto. Dessa
forma a personagem preenche com cores alguns desertos de significação
presentes nas palavras que usamos para pensar a afetividade humana.
Imersa no nume a partir de sua expressão aparente e ao mesmo
tempo negando o que é material (corpo, outras personagens, a fala) em
função da entrega ao Infinito (ou ao vão da escada), a personagem parece
tomada pela ideia de que as ilusões compõem a matéria e não o espírito.
Por isso, predominam no texto as pulsões de morte e os desejos de
abandono de si. Isso traduz para o mundo profano um aspecto avassalador
do sentimento numinoso, que aniquila a pessoa. Para Otto (2004), mais
do que um afundamento ou um sentir a própria nulidade, o nume em seu
aspecto misterioso é percebido pela qualidade do poder avassalador. Esse
caráter tremendo do mistério não pode ser medido em palavras ou con-
ceitos objetivos, o mais próximo disso seria sua expressão em uma
evocação íntima, fruto de uma reação-sentimento ao poder avassalador:

Se encararmos o aspecto mais básico e profundo em cada sentimento forte de


espiritualidade no que ele seja mais que fé na salvação, confiança ou amor,
aquilo que também independente desses fenômenos concomitantes pode tem-
porariamente excitar e invadir também a nós com um poder que quase
confunde os sentidos (...) sugere-se a nós necessariamente a sensação do
212 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

mistério tremendun, o mistério arrepiante. Essa sensação pode ser uma suave
maré a invadir o nosso ânimo, num estado de espírito a pairar em profunda
devoção meditativa. Pode passar para um estado de alma a fluir continua-
mente, em duradouro frêmito, até se desvanecer, deixando novamente a alma
no profano. Mas também pode eclodir no fundo da alma em surtos e convul-
sões. Pode induzir estranhas excitações, inebriamento, delírio, êxtase. Têm
suas formas selvagens e demoníacas. Pode decair para o horror e estremeci-
mento como que diante de uma assombração. (...) Pode vir a ser o
estremecimento, o emudecimento da criatura a se humilhar perante - bem,
perante o que? Perante o que está contido no inefável mistério da criatura.
(OTTO, 2004, p. 48)

Nessa via, Senhora D embarca em um mergulho mnemônico em seus


sentimentos sobre o mundo da “carne do espírito”, sobre o devir animal,
discernindo as ilusões e o mistério que atravessam as armadilhas do seu
corpo. No seguinte excerto, observamos a contradição produtiva entre ad-
jetivos nostálgicos e substantivos corpóreos: “a imensa insuportável funda
nostalgia de ter amado o gozo, a terra, a carne do outro, os pelos, o sal, o
barco que me conduzia” (HILST, 2001, p. 22). A nostalgia, enquanto sen-
timento positivo-negativo de ausência de algo amado, indica que a
recordação da personagem é também uma tomada de consciência de al-
guns processos que envolvem a passagem do tempo e do afeto no corpo.
Dessa forma, Senhora D busca uma nova relação com o mistério presente
na matéria, mas também com a própria palavra, por meio do que é possí-
vel expressar com afeto e intelecto:

Ehud, sabes como é a palavra Intelecto em russo? É UMM. O M prolongado


UMMMMMMMM. a carne é que deveria ter o som do UMM, é assim no teu
peito, Senhor, o sentir da carne? de lá do escuro venho vindo, teias a minha
volta, estou presa a ti, do UMM à carne, um torcido elastiçoso no espaço de
nós dois, não te separes nunca, não tentes, é sangue e gosma, é dubiez na apa-
rência mas é cristal de rocha, vívido empedrado, é úmido também, UMM, o
Julian Bohrz | 213

intelecto pulsando, a carne remançosa, na aparência, se me olhas não vês fe-


bricidade mas se me tocas te seguro numas duras babas, tu e eu, um único
novelo espiralado, não te separes nunca, não tentes, subo até teus tornozelos,
vou te lambendo lassa, aspiro pelos cheiros, encontro coxa e sexo, queria te
engolir, Ehud, descias em UMM pela minha laringe, UMM pelas minhas tripas,
nódulos, lisuras, trituro teus conceitos, teu roxo intelecto, teu olhar para os
outros, te engulo Ehud, altaneria, porte, teu compassado, teu não saber de
mim, teu muito-nada compreender, deslizas em UMM pelos tubos das vísce-
ras, teu misturar-se a mim, adentrado desfazido, não és mais Ehud, és Hillé e
agora não te temo, murmuras hein? (HILST, 2001, p. 63)

Nessa passagem, algumas significações opositivas são desconstruí-


das, como o intelecto e o córporeo-afetivo, o sagrado e a carne, a aparência
e a essência e a relação eu-outro. A (im)possibilidade de sintonização física
e mental de um humano com o outro é uma visão do Mistério. Apesar de
expor que o intelecto pulsa como um objeto de desejo sexual, a persona-
gem fragmenta a palavra e engole o outro, demonstrando compreender
que Ehud a considera incompreensível.
As conexões entre eu e outro, compreensível e incompreensível, sexo
e intelecto, são apresentadas pela lógica da dissolução de contrários, sali-
entada por Zambrano (1995) como uma possibilidade de escrita mística: a
harmonia de contrários. Para a autora, na dissonância e na harmonia de
contrários, o Nada também atua. Essa mudança de polos assinala que o
afeto e o corpo são formas de contato entre compreensão e incompreensão
do mistério, assim como a relação entre os conceitos de espiritual e mate-
rial. Por outro lado, para Ehud, coração e intelecto são ilusões, o que
interessa é o mesmo que demandam os editores ficcionalizados no texto:
o aqui-agora.
Assim, ao analisar a personagem Senhora D, percebemos que sua jor-
nada mística é perpassada pela corporeidade. Esse modo de sentir o corpo
e as emoções acrescenta nuances à forma habitual de se pensar as coisas:
214 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

“Te busquei, Infinito, Perdurável, Imperecível, em tantos gestos palavras


passos, em alguma boca fiquei, curva, sinuosidade, espessura, gosto, que
alma tem essa boca?” (HILST, 2001, p.82). Nesse trecho, percebemos que
a materialidade corpórea, em sua inescapável presença em si, é um misté-
rio a se desvendar, pois materializa as almas.
É dessa forma que a personagem procura o Infinito no corpo das pes-
soas e demonstra um modo de elaborar os impossíveis do sagrado no
profano. Cria-se uma ideia de que o Infinito é algo que alimenta, mas é
durável, não apodrece. A personagem, então, busca o Infinito através da
camada de significados pouco compreensíveis que permeiam dimensões
materiais, como o falar das bocas, o movimentar dos pés, o paladar das
almas, que conseguia sentir fisicamente.
Para Ehud, essa busca pelo mistério que existe no mundo material
era parte de um desconhecimento que despoletava a curiosidade das per-
sonagens: “na hora da comida, da trepada e até da privada inventou que
até ali estava o Senhor, quero dizer, até ali o fulgor de alguma coisa viva
que ela não sabia” (HILST, 2001, p.76). Desse modo, o sagrado e o sexual
hibridizados no texto apontam para um mistério presente em tudo, até no
que se considerava baixo, ou os temas que não interessavam à literatura,
nem à religião ou à razão. Para Ehud, essa experiência de sentir o sagrado
onde não se sentiria comumente excede os sentidos das palavras na me-
dida em que transcende algumas convenções da fala:

Senhora D, querida Hillé, murmuras hen? os segredos da carne são inúmeros,


nunca sabemos o limite da treva, o começo da luz, Hillé, não gostarias de me
fazer um café? os intricados da escatologia, os esticados do prazer, o prumo, o
todo tenso, as babas, devem ser discutidas com clérigos, confrades (HILST,
2001, p.43).
Julian Bohrz | 215

É assim que, para o marido de Hillé, ligado à realidade aparente pelo


apego à matéria, ao café, ao sexual-afetivo, é possível conhecer (a escato-
logia, o prazer) mas não compreender as luzes e trevas, ou os mistérios
que interessavam à esposa. Já para a Senhora D, de modo semelhante e
diferente, os mistérios da vida e do corpo foram sentimentalmente possí-
veis, mas continuaram incompreensíveis diante do inefável:

A vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca
compreender. Por isso é que me recusava muitas vezes. queria o fio lá de cima,
o tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes? Que OUTRO mamma mia?
DEUS DEUS, então tu ainda não compreendes? (HILST, 2001, p. 28).

Nessa passagem, aprofunda-se a lógica de desconhecimento do


corpo. A dimensão interior do corpo (contornos, vísceras, emoções) e seu
contato com a dimensão exterior (respiração, visão, outro corpo) são as-
pectos tão incompreensíveis que a personagem passa a desejar o Outro
que também não se compreende.
Entretanto, essa intensa atividade de não saber, latente ao longo do
texto, não aparece como uma ignorância. É como se uma sombra divina
se apoderasse da Senhora D, criando barreiras expressivas na sua percep-
ção, por excesso de conhecimento do Outro: “sim, Ehud, el alma de Hillé
se oscurece por lo mucho que sabe” (HILST, 2001, p.71). Em uma definição
por negação, a personagem, em seus contatos com o Infinito no vão da
escada, acentua sua incompreensão do corpo, bem como da percepção
sensorial, da crueldade do tempo, dos contatos sociais e da palavra, desta-
cando a ideia de que o mistério deixa sinais codificáveis, porém
incompreensíveis:

Não compreendo o olho, e tento chegar perto. Também não compreendo o


corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me
olham nesta vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, Lixo
216 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-


me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas
não compreendo, pulsam, respiram, há um código no centro, um grande um-
bigo, dilata-se, tenta falar comigo (HILST, 2001, p. 38).

Esses pontos de incompreensão compõem um código presente nas


coisas que são expressas na realidade aparente. Esse código é sinalizado
na relação da personagem com a dimensão visceral do corpo, que a impede
de ser compreendida pelo outro. A autopercepção dessa incompreensão é
intensificada pela ideia de abandonar-se em vão às trevas, ao silêncio e,
também, pelo apoio enunciativo das entranhas, definidas por signos do
interior corpóreo em contato com as exterioridades: pulsam, respiram,
grande umbigo dilatado que tenta falar. Segundo Zambrano (1995), esse
sentir as entranhas do Ser, seus infernos, é o ambiente propício para o
surgimento do Nada, neste caso personificado na própria personagem:

A maquinaria do relógio que mede e sente o tempo, a vibração solitária e muda


que sai da sua mudez no grito, no pranto; que se paralisa na angústia e se
fecha hermeticamente nesses estados, produzidas pela frequente pseudoliber-
dade do homem. E aí que aparece o nada. O nada que é o outro, o outro que
ameaça aquilo que de ser o homem tem. O nada que é pura palpitação das
trevas (ZAMBRANO, 1995, p. 154).

Assim, obscena Senhora D, em seus contatos com os infernos do Ser,


revela em si as complexidades da passagem de um tempo afetivamente
demarcado, que é sentido no corpo, no desejo sexual, na espiritualidade e
na fala. Essa angústia do fechamento em si, simbolizada nas janelas fecha-
das da casa, catalisa o desenvolvimento da personagem de uma melancolia
da perda material do ente querido em direção aos espaços sujos e silenci-
osos que, na narrativa, caracterizam o sagrado.
Julian Bohrz | 217

Senhora D, Ehud e o outro

A relação entre Hillé e Ehud sinaliza também a dinâmica entre me-


lancolia, corpo, intelecto e sagrado no texto. Há entre ambos um desejo de
contato atravessado pelo afastamento corpóreo do outro e pelos entraves
do plano espiritual invadindo o campo profano. Essa barreira que impos-
sibilita o contato afetivo humano depois da morte é representada pelo vão
da escada, um lugar de desconhecimento da matéria, mas também um es-
paço de tensão entre ela e o marido: “antes de você escolher esse maldito
vão da escada nós fodíamos muito” (HILST, 2001, p.15). Quando ela está
em silêncio no vão, intensificam-se as relações de harmonização entre ma-
terial e imaterial, silêncio e vozes, sexo e sagrado - então o corpo resulta
desconhecido, assim como o homem e a razão.
Ehud, em particular, identificava-se como Deus e louco. Para o ma-
rido da protagonista, tanto ele quanto Senhora D eram bestas, assimilados
ao animalesco, ao mundo da carne, aos excessos da obra de Deus: “Eras
tu, sim, mas naquele instante eu me pensava Deus e me sabendo Deus me
sabia louco. E nunca nos compreendemos como existências, atados os dois
como cão e cadela. (...) Há lugar para a carne no teu coração, Senhor?”
(HILST, 2001, p. 49).
Ao longo do texto, é produzida uma dinâmica entre as personagens,
que representam vias diferentes para dúvidas similares em torno da
morte, do afeto e do corpóreo. Isso conecta Senhora D e Ehud e codifica
um campo de incertezas do sagrado, da vida e da filosofia.
Além disso, Ehud também é um fragmento de lembrança do contato
direto da Senhora D com a realidade física-conceitual. São repetidas no
texto as interceptações de fluxo de consciência, geralmente por solicitações
de Ehud, de caráter sexual ou alimentício, que impedem o total aniquila-
mento de si por Senhora D. Além disso, em muitos momentos é
demonstrado que Ehud não tolera a espiritualidade ou mesmo a fala da
218 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

esposa, colocando em primazia as demandas do corpo, como se este fosse


um imã de retorno ao mundo material:

Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tate-


ava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas
torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo ab-
surdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia
vou compreender, Ehud compreender o quê? isso de vida e morte, esses por-
quês escute, Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos
do pensamento, tu me fizesses um café, hen? E apalpava, escorria os dedos na
minha anca, nas coxas, encostava a boca nos pelos, no meu mais fundo, dura
boca de Ehud, fina úmida e aberta se me tocava, eu dizia olhe espere, queria
tanto te falar, não, não faz agora, Ehud, por favor, queria te falar, te falar da
morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que
vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando enve-
lhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva,
o Tempo. (HILST, 2001, p.1).

