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O Dilema do Comboio

Introdução
Um dos mais vastos e complexos ramos da filosofia é a ética, também conhecida como
filosofia moral. Esta área ocupa-se do estudo sobre o que é correto e o que é errado,
nomeadamente no que toca à ação humana.
Durante muitos séculos, os filósofos dedicaram-se ao estudo dos problemas deste
ramo da filosofia, tentando responder a uma questão fundamental: como devemos
agir e porquê. Ao longo da história surgiram várias teorias que tentam responder a
este problema, nomeadamente as teorias deontológicas, que defendem que a
moralidade de uma ação é independente das consequências ou dos resultados desta, e
as teorias consequencialistas, que afirmam que o critério de moralidade da ação
depende das suas consequências. O mais conhecido exemplo de deontologismo é Ética
Racional de Kant. Já a teoria consequencialista mais conhecida é o Utilitarismo de
Stuart Mill.
Estes dois grupos de teorias entram em choque entre si, e parecem ser aparentemente
inconciliáveis. Contudo, tal não impediu os filósofos de estudarem e debaterem as
suas posições no que toca a este assunto.
Neste contexto surge um problema filosófico, inicialmente proposto pela filósofa
Phillipa Foot, do qual foram feitas várias versões, conhecido como o Dilema do
Comboio. Este problema filosófico é uma ótima forma de explorar o contraste entre as
principais teorias de resposta ao problema mais central na ética normativa, ao colocar
o interlocutor numa posição em que é forçado a tomar uma decisão baseada em um
critério de moralidade. Este cenário é extensivamente estudado por filósofos e revela-
se como um dos mais conhecidos dilemas morais, já que nos permite compreender o
contraste entre o deontologismo e o consequencialismo.

Clarificação do Problema
O Dilema do Comboio foi formulada inicialmente pela filósofa inglesa Phillipa Foot, em
1967, e popularizado pela filósofa norte-americana Judith Thompson, que deu o nome
ao problema. Apesar de existirem várias versões e formulação deste dilema moral, a
versão mais clássica e mais usada é a seguinte:
“Imagine-se que um comboio está fora de controle num caminho de ferro. No seu
caminho, encontram-se cinco pessoas amarradas na linha por um filósofo malvado.
Contudo, é possível carregar num botão para desviar o comboio para outra linha,
salvando as cinco pessoas, mas aí, está um trabalhador. Se o comboio desviar o seu
percurso, salvará as cinco pessoas, mas matará o trabalhador. Deve-se ou não
carregar no botão?
Imagine-se agora, outro cenário. Tal como no anterior, um comboio desgovernado está
a ir na direção de cinco pessoas, mas agora, o sujeito encontra-se em cima de uma
ponte, sobre o caminho de ferro, com um homem gordo na sua frente. A única forma
de parar o comboio e salvar as cinco pessoas amarradas na linha é empurrando o
homem gordo para da ponte para o caminho de ferro, mas isso vai matar o homem.
Neste caso, o que deve fazer o sujeito?”
Este problema tem sido muito usado no século passado e no presente para estudar o
critério de moralidade e para clarificar as diferenças entre as várias correntes de
pensamento sobre a ética normativa.
Vários estudos têm sido feitos sobre este dilema. De um modo geral, a maioria das
pessoas, quando questionada sobre o primeiro exemplo, considera que o correto é
carregar no botão, o que é uma resposta que vai de encontro à perspetiva utilitarista.
Contudo, quando é colocado o segundo exemplo, a maioria considera incorreto
empurrar o homem gordo para salvar as cinco pessoas, o que contradiz a teoria
utilitarista, e vai ao encontro da perspetiva deontológica kantiana. Então, como é
possível solucionar este dilema?
Bem, a este problema está inerente uma questão filosófica central, aparentemente
simples, mas que se tem revelado difícil de responder. Esta questão é a seguinte.
É moralmente correto, para salvar várias vidas, provocar a morte a uma pessoa
inocente?
As teorias referidas apresentam resposta muito diferentes para esta questão, em
virtude dos seus diferentes critérios de moralidade, e por isso, apresentam soluções
distintas para o Dilema do Comboio. Mas como se distinguem, então, o critério de
moralidade destas duas teorias, e como é que isso afeta a resposta a este problema?

