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COM BASE NA IGNORÂNCIA

Liberalismo versus Conservadorismo. A convergência entre dois polos e maior


operacionalidade dos mesmo, em relação ao tradicional binómio
“esquerda”/”direita”, na análise da Ordem Internacional Liberal

Um texto em forma de exercício da Ignorância, assim mesmo, com letra maiúscula,


enquanto conceito fundador de um pensar baseado no que vai surgindo ao correr da
pena com base em reduzida informação e resultado de muito desconhecimento. Uma
soberba, portanto, só permitida aos ignorantes.

Eis-nos chegados a um ponto da nossa história político-partidária em que o conceito de


“liberal” ou “liberalismo” deixou, se assim o quisermos afirmar, de se estranhar
começando a entranhar-se (perdoe-me, Fernando Pessoa, a apropriação). E, por outra
banda ou, até por isso, em contrapartida, se usa o termo “conservador”. Por via de regra
em oposição, um e outro.

No entanto, ainda assim, o que se vai entranhando e usando, por via da opinião
publicada, padece de vieses ideológicos e falta de rigor.

Como é bom de ver – e acima ficou claro – não me arvoro em especialista na matéria.
Bem pelo contrário, primo pela ignorância. Com duas vantagens – o desassombro (até,
se assim se quiser, a falta de vergonha e/ ou estupidez natural) e a curiosidade.

Dentro desse espírito, então, diria que o liberalismo foi, no seu início, uma resposta e
não uma pergunta, ou seja, não é, nunca foi, uma construção idealista, sendo que,
parece-me, a influência do idealismo alemão na parte continental da Europa levou (com
a excepção de Benjamin Constant que, não por acaso, fez parte da formação superior em
Edimburgo – Escócia – e viveu no Reino Unido) à existência de uma partição ou
bifurcação entre o liberalismo de matriz anglo-saxónica e o de matriz continental
europeia ou, dito de outra forma, entre um liberalismo/racionalismo evolucionista (o
primeiro) e liberalismo/racionalismo construtivista (o segundo).

O primeiro arreigado num húmus tradicional, numa concretude a que faz referência
Isaiah Berlin ao longo da sua obra infelizmente muito dispersa ( aparentemente gostava
pouco de escrever, mas aqui podem encontrar-se muitas referências bibliográficas de outros e obras do
mesmo - https://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/book/lookupname?key=Berlin%2C%20Isaiah

%2C%201909%2D1997), e que encontramos, na verdade, nos conservadores britânicos e,


depois, norte-americanos. Nesse sentido poder-se-á dizer que o liberalismo anglo-
saxónico acaba por ser um conservadorismo não reacionário liberal que não dispensa a
relação biunívoca entre ser e dever-ser, entre o real e o ideal, partindo do primeiro para
o segundo e inversamente, num constante diálogo evolutivo. Acima de tudo, essa
concepção assenta sempre na necessidade da protecção do indivíduo e da sociedade
civil, com base em princípios bem alicerçados na tessitura social, contra qualquer poder
que seja, ou deseje ser, autoritário.

O segundo – o Liberalismo de raiz Europeia Continental – é idealista, ao ponto da


fantasia, sendo manifesta a perversão que provocou, por exemplo, no evoluir da
Revolução Francesa e do Iluminismo de raiz continental europeia. Esta via,
caracterizada por um racionalismo construtivista, deu azo, a partir das concepções
absolutistas de “povo” e “democracia popular” (deixadas por Rousseau), ao
facilitamento, quer em séculos passados, quer actualmente, de uma mera e instrumental
defesa do “povo” (sendo que a ideia do que seja o “povo” é apropriada e conformada ou
densificada por quem a utiliza e conforme os respectivos objectivos políticos mais
imediatos) contra as elites, facilitando a instauração de sistemas políticos autoritários,
caracterizados pelo ataque a instituições ou arranjos e equilíbrios institucionais que são,
não por acaso, tipicamente liberais em termos anglo-saxónicos, como por exemplo a
separação de poderes, e alavancando a diabolização dos meios de comunicação social
que não transmitem a “verdade” do poder já instalado (autoritário) ou em processo de
instalação.