A relação entre essas personagens também provoca harmonização de


contrários na dialética entre erótica do corpo e fusão ao divino, em pro-
cesso de complementariedade, refração e inversão. Se, para a Senhora D,
sexo, corpo, intelecto e sagrado correm em paralelo não necessariamente
pacífico ou se hibridizam, para Ehud há um contraste entre a entrega ao
vão da escada e os anseios corpóreos, como se Deus e a espiritualidade
fossem uma barreira para a concretização do afeto humano no plano ma-
terial. Já para Senhora D., a carne erotizada não só pode ser uma forma de
expressar o divino, mas também é uma forma de expressar o plano da
morte. Não à toa a cena de morte de Ehud é narrada de forma iterativa
como um último ato sexual.
Esse constante questionamento sobre as dimensões paralelas hibri-
dizadas no texto, que em Senhora D é um aspecto de aprofundamento
espiritual, varia entre os pontos de contato das personagens. Para Ehud, a
Julian Bohrz | 219

dúvida eterna se modifica de um signo da incompreensão das incompre-


ensões da esposa, para a compreensão da morte, pairando nos ciúmes de
Deus, como se percebe no seguinte excerto "agora vamos, tira a roupa, me
beija, abre a boca, mais, não geme assim, não é para mim esse gemido, é
pra esse Porco-Menino que tu gemes, pro invisível, pra luz, pro nojo, tu
não fodes comigo, maldita, tu não fodes comigo" (HILST, 2001, p. 72) e
culminando em um desejo de entrega compartilhado com o Outro: “Hillé,
amei alguém que se parecia contigo, minha filha, toca-me (...) Ehud, faça
com que ela se deite comigo” (HILST, 2001, p. 78).
Entretanto, apesar de salientar seus problemas com a relação apai-
xonada da esposa pelo Menino-Porco, Ehud não parece sentir o mesmo
em relação aos outros. Por conta da suspeita de que a esposa se abando-
naria aos tratos com o divino depois que morresse, Ehud demonstra um
desejo de que Senhora D encontre outro homem:

Quando eu não estiver mais evita o silêncio, a sombra, procura o gesto, a carí-
cia, um outro, (...) e que ele conheça o teu corpo como eu conheci, ensina-o se
for inábil e tímido, busca tua salvação, empurra o espírito para uma longa
viagem, afasta o espírito (HILST, 2001, p. 84).

Assim, Ehud também aparece inserido na lógica de inversões que ca-


racteriza a harmonização de contrários. Não são exatamente os ciúmes da
carne ou da volúpia que afligem Ehud. Enquanto personagem paralelo de
Deus, Ehud possui uma espécie de zelo especial pela Senhora D, seme-
lhante ao ciúme que o Senhor sente diante da adoração humana de outros
ídolos no livro de Ezequiel. Nesse sentido, as construções em torno da per-
sonagem Ehud insinuam críticas tanto a adoração de Senhora D por um
outro Deus, quanto a idolatria conjugal da esposa, uma vez que Senhora D
adorava o ex-marido como se fosse o Senhor. Por isso, para Ehud, quando
sua esposa encontrar um outro homem para ter relações sexuais terá
220 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

encontrado também o Outro: “esse muito jovem há de sorrir diante do teu


discurso, te põe de imediato a mão nas tetas e diz teu Deus sou eu, Hillé,
já me encontraste” (HILST, 2001, p. 82).
Para Senhora D, o sentimento de morte próxima produz uma confu-
são entre as ideias de marido, pai e Senhor, o que provoca o surgimento
de um novo personagem. Depois de apresentar um último diálogo em par-
ticular com Ehud, as memórias de Senhora D saltam em direção às
fantasias com sua própria finitude, “morta sim é que estarei inteira, aca-
bada, pronta como fui pensada pelo inominável tão desrosteado, morta
serei fiel a um pensado que eu não soube ter” (HILST, 2001, p.86). Então
a voz do Senhor finalmente responde:

Hillé, minha filha, boas e vadias e solenes ilusões, movemo-nos pelas ilusões,
gigantescas e fofas (...) Hillé, anos apenas, mas que deliciosa deixação as ilu-
sões, pai? E que desgostoso compreender, saber à frente dos passos (...)
senhora D, deixa teu pai morrer, fica, Hillé, deita-te aqui comigo, traz um es-
pelho, pra quê? quero ver minha cara (HILST, 2001, p.88).

E assim, próxima do fim da narrativa, a personagem dirige seu foco


para os diálogos com Ehud e o Senhor. Se no início demonstrava no dis-
curso que não estava escutando bem as vozes do outro plano, passa a
acessar o campo semântico dos desejos que Ehud e o Senhor comparti-
lham. A narrativa ambienta uma atmosfera de transição para o final,
delineando a ideia de que, para Senhora D, a compreensão do Mistério é
acompanhada da percepção de sua própria morte iminente, ou do início
de uma nova identidade. A personagem, em seu campo de ação, faz um
último ato: adota uma porca que se perdeu na vizinhança. Totalmente in-
serida no campo semântico da sujeira sagrada (a dimensão que habita o
Porco-Menino), Senhora D assume uma nova faceta: Senhora P.
Julian Bohrz | 221

Experiência afetivo-sexual, sagrado e (in)finitude

De acordo com Kristeva (2001), durante o ato sexual é preciso um


"deixar-se levar" semelhante ao transe. O corpo, o sexo, o despudor se-
guem a lógica das ambiguidades perceptuais que complexificam a relação
puro-impuro em torno dos conceituais do sagrado: "Uma vez que autoriza
a insurreição brutal dos humores proibidos durante as cerimônias, o sa-
grado é sexual” (KRISTEVA e CLÉMENT, 2001, p. 25). Segundo Kristeva,
no registro do sagrado, o sujo e o sexual residem nas transições entre o
inferior-ignóbil e o superior-nobre.
Estamos acostumados a purificar a sujeira, a regrar o sexo, mas, para
a autora, em diversas sociedades há mais ritualização em torno da abjeção,
do corpóreo, e da sexualidade. A imundície e a sexualidade residem em uma
região fronteiriça dos conceitos, na qual negativo e positivo podem se con-
fundir, situando, por exemplo, o sujo e o livrar-se dele em uma lógica
poluente entre construções sobre vida e morte, ou corpo e cadáver. É assim
que a sujeira, a sordidez, a expressão sexual, para as autoras, habitam um
terreno vago do sagrado onde o abjeto visa o ideal e consegue atingi-lo.
Por isso, a vivência da sexualidade, a busca pelo que há de misterioso
no afeto humano, e a associação do sagrado ao porco, aspectos visíveis na
construção da Senhora D, são também formas que a personagem encontra
de se despir do mundano em função do abandono ao Outro. Para Clément
(2001), esse rompimento de amarras - “suas santas e minhas sacerdotisas
abolem o pudor diante de Deus” (CLÉMENTE e KRISTEVA, 2001, p. 78) -
atenta principalmente contra o pudor do Ser e favorece a entrega espiritual.
O despudor e a expressão da sexualidade, na medida em que repre-
sentam possibilidades da produção de conhecimento sem tantas
mediações exteriores, são também modos de produzir críticas sobre o de-
terminismo da razão. Nesse sentido, segundo Zambrano (1995), o pensar
seria a única forma de se aproximar da realidade, e “toda realidade viria a
222 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

coincidir com o pensamento, idêntica ao pensamento: o ser” (ZAMBRANO,


1995, p. 151). Assim, tudo que excederia o Ser e o Não Ser seria o Nada,
inclusive o sentimento, o irracional, o corpóreo, ou aquilo que há de inex-
plicável nos infernos da vida, nas entranhas do Ser. Logo, não poderiam
interessar à construção do projeto do Ser pela metafísica.
Em Obscena Senhora D, a sexualidade também é vista como uma ma-
neira de estabelecer contatos entre o sagrado o profano, ou mesmo de
evitar a realidade material em prol da imersão no divino. Essa relação
aponta para a possibilidade de uma escrita erótica atingir estados de espí-
rito que conseguem evocar os aspectos misteriosos da realidade material
e da consciência humana. Embora não queira buscar uma definição para
o sagrado, Kristeva (2001) deixa alguns rastros:

E se o sagrado fosse essa percepção inconsciente que o ser humano tem de seu
insustentável erotismo: sempre nas fronteiras da natureza e da cultura, do
animal e do verbal, do sensível e do nominável. E se o sagrado, em lugar de
ser a necessidade religiosa de proteção e de onipotência que as instituições
recuperam, fosse o gozo dessa clivagem - dessa potência\impotência - desse
desfalecimento delicado? (CLEMÉNT e KRISTEVA, 2001, p. 21).

Esse insustentável erotismo é designado por Clemént (2001) lendo


Marianne como a vivência de uma relação sexual mortífera. Nesse caso,
algumas mulheres místicas experienciam um desejo sexual que também é
sacrifício implacável, obrigação de sofrer. Quando não encontra palavras
para descrever seu gozo sacrificial, que a aniquila e a estatela no chão, Ma-
rianne menciona a palavra Deus. Ao retomar Bataile, Clemént (2001)
afirma:

A experiencia interior é uma transgressão dos interditos sexuais do gozo, à


beira da anulação de si mesmo, da consciência e muitas vezes à beira da morte.
Paradoxalmente, evocando o divino - esse absoluto de espiritualidade - nós
Julian Bohrz | 223

evocamos passagens do outro extremo, onde o ser humano se precipita no


abismo da animalidade e do Nada. (CLÉMENT e KRISTEVA, 2001, p. 38).

Assim, na composição do afeto do eu e dos outros, há interditos se-


xuais que estão em complementariedade com os processos de construção
da identidade humana em face da morte. Segundo Ferreira, Oliveira e Sa-
les (2016), para Freud, na dialética entre Eros e Tanatos, o gozo é associado
à ideia de repetição, vinculada, por sua vez, às pulsões de morte. A conta-
minação entre prazer e dor amplia a noção de sexo, (in)finitude e sagrado
em Obscena Senhora D, já que a sexualidade também é um elemento ne-
cessário para a conservação da vida e para a expressão da morte. Dessa
forma, os processos de cisão subjetiva de Senhora D também podem evi-
denciar um modo específico de sentir a finitude do corpo: o
comportamento melancólico. Segundo Ferreira, Oliveira e Sales (2016),

O luto é um processo doloroso, porém natural, de retirada gradativa da libido


depositada no objeto perdido. Enquanto a melancolia é um processo patoló-
gico que envolve uma perda relativa ao Eu do próprio sujeito. Na melancolia,
em conformidade com a fase oral, o Eu, impossibilitado de abrir mão do objeto
perdido, o incorpora e acaba por se dividir em duas partes: uma identificada
ao objeto incorporado, outra responsável pela atividade crítica. Com isso, tem
lugar uma verdadeira cisão capaz de permitir que a parte identificada com o
objeto possa ser julgada pela outra parte do Eu, como se lhe fosse externa
(OLIVEIRA, FERREIRA E SALES, 2016, p.62).

Segundo Oliveira, Ferreira e Sales (2016), em Luto e Melancolia,


Freud reflete sobre a divisão do Eu como um mecanismo capaz de demar-
car as diferenças entre melancolia e luto dentro dos processos de aceitação
da morte. Para além da fragmentação subjetiva, é possível entender que
em Senhora D. há um Eu que atua de modo crítico em relação aos outros,
organizando os acontecimentos e o tempo de acordo com a pluralidade de
224 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

associações das memórias. Como é um texto literário, esse Eu funciona


como a categoria Narrador.
Além disso, os Eu(s) de Senhora D aparecem como um Nada produ-
tivo que estabelece um contato íntimo com o Outro. O despudor, o
fechamento corporal, a visão crítica, o abandono do pensamento como
fonte única do saber, são formas diferentes de demonstrar finalidades
muito específicas da trajetória humana: o fim da vida e o entendimento da
própria identidade em contato com o sagrado.