Estudo do Critério de Moralidade


Como já vimos, as principais teorias da ética normativa são o utilitarismo de Stuart Mill
e o deontologismo de Kant. Para compreendermos melhor como este dilema pode ser
resolvido, é importante compreender como estas duas correntes de pensamento
estabelecem o seu critério de moralidade.
A ética kantiana é uma moral deontologista, ou seja, que defende que moralidade das
nossas ações não depende das suas consequências, mas sim que uma ação é correta
ou incorreta por si mesma. Esta é talvez o melhor e mais conhecido exemplo do
deontologismo ético.
Segundo Kant, as nossas ações devem ser o resultado apenas da nossa boa vontade,
isto é, a vontade de fazer o que é correto, sem considerar as possíveis consequências.
Tal significa que existem deveres absolutos, regras morais que devemos sempre
cumprir, independentemente das circunstâncias. Para Kant, ações como mentir ou
roubar são sempre, e objetivamente, erradas, independentemente das consequências
que destas ações possam resultar. Assim, apenas podemos considerar como
moralmente corretas aquelas ações que cumprem a lei moral pela simples vontade de
cumprir o dever.
Além disso, o deontologismo de Kant defende o carácter intrínseco do ser humano, e
toma as pessoas como seres dotados de razão e autonomia, dignidade que não lhes
pode ser retirada. Assim, não devemos usar os outros seres humanos como meio para
atingir um fim, mas como um fim em si mesmo.
Por outro lado, o pensamento utilitarista defende um critério de moralidade
completamente diferente.
O utilitarismo é uma teoria consequencialistas, ou seja, que defende que as ações são
corretas ou incorretas de acordo com as consequências que provocam nos outros.
Assim, ao contrário do que acontece no deontologismo de Kant, não existem deveres
absolutos, e todas as regras morais estão sujeitas a exceções. Até deveres como não
mentir ou não matar admitem exceções, de acordo com as consequências que possam
provocar.
Por isso, o utilitarismo defende que uma ação tem valor moral quando esta consegue
maximizar a felicidade e o prazer geral, ou seja quando a ação traz benefícios para
aqueles afetados. Assim, devemos agir tendo em conta não os deveres ou preceitos
morais, mas sim as consequências que a nossa ação vai provocar. Até o dever de não
matar pode ser quebrado quando daí resultar a felicidade de muitos.
Em suma, o critério de moralidade na ação é bastante divergente entre estas duas
teorias, e isso vai afetar a forma como se responde ao Dilema do Comboio.

Tentativas de Resposta
Este problema filosófico tem sido estudado e abordado extensivamente por muitos
filósofos ao longo dos anos, com muitas tentativas de resposta para o solucionar.
Apesar de existirem muitas tentativas de resposta, com razões diferentes, vamos
analisar apenas duas, a resposta utilitarista e a resposta de acordo com o
deontologismo de Kant.
Segundo a perspetiva utilitarista, o moralmente correto seria, sem dúvida, carregar no
botão no primeiro caso e no segundo, empurrar o homem gordo. Isto porque, como já
vimos, segundo esta teoria a ação moralmente correta é aquela que maximiza a
felicidade geral. Em ambos os casos, a opção que maximiza a felicidade é aquela em
que as cinco pessoas são salvas, mesmo que isso signifique que é necessário tirar a
vida a uma pessoa inocente. Testes em pessoas tem mostrado que a maioria tende em
concordar com a perspetiva utilitarista no primeiro cenário, mas a discordar no
segundo. Contudo para um filósofo utilitarista, não existe qualquer diferença entre
premir o botão e atirar o homem da ponte, já que em ambos os casos estamos a
sacrificar uma vida para salvar várias, garantindo assim que a felicidade e o prazer da
maioria prevalecem.
Contudo, muitos discordam desta perspetiva, afirmando que é imoral retirar a vida a
alguém, mesmo que tal signifique poder salvar várias outras vivas. O Utilitarismo
discorda. A única ação moralmente correta em ambos o caso é aquela que permite
que o menor número de pessoas morram. Assim, a resposta desta corrente de
pensamento à questão filosófica colocada com o dilema, “É moralmente correto, para
salvar várias vidas, provocar a morte a uma pessoa inocente?” é sim, já que fazê-lo
significa maximizar a felicidade, e para o utilitarismo, a felicidade é o bem último.
Por outro lado, a teoria deontologista toma uma resposta diferente. A resposta desta
teoria seria que o moralmente correto a fazer é não carregar no botão, tampouco
empurrar o homem gordo da ponte. Como vimos, para o kantianismo, deveres como
não matar tem caracter absoluto. Por isso, matar é alguém é errado, em qualquer
situação, e independentemente as consequências que essa ação possa ter. Além disso,
a ética de Kant também defende a natureza racional e autónoma do homem, sendo
este um ser dotado de dignidade e valor intrínseco. Qualquer ação que ponha em
causa estas características é imoral, pelo que matar um ser humano, mesmo que seja
para alcançar um fim maior é errado em todas as circunstâncias. Novamente, muitos
podem achar que optar por permitir que cinco pessoas morram, apenas para não tirar
a vida a uma é errado, já que, de certo modo, seriamos nós também responsáveis
pelos danos que não tomar essa ação traria. Kant, contudo, defenderia que o nosso
dever é não provocar a morte a ninguém, e que, portanto, não devemos carregar no
botão nem empurrar o homem, mesmo porque estas ações poderiam ter
consequências muito mais graves que nós não seriamos capazes de prever.
Por isso, a resposta desta perspetiva à questão filosófica seria não, nunca nos é
permitido tirar a vida a alguém inocente, mesmo que seja para salvar várias.
No fundo, este problema não é desenhado para ser solucionado, tal como qualquer
outro problema filosófico, o Dilema do Comboio tem como propósito fazer-nos pensar
e questionar sobre as nossas próprias convicções e opiniões. Assim, o mais importante
ao discutir este problema não é a solução a que podemos chegar, mas sim aquilo que
conseguimos retirar desta interrogação, e a forma como esta nos permite abrir e
explorar outros conceitos e questões.

