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No entanto, ainda assim, o que se vai entranhando e usando, por via da opinião
publicada, padece de vieses ideológicos e falta de rigor.
Como é bom de ver – e acima ficou claro – não me arvoro em especialista na matéria.
Bem pelo contrário, primo pela ignorância. Com duas vantagens – o desassombro (até,
se assim se quiser, a falta de vergonha e/ ou estupidez natural) e a curiosidade.
Dentro desse espírito, então, diria que o liberalismo foi, no seu início, uma resposta e
não uma pergunta, ou seja, não é, nunca foi, uma construção idealista, sendo que,
parece-me, a influência do idealismo alemão na parte continental da Europa levou (com
a excepção de Benjamin Constant que, não por acaso, fez parte da formação superior em
Edimburgo – Escócia – e viveu no Reino Unido) à existência de uma partição ou
bifurcação entre o liberalismo de matriz anglo-saxónica e o de matriz continental
europeia ou, dito de outra forma, entre um liberalismo/racionalismo evolucionista (o
primeiro) e liberalismo/racionalismo construtivista (o segundo).
O primeiro arreigado num húmus tradicional, numa concretude a que faz referência
Isaiah Berlin ao longo da sua obra infelizmente muito dispersa ( aparentemente gostava
pouco de escrever, mas aqui podem encontrar-se muitas referências bibliográficas de outros e obras do
mesmo - https://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/book/lookupname?key=Berlin%2C%20Isaiah
Repare-se que, embora Kelsen e Schmitt não estivessem de acordo (apenas em virtude
da limitação “constitucional” que Kelsen entendia como necessária para limitação do
poder) ambos constroem modelos de Teoria da Justiça e do Estado que prescindem da
componente ético-valorativa social.
Este esvaziamento, esta procura da pureza dos princípios como fundamento de toda uma
construção social, no caso Kelsen, ou a procura da construção de todo um sistema social
baseado numa única fonte de autoridade posicionada acima da sociedade e prescindindo
dos inputs éticos da mesma, no caso de Schmitt, cria uma cisão entre Justiça e Ética,
entre Direito e organização do Estado e a Sociedade.
Avançando umas décadas, surgem-nos Teorias da Justiça que, mesmo no mundo anglo-
saxónico, partem, para se poderem manter cogentes, de puras abstracções, como é o
caso da ficção do indivíduo original em Rawls. Aparentemente, numa perfunctória
abordagem, classificaram-se tais teorias como de liberais ainda que, no caso de Rawls,
claramente tributárias de um liberalismo-social que, ainda assim, é um subtipo de
Liberalismo.
Foi neste caldo académico e intelectual que surgiram construções como a de Habermas,
que, no seguimento de uma concepção idealista da sociedade, fala, por exemplo, de uma
soberania constitucional. Habermas sublima as possibilidades da razão, da emancipação
e da comunicação racional-crítica, que sustenta como estando latentes nas instituições
modernas e na capacidade humana de deliberar e agir em função de interesses racionais.
Sendo claramente neokantiano, Habermas vai mais além, defendendo a relativização da
soberania nacional e a criação de uma república plurinacional, com ordens normativas
públicas, desenvolvidas num plano supranacional, vinculando directamente quer os
cidadãos, quer os Estados-Nação. Obviamente, não sendo estulto, ressalva que, para o
efeito, seria necessário que, quer os Estados-Nação quer as respectivas populações
passassem por determinados “processos de aprendizagem”.
Parece-me estar, no percurso que ensaiei fazer, o berço do nascimento da Ordem Liberal
Internacional (doravante, O.L.I.), em termos conceituais.
A natureza meta-humana, acéptica, amoral, da O.L.I. teve, sobretudo, origens bem mais
pragmáticas.
