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Sobre o Kemetismo 
 
Advertência:  ​Em  primeiro  lugar,  este  texto  não  tem  por  objetivo  ser  o  vetor  de  uma  verdade, 
porque  o  kemetismo  não  possui  uma  verdade  apenas,  já  que  são  múltiplas  as  suas 
manifestações,  tais  como  eram  as  próprias  manifestações  em  Kemet.  No  entanto, em respeito à 
essa  multiplicidade,  podemos  deixar  delineadas  as  bases  fundamentais  dos  princípios  do 
kemetismo que são inerentes a praticamente todas as suas comunidades. 
 
Kemetismo​,  palavra  que  deriva  do  termo  egípcio  ​kemet​,  que  significa  Egito,  na  sua  própria 
língua,  também  é  por  vezes referido como Neterismo, derivado de ​neter​, que por sua vez significa 
“princípio”,  mas  traduzido  posteriormente  como  “divindade”.  Originalmente,  o  kemetismo 
conhecido  hoje  em  dia  faz  parte  do  reavivamento  da  antiga  tradição  egípcia  que  emergiu  como 
movimento  durante  a  década  de  1970.  Um  kemético  seria,  portanto,  a  pessoa  que  segue  o 
kemetismo.​  
 
Atualmente,  existem  muitas  comunidades  keméticas  espalhadas pelo mundo, cada qual com uma 
abordagem  diferente  de  suas  perspectivas,  que  podem  variar  entre  mais  ecléticas  ou  menos 
ecléticas,  porém  todas  estão  dentro  da  chamada  “ortodoxia  kemética”,  que  significa  a  não 
hibridização com outras tradições e sistemas místico-religiosos.  
 
É muito importante salientar que a antiga “religião” egípcia não era assim chamada pelo seu povo 
originário,  já  que  a  noção  de  “religião”1  é  uma  conceituação  moderna.  Então  como  podemos 
chamá-la?  Em  aspectos  culturais,  sociais  e  filosóficos  (metafísicos),  a  visão  antiga  egípcia 
incorporava  elementos  que  hoje  são  classificados  ou  reconhecidos  como ​cosmovisão​, ou seja, todo 
o  universo,  incluindo  seres  humanos, animais, plantas, natureza em geral e os espíritos, como um 
Todo  vivo  e  integrado.  Esse  era  um  sistema  complexo  de  crenças,  realidades  e  de  práticas 
místico-religiosas  que  faziam  parte  da  antiga  sociedade  egípcia.  Esse  sistema  que  fazia  parte  da 
tradição  social  egípcia,  era  parte  integrante  de  todos  os  aspectos  da  vida:  social,  individual  e 
cósmica.  Esse  antigo  sistema  não  era  uma  instituição  monolítica,  mas  consistia  em  um  vasto  e 
variado  conjunto  de  crenças  e  práticas,  ligadas  por  seu  foco  comum na interação entre o mundo 
dos humanos e o mundo do divino.  
 
 
 

1
​O  conceito  de  “religião”  ainda  é  campo  de  discussão  entre  os  estudiosos,  porém  dentre  os  seus  conceitos  mais 
abrangentes,  encontra-se  o  proposto  pelo  antropólogo  Clifford  Geertz,  que  define  como  “sistema  cultural” 
(“Religião como Sistema Cultural”, 1973). 
O kemetismo, em suas variadas formas, pode apresentar as seguintes bases:  
 
1. Holismo​:  que  também  pode-se  dar  o  nome  de  animismo.  O  kemetismo  trabalha  com  esta 
ideia  de  resgate,  não  apenas  da  sua  parte  ​externa​,  ou  seja,  os cultos e as adorações ritualísticas, 
mas  também,  e sobretudo, no cultivo do antigo sistema metafísico, na concepção filosófica do 
nosso mundo ao redor, o verdadeiro ​holismo​. 
 
2.  Maat​:  a  prática  da  concepção  egípcia  da  harmonia  cósmica  universal,  que  é  centralizada  em 
Maat,  conceito  que  engloba  vários  significados  como  “verdade”,  “justiça”  e  “ordem”,  executada 
nos níveis individuais, sociais e universais. 
 
3.  ​Akhu​:  como  as  principais  nações  animistas  e  totêmicas  africanas  possuem  múltiplos  elos  em 
comum,  a  tradição  tem  como  base  o  culto  aos  ancestrais  (akhu), os seus adeptos se agrupam em 
clãs  que,  por  sua  vez,  cultuam  um  espírito  ancestral  principal,  que  tanto  pode  ser  uma  força  da 
natureza, quanto cultural (egrégora). 
 
4.  ​Neteru​:  os  cultos  nos  ​Sepat  (nomos  ou  “cidades”)  eram  feitos  de  acordo  com  as  Khemt 
Neteru  (Tríades),  ou  as  três  divindades  locais,  como:  em  Abtu  (Abydos)  por  User  (Osíris)/Aset 
(Isis)/Heru  (Horus),  em  Ta-Apet  (Thebas)  por  Amen/Mut/Khonsu,  em  Men-Nefer  (Memphis) 
por  Ptah/Sekhmet/Nefertem,  e  assim  por  diante.  ​A  concepção  egípcia  sobre  os  fenômenos  da 
natureza,  particularmente  os  que  se  referem  às  forças divinas representadas pelos ​Neteru (plural 
de  ​neter)​ ,  é  dado  pela  ideia  de  deificações  dos  elementos  da  natureza  ou  princípios  cósmicos 
abstratos.  Os  antigos  egípcios  percebiam-se envoltos em todos os aspectos da natureza e que são 
indissociáveis  da  sociedade  humana.  Os  Neteru  e  o  seu  entendimento  são  percebidos  e 
representados  em  diversos  textos,  pinturas,  relevos,  e  ainda  transmitidos  diretamente  para  a 
escola  hermética,  como  “divindades”  em  suas  múltiplas  manifestações,  associados,  às  vezes,  a 
regiões  específicas  do  Egito,  temporais,  princípios  cósmicos  permanentes,  totêmicas2,  entre 
outros.  Tais  manifestações  fazem  parte  de  inter-relações  complexas,  que  refletem  essa  interação 
de forças da natureza, por vezes, agrupadas (como as Tríades) ou simplesmente independentes. 
 
