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DEMOCRACIA DAS MINORIAS, MAIORIAS SILENCIOSAS E BOLHAS

NUMA SOCIEDADE PÓS-FACTUAL.

1. A democracia tem uma longa tradição de tomar as partes pelo todo.

É habitual situar o nascimento da democracia na cidade-estado de


Atenas e entendida a democracia, etimologicamente, como o governo pelo
povo.

Todo o povo (?). Não.

A democracia, apesar desse inicial desiderato, tem uma longa


tradição de tomar as partes pelo todo.

Começando logo pela democracia tal como divisada por


Clístenes, em Atenas na altura, pelo século V A.C., uma sociedade
relativamente pequena (cerca de 400.000 habitantes) na qual apenas, no
entanto, participavam no processo de decisão democrático os cidadãos
atenienses, conceito a que correspondia cerca de 11% da população, ficando
fora do processo democrático, todos os restantes 89% da população (mulheres,
crianças, escravos, metecos (estrangeiros) e famílias de metecos - ver,
exemplificativamente, quanto aos números,
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Atenas_Antiga). Pouco mais de um décimo dos
governados tinha, assim, voto nas decisões de governação, tomadas por
reduzida minoria. Apesar de todas a evoluções filosóficas, políticas e sociais,
as democracias, incluindo as demo-liberais dos E.U.A. e da Europa do Norte e

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Nordeste, eram, mesmo formalmente, democracias de minorias, na medida em
que, até meados do século XX, existiam limitações à capacidade eleitoral
activa e passiva (censitárias – dando aquela apenas a cidadãos com um certo
património e/ou rendimento; académicas – impedindo os não alfabetizados de
a ter; ou de género – negando tal capacidade às mulheres). Estas limitações,
atendendo ao perfil socioeconómico daquelas sociedades, implicavam que a
maioria da população estava afastada do processo democrático. Eram,
inequivocamente, também, democracias de minorias.

Com o advento do sufrágio universal (tendencialmente a partir de


meados do século XX) a maioria da população dos países que o adoptaram
passou a poder participar no processo democrático. Mas significa isso que não
se possa ainda falar, então como agora, de democracias das minorias? Mesmo
não atendendo à questão do exercício democrático do poder por parte daqueles
que para o mesmo são democraticamente eleitos (que é outra matéria,
importante, mas a tratar adiante) eu diria que continuamos a viver em
democracias das minorias.

Limitemo-nos, por agora, à parte procedimental da democracia


periodicamente concretizada (eleições – democracia electiva) e referendos.

A este propósito, e independentemente do sistema eleitoral de


cada uma das sociedades democráticas, podemos (e devemos) sempre fazer
uma comparação entre o número total de eleitores e o número de votos
expressos num ou noutro (ou noutros) sentido(s). Penso ser preferível essa
análise àquela, mais habitual nos media, em que apenas se atende aos votos
expressos para definir vencedores e vencidos e surpreender tendências das
sociedades (já lá irei, noutro ponto). Só assim os resultados eleitorais
transmitem verdadeiramente o grau de adesão da população quer ao resultado
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vencedor, quer ao próprio processo democrático eleitoral. Comecemos por
Portugal e, em Portugal, por um referendo – o de 2007, da despenalização da
interrupção voluntária da gravidez. Verifica-se que o “sim”, num total de
8.814.016 eleitores inscritos, obteve 2.231.529 dos votos expressos, dentro de
um total de 3.840.176 de votos expressos. Foi a maioria da população eleitora
que decidiu? Não. No sentido do “sim” votou uma minoria de pouco mais de
25%. O que significa que tal opção não foi subscrita, expressamente, por
quase ¾ da população
(https://www.cne.pt/sites/default/files/dl/resultados_rn_1_2007.pdf).

Passemos a eleições para a A.R, tomando como ponto de partida


duas maiorias absolutas – PSD, em 1987, e PS, em 2005. No primeiro caso,
apesar da eleição da maioria dos deputados à A.R., o vencedor recolheu,
atendendo não apenas aos votos expressos, mas ao universo total de eleitores,
o apoio expresso de 35% da população, o que significa que o governo dali
saído iria governar, com o respectivo programa, cerca de 65% de pessoas que
expressamente haviam tomado outra opção ou não manifestaram o seu apoio a
essa solução governativa. Uma minoria, portanto, da população escolheu
activamente a governação da maioria da mesma
(https://www.cne.pt/sites/default/files/dl/resultados_ar_1987.pdf). O mesmo
no segundo caso. Em 2005, o PS obteve maioria absoluta dos deputados
eleitos com o voto expresso de cerca de 28% da população eleitora (sempre
atendendo ao universo total de eleitores). Uma minoria, portanto, que escolheu
a opção governativa que passou a governar, também, 72% da população que
manifestou outras opções ou não manifestou opção alguma
(https://www.cne.pt/sites/default/files/dl/resultados_ar_2005.pdf).

