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BUZATO, Marcelo. Data Storytelling e a dadificação de tudo: um gênero bastardo de mãe narrativa e pai banco de dados. In:
LIMA-LOPES, R. E. DE; BUZATO, M. E. K. (Org.). Gênero Reloading. Campinas, SP: Potes Editores, 2018. p. 95–123.

DATA STORYTELLING E A DADIFICAÇÃO DE TUDO:


UM GÊNERO BASTARDO DE MÃE NARRATIVA E PAI
BANCO DE DADOS

Marcelo El Khouri Buzato


Universidade Estadual de Campinas

Resumo

A dadificação é o processo pelo qual volumes extraordinários


de dados têm sido obtidos por empresas e governos via monito-
ramento e sensoriamento do cotidiano das pessoas. Essa massa
heterogênea ganha significado (vira informação) a partir do trabalho
estatístico convertido em representações visuais chamadas visu-
alizações e/ou narrativas de dados. Neste capítulo, caracterizo as
visualizações e narrativas de dados por referência aos métodos e
pressupostos ontológicos e epistemológicos do quantitativismo.
Após mostrar que o enquadre desses objetos semióticos nas teorias
de gêneros discursivos é problemático, a despeito do seu caráter
retórico e enunciativo-discursivo vir paulatinamente ganhando re-
conhecimento, proponho que uma forma de estudar visualizações
e narrativas de dados como gêneros discursivos é caracterizá-las
como gêneros híbridos de narrativa e banco de dados.

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0. INTRODUÇÃO

Há muito, os estudos da linguagem no campo aplicado têm


se preocupado com o fenômeno sociotécnico da digitalização,
isto é, o processo de transformação de átomos em bits, como o
definiu Nicolas Negroponte (1995). A partir dos estudos iniciais
sobre hipertexto e multimídia, abordagens teóricas como as dos
estudos do letramento e dos gêneros discursivos foram sendo
direcionadas a esses novos objetos e práticas, permitindo o surgi-
mento de construtos como letramentos digitais e gêneros digitais.
Contudo, enquanto ainda tentávamos compreender tais práticas e
objetos, uma segunda revolução estava em curso: a do casamento
da digitalização com a atividade muito mais antiga1 de quantificar
o mundo para desvendá-lo, ou seja, a dadificação.
Primariamente, dadificar é “traduzir em dados aspectos do
mundo não quantificados previamente” (Kennedy et al, 2015, p.1,
minha tradução). Fosse o fenômeno realmente tão prosaico quanto
essa primeira definição, não haveria nada a pesquisar acerca dele.
Ocorre que a dadificação não é mais a mesma, desde que ela passou
a ser operacionalizada por um tipo de computação ubíqua, móvel,
locativa e em nuvem e cognitiva, i.e. capaz, de mimetizar com alta
velocidade certos tipos de raciocínio humano.
Assim como a digitalização, a dadificação do mundo também
se instancia em objetos semióticos participantes de práticas socio-
discursivas específicas. Destaco entre tais objetos, neste capítulo,
as visualizações de dados (doravante, VDs), que, nascidas em labo-
ratórios, agora se ambientam em esferas como a do jornalismo, a
dos negócios, a do governo e, claro, da educação (Cope & Kalantzis,
2016). A Figura 1, por exemplo, mostra uma VD jornalística que
permite ao leitor saber qual era a taxa de homicídios em todos os
munícipios do Brasil por volta do ano de 2010, identificando os
1 A dadi caç o nasce por volta do S c. III, quando astrônomos, ge grafos e navegadores co-
meçam a quanti car o espaço e o tempo de forma cada ve mais precisa. A digitali aç o veio a
tornar o trabalho com dados exponencialmente mais abrangente e e ciente (Mayer-Schönberger
& Cukier, 2013).

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“picos” numéricos visualmente com as regiões correspondentes


no mapa do País.

Figura 1 - Mapa da violência no Brasil por volta de 2010


Fonte: Adaptado de Estadão Infográficos (2010)

Brandão (2018) entende que é papel desse tipo de jornalismo


menos fornecer ao leitor o conhecimento necessário para decodifi-
car e apreciar formas científicas de representação da realidade do

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capacitar o cidadão a “compreender, questionar e, quando neces-


sário, confrontar a ciência com suas enormes implicações éticas
e político-sociais”. Para isso, é necessário que encontremos ferra-
mentas teóricas e pedagógicas que permitam interpelar as VDs e
suas tributárias, as narrativas de dados (doravante, NDs), não como
retratos matemáticos do real, mas como os construtos retóricos
e enunciativo-discursivos que são. Daí tentarmos caracterizá-las
como gêneros.
Neste capítulo, discuto os limites e possibilidades de um
enquadre das VDs e NDs como gêneros discursivos. Inicialmente,
caracterizo a dadificação enquanto conceito, prática e visão de
mundo. Em seguida, trato do funcionamento semiótico e político
das VDs e NDs e das ambiguidades e conflitos metalinguísticos
que as envolvem hoje. Para finalizar, busco no conceito de trans-
codificação cultural de Lev Manovich (2001) uma alternativa para
o tratamento de VDs e NDs enquanto gêneros híbridos.

1. DADIFICAÇÃO: O QUE É E COMO FUNCIONA

Filosoficamente, um dado é justamente algo “dado”, ou seja,


que pode ser demonstrado como sendo um fato2. Tecnicamente, o
dado é uma sequência de símbolos quantificados ou quantificáveis,
uma entidade puramente sintática. Já a informação é uma abstração
que tem conteúdo semântico, um dado que representa algo signi-
ficativo pela intermediação de um signo. Por fim, o conhecimento
envolve a experiência, que agrega um componente pragmático à
informação. Assim, um clarão no meio da noite é o dado, “relâm-
pago” é a informação e tampar os ouvidos à espera de um trovão
é conhecimento. Daí que VDs e NDs sejam, primariamente, signos
que permitem a transformação de dados em informação, para fins
epistêmicos.