A ideia de livre comércio mundial, apenas sujeito a regras de índole económica e/ou
financeira e a uma regulação privada via, sobretudo, Tribunais Arbitrais, gerou-se nas
mentes dos que viam aí uma oportunidade única de enriquecer sem os limites de um
simples Estado-Nação. A possibilidade de movimentar capitais financeiros a seu bel-
prazer; de fazer engenharia fiscal agressiva; de “deslocalizar” as cadeias de valor por
forma a colocar nos cantos mais pobres do mundo as menores-valias (em regra a
produção em massa) e fazer retornar as mais-valias aos centros financeiros globais.
Tudo isto é puro capitalismo desregulado, a adopção da Lei da Natureza, isto é, a lei
darwiniana do mais forte.
Como desculpa, sim, apenas isso, como desculpa, porque nós sabemos que eles sabiam
que era inviável, os “poderes que são” afirmaram que o acolhimento, no seio da O.L.I.,
de países de matiz claramente autoritária e antiliberal ou iliberal, como a China, os iria
enriquecer, fazer crescer a respectiva classe média e, como no Ocidente sucedeu, a
mesma iria acabar por ser tão forte e reivindicativa que o regime Comunista Chinês
acabaria por ceder e permitir o nascer, na China, de uma sociedade com valores liberais
ocidentais. Por razões que melhor se explicarão abaixo, tal não sucedeu, nem sucederia
nunca.
Por estes motivos, os defensores da O.L.I., tal qual ela foi desenhada, esventrada de
conteúdo ético ou axiológico, não podem ser considerados como “liberais” em qualquer
sentido, político, que eu conheça. Enquadrar-se-ão, porventura, na destemperada ideia
do Neoliberalismo, que não é, na verdade, um Liberalismo, pois que ignora, espezinha,
despreza, a individualidade, a nobreza do ser indivíduo, reconduzindo-o a mero alvo
para o consumo imediato. E, se uma coisa isso não é, é, precisamente, Liberalismo.
É por essa razão que, mesmo dentro de um país pequeno e culturalmente bastante coeso,
como é o caso de Portugal, a aplicação de uma norma tão simples como a que prevê, no
Código Penal, o crime de injúria, deverá ser feita mediante um percurso interpretativo
que tenha em atenção a realidade social em que o funcionamento da mesma é,
abstractamente, despoletado, o mesmo sucedendo, sendo caso de aplicação ao caso
concreto, na determinação da natureza e medida da pena.
E este autoritarismo, por sua vez, só é possível e viável garantida que esteja a existência
de grandes massas inanes cujo sacrifício seja mero dano colateral e, por essa via,
“aceitável", baseando-se na dominação permanente de todos os indivíduos em todas as
esferas da vida, isolando o indivíduo e colocando-o em organizações de massa
indiferenciadas, deixando-o isolado e mais facilmente manipulável, transformando a
cultura em propaganda, ou seja, a transformação de valores culturais em produtos
vendáveis, o que passa pela desvalorização propositada do “conhecimento científico” ou
do simples conhecimento especializado, dos intelectuais, tudo transformando em cultura
pop, não reflexiva e acrítica.
Por essa razão a China comunista, autoritária, dirigida pelo respectivo P.C.C., não
experienciou qualquer mudança de paradigma de organização social e de governação,
no sentido de qualquer tipo de aproximação às democracias liberais, nem, sendo o
produto de uma cultura milenar de subjugação e submissão, alguma vez tal aconteceria.
Não me parece possível ou, melhor dito, realista, voltar, sem mais, a um passado de
total soberania nacional, de desvinculação global, de isolamento e nacionalismo.
Aqui talvez devamos fazer um parêntesis para abordar, com ligeira profundeza, o
Conservadorismo.