Considerações finais

Assim, o afeto, a paixão, o sexo em Senhora D sinalizam uma religa-


ção entre vários fragmentos de uma subjetividade cingida pela memória e
pela dor da perda. O desprendimento de si em função do Outro demons-
trado pela personagem revela uma melancolia de abandono. Esse
sentimento proveniente do contato com o processo de morte aponta para
uma nostalgia do amor que se foi, porém está vivo na memória. Nesse
sentido, a vivência dos anseios da carne e o fechamento corporal indicam
como a presença do ex-marido na casa era também um aspecto da com-
posição de uma memória corporal.
Obscena Senhora D. produz questionamentos sobre os processos de
cisão do Eu. A experiência afetiva aparece indexada ao processo de esface-
lamento subjetivo de Hillé, ao abandono de si que a leva para próximo do
sagrado. Além disso, a intensa capacidade da personagem de “outrar-se” é
uma forma de expressar um esquecimento dos pudores do Ser que catalisa
os processos de entrega ao Infinito. Essa lógica é semelhante ao outra-
mento que Zambrano (1995) caracteriza como um abandonar-se ao Nada,
e também a um tipo de alienação de si que é motor do sentimento de cri-
atulidade, descrito por Otto (2007).
Julian Bohrz | 225

E se, como diz Calvino, a imagem de Deus se estende a tudo aquilo


que, na natureza, excede o que existe nos animais, talvez a maior dissolu-
ção de contrários do texto esteja sutilizada na forma autodepreciativa com
que Senhora D se refere a si mesma (Porca, cadela) ou se refere à Alteri-
dade (Menino-Porco), em sua expressão do sentimento numinoso. Talvez,
ela seja diretamente identificável ao sagrado, ou melhor, talvez o D. que a
caracteriza também signifique Deus. Além disso, se a personagem adora
aquilo que excede os animais, talvez Obscena Senhora D. expresse uma
forma se repensar o sagrado a partir de uma rasura. Isso pode explicar,
também, o ciúme que Ehud sente do Menino-Porco, e se ele é feito segundo
a imagem de Deus, talvez Senhora D também seja uma mulher casada com
a imagem de Deus.

Referências

BÍBLIA. Ezequiel. In: Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Tradução João Ferreira de
Nascimento. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

CLEMÉNT, Catherine; KRISTEVA, Julia. O feminino e o sagrado. Tradução de Rachel


Gutierrez. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

DINIZ, Cristiano. Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo:
Biblioteca Azul, 2013.

FERREIRA, Fernanda Pacheco; OLIVEIRA, Regina Herzog; SALES, Jôse Lane. Clivagem: a
noção de trauma desestruturante em Ferenczi. Arquivos brasileiros de psicologia.
Rio de Janeiro, p. 60-70. 2016.

HILST, Hilda. Obscena Senhora D. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2001.

OTTO, Rudolph. O sagrado. Tradução: Walter Schlupp. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

ZAMBRANO, Maria. O homem e o divino. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra.


Lisboa: Relógio D’água, 1995.
12

A experiência divina em Adélia Prado: uma ligação


mística do eu-lírico em Consanguíneos e O amor no Éter

Pedro Caio Sousa Almeida

Considerações iniciais

A obra produzida e publicada por Adélia Prado é bastante vasta,


sendo produções que abrangem diversas temáticas e são lançadas em va-
riados momentos, como por exemplo poemas compostos especialmente
para apresentações de Balé, textos em prosa e também poemas, participa-
ção em antologias, além de traduções para o espanhol e para o inglês.
Pensando a obra de Adélia na prosa e na poesia, a professora Oliveira1,
pesquisadora da autora apresentada, diz que a obra de Prado é perpassada
por uma tríade de temáticas, sendo elas o erotismo, a mística e a morte, e
que essas temáticas dentro do processo criativo estão relacionadas entre si
como uma unidade, característica própria da autora, ou seja, há um eixo
temático que perpassa a obra de um modo geral.
Dentre os elementos da obra Adeliana, do mesmo modo que o eixo
temático, é também perceptível a presença de abordagens de certos temas,
como por exemplo a questão do feminino, voltados a questionamentos de
gênero, a ideia do processo criativo poético (a metalinguagem), questões
de cunho existencial e, também, forte presença da fé cristã. Importante
ressaltar o processo de percepção da construção e reconstrução das subje-
tividades por parte de quem analisa, por ser muitas vezes o relato de uma
experiência individual, devendo-se salientar o caráter interdisciplinar que

1
Aula sobre Adélia Prado ministrada no componente curricular Literatura e Sagrado no período 2020.2. com a
participação especial da Profa. Dra. Cleide Maria de Oliveira do CEFET-MG.
Pedro Caio Sousa Almeida | 227

se pode alcançar na análise de uma obra como a de Adélia Prado. Sendo


assim, podemos dizer que há certo desenvolvimento dos estudos sobre a
mística, com a marca de novas compreensões e interpretações dessas
questões que, mesmo sendo subjetivas, dão um outro olhar para a pes-
quisa/análise dentro de um âmbito cultural, atingindo também questões
existenciais, próprias da psicologia humana.
Na configuração desse tipo de linguagem articulam-se diversos fato-
res, como os sociais, os psicológicos e os culturais, que compõem os
conjuntos de experiências relatados de forma a montar uma espécie de
caracterização (ou estilo), ou uma espécie de teorização a partir do que foi
analisado e que pode ser usado para um melhor entendimento dos fatos
descritos e até para uma possível explanação. Dessa forma, as teorizações
acabam investigando diferentes formas das possibilidades da experiência
humana, o que apenas demonstra a complexa e multifacetada possibili-
dade do fazer poético ligado à linguagem mística, tendo em vista também
que são semelhantes pelo espaço criativo, pois possuem paradoxos, metá-
foras e expressam sentimentos e sensações que são expressos pela escrita.
Nessa perspectiva, tendo como umas das possibilidades de análise,
uma das claves, seria por exemplo a perspectiva da teopoética, que é mís-
tica e interpretada também à luz da fé, tendo a teologia enquanto ciência
e sua ligação à mística (que neste contexto podemos considerar também
ligada à linguagem poética), ainda mais pensando no contexto dos escritos
de Adélia Prado, em que a espiritualidade cristã entra em cena como
grande pilar de sua literatura, a partir de reflexões e experiências sobre a
expressão de sentimentos, situações da vivência e seus relacionamentos,
sobretudo a partir de uma relação sobrenatural, como coloca a estudiosa
Bingemer (1996) o “sopro do Espírito na história”:
228 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

O momento atual re-descobre para dentro da reflexão teológica o direito de


cidadania da espiritualidade cristã, que não é simplesmente vulgarização teo-
lógica, mas fonte rica e consistente de ensinamento novo e irrepetível, sopro
do Espírito na história, que permite à teologia de hoje dizer novas palavras
(BINGEMER, 1996, p. 91).

Nesse sentido, também é importante pontuar o que Rudolf Otto, teó-


logo e filósofo alemão, descreve em seu livro O Sagrado (2007), sobre os
problemas da racionalização unilateral da experiência religiosa, através do
contato humano com o sagrado, “ao formular a doutrina a ortodoxia não
soube fazer justiça ao elemento irracional do seu objeto e mantê-la vivo na
experiência religiosa, racionalizando unilateralmente a ideia de Deus, numa
evidente apercepção errônea dessa experiência.” (OTTO, 2007, p. 35).
Portanto, como descreve Otto, a “racionalização unilateral” é uma
impossibilidade estrutural da própria experiência relatada, em que o “não
soube fazer justiça ao elemento irracional do seu objeto” não mantém vivo
a experiência religiosa em que há elementos de cunho “misterioso”. Nesse
direcionamento, também desconsidera as experiências, os estudos, as pes-
quisas e relatos por parte daqueles que vivem uma dada experiência e que
a relatam, na busca de registrar e ainda buscam apresentar algum tipo de
testemunho para a qualificar ainda mais.
A definição de “sagrado” parece ser vista como algo complexo, de di-
fícil entendimento e acesso, como algo que depende também da fé,
alcançada pela experiência e o estudo, ainda mais considerando a dificul-
dade para o entendimento do termo “fé”, sendo de uma mesma natureza
que a outra, quando pensada no contexto religioso, pois ambas necessitam
da “crença”. Nesse sentido, essa área de estudo tende a ser considerada
uma “ciência mole”, pois diante do contexto lógico-científico vigente no
ambiente de pesquisa acadêmico, elementos desse gênero não podem dar
uma “certeza absoluta e palpável” a todos.
Pedro Caio Sousa Almeida | 229

Para Rudolf Otto, o sagrado é uma categoria composta, visto que se


apropria de componentes racionais e irracionais, sendo o primeiro os
“conceitos” e o segundo o “indizível”. Nesse sentido, ele afirma que a ideia
de sagrado parte de uma categoria que não possui derivações, isto é, o
conceito possui uma finalidade única, mesmo podendo partir de diversas
expressões. Então, para Otto, pensando na clave do conhecimento hu-
mano, que surge a partir da experiência, também há conhecimentos que
não derivam da experiência (como por exemplo o instinto), funcionando
como uma capacidade cognitiva interior, que segundo o teólogo está im-
plantada no próprio espírito do homem, conjunta à psique humana.
Essa ideia da psique humana utilizada por Otto é importante para o
entendimento do que será analisado aqui, visto que isso representa o que
ele chama de “sentimento de criatura”, como um dado fundamental e ori-
ginal na psique. Para tanto, apesar da ideia não conseguir ser “formulável”,
como ele coloca, ainda assim cita um exemplo para tentar clarear o que
quer dizer:

Quando em Gênesis 18.27 Abraão ousa falar com Deus sobre a sorte dos sodo-
mitas, ele diz: "Tomei a liberdade de falar contigo, eu que sou poeira e cinza."
Trata-se de um sentimento confesso de dependência que, além de ser muito
mais do que todos os sentimentos naturais de dependência, é ao mesmo tempo
algo qualitativamente diferente (OTTO, 2007, p. 41).

Vê-se que a situação parte de um “sentimento”, partindo em primeira


medida da subjetividade do sujeito, e nessa perspectiva ele delineia “con-
fesso de dependência”, introduzindo dois elementos individuais e
indissociáveis, a confissão e, portanto, uma espécie de dependência. Com
isso, pensando na capacidade cognitiva da qual se falava anteriormente,
há de se considerar que esta capacidade está implantada no espírito, jus-
tamente pela capacidade de o homem se reconhecer inferior perante uma
230 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

ordem natural, munido da capacidade de se confessar, isto é, de avaliar


suas condutas “más” e negá-las posteriormente. Esse movimento do espí-
rito humano se dá devido à capacidade cognitiva, e é algo que está presente
na literatura de Adélia Prado, ao se perceber como criatura diante de Deus.
Dentro dessa perspectiva colocada, há também a ideia da “mística”.
Dentro de uma clave mais sistemática é dada como uma prática, que ad-
vém de uma linguagem diversificada, acompanhada de uma “pertinência
particular às circunstâncias [...] à natureza dos interlocutores”, e que po-
dem, segundo Michel de Certeau (2015), os mesmos enunciados, serem
“verdadeiros aqui e falsos acolá”. Diante dessa perspectiva, ele escreve que:

Os espirituais visam, com efeito, a especificar as condições nas quais a elocução


“fracassa”, ou “tem êxito” em tornar possível uma comunicação. Pela determi-
nação de pressupostos práticos, eles querem criar lugares de relação.
Elaborando as prévias e as regras das operações que correspondem a um uso
dialogal ou conversacional da linguagem, compreendendo nessa linguagem
seus aspectos corporais (gestuais, sensoriais) ou circunstanciais (tempos, lu-
gares, luzes, sons, posições, situações de interlocução ou de “oração”) e não
somente seu elemento verbal, eles se engajam em uma política da enunciação
(CERTEAU, 2015, p. 261).

Há então uma comunicação, que cria “lugares de relação” e pela lin-


guagem utilizada se montam as regras e operações do uso dialogal ou
conversacional. Dessa forma, ele segue explicando que essa “arte de falar”
é acompanhada de variados métodos, que moldam a superioridade da-
quele que enuncia, demonstrando o domínio do saber, e também do “dizer
sobre o ler”. Nesse sentido, a criação de “lugares” enunciativos é montada
a partir desses sujeitos, que partem de um uso dialogal ou conversacional,
considerando os aspectos corporais ou circunstanciais, engajados em uma
“política da enunciação”, que avalia e considera a circunstância a partir de
Pedro Caio Sousa Almeida | 231

uma sistematização desses elementos, criando daí as regras e operações


em que a elocução “fracassa” ou “tem êxito”.
Tendo o conceito de sagrado como uma categoria composta, a hipó-
tese é a de que as experiências apresentadas nos poemas de Adélia Prado
possuem aspectos conceituais, mas, concomitantemente, possuem experi-
ências indizíveis frente à impossibilidade de uma abstração direta,
entrando então numa linguagem mística alicerçada pela psique. A tese,
portanto, é a de que a linguagem utilizada por Prado possui muito do que
pode ser chamado de subjetiva, porque parte de experiências individuais
lançadas pela autora que não possuem um referente diretamente ligado
com a experiência dos outros leitores sobre o que foi descrito, mas que,
dentro de outros contextos, a partir de outros relatos, podem conter se-
melhanças.
Para dar conta desta ideia, será necessária uma breve contextualiza-
ção da vida de Adélia Padro antes de passarmos para a análise dos poemas.
Serão analisados dois poemas da autora, Consanguíneos e O Amor no Éter,
selecionados por representarem elementos que remetem à ideia do sa-
grado, a partir da linguagem mística da autora, em que é interessante
ressaltar o caráter autobiográfico presente na obra Adeliana. Os poemas a
serem analisados foram retirados do livro Poesia Reunida, lançado em
2015 pela editora Record, no qual a busca se dá para perceber certas sub-
jetividades, relacionando-os com ideias e reflexões, no horizonte do
sagrado.