A ideia chave deste segundo “liberalismo” é a de racionalismo construtivista. É-o


enquanto característica particularmente distintiva do “liberalismo” anglo-saxónico e é-o
também enquanto ponto de partida para uma realidade ideológica que, por via da
adopção académica de constructos pós-modernos de geração sobretudo europeia
continental, se foi disseminando na Academia, quer na Europa Continental, quer nos
países anglo-saxónicos.

No contexto deste enquadramento ideológico o Homem (ou, como se imporia afirmar –


sob pena de cancelamento – dentro deste preciso contexto, a Pessoa) deixa de ser corpo
e mente arreigado, alimentado, por um determinado ambiente histórico-concreto para
passar a ser tábula rasa imaginária sobre a qual se impõe a escrita (que será, pela ilusão
que lhe vai associada, uma imposta reescrita) de uma série de exigência ditas morais.
Este racionalismo ou conceptualismo abstracto/construtivista teve reflexos, inclusive, no
âmbito do Direito. Na europa, ainda na primeira metade do século XX, surge-nos, por
exemplo, a Teoria Pura do Direito – de Hans Kelsen – que almeja a criação de um
sistema jurídico “total”, cogente, partindo, como ponto essencial, da extirpação de
qualquer referência ética no Direito. O que interessava é que, no seu todo, o sistema
jurídico fizesse globalmente sentido e se impusesse como uma construção necessária e
racionalmente evidente. No entanto, e apesar de tudo, Kelsen é um defensor da
Constituição cuja função política é estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder.
Por essa razão é tão importante, nos dias de hoje a questão do Constitucionalismo e do
fenómeno do “constitutionalism decay”. Simultaneamente, surge Carl Schmitt que
elabora uma Teoria do Direito e do Estado que, não sendo neokantiana, é totalmente
amoral, no sentido em que, defende uma teoria normativa, na qual o fundamento de
validade do direito não está na norma, mas na decisão, no monopólio decisório que
repousa, por sua vez, no soberano, assim adoptando, mas pervertendo à sua essência, a
teoria do poder neutro do monarca, de Benjamin Constant. Isto é, se o soberano (no caso
de Schmitt, o Führer) o afirma, e com base nessa afirmação se vão produzindo normas
de acordo com essa raiz, então as mesmas são juridicamente válidas e cogentes.

Repare-se que, embora Kelsen e Schmitt não estivessem de acordo (apenas em virtude
da limitação “constitucional” que Kelsen entendia como necessária para limitação do
poder) ambos constroem modelos de Teoria da Justiça e do Estado que prescindem da
componente ético-valorativa social.

Este esvaziamento, esta procura da pureza dos princípios como fundamento de toda uma
construção social, no caso Kelsen, ou a procura da construção de todo um sistema social
baseado numa única fonte de autoridade posicionada acima da sociedade e prescindindo
dos inputs éticos da mesma, no caso de Schmitt, cria uma cisão entre Justiça e Ética,
entre Direito e organização do Estado e a Sociedade.

Avançando umas décadas, surgem-nos Teorias da Justiça que, mesmo no mundo anglo-
saxónico, partem, para se poderem manter cogentes, de puras abstracções, como é o
caso da ficção do indivíduo original em Rawls. Aparentemente, numa perfunctória
abordagem, classificaram-se tais teorias como de liberais ainda que, no caso de Rawls,
claramente tributárias de um liberalismo-social que, ainda assim, é um subtipo de
Liberalismo.
Foi neste caldo académico e intelectual que surgiram construções como a de Habermas,
que, no seguimento de uma concepção idealista da sociedade, fala, por exemplo, de uma
soberania constitucional. Habermas sublima as possibilidades da razão, da emancipação
e da comunicação racional-crítica, que sustenta como estando latentes nas instituições
modernas e na capacidade humana de deliberar e agir em função de interesses racionais.
Sendo claramente neokantiano, Habermas vai mais além, defendendo a relativização da
soberania nacional e a criação de uma república plurinacional, com ordens normativas
públicas, desenvolvidas num plano supranacional, vinculando directamente quer os
cidadãos, quer os Estados-Nação. Obviamente, não sendo estulto, ressalva que, para o
efeito, seria necessário que, quer os Estados-Nação quer as respectivas populações
passassem por determinados “processos de aprendizagem”.