2 Em sua obra “Os Dados”, escrita por volta de 300 AC, Euclides chama de dado um conjunto
de partes ou relações de uma gura plana tal que, faltando uma, mas tendo-se as demais, a
faltante já está determinada.

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Podemos, agora, (re)definir dadificação como uma atividade


epistêmica que consiste em registrar e mensurar as mais diversas
dimensões da natureza (inclusive do comportamento humano),
gerando dados que, mediante operações estatísticas humanas e
não humanas, revelem informações e modelos preditivos capazes
de gerarem valor (econômico ou de outra natureza) para alguém.
No quotidiano das pessoas, a dadificação se instancia de vá-
rias formas. Está em curso quando fazemos buscas no Google ou
postamos uma foto com geotag em mídias sociais, mas também,
quando caminhamos desapercebidos pela cidade sendo filmados
ou rastreados via nossos próprios smartphones. Ela atua quando
obtemos um desconto na farmácia em troca de nosso CPF, mas
também quando, gratuitamente, ajudamos fabricantes de sistemas
operacionais a melhorarem seus serviços de geolocalização mo-
nitorando conexões de wifi que usamos. Um simples smartphone
gera dez tipos de dados que podem ser traduzidos em informações
sobre dezesseis tipos de comportamento humano (Harari et al,
2016). Multiplicando-se essa quantidade de dados pela quantida-
de de usuários e pelo número de aplicativos e contas utilizadas,
chegamos a alguns petabytes3 de dados por hora.
Essa massa de dados vale muito mais do que o cidadão co-
mum suspeita, sendo que o valor econômico gerado é diretamente
proporcional à quantidade de facetas do comportamento huma-
no exploradas dessa forma. Por isso o aforismo de Clive Humby
(Palmer, 2006) tornou-se o mantra da dadificação: “os dados são
o novo petróleo”!
Particularmente relevante, para os que estudam linguagem em
uso, é a dadificação das nossas interações sociais e experiências
subjetivas. O Facebook, por exemplo, dadifica nossos relacionamen-
tos visando construir sociogramas4; o LinkedIn, nossa experiência
3 Um petabyte é igual a 1 megabyte elevado à quinta pot ncia, ou 1.000.000.000.000.000 bytes.
4 Um sociograma é uma representação dos vínculos estabelecidos entre participantes de de-
terminado grupo social. Pode ser construído em forma de matriz matemática ou de um grafo
(rede constituída por nós representando indivíduos e arestas representando laços). Utiliza-se
sociograma para caracterizar o funcionamento de grupos e papeis de seus participantes em

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profissional, para gerar “talentogramas” (talent graphs); o Twitter


dadifica nossos humores e inclinações emocionais (Mayer-Schön-
berger & Cukier, 2013). Cada rede social, aplicativo ou sistema
operacional que utilizamos, dadifica algo de nós.
Empresas de crédito usam sociogramas para determinar se
somos bons pagadores, independentemente das selfies sugestivas
que tiramos, mas a partir dos laços que mantemos com outros
bons ou maus pagadores (“diz-me com quem tu andas e dir-te-ei
quem és”). Empregadores usam “talentogramas” não apenas para
recrutar os mais qualificados, mas principalmente os semelhantes
aos empregados que a empresa já tem e em quem confia.
O Twitter é um caso especialmente interessante porque ele
dadifica humores e sentimentos (a respeito de algo). Qualquer
pessoa pode obter um conjunto de tuítes gratuitamente por meio
de uma interface de aplicação aberta. Além das palavras nos tuítes,
são disponibilizados trinta e três tipos de metadados (quem tuitou,
em que horário, de onde, com qual dispositivo e assim por diante).
Utilizando uma técnica de mineração de textos chamada análise de
sentimento social5, empresas podem “saber” o que certos segmen-
tos sociais pensam de certas marcas, instituições, fatos ou figuras
públicas. Pelo mesmo caminho, financistas monitoram o estado de
humor social médio em determinado contexto, porque tal humor
correlaciona-se com o “humor do mercado” (se positivo, indica
valorização de ativos; se negativo, desvalorização), e pequenas
mudanças de humor causam flutuações que valem muitos milhões
em perdas ou lucros (Bollen, Mao, & Zeng, 2011).
Os dados envolvidos nesses processos combinam três atribu-
tos, até então tecnologicamente mutuamente excludentes: ampla
variedade, grade volume e alta velocidade. Para designar as novas
técnicas de coleta e análise de dados baseadas nesse tripé, surgiu
termos de in u ncia, poder, coes o etc. Ver exemplos de sociograma na forma de grafos em
Lima-Lopes, neste volume.
5 Trata-se um aplicar a um conjunto de tuítes certos algoritmos de análise lexical que podem ser
calibradas por meio de dicionários ou corpora selecionados, ou então, realizadas pela abordagem
da aprendizagem de máquina, já explicada aqui.