5.  Comunidade  ou  Clã​:  necessários  para  a  caracterização  de  uma  comunidade  kemética  que 
envolve  um  grupo  de  pessoas  juridicamente organizado ou não, hierarquizado ou não; composto 
por  um  número  mínimo  de  pessoas;  que  promova  aos  seus  membros  estudos  em Egiptologia; e 
que promova práticas devocionais. 
 
Nesse  sentido,  o  Kemetismo  não  é  um  sistema  prescritivo  como  o  são  as  religiões  ocidentais  e 
tradicionais,  baseadas  em  monolitismos,  as  quais  conferem  o  “dogma”,  mas  no  seu  inverso, que 
promove  sentido  social  e  individual  na  trajetória  de  um  caminho  de  introspecção  pessoal 

2
​O  antigo  totemismo, se baseia na ideia de vincular um ser, objeto ou ícone que servirá como emblema egregário de 
um  clã  ou  linhagem  e  se  associa  à  pré-existência  de  uma  concepção  animista  do  mundo.  Esta  forma  do  culto  são 
originários  do  continente  africano - dado que em Khemet, aspectos visíveis do totemismo persistiram até a época do 
período hicso.
(místico),  baseado  em  códigos  não-rígidos,  morais,  de  conduta,  culturais,  etc,  já  que  não  são 
ditadas  em  livros  sagrados  e  da  necessidade  obrigatória  e  intermediária  de  um  sacerdócio.  O 
reavivamento  dessa  antiga  tradição  é  semelhante  aos  outros  caminhos  e  tradições  que  ocorrem 
simultaneamente. 
 
Algumas palavras sobre o reconstrucionismo moderno 
 
Para  compreender  o  reconstrucionismo,  é  preciso  entender  o  processo  na  década  de  1970,  no 
surgimento  de  novos  conceitos,  como  neste  caso,  o  neopaganismo.  O  termo 
“reconstrucionismo”  é  uma  abordagem  interna  do  paganismo  que  emergiu  um  pouco  antes,  no 
final da década de 1960 e que ganhou força, somente a partir dos anos 90.3  
 
No  entanto,  o  fato  do  reconstrucionismo  buscar  elementos,  mesmo  que  seja com intenção clara 
de  não  misturar  elementos  de  diferentes  culturas,  a  ênfase  dada  na  perseguição  histórica  da 
realidade  nativa,  representa,  às  vezes, um tipo de reencenação anacrônica, no intuito de recriar os 
mesmos  elementos  e  aspectos  das  antigas  tradições.  Esta  continuidade,  no  sentido  de  refundar 
uma  determinada  tradição  antiga  sob  o  contexto  atual,  em  lugar  e  tempo  diferente  daquela,  e 
sobretudo  mais  especificamente,  em  refazer  práticas  rituais,  sem  o  contexto  cultural  presente, 
requer  se  não,  um  exagerado  esforço  de  imersão  consciente  e,  mais  do  que  isso,  atemporal. 
Embora,  fisicamente,  seja  praticamente  impossível  retornar  à  mesma  e  idêntica  vida  cultural  de 
qualquer  passado  humano,  ainda  mais  em  uma  cultura  tradicional,  divorciada  do  perspectivismo 
da  visão ocidental sobre tudo, pode-se, em última instância ​apreciar os reflexos da subjetividade e alguns 
aspectos  do  simbolismo  metafísico  presente  nos  arcabouços herdados​. A ideia de recriar um tal mundo desses 
de  simbolismo  puro,  ou  ortodoxo,  a  partir  do  nosso  único  e monolítico ponto de vista, é aterrar 
totalmente o que ainda resta de simbologia e herança sagrada.  
 
A  ideia  de  como  as  culturas  ​e  sistemas  de  crenças  de  fato  são,  multifacetados,  diversos, 
multicausal,  das  origens  herdadas  pelos  antigos  egípcios  e,  posteriormente,  absorvida  e 
transmitida  em  partes  pelo  hermetismo,  podem  ter  inestimável  valor  na  orientação  do 
kemetismo,  na  descoberta  de  sentido  e  de  propósito,  apesar  da  anormalidade  das  atuais 
circunstâncias.  
 
Assim,  conclui-se  que  o  kemetismo  pode  ser  entendido  como  um  sistema  tradicional  que 
incorpora  diversos  aspectos  e  elementos  do  totemismo,  animismo4  e  cosmovisão  do  antigo 
Egito, porém sem ser definida por eles.  
 
Kemetismo Brasil 
3
​O  termo  foi  criado  por  Isaac  Bonewits  e  por  Margot  Adler  (onde  acrescentou  "Reconstrucionismo  Pagão")  na 
tentativa  de  se  referir  aos  pesquisadores  acadêmicos  que  se  empenhavam  em  estudar  as  mitologias  e  folclores  para 
reviver  ou  "reconstruir"  práticas  pré-cristãs.  O  principal  objetivo  do  reconstrucionismo  é  restabelecer  as  “religiões 
politeístas” no nosso mundo moderno.
4
​Animismo  é  a  visão  de  mundo  em  que  forças  da  natureza  possuem  uma  essência  monádica,  mas  também  usado 
para referir-se ao sistema de crenças de povos pré-históricos (que incluem os nilóticos originários).  
 

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