Parece-me estar, no percurso que ensaiei fazer, o berço do nascimento da Ordem Liberal
Internacional (doravante, O.L.I.), em termos conceituais.

Mas, não sejamos ingénuos.

A natureza meta-humana, acéptica, amoral, da O.L.I. teve, sobretudo, origens bem mais
pragmáticas.

A ideia de livre comércio mundial, apenas sujeito a regras de índole económica e/ou
financeira e a uma regulação privada via, sobretudo, Tribunais Arbitrais, gerou-se nas
mentes dos que viam aí uma oportunidade única de enriquecer sem os limites de um
simples Estado-Nação. A possibilidade de movimentar capitais financeiros a seu bel-
prazer; de fazer engenharia fiscal agressiva; de “deslocalizar” as cadeias de valor por
forma a colocar nos cantos mais pobres do mundo as menores-valias (em regra a
produção em massa) e fazer retornar as mais-valias aos centros financeiros globais.

Tudo isto é puro capitalismo desregulado, a adopção da Lei da Natureza, isto é, a lei
darwiniana do mais forte.

Como desculpa, sim, apenas isso, como desculpa, porque nós sabemos que eles sabiam
que era inviável, os “poderes que são” afirmaram que o acolhimento, no seio da O.L.I.,
de países de matiz claramente autoritária e antiliberal ou iliberal, como a China, os iria
enriquecer, fazer crescer a respectiva classe média e, como no Ocidente sucedeu, a
mesma iria acabar por ser tão forte e reivindicativa que o regime Comunista Chinês
acabaria por ceder e permitir o nascer, na China, de uma sociedade com valores liberais
ocidentais. Por razões que melhor se explicarão abaixo, tal não sucedeu, nem sucederia
nunca.

Por estes motivos, os defensores da O.L.I., tal qual ela foi desenhada, esventrada de
conteúdo ético ou axiológico, não podem ser considerados como “liberais” em qualquer
sentido, político, que eu conheça. Enquadrar-se-ão, porventura, na destemperada ideia
do Neoliberalismo, que não é, na verdade, um Liberalismo, pois que ignora, espezinha,
despreza, a individualidade, a nobreza do ser indivíduo, reconduzindo-o a mero alvo
para o consumo imediato. E, se uma coisa isso não é, é, precisamente, Liberalismo.

Na verdade, quem leu e aprendeu, em Portugal, com Castanheira Neves ou quem


conhece a obra de Hans-Georg Gadamer, que Castanheira Neves transmitia para quem
quisesse de facto aprender, saberá que qualquer abordagem do social, em sentido lato
(cultural, político, jurisdicional, direito, económico, etc), implica uma forma de
compreensão ou experiência de sentido que desenvolve uma capacidade natural do ser
humano, qual seja, a capacidade de orientação e eleição num mundo vivido em
mediação ou comunidade e que a relação dentro e entre a(s) comunidade(s), aquela
forma de compreensão ou experiência, constituem meios de formação e recordação do
que na humanidade do homem é imutável ( Maria Luísa Portocarrero F. Silva, “Problemas da
Hermenêutica prática”, Revista Filosófica de Coimbra, nº 8, 1995 ), apesar da pressão social da
estandardização ou repetição e da vivência contemporânea do primado do consumo, da
solidão e da alienação,.

É por essa razão que, mesmo dentro de um país pequeno e culturalmente bastante coeso,
como é o caso de Portugal, a aplicação de uma norma tão simples como a que prevê, no
Código Penal, o crime de injúria, deverá ser feita mediante um percurso interpretativo
que tenha em atenção a realidade social em que o funcionamento da mesma é,
abstractamente, despoletado, o mesmo sucedendo, sendo caso de aplicação ao caso
concreto, na determinação da natureza e medida da pena.