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Voltando aos referendos, nos quais, por estar em causa uma
opção binária simples, esta dessincronia, como se viu acerca do referendo de
2007, é ainda mais patente, temos, mas recentemente, o referendo do “Brexit”.
Num universo de 46.500.001, votaram a favor do Brexit 17.410.742 o que
corresponde a cerca de 37,4% da população de eleitores. Significa isto que
pouco mais de um terço da população eleitora tomou uma opção, que foi
executada, sem o acordo expresso de quase dois terços da mesma população
(https://www.electoralcommission.org.uk/who-we-are-and-what-we-do/
elections-and-referendums/past-elections-and-referendums/eu-referendum/
results-and-turnout-eu-referendum).

O mesmo fenómeno ocorre nos E.U.A.

Comparemos apenas vencedores de primeiros mandatos, em


algumas das eleições das últimas décadas, chamando a atenção para o facto
(muito importante) de inexistir recenseamento obrigatório nos E.U.A.
(https://en.wikipedia.org/wiki/Voter_registration). É, por isso, relevante
chamar a atenção para um estudo de 2012 que aponta para a existência de 51
milhões de americanos, com capacidade eleitoral activa, ou seja, naquela data,
cerca de 24% (quase 1/4) do universo de votantes potencial, que nem sequer
se registava para o efeito
http://www.pewtrusts.org/.../pewupgradingvoterregistratio...). Por isso, prefiro
articular o número de votos expressos com o da população total por entender
que é mais provável que a diferença entre população total e o total de
população com capacidade eleitoral activa seja menor do que a diferença entre
este último total e o total de eleitores recenseados. Ainda que assim não fosse
os resultados obtidos não seriam muito diferentes. Além disso, e sobretudo,
reputo de mais importante discernir a adesão de toda a população e não,
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apenas, da população que se regista para votar. Para o efeito utilizo os dados
existentes na data (ou em data anterior mais próxima disponível) da eleição
(http://www.worldometers.info/world-population/us-population/). Os dados
que se seguem, com exclusão da população total, foram recolhidos em
http://uselectionatlas.org/RESULTS/index.html. Reagan, em 1980, foi eleito
com 43.903.230 de votos expressos, tendo Carter obtido 35.480.115. A
população, à data, ascendia a 229.588.208. Verifica-se, desde logo, que a
soma dos votos expressos nos dois candidatos nem sequer ultrapassa os 35%
da população. Desta forma, Reagan foi eleito com 19% de votos expressos,
atendendo ao universo de toda a população. Clinton, em 1992, foi eleito com
44.909.806 de votos expressos, tendo George Bush obtido 39.104.550, sendo a
população total, em 1990, de 256.284.7810.

Os votos expressos em ambos os candidatos correspondem a 33%


da população total representando o voto em Clinton apenas a 17,7% da
mesma. Obama, em 2008, foi eleito com 69.499.428 dos votos expressos,
tendo John S. McCain obtido 59.950.323, sendo a população total, em 2005,
de 296.139.635. Obtiveram o voto expresso de cerca de 48% da população,
representando o voto em Obama pouco mais do que 23% da população. Por
fim, Trump, em 2016, é eleito com 62.235.295 dos votos expressos, obtendo
Clinton 64.235.478, numa população actual de 324.118.787. Obtiveram,
assim, em conjunto, o voto expresso de apenas cerca de 40% da população,
cabendo cerca de 19,2% a Trump e 19,8% de votos expressos a Clinton.

Conforme, penso, se pode retirar de todos estes exemplos, em


muitas ocasiões os resultados das eleições não manifestam, de forma expressa,
as opções de maioria significativa da população, e quase sempre a opção
governativa optada, o Presidente escolhido ou a opção referendária acolhida
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correspondem à opção de uma minoria da população do respectivo país.
Continua, assim, a existir uma democracia das minorias, não porque apenas
uma minoria da população seja admitida a participar no processo, mas sim,
agora, porque a maioria da população não expressou a mesma
orientação/opção que saiu vencedora.

2. Existe, por isso, neste funcionamento democrático das sociedades, um


problema de maioria silenciosa ou silenciada.