Adélia Prado: sua obra poética e as experiências do sagrado

A escritora Adélia Prado nasceu em Divinópolis, no dia 13 de dezem-


bro de 1935. Em 1950 perdeu sua mãe, começando então a escrever seus
primeiros versos. Em 1953 se formou como professora, chegando a lecio-
nar durante 24 anos, e só em 1973 se formou na Faculdade de Filosofia,
232 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Ciências e Letras de Divinópolis. Sua obra foi escrita sob forte influência
da religião, e em 1971 compôs sua primeira obra, em parceria com Lázaro
Barreto, A Lapinha de Jesus. Sua apresentação como autora individual
aconteceu em 1975, quando já era casada e mãe de cinco filhos, e teve re-
percussões pela escrita de suas poesias, impulsionadas pelo renomado
escritor Carlos Drummond, que as enviou para a Editora Imago, sendo
publicada no livro chamado Bagagem (1975). A escolha dos títulos de suas
obras, e de seus poemas, possuem, em grande parte, referência a textos
bíblicos, que estão dentro do eixo da mística, sendo um dos três eixos da
tríade citada pela pesquisadora Oliveira (2012), como basilares da obra
Adeliana.
Na obra da escritora em questão, há uma atribuição do valor simbó-
lico ao cotidiano vivido pelo eu lírico, que demonstra com mais força e
intensidade as formas e experiências vividas. Há sempre presente uma
certa conexão do sujeito pecador que busca a exortação de Deus, que pode
ser percebida através de relatos das experiências divinas. Dessa forma,
surge a busca pela transcendência, a partir da elevação dos sentimentos a
Deus, para que se adequem ao sagrado divino. O erotismo entra como
forte elemento simbólico dessas idas e vindas dos eus líricos expressos nos
poemas, na busca incessante de alcançar o divino.
Adélia possui origem católica, o que comparece fortemente em seus
escritos, principalmente por sua prática da experiência divina relatada nas
poesias. O primeiro poema que analisaremos é o Consanguíneos, em que
a autora fala sobre dor, Deus, amor, mãe, clemência, dormir e descanso.
Como se pode perceber, em um pequeno poema de sete versos, se tem
uma diversidade de temas evocados, e que possuem uma ligação entre
eles, sobretudo, levando em conta que o texto poético, por ser escrito em
forma “reduzida” com relação à prosa, normalmente fornece uma densi-
dade maior de significados em cada palavra utilizada, normalmente
Pedro Caio Sousa Almeida | 233

evocando um universo de interpretações. Segue então, para se compreen-


der melhor a reflexão que estamos fazendo, o poema Consanguíneos:

Não há culpados para a dor que eu sinto.


É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor
como se fora eu Sua mãe e O rejeitasse.
Se me ajudar um remédio a respirar melhor,
obteremos clemência, Ele e eu.
Jungidos como estamos em formidável parelha,
enquanto Ele não dorme eu não descanso (PRADO, 2015, p. 428).

Nesse poema, o eu lírico diz que sente uma dor, mesmo que não haja
ninguém que a tenha causado, a não ser Deus, pois este pede o amor dela,
e a faz sentir dor, não sendo este um pedido qualquer, pois há uma forte
ligação entre filho e mãe. Mesmo considerando que a mãe o rejeita, e por
isso necessita de remédio para poder respirar, alcançando a clemência en-
tre eles, para estarem “jungidos”. A experiência divina é exposta pelo eu
lírico, de sua relação com Deus, e também da noção de sagrado, primeiro
pela presença de Deus, seguido pelo pedido incessante de amor, e não um
amor qualquer e meramente sentimental2; depois pela clemência e final-
mente pela ligação de amor que haveria de se restabelecer entre ambos, a
união que atinge a finalidade desse amor, a amizade entre eles.
Parece haver também uma espécie de sentimento de culpa e, logo em
seguida, a busca da reconciliação, dado pela “clemência” e posteriormente
pelo “jungidos”; e que, conforme afirmado por Bingemer, sobre outra
obra da autora Adélia, Os Componentes da Banda, tem-se que: “Ao mesmo
tempo, em meio a essa culpa e essa tortura de sentir-se mesquinha, par-
tida, pecadora, experimenta um imenso desejo da santidade e de plena

2
Nesse sentido, está se dizendo que o amor em questão é o dos seguidores de Jesus, filho de Deus, conforme deixado
nas Escrituras, ou seja, não se trata de um sentimentalismo da modernidade, mas da fidelidade daquele que busca
seguir as leis divinas deixadas para os homens.
234 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

comunhão com Deus”, algo que demonstra a forte ligação entras suas
obras, que se relacionam mesmo que por narrativas diferentes, com a ideia
de conexão com Deus, apresentando a culpa e a reconciliação, um tema
presente em toda a passagem de Jesus descrita na Bíblia, dos pecadores
que buscam unir-se a Ele, e que a autora incorpora em suas narrativas.
Segundo uma linha que segue uma perspectiva mais próxima do cris-
tianismo, a dor que o eu lírico sente não é uma dor qualquer, mas aquela
dor de rejeitar Deus, Aquele que está sempre na busca do amor de seus
filhos, e que nunca falha. Enquanto o eu lírico rejeita, quem sente a dor é
ele mesmo, por isso necessita de remédio para poder “respirar melhor”, e
dessa forma obter clemência, que pode ser interpretada pela indulgência
do sacramento da confissão, restabelecendo então o perdão. Desta forma,
agora estando “jungidos”, tal qual a finalidade da criação do homem, amar
a Deus, e dessa forma, enquanto “Ele não dorme eu não descanso”, visto
que o amor perfeito dEle não falha, enquanto a falta de amor e a rejeição
do pobre homem pecador, na carne, necessita do remédio. Interessante
notar que o uso do “remédio”, que denota a utilização de um produto aces-
sório e terreno, que o eu lírico precisa para se acalmar diante da dor, é
oposto a Deus, que é celestial e não precisa, pois já é perfeito em si.
No segundo poema, O Amor no Éter, há uma descrição maior do que
foi relatado com relação ao poema Consanguíneos. Em O Amor no Éter, a
descrição dada é sobre o que há dentro do eu lírico, descrito por uma bela
paisagem e a busca mais profunda dos sentimentos que brotam dela
mesma, mas que não possuem origem nela, e sim em outro:

Há dentro de mim uma paisagem


entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniços na margem.
Pedro Caio Sousa Almeida | 235

Habito nele, quando os desejos do corpo,


a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escavar-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde (PRADO, 2015, p. 187).

A escrita desse poema foi mais descritiva, sobre o que há dentro do


eu lírico, as “aves” e seus “bicos mergulhados na água”, “uma lagoa rasa”,
depois a busca, através do “escavar-te”, ou seja, um aprofundamento no
interior de si para encontrar “o sentimento que (tu) segregas”. Do “tu”, do
sujeito que segrega, há o surgimento de um novo sujeito, que não é des-
crito de forma clara, mas que possui algumas características como um
“meio-riso secreto / atravessa mar e montanha / me sobressalta em arre-
pios, / o amor sobre o natural”. Pelas entrelinhas, é aquele que habita no
mais íntimo do eu lírico, não encontrado facilmente, por isso a busca da
escavação em si, e que é indescritível em palavras, só podendo ser descrito
a partir de suas ações, um ser que tem, além do que foi descrito, o poder
de gerar sentimentos no mais íntimo de si, se podendo dizer que esse é o
próprio Deus, no mais íntimo da alma do eu lírico. Esta proposta faz lem-
brar do livro O Castelo Interior (1577), da Santa da Igreja Católica, Teresa
de Ávila, que descreve em seu livro sobre as “moradas do castelo interior”
e que, conforme se avança nessas moradas, pela entrega de si e pelo cum-
primento das leis de Deus, se aproxima cada vez mais de dEle, que habita
236 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

na última morada. Logo, que se encontra no mais íntimo de nós, e que


necessita de extremo esforço, cavar-se a si, para que se alcance o objetivo
final.
A ideia de cavar-se a si está intimamente ligada com o pedido de amor
descrito no primeiro poema, visto que Deus está no mais íntimo de cada
sujeito. Então, a principal forma para se alcançar essa intimidade é pelo
amor. O amor é justamente o cumprimento das leis de Deus, com toda a
intencionalidade do homem voltada à Ele, a partir de uma busca verda-
deira. Nesse sentido, tem-se um entrelaçamento dos dois poemas
adelianos, uma mesma busca, guiada por uma mesma finalidade, que é
alcançar o amor de Deus. Observando o título de cada poema também se
vê uma interligação, em que sendo o homem criado à imagem e seme-
lhança de Deus, há a busca da relação de amor entre os Consanguíneos, no
Éter, com a busca da finalidade daquele que foi criado, em retornar ao
“Pai”. A ligação mística do eu-lírico com o Deus criador, relatada pela ex-
periência divina é, então, o que nomeia o título deste trabalho, em que se
buscou analisar dois poemas de Adélia Prado, a partir das experiências
descritas neles, e mostrando uma experiência aparentemente divina e in-
dividual.

Considerações finais

Mediante o exposto, se mostra importante a pesquisa que aborda te-


máticas de cunho cultural, abrangendo questões relacionadas a
experiências individuais dos sujeitos em seus contextos específicos e que
está conectada com outras experiências de outros sujeitos, demonstrando
a presença de uma “unidade”, principalmente aos relatos encontrados e
interpretados por uma linguagem poética, visto que esta contribui para o
amadurecimento e consolidação das discussões empregadas. Dessa forma,
foi possível perceber a confirmação da hipótese diante das ideias expostas
Pedro Caio Sousa Almeida | 237

e dos poemas selecionados. Mesmo que seja apenas um fragmento da obra,


é ainda assim um elemento importante dentro da poética Adeliana, que se
reflete em vários outros escritos, sendo pertinente afirmar que essa é uma
das características da autora, presente em sua obra como um todo.
A busca de novos estudos nesse âmbito se mostra necessário, pois
nos aproxima da experiência divina descrita pela autora, que é o objeto da
análise, e que mesmo as pesquisas não sendo de tamanha recorrência
como de outros temas, possuem forte ligação com a vida cotidiana que
parte de suas relações mais simples e triviais e, mesmo assim, as transcen-
dem. Por meio da poética Adeliana é percebido o valor substancial dessas
abordagens, contemplando questões de cunho cultural, social, religioso e
psicológico. Sobre isso, pode-se afirmar que a discussão sobre literatura
depende também da forma com que ela é pensada e estruturada, pois ga-
rante principalmente a clareza das informações que busca ser transmitida,
pois como diz a pesquisadora Ferreira (2009), “A função eminente da lite-
ratura é a transfiguração da experiência em símbolo; seu universo
simbólico nasce da experiência; as opiniões não vêm diretamente da expe-
riência, mas do universo simbólico transmitido na cultura" (FERREIRA,
2009, p. 26).
Assim, podemos refletir com mais propriedade sobre as ideias da ex-
periência divina, da linguagem mística e sobre a ideia do sagrado,
consideradas como parte da literatura que surge a partir de experiências
descritas sob o olhar de quem o viveu, como um tipo de testemunho indi-
vidual, cuja a experiência está presente em sua memória, como lembrança.
Para difundir este tipo de pesquisa é interessante um engajamento que
aborde e aprofunde as mais variadas interpretações, envolvendo questões
dessa natureza, semelhantes e outras que possam surgir, para uma ampli-
ação e consequente maior contribuição no desenvolvimento desse tipo de
238 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

literatura, como algo que amplifica a consciência dos leitores, alcançando


o conhecimento plural e intercultural.
Nesse sentido, viu-se que as abordagens do sagrado em Adélia retra-
tam experiências divinas, que evocam certas reflexões. Mesmo tratando-
se do divino, a escritora perpassa por situações comuns do cotidiano, como
a ideia de sentir dor, ter desejo, fazer escolhas diante uma situação dada,
que são elementos triviais da vida humana. Essas situações acontecem e
são descritas nos poemas, escolhas são feitas, podendo haver um conten-
tamento ou não, mas o que rege as reações do sujeito é a sua consciência,
porque ele é guiado por um propósito de vida regida por interesses.
Nota-se também que as ações dos poemas acontecem sob a ótica do
feminino, que no contexto de Adélia Prado pode-se e se deve considerar
uma certa “carga” sentimental maior, tanto na ideia de maternidade, na
criação dos filhos (como uma espécie de dependência), por exemplo, como
no de exercer as relações social e também divina. Nesse contexto demons-
tra o arrependimento e a capacidade da busca sincera, no qual, por meio
da sua resignação, lhe concede novas experiências na busca do amado e,
sendo assim, independentemente de suas aflições, tem um caminho para
onde voltar, para se recolher, pois sabe da ligação mística que há entre ela
e Deus.

Referências

ADÉLIA, Prado. Poesia reunida. 1 ed. Rio de janeiro: Record, 2015.

BINGEMER, M. C., Transcendência e corporeidade: a experiência de Deus segundo Adélia


Prado. In: Gragoatá, n. 14. Niterói: EdUFF, 1996.

CERTEAU, Michel de. A Fábula Mística. Séculos XVI e XVII. Volume I. São Paulo:
Gen/Forense Universitária, 2015.
Pedro Caio Sousa Almeida | 239

FERREIRA, Anna Cláudia Passani. A TRANSCENDÊNCIA POÉTICA EM ADÉLIA PRADO.