Transpondo o exemplo para outras circunstâncias de leitura, opções, e constructos


políticos e sociais, o que se exige será, então, essa relação dialogante, de via dupla, entre
conceituação e realidade e vice-versa.

Oakeshott, Scruton, Hayek e Popper igualmente defenderam o demoliberalismo tendo


por referência o racionalismo evolucionista/tradicionalista, sendo classificados, Scruton
e Oakeshott, como conservadores.
Na essência, entre todos eles (conservadores e liberais), verifica-se que não dispensam
aquela humanidade imutável do homem social, como critério e medida de todas as
coisas.

Ora, para a instauração da Ordem Liberal Internacional, a presente, sem qualquer


substrato axiológico concreto, que vem conhecendo um processo de desagregação, ou
uma outra qualquer, tal como foi desenhada e implementada desde meados do século
passado, será sempre necessária uma dose de autoritarismo, ou mesmo, um total
autoritarismo. Esse autoritarismo mostra-se necessário na medida, precisamente, da
ausência, propositada, de qualquer referência ou âncora ética e axiológica.

E este autoritarismo, por sua vez, só é possível e viável garantida que esteja a existência
de grandes massas inanes cujo sacrifício seja mero dano colateral e, por essa via,
“aceitável", baseando-se na dominação permanente de todos os indivíduos em todas as
esferas da vida, isolando o indivíduo e colocando-o em organizações de massa
indiferenciadas, deixando-o isolado e mais facilmente manipulável, transformando a
cultura em propaganda, ou seja, a transformação de valores culturais em produtos
vendáveis, o que passa pela desvalorização propositada do “conhecimento científico” ou
do simples conhecimento especializado, dos intelectuais, tudo transformando em cultura
pop, não reflexiva e acrítica.

Ou seja, uma desumanização do homem, na sua essência.

Por essa razão a China comunista, autoritária, dirigida pelo respectivo P.C.C., não
experienciou qualquer mudança de paradigma de organização social e de governação,
no sentido de qualquer tipo de aproximação às democracias liberais, nem, sendo o
produto de uma cultura milenar de subjugação e submissão, alguma vez tal aconteceria.

Por, como e em que sentido ir a partir deste ponto a que chegámos?

Não me parece possível ou, melhor dito, realista, voltar, sem mais, a um passado de
total soberania nacional, de desvinculação global, de isolamento e nacionalismo.

Aqui talvez devamos fazer um parêntesis para abordar, com ligeira profundeza, o
Conservadorismo.

Este é um conceito que vulgarmente se mostra como oposto ao Liberalismo.


Sucede que a polissemia que existe na conceituação do Liberalismo sucede igualmente
no Conservadorismo, ou, conforme melhor descreve Edmund Fawcett ( “Conservadorismo
– A luta por uma tradição”, Edições 70, 2021), «[t]al como o liberalismo, o conservadorismo
não tem um Decálogo, não tem um Código para a Propagação da Fé, não tem uma
Declaração de Independência fundadora, tampouco um compêndio doutrinário à altura
da Edição Standard de Marx e Engels».

Na verdade, penso, podemos, precisamente com a mesma origem histórica da


bifurcação da semântica liberalista, vislumbrar dois conservadorismos.

Na sequência, lá está, da mesma já mencionada Revolução Francesa, dois escritos


seminais foram produzidos. Por uma banda temos o por demais conhecido Edmund
Burke, com o seu “Reflections on the Revolution in France - and on the Proceedings in
Certain Societies in London Relative to that Event in a Letter Intended to have been sent
to a Gentleman in Paris”, (Penguin Books). Por outra banda surge-nos o menos
divulgado, mas igualmente importante, Josephe de Maistre, que escreveu o
“Considerations on France” (Cambridge Texts in the History of Political Thought).

Ambos se apresentam, e justamente, a meu ver, como fortemente críticos da Revolução


Francesa ou, melhor dito, dos seus desenvolvimentos que, no entanto, mais não foram
do que consequências naturais das suas – da Revolução – origens ideológicas.

