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Rio de Janeiro
2012
Marina Cavalcante Vieira
Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
CDU 659.3:741.5
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que
citada a fonte.
_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Marina Cavalcante Vieira
Banca Examinadora:
___________________________________________________
Profª. Dra. Maria Josefina Gabriel Sant’Anna (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
___________________________________________________
Profª. Dra. Bianca Freire-Medeiros (Coorientadora)
Fundação Getúlio Vargas - FGV
____________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Rebello de Mendonça
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
____________________________________________________
Prof. Dr. Valter Sinder (Examinador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
Rio de Janeiro
2012
AGRADECIMENTOS
Metropolis and Gotham are the imaginary cities of comics that respectively set the
adventures of Superman and Batman. These two superheroes were created in the United
States in the late 1930s and continue to populate the lives of children and adults eight decades
after its conception. The objective of this dissertation is to analyze the cities of Superman and
Batman in their context of creation through an ethnographic analysis of comic book literature.
The aim is to analyze the fictional representations of these cities in relation to the issues faced
by large North American cities of its time, such as crime, migration and delinquency. In this
intent the first stories of these superheroes are analyzed since its creation in 1938 and 1939
until the U.S. entry into World War II in December 1941. It is discussed the question of dual
identities, freedom and anonymity in large cities through the comic book superheroes genre,
as well it is contextualized the creation of comics as a medium of mass communication born
in modern and urban context. The central thesis of this dissertation is developed around the
discussion between cities and Modernity. Gotham and Metropolis are seem as representations
that reflects distinct point of view about great modern cities. The former is a nocturnal and
violent city which crimes are related to madness, organized crime and migration. Here
underlies the notion that modernity, having as its prime locus the large cities, it is a factor that
disrupts the social life leading the inhabitants of Gotham City to face a daily conflict with
either criminals, madmen or immigrants. The city of Metropolis, in turn, faces technical
problems and moral crimes, a daytime city of straight lines and buildings of modernist
architectural styles always portrayed from panoramic images that highlight their buildings and
gleaming skyscrapers, while Gotham is represented as a city with a dark outline of monolithic
buildings repeated without distinction on the horizon. Cities of comics are representations that
either fictional, utopian or dystopian they may be, are related to the imagery time and society
in which they were created. This dissertation comprises Gotham City and Metropolis as
synthesis of modern urban concepts, relating them to urban conceptions present in the first
decades of the twentieth century and with issues exposed by the social thought of the Chicago
School of Sociology.
Keywords: Comic books. Cities. Modernity. Chicago School of Sociology. Urban imagery.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................. 11
1 HISTÓRIA EM QUADRINHOS: DO SURGIMENTO AOS SUPER-
HERÓIS............................................................................................................. 22
1.1 A Superaventura e as Revistas em Quadrinhos............................................. 29
1.2 O Super-Homem: Tensões e lutas judiciais entre autores e editora............ 33
2 SUPER-HERÓIS E INDIVIDUALISMO: UMA RELEITURA DA
QUESTÃO DA DUPLA IDENTIDADE ATRAVÉS DE SIMMEL............ 37
2.1 Liberdade e igualdade: ou o paradoxo moderno........................................... 38
2.2 Bruce o Blasé e Clark o homem da multidão................................................. 42
2.3 Tragédia da Cultura e Desencantamento do Mundo.................................... 51
3 IMAGINÁRIO URBANO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS........... 53
3.1 Urbanismo e Histórias em Quadrinhos: análise da representação urbana. 56
4 CRIME, DELINQUÊNCIS E MIGRAÇÃO NO BATMAN E SUPER-
HOMEM: DIÁLOGO COM A ESCOLA DE CHICAGO........................... 62
4.1 Migração nos quadrinhos................................................................................ 65
4.1.1 Gotham e imigração........................................................................................... 68
4.1.2 O tema da imigração no Super-Homem............................................................. 89
4.1.3 Super-Homem: o imigrante intergaláctico.......................................................... 90
4.2 Crime.................................................................................................................. 91
4.2.1 Metrópolis: o crime moral e os problemas técnicos........................................... 95
4.2.2 Gotham: Crime organizado................................................................................. 102
4.2.3 Crime e Pertubação Mental no Batman.............................................................. 104
4.3 Delinqüência...................................................................................................... 112
4.3.1 Delinqüência nos quadrinhos do Super-Homem................................................ 112
4.3.2 Delinqüência no Batman.................................................................................... 121
5 IMAGENS PANORÂMICAS: A CIDADE VISTA DO ALTO................... 128
6 CONCLUSÕES ................................................................................................ 141
REFERÊNCIAS................................................................................................ 148
11
INTRODUÇÃO
O tema das histórias em quadrinhos entrou na minha vida digamos que por um
acaso. Eu nunca fui muito fã dos quadrinhos, quando pequena lia um pouco da Turma da
Mônica, mas acho que isso não ficou muito na minha memória. Quando adulta me
interessei por algumas histórias autobiográficas em quadrinhos como Persépolis e Fun
Home, mas os super-heróis nunca foram muito “a minha praia”. Deixo claro desde já ao
leitor desavisado que o texto a se seguir é de uma cientista social que por interesse de
pesquisa acabou virando fã dos quadrinhos de super-heróis, mais ou menos como o
antropólogo que vai assistir a uma cerimônia de umbanda e acaba recebendo o caboclo.