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o termo Big Data. Os especialistas na área são chamados de cien-


tistas de dados (data scientists), embora não sejam propriamente
cientistas, mas engenheiros, matemáticos ou estatísticos com
múltiplas competências. Para explorar esses conjuntos de dados,
usam-se diferentes formas de inteligência artificial, sobretudo
aprendizagem de máquina (machine learning) 6.
Esse tipo de técnica tem revelado facetas absolutamente
inusitadas do comportamento humano, a partir de correlações
inusitadas nos dados. E porque, em estatística, o tamanho da
amostra afeta diretamente o grau de confiabilidade dos achados,
essas correlações são muito rapidamente alçadas à condição de
fatos, como a sugerir que a correlação superou a causalidade no
jogo da ciência (Anderson, 2006). Boyd & Crowford (2012) veem
nisso uma dimensão mitológica do Big Data, já que fatos quantita-
tivos são, como todo fato científico, resultado de uma construção
(Latour, 2000). Todavia, essa dimensão mitológica está no cerne da
constituição das VDs e NDs enquanto gêneros discursivos. Por isso,
vale a pena rever os pressupostos ontológicos, epistemológicos e
axiológicos que orientam sua comunidade discursiva de origem.

2. IDEOLOGIA DA DADIFICAÇÃO E A NOVA ECONOMIA POLÍTI-


CA DO SIGNO

Para Bakhtin (2010), todo gênero se constitui sobre campos


ideológicos, inclusive os ainda não organizados num sistema bem
definido como o da ciência, que ele chama de “ideologias do quoti-
diano”. Pois bem, o fundamento ideológico primeiro da dadificação
é a visão quantitativa do mundo, que acarreta ver a realidade como
objetiva (positivismo), separável da consciência e da linguagem
(realismo) e mensurável e testável (empirismo). De forma coeren-
te com esses pressupostos, as comunidades tecnocientíficas, tais

6 Aprendizagem de máquina é uma técnica que emula a estruturação cerebral utilizando compo-
nentes eletrônicos como neurônios. Ela permite que os computadores “deduzam” as regras que
conduzem à realização de uma tarefa a partir da exposição a dados, em lugar de programação
explícita. Para uma introdução bastante didática, ver Yee & Chu (2016).

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como a do Big Data, privilegiam representações formais que visam


a busca por sentidos universais, e reduzem a linguagem às suas
dimensões sintática e semântica, em detrimento das dimensões
pragmática e discursiva (Quadro 1).

Quadro 1 – Pressupostos das pesquisas quantitativa e qualitativa


Visões quantitativa e qualitativa do mundo

Pressupostos Asserções Visão Visão Qualitativa


fundamentais Quantitativa

Ontológicos A realidade é... objetiva, singular e subjetiva, múltipla e


independente do ob- dependente do ob-
servador. servador.

Epistemológicos A relação entre su- independente. interativa.


jeito (pesquisador)
e objeto é...

Axiológicos O papel dos valo- nulo já que, as des- ativo, já que as des-
res nas descrições crições quantitativas crições são saturadas
dos fenômenos é... são neutras. de valores e nunca
neutras.

Retóricos A linguagem deve formal, amarrada a relativamente infor-


ser... definições contro - mal, processual, e
ladas, impessoal, deixar transparecer a
simples, precisa e voz do pesquisador.
objetiva.

Metodológicos O processo de pes- voltado para genera- voltado para a com-


quisa é... lizações e previsões. preensão.

Fonte: Autoria própria, adaptado de Sukamolson (2007)

Circula hoje nos jornais e nas mídias sociais uma profusão de


fatos curiosos apoiados em Big Data. Por exemplo, uma empresa
de varejo norte-americana descobriu que, durante a lua nova, ven-
de produtos em média 43% mais caros do que na lua cheia (Gage,
2014); um fabricante de dispositivos biométricos constatou que,
no Japão, as pessoas dormem em média 6 horas por noite, enquan-
to em Dubai, elas acordam por volta de 11h00 da manhã (Walch

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et al, 2016); uma rede hoteleira nos EUA aumentou em 10% seu
faturamento, cruzando dados meteorológicos com históricos de
cancelamentos de voos e de localização de smartphones de viajantes
(Simpson, 2016). Já o gigante do comércio eletrônico chinês, Ali-
baba, descobriu que, quanto maior o tamanho do sutiã comprado
pela(o) cliente, mais ela(e) gasta no site (Stampler, 2014).
Enquanto alguns desses exemplos remetem a relações de
causa e efeito (Simpson, 2014; Walch et al, 2016), em outros casos,
as correlações são difíceis de explicar causalmente (Gage, 2014 e
Stampler, 2016). Embora, na maior parte das vezes, o cientista
de dados ignore o contexto de geração dos dados, assim como o
conhecimento especializado/teórico pertinente ao assunto (Kitchin,
2014), os “fatos” do Big Data embasam decisões radicalmente
pragmáticas: “vamos fazer hora extra na lua nova” ou “teremos
promoções para sutiãs GG”, pouco importa o porquê.
Anderson (2008, para. 7, minha tradução) causou enorme
polêmica ao declarar:

Fora com todas as teorias de comportamento huma-


no, da linguística à sociologia. Esqueçam taxonomia,
ontologia e psicologia. Quem sabe por que as pessoas
fazem o que elas fazem? O ponto é que elas o fazem, e
nós podemos rastrear e medir isso com uma fidelidade
sem precedentes. Com dados suficientes, os números
falam por si mesmos.

Parece, por conseguinte que o Big Data vem inaugurar uma


nova política do signo, na qual a relação significante/significado, em
lugar de invertida, como propôs Baudrillard (1981), é tautológica:
o signo é o objeto e o objeto é o signo. Latour (2000) já explicava
que, para cientistas e engenheiros, “inscrições cientificas“, como
as métricas do Big Data, funcionam como fiéis porta-vozes da na-
tureza. Latour (1998) adverte, porém, que inscrições não são fatos;
fatos são urdidos como redes heterogêneas que capturam, emba-
ralham e compatibilizam inscrições na forma de textos (e gêneros)

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científicos. De que maneira, então, as VDs e NDs, enquanto gêneros


científicos, sustentam essa nova economia política do signo?