Não utilizo aqui o conceito de maioria silenciosa tal como


utilizado pelos apoiantes de Spínola, em 1974, e, antes disso, por Richard
Nixon e, depois, por muitos outros políticos. Nestes casos apelava-se à
existência de uma suposta maioria sociológica, silenciosa, atribuindo-se-lhe
um qualquer sentir ou pensamento que estaria alinhado com o dos agentes
políticos que procuravam capitalizar tal silêncio a favor da sua agenda política
e/ou ideológica. É este, também, o princípio operacional dos chamados
“populistas” que procuram, sem qualquer densidade ideológica, captar, com
declarações vagas e histriónicas, essa tal maioria, arvorando-se como seus
porta-vozes. O que quero significar é que, na medida em que as opções
democráticas eletivas ou referendárias acabam por ser tomadas por uma
minoria da população (atendendo ao universo total de eleitores), sobra uma
maioria da população que não é representada por essa opção. Isto é mais
gravoso quando estamos perante uma opção binária de execução imediata (o
referendo vinculativo em que baste uma maioria dos votos expressos,
independentemente de representarem ou não mais de cinquenta por cento do
total da população eleitoral activa, para ser fixada e seguida uma determinada
orientação). Esta circunstância implica, para mim, três conclusões.

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Em primeiro lugar, analisar o resultado de eleições ou de
referendos extrapolando deles uma qualquer orientação social, política ou
ideológica de uma determinada sociedade no seu todo será uma redução
simplificadora.

Se Obama é eleito por apenas 23% da população como se pode


afirmar que a sociedade norte-americana virou num sentido mais liberal (no
sentido que isso tem nos E.U.A.)?

Ou que, em Portugal, o governo de 2015 e maioria parlamentar


que o suportou (27%) corresponde a uma viragem à esquerda da população?
Como afirmar isso quando tais opções políticas foram expressas por apenas,
respectivamente, 23% e 27% da população?

No mesmo sentido, como retirar dos resultados do referendo do


Brexit e das antepenúltimas eleições presidenciais dos Estados Unidos
qualquer inferência generalizante quanto a um regresso do isolacionismo ou de
uma viragem conservadora se são opções que correspondem a
respectivamente, 37,4% e 19,2% da população? Ou, inversamente, retirar da
maior percentagem de votos em Hillary Clinton, uma qualquer recusa, pela
maioria da população, das propostas e da forma de ser e estar de Trump?

Em segundo lugar, por um lado, o exercício verdadeiramente


democrático do poder implica a existência institucional de sistemas de
verificação e contrabalanço que impeçam o poder democraticamente eleito de
fazer o que bem entender (como estes elementos institucionais são criados e
funcionam é uma outra questão, bem complexa, que não vou tratar agora). Por
outro lado, e independentemente dos tais controlos de exageros, o exercício
democrático do poder, sem prejuízo da sua eficácia (outra questão complexa

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de que não vou aqui tratar), deverá ser feito em comunicação e troca com toda
a população (ou quem represente os diversos interesses) e não apenas
dirigindo-se ao seu mercado eleitoral.

Em terceiro lugar a democracia referendária – precisamente


porque se esgota no momento do resultado – apenas faz sentido democrático
se a opção encontrada corresponder à opção expressa pela maioria da
população eleitora e não apenas da maioria dos votos expressos. Apesar disto,
e apesar do Arrow's impossibility theorem
(https://plato.stanford.edu/entries/arrows-theorem/#WilPeo), continuo a
entender, como quase toda a gente (penso), que o sistema democrático é o
menos mau de todos os sistemas de organização do poder político. No entanto,
quer os actores quer os espectadores (comentadores) do jogo democrático
deverão perceber a limitação desta forma de legitimidade democrática,
devendo os primeiros exercer o respectivo poder não apenas no sentido que
resulta da minoria que os elegeu, mas ouvindo e ponderando, a cada passo
decisório, todas os restantes – e maioritários, por vezes – sentires da
população. E os segundos não correrem precipitadamente a retirar conclusões.
Por outro lado, é absolutamente necessário que toda a população eleitoral
perceba que o jogo democrático é um jogo de participação. A não
participação, através da abstenção, e a não apresentação de diversas propostas
conduz à permissão que minorias mais activas dominem os destinos de
maiorias que assim se tornam silenciosas e/ou, em casos extremos,
silenciadas. Terá a população que se organizar de acordo com os seus
interesses e pontos de vista nem que seja para que os actores eleitos pela
minoria tenham interlocutores com os quais possam ir apurando (refinando) a
tomada de decisões. Ou seja, a democracia não acaba nas eleições, bem pelo

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contrário, na medida em que só a maioria tem o direito de agir e deliberar por
todos (John Locke, “Dois Tratados sobre o Governo”, 1689, págs. 530-531). A
democracia exerce-se todos os dias pela via discursiva e argumentativa.