Não espanta, por isso, que, apesar de um e outro não acreditarem, verdadeiramente, na
capacidade de autogoverno do “povo”, Burke, pelo seu lado, tenha dado origem a um
conservadorismo sustentado em puro bom senso esclarecido e competência prática, ao
passo que De Maistre, por sua vez, tenha sido o gérmen dos autoritarismos não
comunistas e fascismos do século XX. Apesar do pessimismo antropológico de ambos
(que confessadamente partilho), Burke (com o qual partilho o entendimento) distancia-
se de De Maistre num ponto fundamental – é que o primeiro entendia que as pessoas
reconheciam as regras do bom viver e confiavam que as outras as seguiriam,
reconhecendo-as, ao passo que o segundo não admitia que, em liberdade, as pessoas
disso fossem capazes. Para o primeiro era o costume, a tradição, a fonte das regras
sociais, ao passo que, para o segundo, essa fonte apenas podia ser Deus.
Por outro lado, a esmagadora dos países vive já com uma soberania limitada,
independentemente de estarem ou não incluídos em organizações transnacionais que a
diluem (como é o caso da U.E.), em função da opção feita, desde há décadas, e em todo
o mundo, pelo endividamento soberano. Grande parte destes Estados-Nação, em função
da dimensão das respectivas dívidas soberanas, são, no fundo, tão soberanos quanto os
credores internacionais (que operam num contexto de globalização) o permitam.
Escravos da dívida, escravidão essa que se prolongará por gerações, mantêm aquilo que
será, em termos de opções de política económica, nomeadamente quanto à
permeabilidade das suas fronteiras ao fluxo e refluxo de capitais, organização e opções
macroeconómicas, uma soberania aparente e muito limitada.
Em face desta realidade, ignorar a globalização, prescindir de uma Ordem que a regule,
que é a proposta que nos apresenta o conservadorismo reacionário, será ceder, mais uma
vez, à Lei da Natureza, à violência darwiniana da lei do mais forte.
Mas que ordem multinacional será essa? Certamente não a O.L.I., que aqui nos trouxe.
Terá, em face do que acima escrevi, que ser uma ordem axiologicamente ancorada, de
um ponto de vista Ocidental, no lastro cultural criado, ao longo de milénios, na Europa e
que, depois se estendeu para o continente americano e, em certa medida, para África
(com todas as idiossincrasias e variantes que este continente comporta).
O primeiro elemento necessário de tal Ordem seria exigência de que os seus elementos
reunissem os princípios da democracia tal como os desenhados por Robert Dahl, em
“Poliarquia: Participação e Oposição” (1971, no caso, Edição EDUSP, de 1 janeiro
1997), com os seguintes requisitos:
. Cidadania Inclusiva – Não pode ser negado a nenhum individuo, que resida legal e
permanentemente no país e que esteja sujeito às suas leis, direitos que estão ao dispor de
outras pessoas e que são fundamentais às instituições políticas referidas; e
Mas esta platitude não é, por si, suficiente e é aqui que certas águas se podem separar.
Admitindo-se a cultura Ocidental, que dominou o mundo nos últimos séculos, como
sendo de raízes judaico-cristãs (conceito que, em rigor, não é tão pacificamente aceite
como possa parecer) tanto podemos sublinhar a natureza inclusiva e tolerante da mesma
como, inversamente, acentuar características de recusa da aceitação da diversidade,
intolerância em relação ao outro e, logo, exclusão.
O que retirar, em termos sociais, daqui? Que a multiculturalidade (não, sublinho, não o
multiculturalismo) é uma realidade nas sociedades contemporâneas, de tal forma que só
seria possível esbatê-la mediante mecanismo autoritários (como os que têm sido
buscados em países da zona leste e centro europeia), ou seja, não liberais. E essa, para
um liberal (de qualquer das múltiplas encarnações que este conceito encerra), não pode
ser a resposta. Pode ser a resposta para um conservador reaccionário (nada de mal nisso,
é uma opção, sendo uma palavra que, em Portugal, tem uma conotação negativa em
virtude, tão só, da juventude da nossa democracia, podendo ser-se, simultaneamente,
culturalmente reaccionário e democrata) mas não de um liberal.
Deste modo, por um lado, afasta-se o relativismo valorativo e, por outro, supera-se a
tentação do absolutismo axiológico.
Bom, esse é outro tema, que este texto vai já muito longo.