No entanto, ao passo que Burke se debruçava sobre questões como a importância da


tradição, criticando os políticos/intelectuais franceses que, ignorando-a, ignoraram
também a organicidade vulnerável da sociedade, não pretendendo um “regresso ao
passado” ‘tout court’, já De Maistre via a Revolução Francesa como um mero
interlúdio, defendendo o retorno a um passado que via como idílico e totalmente
virtuoso.

Não espanta, por isso, que, apesar de um e outro não acreditarem, verdadeiramente, na
capacidade de autogoverno do “povo”, Burke, pelo seu lado, tenha dado origem a um
conservadorismo sustentado em puro bom senso esclarecido e competência prática, ao
passo que De Maistre, por sua vez, tenha sido o gérmen dos autoritarismos não
comunistas e fascismos do século XX. Apesar do pessimismo antropológico de ambos
(que confessadamente partilho), Burke (com o qual partilho o entendimento) distancia-
se de De Maistre num ponto fundamental – é que o primeiro entendia que as pessoas
reconheciam as regras do bom viver e confiavam que as outras as seguiriam,
reconhecendo-as, ao passo que o segundo não admitia que, em liberdade, as pessoas
disso fossem capazes. Para o primeiro era o costume, a tradição, a fonte das regras
sociais, ao passo que, para o segundo, essa fonte apenas podia ser Deus.

Burke, apesar de arauto conservador, aproxima-se do conservadorismo moderno de


Oakeshott e Scruton, os quais, por sua vez, se mostram perfeitamente compatíveis com
um liberalismo não construtivista de autores liberais como Isaiah Berlin, na medida em
que a ortodoxia, se quisermos, conservadora daqueles é baseada, no essencial, no
costume, que, lá está, Isaiah Berlin não renega, bem ao contrário, no âmbito do
liberalismo.

Nesta medida, o conservadorismo de Burke e seus sucedâneos, não sendo construtivista,


de todo e obviamente, mas sendo reformista na medida certa, aproxima-se daquilo que
José Adelino Maltez designa, aqui se parafraseando, como o “liberalismo do que deve
ser”, um conservadorismo que admite a reforma, no momento, no modo e na medida
certos, sem disrupções.

Ao invés, o conservadorismo sucedâneo de De Maistre é reaccionário, no sentido em


que está sempre com o pensamento num passado que desenha como idílico, perfeito, ao
qual quer retornar.

Temos, deste modo, quatro conceitos operativos para análise político-sociológica –


Liberalismo Progressista, Liberalismo, Conservadorismo e Conservadorismo
reacionário – bem mais úteis, aqui se defende, do que os simplistas “esquerda” e
“direita”.

Vejamos, por exemplo, como os tornar operacionais na análise do presente e do futuro


da Ordem Internacional.

A falha fatal da segunda derivação do conservadorismo (o reaccionário), que clama pelo


regresso das nações, pela retoma da religião como principal regulador social, também,
por exemplo, é “apenas” uma – a realidade das coisas. A globalização é um facto. As
grandes corporações ganharam dimensões, e poderes, equivalentes à de pequenos ou
mesmo médios Estados-Nação. Quer se queira, quer não, elas ultrapassam as fronteiras
nacionais. Mais. Não fazem sentido, na actual equação económica, senão na ignorância
das fronteiras nacionais. Podem ser, e foram, contidas apenas em Estados como o
chinês, mas apenas porque a dimensão deste e a circunstância de ser um Estado
autoritário lhe possibilita fazer isso.

Podemos pensar que a coisa se resolve mediante mecanismos de partição de empresas


como Facebook, Google ou Amazon. Mas, na verdade, isso manifesta alguma
ingenuidade porque existem também enormes conglomerados industriais, químicos,
farmacêuticos e financeiros que criaram, beneficiaram e dependem desta mesma
globalização.

Por outro lado, a esmagadora dos países vive já com uma soberania limitada,
independentemente de estarem ou não incluídos em organizações transnacionais que a
diluem (como é o caso da U.E.), em função da opção feita, desde há décadas, e em todo
o mundo, pelo endividamento soberano. Grande parte destes Estados-Nação, em função
da dimensão das respectivas dívidas soberanas, são, no fundo, tão soberanos quanto os
credores internacionais (que operam num contexto de globalização) o permitam.
Escravos da dívida, escravidão essa que se prolongará por gerações, mantêm aquilo que
será, em termos de opções de política económica, nomeadamente quanto à
permeabilidade das suas fronteiras ao fluxo e refluxo de capitais, organização e opções
macroeconómicas, uma soberania aparente e muito limitada.