3. VISUALIZAÇÃO DE DADOS: PRÁTICAS, ARTEFATOS


E CONCEPÇÕES

Os trabalhos do estatístico britânico William Playfair (2005),


que, em 1786, publicou, entre outros, o gráfico da Figura 2, são
considerados as primeiras VDs da história7.

Figura 2 – “Exports and Imports to and from Africa from 1700 to 1780”

Fonte: Playfair (2005), domínio público

Já mais recentemente, valor metodológico de representações


visuais de dados quantitativos foi enfatizado pelo estatístico John F.
Anscombe (1973), criador do notório Quarteto de Anscombe (Figura
3), em que quatro conjuntos de dados que compartilham as mesmas
métricas descritivas (média, variância etc.) revelam comportamento
totalmente diferente quando examinados visualmente8.

7 O gr co utili a o eixo hori ontal para marcar a dimens o temporal, e o eixo vertical marcar a
dimens o nanceira das trocas entre os dois pa ses. A inclinaç o de cada linha a cada intervalo
de tempo permite ver a evoluç o das trocas, sendo que a rea entre as linhas representa o d cit
acumulado pelo país cuja linha encontra-se na posição superior.
8 O gr co do canto superior esquerdo sugere uma relaç o linear simples (quanto maior o tamanho
do sutiã, mais se gasta). Já o do canto superior direito, também sugere uma correlação forte,
por m n o linear (a relaç o entre o tamanho e o gasto s funciona em alguns casos . No gr co
inferior esquerdo, aparece um ponto de dados aberrante (outlier) que “disfarça” a correlação,
como se fosse mais fraca do que . inalmente, no gr co do canto inferior direito o outlier a
sugere matematicamente haver uma correlação que, na verdade, não existe.

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Figura 3 - Quarteto de Anscombe

Fonte: By Anscombe.svg: Schutz derivative work: Avenue (Anscombe.svg), CC BY-SA


3.0, via Wikimedia Commons

Se os estatísticos valorizaram as VDs como instrumento me-


todológico, coube a designers de informação9 como Tufte (1983,
2013), entre outros, pensar a sua eficácia, visando preservar o ideal
da transparência do signo. O autor formulou um conjunto de prin-
cípios e métricas que ainda hoje são considerados fundamentais
na área, entre os quais estão a “razão dados/tinta” (data/ink ratio,
Figura 4) e o “fator mentira” (the lie fator, Figura 5).

9 Design de informação é o campo guarda-chuva que abriga o da visualização de dados, mas


também outras modalidades de representação visual voltadas para informar, por exemplo,
ilustraç o, cartogra a, arquitetura, design gr co, interfaces de computador, entre outros.

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Figura 4 – Razão dados/tinta

Boas visualizações induzem o leitor a pensar nos dados, não no seu design.
Fonte: Autoria própria

A razão dados/tinta diz respeito ao conteúdo informativo da


visualização, e é calculada pelo quociente entre a quantidade de
tinta (ou pixels) na peça que efetivamente representa dados e a
quantidade total de tinta (pixels) utilizada. Já o fator mentira diz
respeito às distorções quantitativas causadas por certos efeitos
visuais. Calcula-se dividindo-se a dimensão do efeito no gráfico
pela dimensão do efeito nos dados.

Figura 5 – Fator mentira

A distorção causada pela perspectiva linear faz o valor de agosto parecer maior que os de
janeiro e maio (esq.), e os valores “5“ e “3“, nos setores inferiores, parecerem maiores do que
“6“e “4“, nos superiores (dir.).

Fonte: Autoria própria

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A ideia básica da VD é, portanto, é fazer as melhores escolhas


de elementos visuais de modo que a percepção seja exata (Figura
6) e facilite as tarefas cognitivas típicas desse letramento (Figura 7).

Figura 6 – Escala de perceptibilidade gráfica

Fonte: Figura adaptada de Cleveland & McGill (1984, p.532). Minha tradução.

Figura 7 – Um dos tipos de tarefas perceptivo-cognitivas envolvidas


na visualização de dados

Fonte: Autoria própria. Adaptado e traduzido de Szafir et al (2016)

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Stephen Pinker (1990) foi um dos primeiros autores ligados


à psicologia/psicolinguística a debruçar-se as VDs, àquela altura
designadas genericamente como “gráficos”.
Para Pinker (1990, p. 76), interpretar uma visualização cor-
responde a formular uma pergunta conceitual (conceptual question)
correspondente à informação buscada e extrair (extract) do gráfico
uma mensagem conceitual (conceptual message). A visualização, con-
tudo, não começa com a pergunta conceitual, havendo três etapas
precedentes a ela sobre as quais há consenso entre Pinker (1990) e
os demais autores reunidos por Ratwani & Gregory Trafton (2008):

Etapa (1): apreensão da imagem global do gráfico e dos elementos


que importa levar-se em conta;

Etapa (2): montagem de predicados e proposições conceituais


(por exemplo “x é retângulo”, “x é mais alto que y”, “x está entre
y e z” ou “a posição de x é 5 na vertical e 2 na horizontal”);

Etapa (3): ativação do esquema do gráfico (graph schema);

Etapa (4) efetivação da pergunta conceitual; e

Etapa (5): geração da mensagem conceitual (um par ordenado


reunindo valor de cada variável (ou par ou série) independente e
o valor (ou diferença ou tendência) da variável dependente cor-
respondente.

Como se vê, autores como Tufte (1983) têm razão em valorizar


a precisão e a clareza dos elementos visuais nas VDs (Figura 6), já
que a percepção visual exerce um papel fundamental no processo
interpretativo. Contudo, nota-se, pelo modelo, que a percepção é
seletiva, limitada a elementos gráficos que compõem predicados
relevantes em relação à pergunta que, por sua vez, não faria sentido
formular-se se não mediante um referencial interpretativo ancorado
em algum fenômeno do mundo real.