3. Compreendo a tentação de “tresler” os resultados eleitorais,


atendendo apenas aos votos expressos. A realidade é, o mais das vezes,
complexa, e o ser humano é avesso a viver uma realidade que tem dificuldade
em entender. É perfeitamente natural, por isso, a criação de matrizes de leitura
da realidade que reduzam a sua complexidade. O problema é que a realidade,
em todas as suas matizes, continua lá, indiferente às leituras que façam dela.
Por isso o exercício em sentido unívoco do poder democraticamente eleito
leva a tensões que a democracia pode não conseguir resolver e/ou pode tornar
as sociedades ingovernáveis democraticamente. Penso ser correcto afirmar que
o ser humano, sendo, genericamente, um animal gregário, tem tendência a
agregar-se com outros atendendo principalmente ao que esses outros têm de
comum com ele no que diz respeito desde às necessidades mais básicas até
aos pensamentos e posicionamentos sociais, económicos e políticos.

Mas, normalmente, esses factores de agregação não permitem,


por si só, a criação e manutenção de sociedade coesas porque existirão sempre
diversos e divergentes factores de agregação e, em função dos mesmos,
existirão sempre diversos agregados no seio de uma mesma comunidade
geográfica e cultural, sobretudo num mundo, como o de hoje, em que as ideias
e as pessoas circulam quase globalmente. Nada de mal com isto. O problema é
quando essas agregações se transformam em “bolhas” que se apresentam
como portadoras de sentido próprio sem qualquer porosidade comunicacional
com outras “bolhas”.

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Em Coimbra dir-se-ia, penso, que se transformaram, os grupos
sociais, em círculos autopoiéticos fechados (Niklas Luhmann). Alimentada por
esse “fechamento comunicacional”, e alimentando, por sua vez, o mesmo
(num círculo vicioso), surge a chamada sociedade da pós-verdade ou pós-
factual (na definição do dicionário Oxford: «Relating to or denoting
circumstances in which objective facts are less influential in shaping public
opinion than appeals to emotion and personal belief: ‘in this era of post-truth
politics, it's easy to cherry-pick data and come to whatever conclusion you
desire’; ‘some commentators have observed that we are living in a post-truth
age’» - https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth e, em português,
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/aberturas/pagina/1). Muito simplisticamente
pode reduzir-se a questão a esta afirmação: “a minha opinião é melhor que a
tua” e prefiro ouvir, ler ou ver alguém que já tem a minha opinião e vai
reforçá-la ou validá-la.

No contexto das “bolhas” uma das mais perniciosas é a dos meios


de comunicação de massas (mass media). Sendo a comunicação essencial para
uma sociedade democrática, e nunca tendo a humanidade tido ao seu dispor
tantos meios de comunicação interpessoal, por um lado e, por outro lado,
tantas formas de fazer circular informação, é impressionante verificar como
grande parte dos meios de comunicação de massas reproduzem
sistematicamente a mesma informação, com pequenas variações e muita
edição e opinião confundida com informação.

O papel que desempenham os mass media foi bem analisado e


descrito por Niklas Luhmann. Em “The reality of the Mass Media” (Stanford
Press University, 2000) explica-se, sinopticamente, que «the system of mass
media is a set of recursive, self–referential programmes of communication,
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whose functions are not determined by the external values of truthfulness,
objectivity, or knowledge, nor by specific social interests or political
directives. Rather, he contends that the system of mass media is regulated by
the internal code information / non–information, which enables the system to
select its information (news) from its own environment and to communicate
this information in accordance with its own reflexive criteria. Despite its self–
referential quality, however, Luhmann describes the mass media as one of the
key cognitive systems of modern society, by means of which society
constructs the illusion of its own reality». O mesmo explica e demonstra o
autor em “A improbabilidade da comunicação” (Passagens, 2006).