Em face desta realidade, ignorar a globalização, prescindir de uma Ordem que a regule,
que é a proposta que nos apresenta o conservadorismo reacionário, será ceder, mais uma
vez, à Lei da Natureza, à violência darwiniana da lei do mais forte.

Sustentamos, deste modo, a necessidade uma qualquer ordem multinacional que,


respeitando as especificidades dos Estados-Nação, consiga eficazmente e de forma
axiologicamente suportada, regular as relações internacionais globais.

Mas que ordem multinacional será essa? Certamente não a O.L.I., que aqui nos trouxe.

Terá, em face do que acima escrevi, que ser uma ordem axiologicamente ancorada, de
um ponto de vista Ocidental, no lastro cultural criado, ao longo de milénios, na Europa e
que, depois se estendeu para o continente americano e, em certa medida, para África
(com todas as idiossincrasias e variantes que este continente comporta).

O primeiro elemento necessário de tal Ordem seria exigência de que os seus elementos
reunissem os princípios da democracia tal como os desenhados por Robert Dahl, em
“Poliarquia: Participação e Oposição” (1971, no caso, Edição EDUSP, de 1 janeiro
1997), com os seguintes requisitos:

. Dirigentes eleitos - O controlo do governo, sob diversos assuntos, cabe ao dirigente


eleito pelos cidadãos, governo esse caracterizado por ser representativo;

. Eleições livres, justas e frequentes - Os eleitos são escolhidos em eleições frequentes e


justas em que a coerção é relativamente incomum;

. Liberdade de expressão – Garantia assegurada a qualquer individuo de se manifestar


ou exprimir, sem contrangimentos, sobre os mais diversificados assuntos;

. Fontes alternativas de informação - Os cidadãos têm o direito de encontrar fontes de


informação diversificadas e independentes, sendo que estas não estão subordinadas a
qualquer tipo de controlo do governo ou de um grupo político. Estas fontes de
informação estão protegidas pela lei.

. Cidadania Inclusiva – Não pode ser negado a nenhum individuo, que resida legal e
permanentemente no país e que esteja sujeito às suas leis, direitos que estão ao dispor de
outras pessoas e que são fundamentais às instituições políticas referidas; e

. Autonomia de associação – Os cidadãos possuem o direito de formar associações,


como partidos políticos e grupos de interesse, considerados independentes, com o
objetivo de verem representados os seus direitos.

Claro que estes subprincípios da primeira característica da possível ordem


correspondem apenas a um quadro geral que pode enformar diversos conteúdos
axiológicos, ainda que alguns daqueles (como a Liberdade de Expressão, a natureza
representativa do governo e a Cidadania Inclusiva) apontem já para uma determinada
densificação axiológica.

Esta – a densificação axiológica ou ética – seria a segunda característica fundamental da


uma eventual ordem multinacional e teria como matriz fundamental um liberalismo
assente na necessidade da protecção do indivíduo e da sociedade civil, com base em
princípios bem alicerçados na tessitura social, contra qualquer poder, privado ou estatal,
que seja, ou deseje ser, autoritário.

Mas esta platitude não é, por si, suficiente e é aqui que certas águas se podem separar.
Admitindo-se a cultura Ocidental, que dominou o mundo nos últimos séculos, como
sendo de raízes judaico-cristãs (conceito que, em rigor, não é tão pacificamente aceite
como possa parecer) tanto podemos sublinhar a natureza inclusiva e tolerante da mesma
como, inversamente, acentuar características de recusa da aceitação da diversidade,
intolerância em relação ao outro e, logo, exclusão.

Mostra-se necessário encontrar um equilíbrio entre um relativismo valorativo que


destrói a coesão sociocultural de uma qualquer sociedade e um absolutismo axiológico
que fecha e calcifica as sociedades.