Conclusão
Em suma, neste trabalho foi possível compreender e clarificar o Dilema do Comboio,
um problema filosófico clássico, extensivamente estudado e debatido por filósofos. A
este problema, está inerente uma questão filosófica aparentemente simples, mas sem
resposta evidente, (É moralmente correto, para salvar várias vidas, provocar a morte a
uma pessoa inocente?).
Existem várias possíveis respostas a este problema, que dependem das teorias éticas
que quem responde adota. Vimos que o Utilitarismo e o Deontologismo de Kant
diferem no que toca ao critério de moralidade da ação, e por isso, a resposta destas
escolas de pensamento ao dilema é diferente: a primeira defende que a opção
moralmente correta é aquela que maximiza a felicidade, ou seja, que evita morte do
maior número de pessoas, já a segunda, defende que o correto a fazer é cumprir com
o dever moral e não provocar a morte que ninguém, mesmo que tal acabe por ter
consequências bastante negativas.
Contudo, novamente, o mais importante neste dilema não é a solução a que se chega,
mas sim o que conseguimos retirar e aprender ao tentar solucioná-lo, e a forma como
isso afeta as nossas crenças e os nossos princípios.
Além da sua função filosófica, o dilema do comboio também tem importância e
implicações no mundo real.
Apesar de poder parecer demasiado abstrato por descrever um cenário muito
específico e improvável de acontecer, A questão filosófica que está inerente a este
problema revela-se muito frequentemente no mundo real. Assim, torna-se importante
tentar responder à questão, Tirar a vida a uma pessoa inocente, para salvar várias, é
moralmente correto? Apesar de explorar este dilema não nos permitir chegar a uma
solução universal, estudá-lo ajuda-nos a compreender esta questão, e no mundo real
podem acontecer situações onde um agente tenha de tomar essa decisão. Vejamos.
Um exemplo de uma situação algo semelhante ao dilema do comboio ocorreu em
2011, no Japão, após o acidente nuclear de Furushima. A explosão do reator nuclear
provocou uma nuvem radioativa que deslocava para Tóquio, uma das cidades mais
populosas do planeta. A nuvem certamente teria consequências gravíssimas se
chegasse à cidade, e poderia provocar um grande número de doenças, e mesmo de
mortes. Por isso, o governo japonês optou por usar máquinas para desviar a nuvem
para zonas menos populosas. Deste modo, foi possível evitar as consequências da
chegada da nuvem à capital japonesa, mas esta ação também um número de doenças
nas populações. Será que esta ação foi moralmente correta? Essa foi a questão que os
governantes e os técnicos japoneses tiveram de responder, tal como acontece no
dilema do comboio.
Outra situação que mostra a importância do dilema do comboio é a estrada e a
condução. Acidentes de viação acontecem todos os dias, e podem ter consequências
muito graves, incluído por vezes a morte de pessoas. Por isso, por vezes, um condutor
quando confrontado com uma situação de perigo iminente pode ter de responder à
questão que o dilema do comboio levante: é correto tomar uma ação que possa
resultar em prejuízos para alguém se poder evitar prejuízos maiores? Não só na
estrada, mas em qualquer momento cada um de nós poderá ter de responder a esta
pergunta, e isso mostra a importância do dilema do comboio no mundo real.

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