Na verdade, o subsistema dos meios de comunicação social de


massas, ao invés de permitir ao cidadão a obtenção de informação objectiva
cria, antes, “alter-realidades” mais adequadas a servir os interesses dos
stackeholders (o mais das vezes desconhecidos do grande público ou, sendo
conhecidos, sem transparência nas respectivas agendas políticas ou
económicas) desses mass media. Com a agravante deste quarto poder não ter
qualquer tipo de hétero-controlo ou transparência. Só cidadãos com muita
experiência e com muita leitura cruzada, sobretudo de outras fontes,
conseguem divisar os vários interesses e lutas que estão por detrás de certa
forma de editar a realidade. Por isso, ficou muito surpreendida a “bolha”
mediática com a vitória da minoria (19,2 %) que elegeu Trump em 2016.
Entretida na sua “bolha”, alimentando e realimentando-se em circuito fechado,
perde o contacto com a realidade e dá por ela quando esta lhe surge como
parede intransponível. Fez, de seguida, uma enorme penitência e começaram
as leituras do resultado eleitoral sempre tomando a parte pelo todo, ou seja,
criando uma realidade que apenas atendia à vitória de Trump tal qual, sem

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atender ao facto de ter recolhido apenas 19,2 % dos votos expressos do total
da população. Admitamos, por absurdo, que avançavam as recontagens nos
três estados de que se falava então e que, por absurdo também, isso alterava o
resultado em termos de colégio eleitoral passando Hillary Clinton a ter a
maioria do mesmo. Então a realidade seria outra? Não. Era a mesma. Os votos
foram lançados até ao dia 8 de Novembro de 2016 e não mudaram desde
então, bem ou mal contados.

Repare-se que são estes média que criam uma situação de


legitimidade flutuante (João de Almeida Santos, “Media e Poder – O poder
mediático e a erosão da democracia representativa”, Nova Vega, 2012, pág.
14), em conjugação com sondagens e estudos de opinião para todos os gostos
(e agendas), tanto ignorando resultados eleitorais recentes como criando um
ambiente ou contexto favorável a uns ou outros dos actores políticos,
dependendo da inclinação (nunca claramente assumida) que cada meio de
comunicação social de massas tem. Essa legitimidade flutuante contribui,
igualmente, para a erosão da legitimidade democrática, sobretudo atendendo
às sucessivas “alter-realidades” que vão sendo mediaticamente criadas. Mas
este fenómeno não é exclusivo do subsistema comunicacional de massas.
Mesmo os que se encontram fora da “bolha” vivem, por sua vez, dentro de
outra “bolha” em regime de alimentação de circuito fechado. Aceita-se
acriticamente o relativismo da opinião unidimensional, preferindo-a aos factos
duros e complexos, ficando cada “bolha” isolada e os respectivos membros
satisfeitos dentro do seu mundo portador de sentido, mesmo que de um sentido
que não corresponda, ou possa não corresponder, ao mundo real. Preferem os
membros das várias “bolhas” a comunicação reforçadora das suas crenças e
facilmente, numa sociedade cheia de fontes de “informação”, a obtêm. Esta

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situação é perigosa para a democracia que é, hoje em dia, uma democracia da
emoção (Jésus Timoteo, “Gestión del poder diluído, La construcción de la
sociedad mediática (1989-2004)”, 2005, Madrid, Pearson).

Conforme disse Péricles (oração fúnebre de homenagem aos


primeiros mortos da guerra de Peloponeso, cuja leitura integral vale a pena, de
tão actual –Tucídides, Livro II, capítulos 37-40): «não é o debate que é
empecilho à acção, e sim o facto de não se estar esclarecido pelo debate antes
de chegar a hora da acção». A existência destas “bolhas”, numa sociedade
pós-factual, auto portadoras de sentido, apenas internamente alimentado,
impede um real debate. Alimentando uma polarização sem verdadeiro debate,
cada uma reivindicando para si um domínio sociológico que a realidade não
comprova, deixa-se fora do debate um conjunto maioritário de cidadãos que
não manifestaram expressamente e maioritariamente o seu apoio a nenhuma
das bolhas. É isto, esta ignorância a que se vota quem não votou nos
vencedores (sempre minoritários, como se viu) ou quem não vota,
simplesmente, que pode dar origem a tensões sistémicas não resolúveis
democraticamente porque, simplesmente, deixa a população de pensar que,
apesar de tudo, a democracia é a melhor forma de, sem violência, mudar um
governo que não se aprecia (Karl Popper).

Tanto é assim que se pode verificar, crescentemente, perante a


incapacidade do poder político em sair deste impasse provocado pela
improbabilidade, senão impossibilidade, de comunicação/debate frutificante, a
tentação de remeter para o subsistema Judicial

Sair das nossas bolhas, ou fazê-las permeáveis (não no sentido de


irremediavelmente mutáveis e abdicando da sua autopoiesis, mas admitindo o
debate argumentativo e eventual alteração ou adaptação do respectivo sentido)
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ao outro, será, por isso, o mais importante trabalho democrático da
actualidade.

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