2009. 90 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, GOIANIA, 2009.

OLIVEIRA, C. M. DE. Erotismo, mística e morte: a tríade adeliana (Eroticism, mysticism


and death in Adélia Prado poetry) - DOI: 10.5752/P.2175-5841.2012v10n25p104.
HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 10, n. 25, p.
104-119, 22 mar. 2012.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Petrópolis: Vozes, 2007.
13

A presença do sagrado na escrita de autoria


feminina em O beijo de Deus, de Dôra Limeira

Ana Flávia da Silva Oliveira

Considerações iniciais

Os estudos e discussões acerca da escrita de autoria feminina têm se


tornado cada vez mais frequentes no universo acadêmico. Isso se deve ao
destaque que as escritoras vêm conquistando no mercado editorial e no
meio social no qual estão inseridas. No entanto, vale ressaltar que tais con-
quistas são fruto de uma trajetória de lutas e de movimentos sociais,
políticos e intelectuais em defesa dos direitos das mulheres, ocorridos ao
longo da História, a exemplo do movimento feminista, originado na dé-
cada de 60.
A partir dessas lutas e movimentos, as obras literárias escritas por
mulheres, bem como seus enredos, temáticas e personagens ganharam
novas configurações, pois as autoras alcançaram uma certa liberdade de
escrever sobre determinados assuntos, antes, apenas de domínio mascu-
lino, tais como a sexualidade e o erotismo. Para Xavier (1999), até metade
do século XX, a “crítica oficial, com raras exceções, atribuiu um estatuto
inferior à mulher escritora e cobrava dela formas consideradas mais ade-
quadas à ‘sensibilidade feminina’” (XAVIER, 1999, p. 18). Portanto, a partir
da segunda metade do referido século, a ficção de autoria feminina conse-
gue representar suas ações e personagens fora do espaço orquestrado pela
ideologia do sistema patriarcal.
Assim, muitas autoras, seja na poesia ou na prosa de ficção, procura-
ram romper com os papéis fixos designados à mulher pelo pensamento
Ana Flávia da Silva Oliveira | 241

patriarcal, apresentando uma escrita na qual esse ser, considerado frágil


por muitos, tem várias possibilidades de identidades com múltiplas ques-
tões que podem ser problematizadas, a saber: raça, classe social e
orientação sexual. Sendo assim, buscando contribuir com pesquisas de
análise literária que se voltam para a escrita de autoria feminina, tecemos
uma reflexão sobre o sagrado e o erótico presente em O beijo de Deus
(2007), da escritora paraibana Dôra Limeira. Isso posto, o objetivo é ana-
lisar de que forma a temática do sagrado e do erótico é abordada por esta
autora e como essa abordagem pode ser considerada como subversiva.
Para tanto, partimos de uma concepção de sagrado diferente daquela
difundida pela tradição religiosa cristã. Dentro dessa herança cultural, o
sagrado é entendido como uma experiência religiosa ligada a uma entidade
divina, como a Virgem Maria, Deus, e o Espírito Santo, para citar alguns.
Desse modo, tudo o que foge a essa compreensão é considerado como pe-
cado, profano, herege, principalmente, quando essa fuga diz respeito à
quebra de normas estabelecidas pelo poder eclesiástico, como o sexo fora
do casamento ou sem o objetivo de procriação.
Diante disso, tomaremos, para essa leitura, o sagrado não religioso e
o erótico a partir de um olhar feminino como categoria teórico-metodoló-
gica. Para tal, estamos denominando de sagrado não religioso as
manifestações que não estão relacionadas a uma crença religiosa especí-
fica, um sagrado “sem regras nem reservas”, conforme Clément e Kristeva
(2001) defendem. Por isso, por não se tratar, especificamente, de religio-
sidade, consideramos que o sagrado, como abordado por Limeira (2007),
configura-se como uma subversão, por estar em desencontro com os dog-
mas do catolicismo. Ademais, o erotismo empregado pela autora a torna
ainda mais subversiva, visto que transgride os ideais de conduta pregados
pela Igreja, por estabelecer relações entre o erotismo e Deus. Em razão
disso, recorremos à perspectiva de subversão adotada por Silva (2010), a
242 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

saber, uma oposição à ordem falocêntrica e do patriarcado, não deixando


de considerá-la, também, como uma insubordinação às normas de com-
portamento estabelecidas pela classe eclesiástica.
Nesse sentido, buscamos em O beijo de Deus (2007) as marcas de
subversão relacionadas ao erótico e ao sagrado que podem configurar a
escrita de Dôra Limeira como uma escrita que transgride uma certa ideo-
logia religiosa, estabelecida pelos códigos socias de uma parte da Igreja
Católica no contexto atual. A abordagem centra-se em estudos acerca dos
temas, realizada através de uma pesquisa bibliográfica, pautada em uma
análise de interpretação textual; aplicando as reflexões críticas ao estudo
do texto literário escolhido como corpus e buscando respeitar as suas par-
ticularidades estéticas. Para fundamentar as nossas reflexões, respaldamo-
nos nos estudos, dentre outros, de Bataille (1987); Clément e Kristeva
(2001); Paz (1994); Silva (2010); Silva (2015); e Silva (2019).

Sobre a autora, a obra e a delimitação da análise: breves considerações

Professora aposentada do Departamento de História (DH), da Uni-


versidade Federal da Paraíba (UFPB), Dôra Limeira é paraibana, nascida
na cidade de João Pessoa, em 1938. Como ficcionista, possui uma pequena,
porém significativa produção literária. Conforme Silva (2010), “estreou no
mundo literário em 2003 com o livro de contos Arquitetura de um aban-
dono, obra agraciada com o ‘prêmio revelação literária 2003’ concedido
pelo Jornal A União, da capital paraibana” (SILVA, 2010, p. 75). Além desse,
a escritora publicou Preces e orgasmos dos desvalidos, em 2005; O beijo
de Deus, em 2007; e, Os gemidos da rua, em 2009. Seus últimos escritos
foram Cancioneiro dos loucos (2013) e O afetuoso livro das cartas, lançado
em abril de 2015, pouco antes do seu falecimento, ocorrido em agosto da-
quele mesmo ano.
Ana Flávia da Silva Oliveira | 243

Apesar de não ser conhecida pelo grande público, suas publicações


receberam especial atenção pela imprensa local. No estudo em que analisa
os dois primeiros livros da escritora, Silva (2010) destaca que: “O que pa-
rece marcar a escrita desta autora é uma característica típica do século 20:
a linguagem. [...] uma linguagem que carrega em sua sintaxe, em suas
construções, a marca da oralidade, a marca da fala e das pessoas do dia a
dia” (SILVA, 2010, p. 75). O estudioso afirma, ainda, que a ficcionista se
utiliza, dentre outros recursos, de “personagens pobres (material e espiri-
tualmente), carentes, sofridas, doentes, abandonadas (pelo marido, pelo
filho, pelo namorado, por Deus, pelas políticas públicas)” (SILVA, 2010, p.
75-76). Características estas que também podemos identificar em O beijo
de Deus: “O título do livro, num primeiro momento, pelo lirismo de que
se reveste, gera uma expectativa eufórica, logo desconstruída pelos mini-
textos profundamente disfóricos e questionadores da ordem do mundo
(SILVA, 2015, p. 18).
A referida obra é composta por cento e cinco minicontos, divididos
em três partes. São narrativas curtas que retratam os medos e angústias
do cotidiano das personagens, muitas vezes, como veremos, marcadas por
um certo erotismo em meio às manifestações de um sagrado que não se-
gue regras, como mencionamos anteriormente. Na primeira parte,
nomeada Cotidianos, apresentam-se:

cenas e cenários de vivências marcadas pelo signo da desumanização mais os-


tensiva. Violência, tédio, vingança, desilusão são algumas das temáticas que
urdidas e bem correlacionadas vão editorando uma espécie de dicionário de
angústias insolúveis, vivenciadas por personagens que vegetam nos subterrâ-
neos da cidade reificada (SILVA, 2015, p. 19).

Com o título de Agonizantes, na segunda parte, deparamo-nos com a


solidão e “aprisionamentos internos e externos dos sujeitos emparedados,
244 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

destituídos de identidades minimamente estáveis; perdidos [...] nos vãos


e desvãos ‘agonizantes’ de uma cidade hostil” (SILVA, 2015, p. 19-20). Su-
jeitos que se sentem abandonados, inclusive, por Deus.
A última parte, intitulada Espasmos, está permeada de um conteúdo
mais erótico, “a descoberta dos prazeres inerentes ao sexo; ao gozo, muitas
vezes solitário, de quem busca na libertação de todos os interditos, o desa-
fogo das pressões cotidianas” (SILVA, 2015, p. 20). Assim, as considerações
de Silva (2015) já nos direcionam para a presença da escrita subversiva de
Dôra Limeira (2007), uma vez que suas temáticas e formas de abordagem
perturbam a ordem estabelecida, além de recusar e transgredir as estru-
turas patriarcais da família e da Igreja, enquanto instituição, de concepções
moralistas.
Outrossim, trata-se também de uma mulher que escreve sobre sexo,
termo que por si só já é um tabu em uma sociedade regida por valores
masculinos conservadores. Nesse sentido, a paraibana não apenas viola os
ideais patriarcalistas, como, igualmente, toda uma ideologia de gênero
que, até nos tempos atuais, repreende qualquer manifestação feminina ao
falar sobre sexo, quanto mais quando, em meio a esse contexto, coloca-se
em cena a “personagem” Deus.
Isso porque, por mais que tenha havido avanços para as escritoras
em relação à liberdade de escrever sobre temas diversos, elas ainda en-
frentam um olhar preconceituoso e passível de julgamento, por parte da
sociedade como um todo, quando se propõem a escrever a respeito de de-
terminados assuntos, tais como: sexo, sexualidade, erotismo, entre outros.
Por conseguinte, “Se antes a luta era pelo direito de falar e pela visibiliza-
ção dessa fala, contemporaneamente, o embate é pela manutenção desse
direito” (SILVA, 2019, p. 60).
Isso posto, optamos por analisar apenas oito dos cento e cinco mini-
contos – “Descarga”; “Topo de escadaria”; “Abandono”; “O beijo de Deus”;
Ana Flávia da Silva Oliveira | 245

“Assim, contrita”; “Duas Igrejas”; “Maná dos céus” e “Gozo”. Isto se dará
de forma aleatória, independentemente de estarem inseridos na primeira,
segunda ou terceira parte do livro, pois consideramos serem estes os que
melhor se enquadram ou podem corresponder ao objetivo estabelecido
para o presente estudo.

O erotismo e o sagrado: uma leitura na perspectiva do feminino

Pensar o sagrado como categoria teórica é uma ação, no mínimo,


complexa. Isso porque, os estudiosos do tema não apresentam um conceito
específico para o termo. Para Otto (2007), o sagrado é inefável e indizível
por fugir a uma apreensão conceitual, por isso irracional1. E, sendo irraci-
onal, pode se manifestar de diferentes formas, mediante cada cultura.
Excederia o nosso objetivo aprofundar a discussão acerca desta ques-
tão. No entanto, a partir das considerações de Otto (2007), buscamos para
a nossa análise uma concepção de sagrado que se manifeste fora dos limi-
tes e dos domínios do religioso enquanto instituição. Isto é, um sagrado
problematizado sem intenção doutrinária.
Já no que diz respeito a duas estudiosas, em um debate estabelecido
por trocas de cartas, mediante a visão psicanalítica e filosófica de Kristeva
e da visão antropológica de Clément, as autoras buscam desmistificar a
ideia do sagrado ligado necessariamente a uma entidade religiosa e anali-
sam suas manifestações no feminino. Por essa razão, colocam a crença e a
religião de um lado e o sagrado do outro, por entenderem que o sagrado
pode ocorrer a partir de acontecimentos que não envolvem a presença de

1 Para Otto (2007), a experiencia do sagrado está relacionada ao domínio do sentimento e por isso é irracional, uma
vez que os mistérios da religião não podem ser conceituados ou explicados pela razão. “Mas não causa surpresa que
o racional necessariamente ocupe o primeiro plano, uma vez que toda linguagem, enquanto constituída de palavras,
pretende transmitir principalmente conceitos. E quantos mais claros e unívocos os conceitos, melhor a linguagem”
(OTTO, 2007, p. 34).
246 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

uma religiosidade, seja de qual crença for. Assim, sobre a diferença entre
religioso e sagrado, as estudiosas ponderam:

Quanto ao religioso, não posso imaginá-lo sem organização. Com um clero sob
a autoridade papal, como no catolicismo, ou como uma questão comunitária,
como no Islã, a função do religioso retorna sempre à organização do culto:
entra-se por aqui, passa-se por ali, aqui se reza, lá a gente se prosterna, se
começa e se termina, em suma, o tempo e o espaço estão bem administrados.
O sagrado faz exatamente o contrário: eclipsa o tempo e o espaço. Passa para
um ilimitado sem regras nem reservas que é o próprio do divino. Em suma, o
sagrado é um acesso imediato ao divino, enquanto o religioso acomoda um
acesso balizado, com mediações previstas para os casos difíceis (CLÉMENT;
KRISTEVA, 2001, p. 42, grifos da autora).

