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Por outro lado, uma das dificuldades que acompanha essas transformações é que
a enorme gama de informações que circulam na sociedade leva a certa desconfiança sobre
a fidedignidade dos fatos relatados. Muitos receptores – e mesmo jornalistas e outros
profissionais da mídia quando recebem ou acessam algum conteúdo – desconfiam se os
materiais merecem credibilidade, o que não significa que deixam de retransmitir essas
informações. Com isso, a suspeita sobre os mais diversos materiais produzidos, inclusive
por empresas de comunicação já tradicionais, tornou-se algo constante.
1 Tradução livre a partir do original: “[…] más allá de esta extensión de la interactividad, “el
capitalismo electrónico-informático”, como lo llama Gustavo Lins (2018, 49), o
“tecnocapitalismo”, según la expresión de Eric Sadin (2018), reformula el complejo
socioeconómico y cultural al almacenar y clasificar enormes volúmenes de información, volverla
casi universalmente accesible, en parte gratuita a través de Gmail, Google Maps, Google Earth,
Waze, YouTube, entre otros. ¿Qué clase de servicio proporciona esta gestión de palabras,
imágenes y sonidos? ¿Cómo altera los vínculos entre cultura, comunicación y ciudadanía? Las
palabras se transforman en signos de búsqueda y se articulan algorítmicamente en un panóptico
electrónico para el mercado, porque la información que damos a los buscadores sobre nuestros
comportamientos, deseos y opiniones, nos convierte en insumos mercantilizados”.
1.1 O banco de dados: a busca pela verdade na cultura da comunicação instantânea
Essa inferência de Edgar Morin (2015) nos faz refletir a respeito do Jornalismo
Guiado por Dados tanto no que se refere a seus fundamentos conceituais quanto a sua
prática na produção de conteúdos noticiosos. Este segundo ponto abordaremos mais
adiante na pesquisa. Já sobre suas definições, devemos ponderar a respeito dessas
separações, uniões, hierarquizações e centralizações.
Primeiramente, necessitamos reverberar sobre práticas no jornalismo que foram
predecessoras do jornalismo de dados como conhecemos hoje. Partindo dessa ideia,
destaca-se o fato de que o uso de dados no jornalismo é algo bastante antigo. Não há como
precisar uma data exata para isso, mas há muitas evidências de sua utilização em períodos
longevos. Ainda em 1821, por exemplo, o The Guardian produziu uma reportagem
relacionando as escolas da cidade de Manchester ao número de alunos e os custos de cada
uma delas. O objetivo era mostrar o verdadeiro número de estudantes que recebiam
educação gratuita. O conteúdo apontou que a quantidade era muito maior do que
mostravam os dados oficiais (GRAY et al., 2012, p. 31).
Figura 5 – Educação gratuita na cidade de Manchester - The Guardian (1821)
2 Tradução livre a partir de: “[…] The new precision journalism is scientific journalism. (…) It
means treating journalism as if it were a science, adopting scientific method, scientific objectivity,
and scientific ideals to the entire process of mass communication”.
privilégio que o coloca como possuidor da verdade única sobre o fato. Mas todas as
produções midiáticas que objetivam transmitir informações que tomam a realidade como
referência devem prezar pela checagem, análise e busca por elementos narrativos capazes
de comunicar os sentidos que o produtor intenta, o que pressupõem o uso de metodologias
próprias.
Com o passar dos anos, a incorporação de bases de dados para a produção de
matérias jornalísticas ficou mais recorrente e, como vimos nos exemplos mencionados,
sempre esteve presente a ideia de validar a legitimidade de um acontecimento e/ou prever
seus desdobramentos. Apesar de defender a maior objetividade desse tipo de fazer
jornalístico, o próprio Meyer (2002, p.19) cita que “[...] os números são como fogo. Eles
podem ser usados para o bem ou para o mal. Quando mensurados, eles podem criar ilusões
de certeza e importância que nos torna irracionais”3.
Também por esse motivo, é preciso estar atento a eventuais reducionismos e
abstrações que prejudicam o entendimento da complexidade de determinado fenômeno.
É o que Morin (2015, p. 12) discorre ao abordar a inteligência cega. Ele afirma que o
ideal do conhecimento científico clássico era descobrir, atrás da “[...] complexidade
aparente dos fenômenos, uma Ordem perfeita legiferando uma máquina perpétua (o
cosmos), ela própria feita de microelementos (os átomos) reunidos de diferentes modos
em objetos e sistemas”. Esse conhecimento “[...] baseava seu rigor e sua operacionalidade
na medida e no cálculo; mas, cada vez mais, a matematização e a formalização
desintegraram os seres e os entes para só considerar como únicas realidades as fórmulas
e equações que governam as entidades quantificadas”.
O que queremos apontar é o cuidado para não encararmos o jornalismo de dados
como um tipo de jornalismo com o poder da objetividade e da precisão na abordagem dos
fenômenos, o que é bastante comum nas redações. Assim como as demais formas de
comunicação, ele não pode ser reducionista e ignorar os contextos e demais aspectos que
compõem e afetam um acontecimento. Tal modo de observar prejudica o seu próprio
desenvolvimento e capacidade de analisar, interpretar, compreender e relatar diferentes
vieses e particularidades que interferem no desenvolvimento do fato. Não podemos aderir
à inteligência cega, a qual “[...] isola todos os seus objetos do seu meio ambiente”
(MORIN, 2015, p. 12).
3 Tradução livre a partir de: “[…] Numbers are like fire. They can be used for good or ill. When
measured, they can create illusions of certitude and importance that render us irrational”.
Assim, não se deve negligenciar o elo entre o observador (o jornalista,
comunicador, enunciador) e o objeto observado (o acontecimento e aquilo que o compõe)
e suas influências na elaboração da narrativa (a notícia, reportagem, enunciado) e na
imagem que fazem do seu público (leitor, ouvinte, enunciatário), a qual influencia a forma
como irá compor a história. Ou seja, como qualquer forma de fazer jornalismo, a narrativa
com base em dados passa pelas influências dos ângulos pelos quais a história é observada
e relatada, as escolhas dos modos de narrar e as expectativas a respeito dos melhores
modos de atrair seu público. Todos esses aspectos influenciam na produção de sentidos.
Por esse motivo, preferimos trabalhar com a ideia da complexidade – na definição
de Morin – do jornalismo de dados, evitando reduzi-lo à percepção de objetividade
completa. Os materiais produzidos a partir do jornalismo de dados não são nem a
realidade última nem a desordem, a inexistência de aspectos precisos. É possível fazer
um paralelo sobre isso a partir da seguinte passagem.