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Também a etapa 3, em que atua o que Pinker (1990) e Ratwani


& Gregory Trafton (2008) chamam de esquema do gráfico, favorece
a aplicação um enquadre das VDs na lógica dos gêneros discursivos,
já que os mesmos podem ser pensados como esquemas cognitivos
(Marcuschi, 2008, p.149). Além disso, para Pinker (1990), o esque-
ma do gráfico nos indica, de alguma forma, como interpretar VDs
desconhecidas (Figura 8), assim como acontece com os gêneros
segundo Bazerman (2006)10, entre outros.

Figura 8 – Três tipos de gráficos relacionados aos esquemas dos gráficos de linha e de
barras (mudanças de valor nas variáveis ao longo do tempo)

Fonte: Gráfico de velas por Lyakhovskiy Pavel - my job, CC BY-SA 3.0, https://commons.
gráfico de fluxo por Psychonaut, CC0, https://commons.wikimedia.org/w/index.
php?curid=20392905; gráfico em espiral por. Fign44, domínio público, https://
en.wikipedia.org/w/index.php?curid=32259670. Todos acessados em 18 jan, 2018

Concepções de gênero como as de Bakhtin (2003), Swales


(1990) e Bazerman (2006), entre outros, deixam claro que gêneros
são muito mais do que esquemas, assunto ao qual voltaremos mais

10 inker (1990, p. 9 de ne esquema como uma representaç o mnemônica (... que consiste
de uma descrição que contém ‘encaixes’ ou parâmetros para informação ainda não conhecida”.
Para o autor, a escolarização não explica a capacidade humana de compreender formas exóticas
(como as de visuali aç o de Big Data a partir de gr cos mais simples (como os do vestibular
ou do Excel . Os esquemas de gr cos derivariam, em ltima inst ncia, de um esquema geral
inato aparentado daquele que se revela no uso de dimensões espaciais para expressar variáveis
abstratas verbalmente nas línguas naturais (por exemplo, “o mercado está caindo” ou “tenho
larga experi ncia”). Embora Bazerman (2006) não compartilhe da abordagem cognitivista desses
autores, sua de niç o explicita que os g neros s o, modelos que utilizamos para explorar o não
familiar” (p. 23, nfases minhas), porém a palavra original utilizada por Bazerman (1997, p. 19)
que os tradutores substituíram por “modelo” é signpost, isto é, um marco de orientação espacial.

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adiante. Ademais, dentro da própria comunidade discursiva do Big


Data, as concepções de VD que Pinker (1990) e Tufte (1983) ajuda-
ram a formular vêm sendo desafiadas. Isso porque, a dadificação
tem expandido a circulação das VDs para contextos variados, nos
quais se demanda delas mais do que exibir os fatos: é preciso que
contem histórias.

4. DATA STORYTELLING: UM GÊNERO REBELDE

Há dois tipos de situações em que os designers de informação


falam em narrativas de dados (NDs). Elas são, não por acaso, deri-
vadas das duas situações de uso que as VDs sempre contemplaram:
a exploração e a comunicação. No caso das NDs exploratórias, o
designer cria uma interface em que o controle da visualização é
passado para o usuário em algum grau, de tal modo que ele ou ela
vá conduzindo o seu próprio percurso de exploração (Figuras 9 e
11). No caso das NDs expositivas, a visualização é montada em uma
sequência fixa, definida pelo designer, quer seja de forma “estática“
(Figura 8) ou em formato de quadros ou de slideshow.

Figura 9 – “Wind Map”

“Wind Map“, visualização criada por Fernanda Viégas (Google) e Martin Wattenberg. Os
“fios” representam a direção e intensidade do vento conforme dados extraídos de hora
em hora do serviço nacional de meteorologia norte-americano.

Fonte: Disponível em http://hint.fm/wind, acesso em 18 jan. 201811

11 Ao clicar em diferentes seções do mapa, o leitor se aproxima de regiões especi cas e acompanha
o comportamento do vento.

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Figura 10 – Charles Minard (1781-1870), Carte figurative des pertes successives en


hommes de l’Armée Française dans la campagne de Russie 1812-1813

Fonte: Domínio público 12

Figura 11 – Technology Gives, Technology Takes. Escolhendo sucessivamente entre


sete profissões, o leitor gera uma “narrativa“ sobre o impacto de novos tecnologias no
mercado de trabalho de 1850 a 2013

Fonte: Quocturng/NPR (2015) 13

12 Considerada por Edward Tufte uma das melhores VDs da história, essa visualização resume a
invasão da Rússia por Napoleão com poucos elementos visuais que agregam várias dimensões
(direção de ida e volta, posição, número de soldados, data e temperaturas ao longo da marcha).
13 O leitor pode escolher uma entre oito ocupações disponíveis no primeiro plano. Clicando sobre
as linhas ao fundo, ele pode ver de que pro ss o a linha trata e qual o valor naquele ponto. As
mudanças bruscas de inclinação nas curvas de emprego coincidem com épocas de diferentes
“revoluções tecnológicas”.