Assim, partindo das considerações de Otto (2007) e Clément e Kris-


teva (2001), identificamos nos minicontos uma presença ou manifestação
do sagrado que não acontece por meio de uma experiência religiosa ligada
a uma entidade divina ou a uma instituição religiosa. Mas sim, por uma
relação de proximidade e intimidade das personagens e/ou do narrador/a
com Deus, porém, fora do que é preconizado pela tradição cristã. Intimi-
dade esta que se estabelece através da linguagem, de forma que o nome da
entidade é pronunciado ou invocado, energicamente, pelas personagens
e/ou narrador/a. Portanto, consiste em um sagrado que não está alicer-
çado em princípios religiosos, uma vez que não se trata de uma escritora,
declaradamente, defensora de uma determinada crença, nem tampouco as
questões problematizadas em sua narrativa são dessa ordem.
Inicialmente, direcionamos a nossa análise para os escritos, dentre os
selecionados, nos quais o erótico e o sagrado não dividem o mesmo espaço
textual. Desse modo, em “Descarga”, por exemplo, identificamos uma re-
ferência direta a Deus, porém um Deus negligente, que abandona os seres
humanos, deixando-os entregue a sua própria sorte. O escrito narra a
Ana Flávia da Silva Oliveira | 247

morte de um funcionário de uma empresa de energia encarregado de con-


sertar os fios danificados por uma pipa:

Era jovem e treinado, não tinha medo. Subiu a escada, assim, desprotegido,
imprudente. De repente, uma descarga elétrica, uma convulsão repentina, e o
funcionário estrebuchou, sem vida, entre os fios. [...] Distraídos, os fios de ele-
tricidade balançaram ao vento, sob o olhar displicente de Deus (LIMEIRA,
2007, p. 36, grifos nossos).

O excerto acima demonstra uma representação de Deus dissonante


da imagem transmitida pelo cristianismo pois, ao contrário, não estamos
diante da figura que guia, protege e salva. Estes aspectos são descontruí-
dos, o que nos faz perceber uma descrença em relação à benevolência
desse “Ser”. Tal desconstrução configura um aspecto de subversão aos
dogmas da Igreja, visto que, para a referida instituição, o poder de salvação
e a benignidade de Deus são fatores inquestionáveis.
Por mais que se trate de uma descarga elétrica, também podemos
interpretar o título como uma referência à descarga de banheiro, compa-
rando-a metaforicamente à desvalorização da vida humana. A vida é
descartada através da descarga, assim como os dejetos que não têm mais
utilidade alguma. Devemos acrescentar que o rapaz trabalhava “sem sinto
de segurança, sem garantia de vida” (LIMEIRA, 2007, p. 36). Portanto, re-
tomando as ponderações de Silva (2015), a personagem está abandonada
pelas políticas públicas de segurança e por Deus.
A presença displicente de Deus é, igualmente, percebida em “Topo de
escadaria”, que apresenta a descrição da morte de uma pessoa do sexo
masculino. Nesse escrito, a soberania, bondade e proteção divina são con-
testadas porque Ele não se compadece da situação do homem, como
mostra a transcrição que segue:
248 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Caminhou até cumprir o último item do destino. No final, olhou para trás.
Como se fosse uma câmera de cinema, seu olhar percorreu todo o caminho
andado. Ano após ano, tinha subido uma longa escadaria. Agora, ao atingir o
último degrau, sentiu-se tonto e seu corpo despencou eternidade abaixo. Num
relance, Deus, o contemplou assim prostrado, estatelado. E Deus falou para si
mesmo: ‘Quão perfeita são minhas obras’. Despreocupado, o Poder Supremo
foi embora, montado no dorso de um anjo (LIMEIRA, 2007, p. 85, grifos nos-
sos).

De acordo com Silva (2015), a paraibana coloca em cena, nessa obra,


uma galeria asfixiante de personagens humilhados e ofendidos, inseridos
em um cotidiano desfavorecido de condições dignas de vida e denunciado
por ela. Da mesma forma, destaca que “deparamo-nos, aqui/acolá, com
uma nota crítica portadora de acentuado sarcasmo diante da fachada mas-
carada do convencionalismo social” (SILVA, 2015, p. 19). Assim, notamos
uma ironia, por parte do narrador/a, ao se referir a Deus como “Poder
Supremo”, visto que Ele “foi embora, montado no dorso de um anjo”, sem
se preocupar com o que ficou para trás. A subversão aos preceitos religio-
sos, aqui, se configura pelo fato de Deus não só não se sensibilizar com a
morte, mas também por sentir-se satisfeito ao contemplar o corpo do ho-
mem “prostrado”, “estatelado” e considerar uma perfeita obra Sua.
Nos fragmentos citados, percebemos ainda uma demonstração das
temáticas cotidianas, como o trabalhador desempenhando a sua função, e
da linguagem simples que compõe o conjunto de minicontos apresentados
por Dôra Limeira (2007), identificada, por exemplo, nos vocábulos: “pipa”,
“estrebuchou”, “prostrado” e “estatelado”. Dessa forma, “o cotidiano das
pessoas comuns parece estar sendo literalmente transposto para as pági-
nas desta escritora que, sem nenhum recurso linguístico, consegue
transformar matéria ordinária em literatura” (SILVA, 2010, p. 75). Sem
conotação pejorativa, o autor refere-se, justamente, às personagens
Ana Flávia da Silva Oliveira | 249

pobres, carentes e sofridas, a fatos encontrados no dia a dia das cidades,


bairros e ruas, dentre outros aspectos que caracterizam a obra da parai-
bana.
Os dois textos, da mesma forma, apresentam a metáfora da escada
como o percurso de vida que se encerra ao chegar ao topo da escadaria,
alcançando, assim, o último degrau, isto é, o último instante da vida: a
morte. A morte que, na concepção cristã, é um acontecimento sagrado, por
representar a passagem para uma vida espiritual, eterna, nesses escritos é
representada, tão somente, como o fim da existência terrena.
Continuando nessa atmosfera de descrença, temáticas do cotidiano e
morte, em “Abandono”, há o relato, em primeira pessoa, das desilusões de
uma mulher que se sente perdida no tempo e no espaço. Ou seja, comple-
tamente abandonada, como o próprio título sugere, sentindo-se fantasma
em um ambiente de ruínas, assim como ela, destruído pelo esquecimento:

Passaram-se anos. Nesta capela, vi meu esposo pela primeira vez. Aqui rezei
quando criança, fiz minha primeira comunhão. Neste momento, as paredes
choram. Eu era viva quando da última vez que percorri esta igreja. Hoje, as-
sim, fantasma, apenas vagueio em meio à neve retorcida pela desmemória.
Meus filhos, netos, bisnetos, minha cidade, onde estão todos? Como é rápido
o esquecimento. Como é tão frágil a lembrança. Essas paredes de alvenaria
ainda resistem, contorcidas, ao abandono. Carcomidas e soterradas pelo
tempo, estão minhas concepções de Deus, todas transformadas em pó
(LIMEIRA, 2007, p. 67, grifos nossos).

O texto transcrito na íntegra reforça a ideia do abandono que, se-


gundo Silva (2010), é assunto frequente na literatura da escritora
paraibana. Nesse miniconto, nos deparamos com o abandono na velhice e,
mais uma vez, com o afastamento espiritual do ser humano em relação a
Deus, pois estamos diante de uma personagem que, esquecida por todos,
sofre e já não tem mais “fé”, considerando-se morta: “Eu era vivi quando
250 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

da última vez que percorri esta igreja”. Na sua concepção, além da família,
Deus também a abandonou. Ao mesmo tempo, o ambiente considerado
sagrado para o catolicismo, onde se busca tranquilidade e paz interior, a
capela/igreja, surge como um lugar que atormenta e reaviva o sofrimento
através da lembrança de um tempo feliz que já não existe mais.
É importante observar que, nas três diminutas narrativas analisadas
até aqui, a temática norteadora é a morte, até mesmo em “Abandono” que,
ainda estando viva, como supomos, a personagem se sente morta, como
um fantasma. Para Bataille (1987), “a morte tem o sentido da continuidade
do ser” (BATAILLE, 1987, p. 11), no entanto, nesses textos, a morte não
aparece como uma possibilidade de transcendência, de continuidade, por-
que Deus, enquanto divindade, não oferece essa oportunidade aos seres
humanos representados por tais personagens. Nesses relatos, ao morrer,
“despenca-se eternidade abaixo”.
Nos próximos escritos, é possível perceber, na nossa concepção, o
fato de as personagens buscarem em Deus uma esperança de salvação.
Além disso, consideramos marcante a presença de um erotismo subver-
sivo nesses textos. Consoante Bataille (1987), o erotismo já se configura
como a transgressão por excelência, por ser uma infração às regras dos
interditos, regras estas que tem como objetivo colocar o erotismo fora das
convenções morais e sociais estabelecidas. Desse modo, a relação entre o
sagrado e o erótico apresentada nos escritos analisados reflete uma insu-
bordinação, por parte da escritora, à ordem religiosa, tendo em vista que
coloca Deus como alguém a quem as personagens desejam entregar-se
para obter a salvação ou proteção desejada. Em “O beijo de Deus” – nar-
rativa que é homônima ao título da obra –, a entrega da personagem teria
como recompensa não ser comida pelos vermes após a morte:
Ana Flávia da Silva Oliveira | 251

Neste ataúde hídrico, repouso meu corpo, e descanso dos meus pensamentos.
Aqui deitada, guardo-me em silêncio. Depois que morri, sou mais bonita, o
rosto mais delgado. Meus lábios bem feitos esperam os beijos de Deus. Se Deus
beijar minha boca, estarei imune a vermes. Ninguém saberá de mim, na paz
deste meu descanso (LIMEIRA, 2007, p. 78, grifos nossos)

Novamente, encontramos a impossibilidade da transcendência por


meio da morte. Como afirma Bataille (1987): “A continuidade nos é dada
na experiência do sagrado. O divino é a essência da continuidade”
(BATAILLE, 1987, p. 77). Nesse sentido, de acordo com a transcrição
acima, a esperança de continuidade, de não ter o corpo decomposto pelos
vermes, torna-se impossível, já que essa experiência do sagrado se concre-
tizaria com o beijo de Deus, que, por conseguinte, não pode se realizar. Por
isso, corroborando Silva (2015), compreendemos que “o que poderia, à
primeira vista, parecer um elemento sinalizador de esperança, referencia-
lizado pelo semema Deus, indiciador de transcendência, finda confluindo
para território da mera condicionalidade” (SILVA, 2015, p. 18-19).
O medo, o desejo de salvação e proteção caracterizam a personagem
de “Assim, contrita”. A angústia, a aflição e o arrependimento se mesclam
a uma súplica desesperada que termina com uma erotização marcada pela
presença do sagrado, por implorar compreensão/compaixão ao Senhor,
oferecendo em troca, a sua alma, o seu corpo e o seu sexo:

Senhor, toma conta de mim, tua serva tão frágil, lacrimosa. Toma conta do
meu universo: minha casa, meus filhos e todos os meus amores. Senhor, assim
contrita, imploro. Não me permitas morrer de maremoto, de raio, trovão, ou
bala perdida. Hoje, vesti meu vestido mais bonito. Vestido preto de tafetá an-
tigo, modelo corpo de princesa. Há muitos anos que não me visto assim. Mas
hoje é um dia especial: estou com medo de tudo. Aqui, sentada no chão da sala
de visitas, tenho medo de ladrão, e temo a escuridão, a terra e seus tremores.
Por tudo isso é que estou assim, contrita, trajada neste vestido tão bonito. Se-
nhor, não permitas que alguma coisa de ruim aconteça a meus filhos. Em troca,
252 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

ofereço-te minha alma, meus seios e meus pensamentos, minhas partes íntimas
e minha imaginação. E se tudo isso que estou te oferecendo ainda for pouco,
rasga-me o vestido de tafetá antigo e decepa-me (LIMEIRA, 2017, p. 27, grifos
nossos).