Neste ponto, creio, teremos de ser realistas.

Voltando a Gadamer (reportando-me à autora e locais supracitados ) a experiência do ser


humano é sempre a experiência de alguém concreto, pessoal e singular, capaz de sair de
si e encontrar o outro (necessariamente diferente), sendo por ele afectado, num
acontecimento vivido, num espaço e tempo determinados, experiência essa que pode ser
agonista, dolorosa e desagradável, mas abrindo-nos novos horizontes e colocando-nos
radicalmente em questão pela revelação do outro, da alteridade.

O que retirar, em termos sociais, daqui? Que a multiculturalidade (não, sublinho, não o
multiculturalismo) é uma realidade nas sociedades contemporâneas, de tal forma que só
seria possível esbatê-la mediante mecanismo autoritários (como os que têm sido
buscados em países da zona leste e centro europeia), ou seja, não liberais. E essa, para
um liberal (de qualquer das múltiplas encarnações que este conceito encerra), não pode
ser a resposta. Pode ser a resposta para um conservador reaccionário (nada de mal nisso,
é uma opção, sendo uma palavra que, em Portugal, tem uma conotação negativa em
virtude, tão só, da juventude da nossa democracia, podendo ser-se, simultaneamente,
culturalmente reaccionário e democrata) mas não de um liberal.

Sendo a multiculturalidade uma realidade social contemporânea, a forma de ética e


axiologicamente lidar com ela é, no fundo, recorrer à adopção dos valores da liberdade,
da igualdade e da tolerância (já sobeja e classicamente densificados nas suas variadas
vertentes), contrastando-os, veementemente, com o libertinismo, o igualitarismo e o
relativismo. E, necessariamente, com o autoritarismo.

Aquele primeiro tríptico (Liberdade – e não libertinismo; Igualdade – e não


igualitarismo; e Tolerância – e não relativismo) será o horizonte comum de valores que
se exige a quem queira fazer parte de uma ordem multinacional, não só, mas também de
uma sociedade organizada em Estado-Nação. Operacionalizado tal tríptico axiológico
nunca o multiculturalismo seria adoptável, na medida em que implicava a recepção e
incorporação de valores estranhos como o do absolutismo religioso, da desigualdade
entre géneros e da intolerância, em violação clara, por exemplo, do paradoxo da
tolerância de Popper. Na verdade, constatou e constata-se em vários países europeus, a
incorporação de pessoas, ou conjuntos de pessoas, encapsuladas, que não partilhavam
daquele tríptico, permitiu a criação de bolsas socialmente isoladas e, portanto,
disruptivas e potencialmente destruidoras de todo o tecido social e da coesão do próprio
Estado-Nação.

Deste modo, por um lado, afasta-se o relativismo valorativo e, por outro, supera-se a
tentação do absolutismo axiológico.

A adopção daquele tríptico axiológico, associado a um enquadramento democrático


como o supra exposto, implicaria o afastar de formas de estar características de estados
autoritários, não liberais, como a China ou a Rússia, por exemplo ou, de forma mais
atenuada, mas igualmente preocupante, da Hungria, da Polónia e da Eslováquia, entre
outros.

Não teríamos, deste modo, uma ordem internacional moralmente asséptica, um


liberalismo amoral, quer fora, quer dentro de fronteiras, sendo certo que não utilizamos,
como conceitos informadores ou conformadores, os de “direita” e “esquerda” na medida
em que essa simples disjunção não permite uma abordagem compreensiva do fenómeno
que identificámos e ensaiámos aqui explicitar e resolver.

Sobejaria solucionar o problema chinês. Como enfrentar este gigante populacional,


económico e financeiro, detentor de dívida soberana em montantes elevados, de vários
países (com a inerente interferência na respectiva soberania) incluindo os E.U.A., com
uma presença militar muito respeitável e um plano expansionista para Ocidente, quer
mediante a aquisição de empresas estruturais para qualquer soberania, como sucedeu em
Portugal, quer mediante a iniciativa da Rota da Sede que mais não é do que uma
expressão do mesmo expansionismo?

Bom, esse é outro tema, que este texto vai já muito longo.

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