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Com alguma boa vontade, poderíamos pensar em Napoleão (Fi-


gura 8), ou nos trabalhadores (Figura 9), como protagonistas de uma
narrativa, e nos russos ou nas tecnologias como antagonistas, e nos
designers como narradores, sendo a trajetória das variáveis a cada novo
ponto de dados, talvez, o enredo. Mas não é desse tipo de metáfora
que falam os especialistas quando se referem a data storytelling. A quê,
exatamente, se referem, porém, não é fácil identificar.
Rocha (2016, p.4, ênfases minhas), uma jornalista, por exemplo,
define data storytelling como narrativas digitais em que “a análise ou
a mensagem não se concentra nos argumentos, opiniões, atos ou
eventos, mas na interpretação contextual de uma informação e suas
relações com outros dados”. Já Gilbert (2017, p.7, minha tradução,
ênfases minhas), consultora de negócios, as concebe como “um mé-
todo de transmitir (deliver) mensagens derivadas da análise de dados
complexos de forma a permitir que o público a assimile (assimilate)
rápida e facilmente determinado material (...)”. Hullman – docente
de um departamento de Ciências da Computação, doutora em visu-
alização da informação, com mestrado em Letras – e seus colegas
mencionam “processos sequenciais de definição do contexto, sele-
ção de informação, escolha de modalidade e definição de uma ordem
que possa transmitir (convey) a narrativa desejada de forma efetiva”,
acrescentando que, “quer seja ficcional ou para comprovação dos
fatos (trial evidence), a sequência e forma de agrupamento utilizados
numa narrativa afetam o significado que é construído” (Hullman et
al, 2013, p. 2406, minha tradução, ênfases minhas).
Percebe-se nesse pequeno conjunto interdisciplinar uma certa
desestabilização do objeto VD assim como um maior ceticismo
acerca sua transparência enquanto signo. Hullman et al (2013)
tocam na tensão aí implicada ao justaporem, de forma um tanto
surpreendente, histórias de ficção e técnicas de demonstração cien-
tifica (ou jurídica) da verdade num mesmo paradigma. O paradigma,
contudo, surge de um casamento entre narrativa e prova científica
em que os bens comuns são segmentação e sequencialidade, dois
traços comuns a praticamente quaisquer gêneros.

112
Gênero reloadinG

Gilbert (2017, p.4, minha tradução, ênfases minhas), por sua


vez, prefere descartar a definição tradicional de narrativa (story),
que inclui elementos como personagem protagonista, conflito e
diálogos, oferecendo, em seu lugar, a seguinte: “relatos (accounts)
de eventos reais ou imaginários que envolvam o ouvinte (listener)
em comunicação interativa”. Importa menos notar que a autora
simplesmente troca narrativa por relato interativo, do que ressaltar
dois elementos de caráter enunciativo-discursivos agregados à sua
definição: envolvimento e interação.
Rocha (2016, p.4), finalmente, parte de uma definição mais
solta de narrativa, próxima de news story no jornalismo norteameri-
cano. Pelo destaque de “interpretação contextual“ e “relações com
outros dados”, com o descarte de “atos ou eventos”, percebe-se,
na verdade, uma barganha entre estrutura narrativa e enquadre
jornalístico, isto é, retórico-discursivo, das NDs.
Contabilizando os elementos tirados das tentativas de defini-
ção de data storytelling acima, fica patente um jogo de apropriação
e contra-apropriação na constituição do objeto ND que mobiliza
elementos formais/sintáticos (segmentação, sequencialidade),
enunciativo-discursivos (envolvimento, interatividade), e textuais
(contexto e relação com outros dados). Pode estar havendo, sim-
plesmente, o que Setzer (1999) chama de “abuso de linguagem”,
i.e., um empréstimo reducionista de “narrativa”, pelas ciências da
computação, do tipo que ocorre em “linguagens de programação”
e “inteligência artificial”. Ainda que assim fosse, isso só indicaria
que as NDs são, no momento, um gênero bastardo, descendente
de uma mancebia entre quantitativo e qualitativo que, para todos
os efeitos, não poderia ter havido, mas há.

5. NARRATIVAS DE DADOS COMO GÊNERO TEXTUAL/DISCURSIVO

A literatura especializada em design de informação menciona


gêneros. Segel & Heer (2010), por exemplo, propõem uma taxo-
nomia que inclui “estilo revista”, “quadro anotado”, “pôster parti-

113
Gênero reloadinG

cionado”, “diagrama de fluxo”, “história em quadrinhos”, “exibição


de slides” e “filme/vídeo/animação” como gêneros. Ocorre que
visualizações narrativas (narrative visualizations) não são propria-
mente data storytelling. Os gêneros de que falam os autores são,
na verdade, formatos de interfaces de dados.
Quando o assunto são NDs propriamente ditas, não se acha
facilmente referências a gêneros, embora muitos autores utilizem
uma ótica discursiva. Kostelnick (2007, p.287), por exemplo, ponde-
ra que a clareza de uma VD ou ND é algo contingente e situado, que
varia com as comunidades discursivas. Já Hepworth (2014, p.281,
minha tradução), afirma que as VDs “atuam para mudar atitudes,
comportamentos e intenções apresentando informações de forma
persuasiva e retórica”.
Finalmente, Hullman e Diakopoulos (2011), que estudaram um
corpus de NDs utilizando categorias de análise oriundas da semio-
logia e da ciência política, concluíram que há quatro camadas que
servem às intenções retórico-discursivas do designer: a dos dados
(manipulação de variáveis, escalas, outliers e formas de agregação),
a da representação visual (pistas visuais que afetam o mapeamento
dos dados), a das anotações (direcionamento da atenção do usuário)
e a da interatividade (possibilidades de manuseio da interface que
encorajam/restringem caminhos de exploração).
Esses enfoques qualificam as NDs claramente como enuncia-
dos (multimodais) situados sócio-historicamente, que estabelecem
o diálogo entre atores sociais (Bakhtin, 2003), funcionam como
eventos retóricos tipificados vinculados a objetivos específicos
(Swales, 1990) e estabelecem molduras para a ação social (Bazer-
man, 2006). Porém, teorias de gênero discursivo usuais parecem
não conseguir acolher o objeto em sua totalidade. Por exemplo,
em qualquer teoria de gênero, o conteúdo temático é um fator
definidor. Já um mesmo tipo de visualização pode dizer respeito
a qualquer entidade ou tema, ou mesmo misturar elementos que
normalmente não caberiam numa mesma formação temática ou