Como podemos observar, a narrativa começa em tom de oração, em


um diálogo íntimo da personagem dirigido ao Senhor. No final, é revelado
o erotismo que demostra como se manifesta a intimidade espiritual da
mulher para com Deus.
Outro aspecto que podemos observar tanto em “O beijo de Deus”
como em “Assim, contrita”, é a relação entre o feminino e o sagrado. Na
reflexão apresentada por Clément e Kristeva (2001), o sagrado aparece
sempre se relacionando com a figura feminina e pode ser manifestado ou
encontrado no sofrimento, na renúncia, na negação de si. As estudiosas
afirmam que: “O sagrado entre as mulheres, exprimiria uma revolta ins-
tantânea que atravessa o corpo e grita” (CLÉMENT; KRISTEVA, 2001, p.
17). Assim, em “O beijo de Deus”, temos um feminino em que o sagrado se
manifesta pelo desejo de que o seu corpo belo não seja devorado pelos ver-
mes, em uma espécie de delírio de um cadáver.
No segundo caso, “Assim, contrita”, torna-se mais evidente um sa-
grado que se manifesta por meio do medo, da angústia e do sofrimento. A
personagem sofre por medo de que algo de ruim aconteça a seus filhos e
a todos os que ama. Do mesmo modo, ela também sofre angustiada por
ter medo da morte, portanto, oferece-se ao Senhor em busca de salvação
em uma espécie de negação de si, confirmado pelas seguintes passagens:
“Em troca, ofereço-te minha alma, meus seios e meus pensamentos, minhas
partes íntimas e minha imaginação”. Isto é, um completo abandono de si
em relação ao outro, ainda que esse outro seja Deus.
Na sequência, identificamos a revolta instantânea: “E se tudo isso que
estou te oferecendo ainda for pouco, rasga-me o vestido de tafetá antigo e
Ana Flávia da Silva Oliveira | 253

decepa-me”. A expressão “decepa-me” nos leva a interpretar como sendo


um pedido para ser morta. Pois, depois de tudo o que foi oferecido não
teria mais nada a ser feito, como também, pode sinalizar uma metáfora a
respeito do ato sexual propriamente dito: “rasga-me o vestido de tafetá
antigo e decepa-me”. Destarte, violento e desesperador, o pedido final se
configura como um sacrifício em busca da benevolência Daquele que é de-
tentor do “Poder Supremo”. Desse modo, levando em consideração o
sagrado como um acesso imediato ao divino, consoante Clément e Kristeva
(2001), podemos compreender que, nos dois textos acima, o sagrado se
manifesta por meio do desejo erótico, tendo em vista que é esse erótico
que conduz as respectivas personagens ao divino.
Essa abordagem transgressora em que a autora relaciona o erotismo
e o sagrado não é recente. Na Idade Média, por exemplo, as místicas já
assim se comportavam, ou seja, as místicas (na sua maioria) não se sub-
metiam à autoridade da Igreja, por isso a sua religiosidade era vivenciada
de forma particular, sem necessidade de instituições. Para essas mulheres,
por não suavizar a sua relação com Deus, usando uma linguagem eroti-
zada, restou-lhes a condenação. Além disso, a própria mística, em relação
a certas linguagens, por exemplo, como pondera Michelazzo (2012), não
encontra espaço na linguagem discursiva para manifestar a sua verdade,
como podemos ler na citação seguinte:

O místico parece falar sobre realidades estanhas, fazer afirmações contraditó-


rias, não se sente na obrigação de ter de justificar aquilo que afirma. Numa
palavra, aquilo que fala a mística, a sua experiência, à sua verdade, parece não
caber dentro da linguagem discursiva, guiada pela lógica e pelo princípio de
não contradição (MICHELAZZO, 2012, p. 261).
254 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Esta linguagem, acima de tudo crítica, levou algumas delas, a exem-


plo de Marguerite Porete2, a serem queimadas na Fogueira da Inquisição,
consideradas rebeldes, subversivas e hereges. A incompreensão destas
mulheres, por sua vez, não se deu apenas em âmbito cristão. Segundo Paz
(1994): “Para a ortodoxia islâmica a via mística que busca a união com
Deus é uma heresia: a distância entre o Criador e a criatura é infranqueá-
vel. Apesar dessa proibição, uma das riquezas espirituais do Islã é a mística
sufi, que aceita a união com Deus” (PAZ, 1994, p. 75).
Na atualidade, por mais que as mulheres tenham conseguido liberdade
para tratar de temas desautorizados pela ideologia do patriarcado e pela or-
dem religiosa, essa ainda não é o tipo de literatura que a sociedade espera
dessas escritoras. Pois, ainda “vivemos em uma sociedade que dita as nor-
mas de conduta para o feminino e lhe estabelece rígidos códigos
comportamentais” (SILVA, 2019, p. 67). A abordagem do sagrado, nesses
casos, “não se apaga com a aparição dos códigos religiosos: surge na sua
hora, ou melhor, no seu instante, pois faz parte da sua natureza perturbar a
ordem” (CLÉMENT; KRISTEVA, 2001, p. 42-43). Portanto, Dôra Limeira
(2007) perturba com a sua escrita porque ela critica, denuncia e transgride.
Ainda no contexto do erotismo e o sagrado, em “Duas igrejas”, a sub-
versão está retratada nas aventuras sexuais de um padre embriagado, sob
o olhar contemplativo e cúmplice de Deus, porque Ele não se mostra es-
quivo ao desejo erótico dos homens:

2 “Não é possível precisar a data de nascimento de Marguerite Porete, mas se pode dizer, com os dados que aparecem
nos autos do processo, que era da região de Hainaut1, que tinha como sobrenome Porete, embora Field (2012)
chame a nossa atenção para dizer que se as origens geográficas de Marguerite são tidas como certas, não
se pode dizer o mesmo do seu sobrenome, pois não sabemos nada sobre sua família e os documentos sobre o seu
julgamento se referem a ela como ‘Marguerite, chamada Porete’ e não simplesmente como ‘Marguerite Porete’. De
toda forma, foi assim que ficou conhecida e é deste modo que a ela os estudiosos se referem. Sabemos também pelas
Atas do processo que ficou presa por quase um ano e meio, sendo condenada à fogueira da Inquisição em 1310 e
queimada na praça de Grève, em Paris, em primeiro de junho daquele mesmo ano como herege recidiva, relapsa e
impenitente. A ‘causa’ da condenação foi o livro que escreveu, Le mirouer des simples ames anienties et qui seulement
demourent en vouloir et desir d’amour (na edição brasileira traduzido como O Espelho das almas simples e
aniquilidas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor)” (NOGUEIRA, 2020, p. 76, grifos da autora).
Ana Flávia da Silva Oliveira | 255

Quando se excedia no vinho e se embriagava, o padre da minha aldeia via duas


igrejas: a igreja da areia e a igreja do mar. Na igreja da areia, o padre vestia
paramentos e, contrito, entoava loas ao Santíssimo. Na igreja do mar, o padre
despojava-se de tudo: paramentos, roupas íntimas, votos de castidade. Brin-
cava de esconde-esconde com uma índia nua que morava perto. O embriagado
padre se aquecia nas águas mornas que jorrava das entranhas da índia. Deus
observava aquela brincadeira e, depois de todos os paramentos, Deus enfati-
zava: ‘Como são belas e prazerosas as Minhas criaturas’ (LIMEIRA, 2007, p.
121, grifos nossos).

É evidente que, no decorrer da História, os “escândalos” sexuais en-


volvendo membros das religiões cristãs sempre aconteceram, porém,
raramente tais escândalos chegavam ao conhecimento do público. A au-
tora, em tom de crítica e sarcasmos, como já mencionamos, contraria a
Igreja não só ao falar de sexo, mas também por desnudar aquilo que a
instituição luta para preservar ou esconder.
Percebemos ainda que, além do sagrado se apresentar pela verbali-
zação dos nomes Santíssimo/Deus, o erótico também pode ser entendido
como algo sagrado, por ser permitido por Deus: “Deus observava aquela
brincadeira e, depois de todos os paramentos, Deus enfatizava: ‘Como são
belas e prazerosas as Minhas criaturas’”, que deixa os humanos livres para
se amarem da forma que desejarem. No entanto, é extremamente trans-
gressor, visto que a “Igreja condenava [e, de certa forma, ainda condena]
a união carnal, mesmo dentro do casamento, se não tivesse como fim de-
clarado a procriação” (PAZ, 1994, p. 85). Não o bastante, como continua
Octávio Paz, a igreja “elevou a castidade ao nível das virtudes mais altas.
Seu prêmio era ultraterreno: a graça divina e, para os melhores, até
mesmo a beatificação no céu” (PAZ, 1994, p. 85). Assim sendo, Dôra Li-
meira (2007) representa a castidade como um aprisionamento, pois
quando “despojava-se de tudo: paramentos, roupas íntimas, votos de
256 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

castidade”, o padre se sentia livre para desfrutar do que Paz (1994) diz ser
a ração do paraíso que cabe aos seres humanos: o sagrado.
Em “Maná dos céus”, observamos uma dupla subversão: o erotismo
em uma relação homoafetiva e seu acontecimento entre membros da Igreja:

Sempre que o bispo encontrava o seminarista Alfredo nos corredores, tentava


roçar-lhe os órgãos genitais. Na capela, se o seminarista ajoelhasse e rezasse,
o bispo ajoelhava perto. Se o seminarista fosse ao pomar para fazer leituras
silenciosas, e sentasse no banco sob a mangueira, o bispo sentava junto, to-
cando-lhe as coxas. O bispo expelia seu hálito quente junto ao rosto do
seminarista Alfredo, e acentuava o timbre rouco de sua voz. Que está lendo,
Alfredo [...]. Estou lendo o Antigo Testamento. Passe no meu quarto hoje à
noite, Alfredo, eu deixo a porta encostada [...]. Hoje, depois de tantos anos, o
bispo está aposentado. Padre Alfredo exerce o sacerdócio na mesma cidade
onde foi ordenado. O Vaticano não soube que Alfredo foi ao quarto do bispo
naquela longínqua noite, quando, pela primeira vez na vida, Alfredo, ajoelhado,
sugou o maná de todos os céus. Nunca se soube da agonia que o desamparado
e excitado seminarista sentiu diante das coisas que o bispo colocava em suas
mãos ávidas, olhos ardentes e boca febril. O paladar de Alfredo experimentou
estranhos sabores naqueles tempos já distantes. Desde então, o sacerdote Al-
fredo e o bispo foram felizes para sempre. Na alegria e na tristeza, na fartura
e na pobreza, na saúde e na doença (LIMEIRA, 2007, p. 127-128, grifos nossos).

O texto inicia com um aspecto de denúncia de abuso sexual e de au-


toridade, além de trazer à tona o desconhecimento, por parte dos
superiores, do que acontece longe do olhar da sociedade, no universo se-
creto das instituições religiosas: “O Vaticano não soube que Alfredo foi ao
quarto do bispo naquela longínqua noite”. No final, a narrativa ganha con-
tornos de uma conquista amorosa que teve um resultado positivo, ficando
subtendido que os dois levaram sua relação secreta e proibida adiante:
“Desde então, o sacerdote Alfredo e o bispo foram felizes para sempre. Na
alegria e na tristeza, na fartura e na pobreza, na saúde e na doença”. Como
Ana Flávia da Silva Oliveira | 257

podemos constatar, essa última afirmação retoma parte da celebração re-


ligiosa do matrimônio, por isso a ideia de que eles mantiveram seu
relacionamento.
Assim, apesar do suposto assédio ter se transformado em uma rela-
ção amorosa, de fato, percebemos o tom sarcástico, por parte do
narrador/a, uma vez que ninguém soube do caso homoafetivo e a vida dos
dois seguiu normalmente. Outra observação que merece ser feita consiste
no fato de o seminarista Alfredo está lendo o Antigo Testamento e isso faz
lembrar do Cântico dos Cânticos, considerado como o livro mais erótico
da Bíblia, escrito pelo Rei Salomão. Como assevera Paz (1994), “o Antigo
Testamento é pródigo em histórias eróticas, muitas delas trágicas e inces-
tuosas” (PAZ, 1994, p. 23) e isso pode sugerir que o seminarista não seja
completamente inocente ao que diz respeito aos mistérios do sexo.
Nesse miniconto, o erotismo e o sagrado tocam o mesmo ponto: a
proibição. Para Paz (1994), as paixões homossexuais são uma das proibi-
ções que:

ainda não desapareceu completamente [...], seja masculina ou feminina. Esta


classe de relação foi condenada pela Igreja e durante muito tempo foi chamada
ele ‘pecado nefando’. Hoje nossas sociedades – falo das grandes cidades – são
bem mais tolerantes que há alguns anos; contudo, a anátema ainda persiste
em muitos meios (PAZ, 1994, p. 110).

O erotismo também é apresentado da mesma forma que ocorre na


retomada da celebração do matrimônio, referenciando as práticas religio-
sas, por exemplo, o ato de ajoelhar. Alfredo ajoelha-se não para fazer suas
orações, mas para “sugar o maná de todos os céus”, uma alusão ao prazer
provocado pela prática do sexo oral.
Segundo Bataille (1987), “a sexualidade humana não é admitida se-
não em limites além dos quais ela é interdita” (BATAILLE, 1987, p. 149).
258 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Fora desses limites, ela configura-se subversiva, porque é proibida. Dessa


forma, para finalizar, no miniconto “Gozo”, o erótico se apresenta como
transcendental, capaz de conduzir a personagem à presença de Deus:

Se é para não ficar sozinho, deito-me aqui perto. Caminho os dedos, de leve,
sobre seu corpo que dorme. Aos toques dos meus dedos, sua pele se contorce.
Beijo seu rosto, sua boca, meus dedos tamborilam suas reentrâncias de tantos
prazeres. Você se enrosca feito animal, e geme. Nos estertores de dor e gozo,
você me morde e lambe. Sem saber, você me conduz à presença de Deus
(LIMEIRA, 2007, p. 111, grifos nossos).

