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Diálogo entre Kant e Stuart Mill

Kant: Imaginemos um grupo terrorista que tem 200 pessoas reféns num avião
e ameaça destrui-lo com uma bomba. Os terroristas dizem que apenas
libertam os reféns se entregarmos um homem que eles querem matar. Essa
pessoa é integra e nunca cometeu nenhum crime, eles apenas a querem ver
morta para vingar a morte de um colega. Será correto sacrificar a vida dessa
pessoa para salvar a vida das duzentas?

Mill: Na minha opinião, seria admissível matar uma pessoa para salvar
muitas. Afinal, do ponto de vista moral, para decidir bem são os efeitos
produzidos pela ação o mais importante. Portanto, devemos escolher aquilo
que traz benefícios para o maior número.

Kant: Em meu entender, não importa o número vidas que podemos salvar
porque utilizar um ser racional como um mero instrumento não é moralmente
justificável em nenhuma situação. Não devemos usar uma pessoa como se ela
fosse uma coisa - um simples meio para atingir um fim - mesmo que se
pretenda algo louvável, como salvar outras pessoas. A vida de um inocente
vale tanto como a de duzentos.

Mill: Discordo. E se isso não trouxer mais consequências positivas para a


maioria? Mais vale salvar 200 vidas do que uma. O contrário seria irracional e
até imoral. Ao deixarmos as 200 pessoas morrer estamos a ser tão terroristas
como os verdadeiros terroristas.

Kant: Eu acho que não, pelo simples facto de todas as vidas terem o mesmo
valor. Nós não estamos a matar ninguém. Os terroristas, se alguém for morto,
é que têm a culpa. Contudo, se entregarmos uma pessoa inocente sabendo
que a vão matar, aí a culpa é nossa. Ao submetermo-nos à vontade dos
terroristas, estaremos a cometer um crime pelo qual somos inteiramente
responsáveis.

Mill: Mas, não temos qualquer forma de nos recusarmos a encarar esta
situação. Quer queiramos quer não, quando este dilema nos foi colocado, já
estamos submetidos à vontade dos terroristas. Por outro lado, se todas as
vidas têm o mesmo valor, então mais vale salvar muitas vidas do que apenas
uma. Temos de encontrar a melhor solução para a maioria e não uma que
satisfaça apenas a nossa consciência. A pessoa que iríamos poupar poderia
trazer tanto benefícios para a sociedade como malefícios, enquanto que
algumas dessas 200 pessoas, por exemplo, exercem provavelmente funções
(como médicos, bombeiros, polícias, cientistas, etc.) e têm relações pessoais
que ajudarão a melhorar a vida e tornar mais felizes muito mais indivíduos.
Kant: Então, se sacrificar um inocente poderia trazer mais benefícios que
malefícios, como saberemos se dessas 200 pessoas algumas delas não vão
trazer malefícios? Afinal não podemos prever o futuro. O que nos garante que
algumas dessas pessoas não são, por exemplo, potenciais criminosos? As
consequências futuras são imprevisíveis, não podemos decidir com base nelas.
Não há maneira de saber o que acontecerá, só podemos ter controlo sobre as
coisas que estão na nossa mão fazer. Assim, não devemos sacrificar ninguém,
pois seremos responsabilizados por isso.

Mill: Nada lhe garante que a pessoa que vamos salvar também não traga
depois malefícios à sociedade. O problema aqui é que ambas as hipóteses
obrigam a sacrifícios e nós temos de nos guiar pela que traz mais benefícios.
Temos de ser racionais ao ponto de entender - de modo imparcial, colocando
de parte os nossos interesses e convicções – quais são as melhores
consequências para a maioria das pessoas envolvidas nesta situação. É assim
que quem quiser praticar uma ação moralmente correta deve agir.

Kant: Muitas pessoas teriam essa opinião, não tenho dúvidas! Porém, repare,
também há boas razões para os profissionais envolvidos em situações de
resgate não cooperarem com os terroristas. Não devemos ceder às suas
ordens, devemos sim procurar encontrar uma maneira que não envolva
sacrificar uma vida em nome do bem comum ou de um bem maior. Estes fins
não podem ser alcançados utilizando um meio imoral: matar um inocente.

Mill: Todavia, se os terroristas quisessem aceitar outra hipótese não faria


sentido utilizarem logo a mais violenta para impor a sua vontade, para que é
que iriam ameaçar de morte 200 pessoas, se essa ameaça não fosse exequível?
De qualquer modo, como sabemos, um dilema moral não tem duas soluções.
Aliás, a sua perspetiva não permite encontrar nenhuma resposta razoável
para este tipo de situação. Conduz sim ao mal maior: à perda de um grande
número de vidas.

Kant: É verdade que a resposta a um dilema depende das crenças das pessoas
envolvidas na situação, pois estas irão agir em conformidade com as regras
morais que julgam ser as mais corretas. Contudo, se pretendermos praticar
uma ação com valor moral, temos de pensar se a regra moral, que vamos
utilizar nesse caso, pode ser universalizada, ou seja, utilizável por todas as
pessoas na mesma situação. Imagine um mundo em que os terroristas faziam
reféns e para os libertar necessitávamos de matar, arbitrariamente,
inocentes. O nosso mundo cairia no caos moral, pois as pessoas começariam a
ter medo de sair à rua e começariam a desconfiar de tudo e de todos, podiam
ser elas as próximas vítimas. Os alicerces morais da nossa sociedade -
baseados nas ideias de bem e justiça - iriam ruir. Temos perceber que se
assim fosse o sentimento de injustiça iria instalar-se rapidamente, a nossa
vida nunca mais seria a mesma, pois deixaria de existir um critério para
distinguir os atos corretos dos incorretos.
Mill: O caos instalar-se-ia? Repare que a sua argumentação se baseia em
consequências futuras que poderão não ocorrer. E porque motivo havemos de
exigir que as regras morais tenham de ser aplicadas por todas as pessoas na
mesma situação quando essa ideia – absurda, diga-se de passagem - nos
impediria de tomar a melhor decisão? Ora, imaginemos que os terroristas são
persistentes e não nos dão forma de contornar o problema. Deveríamos
permitir a morte de centenas de reféns? Seria isso moralmente correto? É
claro que não!

Kant: Acho que já deixámos bem claros os nossos pontos de vista. Eu


apresentei razões para mostrar que a minha perspetiva é a mais correta, pois
a sua teoria baseia-se em ideias erradas, tal como tentei demonstrar. Mas
faço notar que você se recusou a considerar a pertinência das minhas
objeções.

Mill: Olhe que não, olhe que não… Para podermos saber se uma ação é
moralmente correta ou não temos, neste caso, de fazer com que a
infelicidade produzida seja a menor possível. Por isso, é justificável sacrificar
uma vida para salvar 200.

Mas, já que não nos entendemos, o melhor é perguntar a quem nos lê:

- Qual de nós terá razão?

Alexandre Mendes e Emanuel Noivo

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