114
Gênero reloadinG

ideológica. Além disso, as teorias de gênero lhes atribuem padrões


composicionais/sequenciais típicos, enquanto, nas VDs/NDs, o que
se faz é perscrutar o conteúdo em busca de padrões composicionais
(de correlação), por exemplo invertendo as variáveis nos eixos ou
o tipo de gráfico para os mesmos dados (Figuras 6 e 7).
Nós tendemos a pensar nos gêneros como uma entidade que
emerge do contexto, quer seja da interação entre sujeitos social-
mente organizados (Bakhtin, 2003), das expectativas em relação
ao que é mais ou menos provável ser dito ou escrito para certo
propósito em certa situação (Swales, 1990), ou da recorrência de
determinada situação em determinada cultura (Bazerman, 2006).
Embora certos tipos de VDs sejam correlacionadas com certos
propósitos e situações (uma consulta médica ou uma análise de
crédito, por exemplo), o que determina o tipo provável de VD não
é tanto sua natureza social, mas a natureza do fenômeno em exa-
me estatístico (coletivo, particular, de multidão, típico ou atípico).
Quando pensamos mais especificamente em data storytelling,
porém, o fator mais evidente de dificuldade parece ser o de com-
patibilizar a ideia de mostrar/visualizar com a de narrar/fechar
num mesmo gênero. Certamente não disponho de uma solução
para o problema, mas penso que posso sugerir uma estratégia de
investigação sobre NDs como gêneros: o trabalho de Manovich
(1999, 2000) acerca das relações entre narrativa e banco de dados.

6. NARRATIVAS DE DADOS COMO GÊNERO DA TRANSCODIFI-


CAÇÃO CULTURAL

Manovich (2001) foi um dos primeiros teóricos a abordar as


repercussões culturais e semióticas da digitalização. Para o autor,
todo artefato cultural computacional/digital se instaura na interface
entre duas camadas semióticas/ontológicas justapostas pelas novas
mídias: a dos significados humanos (figuras, esquemas mentais,
gêneros discursivos, semântica da língua etc.) e a das linguagens
de computador (pacotes, variáveis, funções, algoritmos, estrutu-

115
Gênero reloadinG

ras de dados, linguagens de programação etc.). Desse convívio,


segundo Manovich (2000), resulta que a lógica do computador
(sua ontologia, semântica, pragmática e mesmo seus gêneros14)
influencia fortemente lógica dos sistemas culturais15, algo que ele
chamou de transcodificação cultural.
Podemos considerar exemplos de transcodificação cultural,
a explosão do remix digital (copy-paste), crimes como o “roubo
de identidade” virtual (não existem pessoas na ontologia com-
putacional, apenas userIDs), ou o uso de metáforas visuais de
interfaces de computador em outras mídias (por exemplo, o
sinal de like do Facebook na TV ou anúncios de revista). Porém,
num nível mais profundo do processo de transcodificação, se-
gundo Manovich (1999, 2000), observa-se a perda de espaço
da narrativa para o banco de dados enquanto forma simbólica16
contemporânea.
Narrativa e banco de dados sempre conviveram, inclusive fun-
damentando seus próprios gêneros, por exemplo, livro (narrativa) e
álbum de fotografias (banco de dados), conto (narrativa) e antologia
(banco de dados), filme (narrativa) e fotografia (banco de dados) e
assim por diante. Mas a digitalização (e, agora, a dadificação) ex-
pandiram nossa capacidade de criar, alimentar, acessar, vasculhar e
conectar bancos de dados de forma exponencial, permitindo-nos,
inclusive, criar bancos de dados que contêm, basicamente, narra-
tivas (Google Books, Netflix, MMORPGs, Pornhub etc.)
Além disso, nossas práticas de leitura e escrita, hoje, incluem
o atravessamento constante de bancos de dados e o estabeleci-
mento de padrões associativo-sequenciais, que podem ser mais ou
menos coesas/coerentes, mas não são necessariamente sequências
narrativas. É o caso de ler resultados trazidos numa página do
14 O hipertexto, por exemplo, é tributário de uma forma de escrever códigos de software chamada
programação modular ou programação estruturada.
15 Ver também Lima-Lopes, neste volume.
16 Manovich (1999) tira o conceito da obra de Panofsky (1999), para quem a forma simbólica de
cada época é aquilo que permite explicar de que modo o mundo se torna inteligível para aquela
geração e é ela que orienta as grandes construções intelectuais e sociais pelas quais o homem
se relaciona com o Mundo.

116
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Google, ouvir uma playlist no Spotify, “zapear” vídeos no YouTube