Ultrapassando os limites dos interditos, o erotismo aqui se mostra


em uma conotação de animalidade, o que é condenado pela Igreja. O sexo
sem finalidade de procriação e fora do casamento, como afirmamos ante-
riormente, para a instituição é considerado como transgressão. Nesse caso,
o erotismo é uma subversão porque “é sexo em ação, mas, seja por desviá-
la ou por negá-la, suspende a finalidade da função sexual. [...] nos rituais
eróticos o prazer é um fim em si mesmo ou tem finalidades diferentes da
reprodução” (PAZ, 1994, p. 13).
Porém, nas três últimas transcrições, Dôra Limeira (2007) não só se
vale de uma representação do sexo descompromissado: “Se é para não fi-
car sozinho, deito-me aqui perto”, tendo como finalidade o prazer, como,
igualmente, coloca esse ato como sendo sagrado, pois a possibilidade de
transcendência está no erótico e não em Deus: “Você se enrosca feito ani-
mal, e geme. Nos estertores de dor e gozo, você me morde e lambe. Sem
saber, você me conduz à presença de Deus” (Gozo); “Alfredo, ajoelhado,
sugou o maná de todos os céus” (Maná dos céus); “O embriagado padre se
aquecia nas águas mornas que jorrava das entranhas da índia” (Duas igre-
jas). Logo, a partir da perspectiva adotada por Silva (2019), concluímos
que o gozo que marca a narrativa desses três últimos escritos também
Ana Flávia da Silva Oliveira | 259

pode se afigurar “como uma manifestação do sagrado que existindo em


cada humano pode conduzir ao divino” (SILVA, 2019, p. 69). Nesse caso, o
caminho que leva a Deus pode ser também o caminho do prazer sexual.
À vista disso, em consonância com Silva (2015), compreendemos que:

os pequenos relatos de que se compõe o livro andam sempre na contramão


dos discursos estabelecidos, como se os narradores que deslizam no dorso da
linguagem esculpida vivessem sempre transidos entre a suspeição mais sibi-
lina e a descrença mais explicitada acerca daquilo que no mundo anda
impregnado do rótulo de verdadeiro (SILVA, 2015, p. 18).

Portanto, a autora oferece aos seus leitores a escrita de uma mulher


que não se submete às regras e às ordens estabelecidas pela sociedade pa-
triarcal, tampouco pela Igreja. Para isso, ela reúne em um mesmo espaço
literário o “feio”, o “imoral” e o “inaceitável” aos olhos do corpo social, a
saber: a sexualidade e o erotismo, que se tornam elementos que aproxi-
mam o ser humano a Deus.

Considerações finais

A partir da análise apresentada, constatamos que a subversão que per-


meia o livro da paraibana, Dôra Limeira (2007), ocorre, notadamente, por
meio da construção ficcional na qual a presença do sagrado, intimamente
relacionada ao erotismo e à sexualidade, revela-se demasiado ousadas,
mesmo para os padrões atuais. Isso porque, apesar de as escritoras terem
conquistado um espaço e certa liberdade para falar sobre temas considera-
dos como tabus, elas ainda não conseguiram o respeito e o reconhecimento
merecidos. Além do mais, a autora faz uma crítica à Igreja, pondo em ques-
tionamentos a reputação de seus integrantes e sua soberania como
detentora da verdade divina, ao mesmo passo que denuncia aspectos ligados
ao abandono social sofrido por muitas de suas personagens.
260 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

Ademais, a presença das emanações de desejos em relações condená-


veis pela sociedade também demarcam aspectos de subversividade,
principalmente, quando essas emanações colocam em cena Deus como per-
sonagem ou não. Outrossim, a abordagem erótico/sagrado ultrapassa os
limites da ordem religiosa, da lógica sociocultural e histórica determinada
pela dominação masculina, mostrando, de igual modo, no que se refere ao
erotismo, o sexo como um elemento transcendental, como caminho que leva
o homem à presença de Deus, consequentemente, ao divino, uma vez que:
“se apresenta, portanto, como marca da delícia de existir. Logo, é algo tão
importante e vital que chega a ser sagrado” (SILVA, 2019, p. 69).
Assim, considerando que o erotismo só é permitido quando não ul-
trapassa os limites dos interditos, conforme já afirmado, observamos,
ainda, que o sagrado em O beijo de Deus (2007), se manifesta de formas
variadas. Deste modo, além da presença ou invocação/verbalização do
nome de Deus, compreendemos os interditos, de acordo com Clément e
Kristeva (2001), como proibições para as quais o sagrado funciona como
desabafo, subversão ou válvula de escape da opressão social.
Portanto, a partir da perspectiva adotada pelas referidas estudiosas,
entendemos que o sagrado se manifesta, igualmente, por meio da dor, da
solidão, da desilusão, do sofrimento, da angústia, do medo da morte, do
sacrifício e da renúncia; características que identificamos em muitas per-
sonagens dos textos analisados, “em cujos espaços, como autênticos
fantasmas, [elas] movem-se do nada para o lugar nenhum de existências
guetificadas, intranscendentes e sem nenhuma possibilidade de sonhar
com utopias” (SILVA, 2015, p. 20, acréscimos nossos). Nesse sentido, o sa-
grado não pode ser definido tampouco conceituado. Por essa compreensão
não está, necessariamente, ligado a uma instituição religiosa.
Ana Flávia da Silva Oliveira | 261

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

CLÉMENT, Catherine. KRISTEVA, Julia. O Feminino e o Sagrado. Tradução de Rachel


Gutiérrez. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

LIMEIRA, Dôra. O beijo de Deus. João Pessoa: Manufatura, 2007.

MICHELAZZO, José Carlo. Mística, heresia e metafísica. In.: TEIXEIRA, Faustino. (Org.).
Caminhos da Mística. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 261-279.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho, Marguerite Porete: a mística como escrita de si.
Graphos, João Pessoa, v. 22, n. 3, p. 76-90, 2020.

OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Traduzido por Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis:
Vozes, 2007.

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.

SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Mulheres representadas na literatura de autoria feminina:
vozes de permanência e poética da agressão. Campina Grande: EDUEPB, 2010.

SILVA, José Mário da. A arte ficcional de Dôra Limeira. Correio das Artes. João Pessoal,
agosto de 2015. p 17-20. Seção Memória. Disponível em: http://auniao.pb.gov.br/
servicos/arquivo-digital/correio-das-artes/2015/correio-das-artes-agosto-2015.
Acesso em: 21 de dezembro de 2020.

SILVA, Marcelo Medeiros. Palavra e desejo de mulher: notas sobre lírica e erotismo em
Graça Nascimento. Tabuleiro de Letras. Salvador, v. 13, n. 2, p. 58-74, 2019.

XAVIER, Elódia. Para além do cânone. In.: RAMALHO, Christina (Org.). Literatura e feminismo:
propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Ed. Elo, 1999. p. 15-21.
Autoras e autores

CAPÍTULO DO LIVRO: Compreendendo a Religiosidade Medieval a partir das Experi-


ências Místicas de Catarina de Siena
AUTORA: Ana Rachel G. C de Vasconcelos (Mestranda do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: “Paupercula et indocta feminea forma” –
Autoimagem e autoridade profética em Hildegard von Bingen.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Simone Marinho Nogueira (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: arachelgcv@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: “Cristo desceu e tomou conta de mim”: a mística em Simone


Weil.
AUTORAS: Luiza Benício Pereira (Mestranda do PPGLI/UEPB) e
Maria Simone Marinho Nogueira (Professora Doutora do DFIL e do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: A condição da mulher em Ventos do apo-
calipse, de Paulina Chiziane.
ORIENTADORA DA PESQUISA: Profa. Dra. Francisca Zuleide Duarte de Souza
(PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura Comparada e Intermidialidade.
E-MAIL(s): luizabenicio14@gmail.com; mar.simonem@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: Crítica à instituição igreja e a recusa de Simone Weil ao batismo


em Carta a um religioso
AUTORA: Luana Micaelhy da Silva Morais (Mestranda do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: Escrevivendo e resistindo – As minorias
sociais na escrita de Conceição Evaristo.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Simone Marinho Nogueira (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-mail: luanamicaelhy2009@hotmail.com
Autoras e autores | 263

CAPÍTULO DO LIVRO: Simone Weil e o acesso ao divino por meio do infortúnio


AUTORA: Jaqueline Vieira de Lima (Mestranda do PPGLI/UEPB). Integrante do Grupo In-
terdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos – GIELLus/UEPB/DGP/CNPq)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: Submissão e Resistência – A representa-
ção da mulher em As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Aldinida de Medeiros Souza (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: jaqueline.vieira@aluno.uepb.edu.br

CAPÍTULO DO LIVRO: A espera de Deus em Simone Weil: reflexões sobre justiça e


caridade
AUTORA: Érica Dayana Monteiro Cavalcante (Mestranda do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: A dissidência feminina em protagonista
de contos toruianos.
ORIENTADOR DA PESQUISA: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura e Hermenêutica.
E-MAIL: dayanamonteiro94@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: Testemunho e sagrado em Simone Weil.


AUTORES: Jéssica da Silva Nascimento (Mestranda do PPGLI/UEPB) e
Reginaldo Oliveira Silva (Professor Doutor do DFIL e do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: Nínguém Nasce Herói, de Eric Novello.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Reginaldo Oliveira Silva (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAILS: jessicawinks12@gmail.com; rgnaldo@uol.com.br

CAPÍTULO DO LIVRO: A Experiência mística na escrita de si em Etty Hillesum


AUTORA: Solange Alves de Almeida (Mestranda do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: A literatura de testemunho de Etty Hille-
sum: a escrita de si enquanto compromisso com a humanidade.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Simone Marinho Nogueira (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: lange.1974@hotmail.com
264 | Feminino e sagrado: diálogos entre a literatura e a filosofia

CAPÍTULO DO LIVRO: Entre o feminino e o sagrado: um estudo sobre a relação com


o divino em D. Isabel de Aragão no Medievo europeu
AUTORES: Francisco Edinaldo de Pontes (Mestrando em Literatura e Interculturalidade
(PPGLI/UEPB). Graduado em Licenciatura Plena em Letras - Inglês (2019), pela mesma
IES. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos – GI-
ELLus/UEPB/DGP/CNPq)) e
Aldinida de Medeiros Souza (Doutora em Literatura Comparada (PPgEL/UFRN); Pós-dou-
torado pela Universidade de Coimbra (2015) com bolsa parcial da Capes (6 meses).
Professora Associada Nível I (Literaturas Portuguesa e Brasileira) do Departamento de Le-
tras (DL/CH/GIELLus/UEPB); Professora permanente no Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB); Pesquisadora visitante do CICS.NOVA.
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DO MESTRANDO: Política e Teocentrismo em A Rainha
Santa e a Rainha Vermelha, a representação feminina em perspectiva.
ORIENTADORA DA PESQUISA: Aldinida de Medeiros Souza (Doutora em Literatura Com-
parada (PPgEL/UFRN).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAILS: francisco.pontes@aluno.uepb.edu.br; aldinidamedeiros@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: Peças do inespecífico: o mosaico do amor na poética de Hade-


wijch da Antuérpia
AUTOR: Itamar Mateus Muniz de Melo (Mestrando do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DO MESTRANDO: As masculinidades da literatura brasi-
leira contemporânea – Um novo horizonte para virilidade.
ORIENTADOR DA PESQUISA: Prof. Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: itamarmatt10@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: Entre o Real e o Sagrado: Uma leitura possível do conto Búfalo,
de Clarice Lispector
AUTOR: João Aleixo da Silva Neto (Mestrando do PPGLI/UEPB).
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DO MESTRANDO: Dimensões do Real em Meshugá – Uma
análise crítica a partir do materialismo lacaniano.
ORIENTADOR DA PESQUISA: Prof. Dr. Wanderlan Alves (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: joãoaleixonfl@hotmail.com
Autoras e autores | 265

CAPÍTULO DO LIVRO: Dimensões do sagrado em Obscena senhora D de Hilda Hilst


AUTOR: Julian Bohrz (Mestrando do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DO MESTRANDO: Temor e fascínio – A representação de
monstros na Bíblia.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Simone Marinho Nogueira (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: juliambohrz@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: A experiência divina em Adélia Prado: uma ligação mística do


eu-lírico em a duração do dia e o amor no éter
AUTOR: Pedro Caio Sousa Almeida (Mestrando do PPGLI/UEPB)
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DO MESTRANDO: O poder totalitário e o controle social na
obra Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, de Ignácio de
Loyola Brandão.
ORIENTADOR DA PESQUISA: Prof. Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: pedrooocaio@gmail.com

CAPÍTULO DO LIVRO: A presença do sagrado na escrita de autoria feminina em O


beijo de Deus, de Dôra Limeira
AUTORA: Ana Flávia da Silva Oliveira (Mestranda do PPGLI/UEPB). Integrante do Grupo
Interdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos (GIELLus/CNPq).
TEMA/TÍTULO DA PESQUISA DA MESTRANDA: Famintos... e Criminosa...: A representa-
ção da mulher na prosa ficcional de Carmen de Figueiredo.
ORIENTADORA DA PESQUISA: Profa. Aldinida de Medeiros Souza (PPGLI/UEPB).
LINHA DE PESQUISA: Literatura, Memória e Estudos Culturais.
E-MAIL: flaviaoliveirapb@gmail.com
A Editora Fi é especializada na editoração, publicação e divulgação de pesquisa
acadêmica/científica das humanidades, sob acesso aberto, produzida em
parceria das mais diversas instituições de ensino superior no Brasil. Conheça
nosso catálogo e siga as páginas oficiais nas principais redes sociais para
acompanhar novos lançamentos e eventos.

www.editorafi.org
contato@editorafi.org

Você também pode gostar