ou compor/acompanhar uma linha do tempo no Facebook17.
Para Manovich (1999), podemos entender bem essas mudanças
a partir do esquema Saussuriano (1995) dos eixos sintagmático
e paradigmático. As narrativas, argumenta, têm no eixo sintag-
mático seu lugar natural. Assim como a sintaxe, elas impõem
determinada sequência para a produção do sentido, conectam os
eventos primordialmente a partir de uma lógica causal, operam
uma hierarquização de seus elementos e têm seu sentido altera-
do pela inserção de novos constituintes. Já os bancos de dados
se encaixam melhor no eixo paradigmático porque, apesar de
apresentarem estrutura, não impõem uma sequência, conectam
seus componentes por meio de uma lógica associativa/correlacio-
nal, não hierarquizam seus elementos entre si e acolhem novos
constituintes indefinidamente, sem prejuízo dos sentidos. Além
disso, enquanto a narrativa explicita os elementos sintagmáticos
e virtualiza os paradigmáticos, o banco de dados faz justamente o
contrário. Esta é a razão das duas poderem coexistir, mas também
de competirem enquanto duas formas poderosas de apreensão do
mundo: mostrar/visualizar e narrar/escutar (ou ler).
As NDs são difíceis de encaixar nas teorias de gêneros, é plau-
sível pensar, porque tais teorias, em sua maioria, foram pensadas
para gêneros “sintagmáticos”, constituídos por sequências textu-
ais (descritiva, argumentativa, narrativa, injuntiva etc.) e tipos de
discurso eminentemente sequenciais, como o discurso teórico, o
relato interativo e a narração (Halliday, 1985; Bronckart, 1999). Nos
gêneros narrativos, o percurso de significação é predefinido, e é
ele que estabelece a relação entre os elementos paradigmáticos,
atualizando-os a cada enunciacao, para gerar o sentido. Já nos gêne-
ros de bancos de dados, podemos elaborar com base em Manovich
(1999, 2000), os paradigmas estão disponíveis de forma explícita
(nas mesmas colunas das tabelas de dados, concretamente), antes
que os percursos de associação venham a propiciar a geração de
17 Lemke (2009), chama esses padrões de “travessias” (traversals).

117
Gênero reloadinG

sentidos. A significação começa em qualquer ponto do espaço


relacional, e o percurso é a exploração do espaço relacional, que
pode ou não redundar num fechamento dos sentidos.
Por constituírem justamente uma das comunidades desde sem-
pre na vanguarda da transcodificação cultural, quando os designers
de VDs falam em contar histórias com dados, aparentemente estão
buscando referência a uma forma genérica híbrida de narrativa e
banco de dados. Contudo, gêneros de banco de dados tais quais
o museu virtual, o filme minimalista ou o game não narrativo,
além das VDs tradicionais, buscam propositalmente abrir mão de
relações causais e resoluções, sendo essa característica, neles, uma
virtude. Já a ideia de storytelling implica uma busca por causalidade
e resolução/fechamento, através de um objeto que é, por natureza,
paradigmático, associativo e relacional.
Se Lemke (2002) estiver certo quando explica que os gêneros
não são nunca “monomodais”, mas parte do processo pelo qual os
modos semióticos coevoluem, talvez a saída para essa comunidade
discursiva esteja num reencontro menos acanhado e isento de pre-
conceitos entre os usos do não verbal e do verbal; mas, dadas as
relações de poder em jogo na dadificação e a dinâmica avassaladora
da transcodificação cultural, talvez resulte desse encontro, amanhã,
um verbal de tal forma domesticado, objetificado e subalternizado
que os estudos da linguagem não mais o reconheçam como seu;
a menos que estejam atentos para o fenômeno da dadificação
desde ontem.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, procurei chamar a atenção da comunidade


dos estudos da linguagem para a necessidade de um engajamento
sistemático com o fenômeno da dadificação, tal qual instanciado
nas práticas semióticas quotidianas e, por conseguinte, em certos
gêneros discursivos que vêm ganhando notoriedade nos mais di-
versos domínios socioculturais.

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Gênero reloadinG

Vimos que a dadificação traz uma dimensão técnica, que inclui


uma nova área de pesquisa e aplicação chamada Big Data, e uma
dimensão ideológica subjacente, que projeta a visão quantitativa
do mundo sobre facetas inusitadas do comportamento humano.
Essa visão fundamenta uma espécie de nova economia política
do signo, instanciada por um gênero cada vez mais valorizado e
poderoso: as VDs.
Com a expansão da dadificação, as VDs alcançam diferentes
comunidades discursivas, que lhes atribuem a nova função de nar-
rar os fenômenos que, anteriormente, esperava-se que ele apenas
mostrasse. Como consequência, abre-se uma oportunidade maior
para enquadrar NDs numa concepção enunciativo-discursiva, por
meio do conceito de gênero. O impulso de tratar NDs como gê-
neros, ficou claro, é amortecido pela constatação de que o objeto
parcialmente é refratário às concepções de gênero tradicionais e
vice-versa.
As NDs parecem tornar-se mais acessíveis aos estudos da
linguagem, não quando tentamos projetar sobre elas diferentes
teorias de gênero, mas quando projetamos sobre as concepções
tradicionais de gênero esse pequeno e poderoso híbrido que de-
manda delas uma “recarga”, como sugere o título deste volume.
Daí a proposta de buscar na teoria de Manovich (1999, 2000) um
ponto de partida para o aprofundamento das pesquisas sobre NDs,
conceituando-as como gêneros híbridos de narrativa e banco de
dados. Como todo hibrido, este causa uma tensão, neste caso
entre duas formas de apreensão do mundo, que refletem divisas
de poder epistemológico e político.
Para que essa ou qualquer outra abordagem acadêmica da
dadificação seja bem-sucedida, contudo, há que se estabelecer um
tipo de relação mais fluida, criativa e respeitosa entre as ciências
humanas e as ciências naturais/exatas (Buzato, 2016). Isso, é claro,
passa pela valorização de métodos e práticas interdisciplinares
nas formações de pesquisadores e professores em ambos os lados

119
Gênero reloadinG

(Buzato, 2017a), algo que no contexto brasileiro permanece um


sonho distante. Só assim poderemos contribuir para uma apro-
priação benigna da cultura dos dados (abertos) pelo cidadão e o
estabelecimento de melhores diretrizes educacionais, políticas e
éticas no uso de dados (Metcalf & Crowford, 2016) sobre seres
humanos, rumo ao próximo passo, qual seja, a constituição de
uma ética pós-humanista (Buzato, 2017b)18.

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