Mas como então eu cheguei aos quadrinhos do Batman e Super-Homem das décadas de
1930 e 1940? Tudo começou em um dia de tédio infinito em que passei assistindo aos
filmes do Batman produzidos por Tim Burton que passavam na televisão. Como uma boa
pesquisadora das questões urbanas me ative à cidade, então me surgiu a curiosidade de
fazer uma busca rápida na internet sobre quando o Batman foi criado e como era aquela
cidade, se ela era diferente da cidade produzida por Tim Burton em 1980 e em 1990.
Acontece que não achei muito sobre a especificidade desta cidade quando foi criada, então
resolvi baixar pela internet os primeiros quadrinhos e ler. Acabei baixando os primeiros do
Super-Homem também, e aqui estou eu apresentando uma dissertação sobre o assunto,
sobre as cidades destes dois super-heróis em seus contextos de criação.
A leitura que fiz dessas cidades criadas nos quadrinhos é a de que elas se
relacionam bastante com o período histórico e principalmente com as concepções urbanas
de sua época. A idéia de compreender como um meio de comunicação voltado para o
entretenimento pode ser tão vivo em descrições da mentalidade e do imaginário de uma
época e sociedade me fascinou. Convido o leitor a pensar as representações das cidades
modernas através dos quadrinhos, buscando compreender em que medida as imagens
construídas das cidades de Metrópolis e Gotham afastam-se e aproximam-se tanto entre si
como entre as cidades reais de sua época. Toda a nossa jornada a seguir desenrola-se em
torno de um diálogo com as cidades modernas e em como as cidades imaginárias dos
quadrinhos se relacionam com referentes sócio-históricos.
O capítulo inicial desta dissertação introduz o tema, o objeto e os objetivos desta
pesquisa, além de apresentar ao leitor a proposta metodológica de uma análise etnográfica
para as histórias em quadrinhos, explicitando o tratamento dado ao tema e traçando pontes
12
13
progressista e culturalista. O maior mérito deste capítulo é tentar apontar em que medida as
cidades do Batman e Super-Homem distinguem-se entre si e aproximam-se dos modelos
urbanísticos de sua época de criação, mais precisamente os modelos progressista e
culturalista. Este capítulo discute a noção de imaginário social e imaginário urbano
partindo do pressuposto de que as cidades ficcionais dos quadrinhos são representações do
imaginário de sua época.
O capítulo 4 analisa as cidades do Batman e Super-Homem a partir da
representação do crime, da migração e da delinquência nas referidas histórias em
quadrinhos desenvolvendo um frutífero diálogo com a Escola de Chicago de Sociologia,
corrente de pensamento preocupada em pensar justamente o crime, a delinquência e
migração em contexto urbano. O questionamento de que tipo de crime, vítima, delinquente
e imigrante habita essas histórias acabou revelando grandes diferenças entre as cidades do
Batman e Super-Homem, a primeira uma cidade de crimes e loucura e a segunda uma
cidade de crimes morais e problemas técnicos.
O capítulo 5 é uma leitura das cidades do Batman e do Super-Homem a partir da
noção de panorama em Michel de Certeau, demonstrando as diferenças entre as
representações panorâmicas das imagens destas cidades; a primeira uma cidade sombria de
prédios indistinguíveis entre si enquanto a segunda apresenta prédios de estilos
arquitônicos variados que se destacam no traçado urbano.
É evidente que todo o caminho aqui percorrido foi feito de escolhas teóricas e
analíticas, e que o texto que se segue é apenas uma possibilidade de leitura das histórias em
quadrinhos embasado pela teoria sociológica. Antes de tudo o leitor precisa estar aberto a
um diálogo com a teoria social sobre modernidade, cidades, migração e urbanismo, além
de estar disposto a enxergar os quadrinhos não como um mero meio de entretenimento,
mas como um documento sócio-histórico. Por esse motivo esta dissertação talvez seja mais
interessante para os cientistas sociais. Mas nunca se sabe, quem sabe os fãs e curiosos se
interessem!
Convido o leitor a lançar um novo olhar sobre as histórias em quadrinhos, iniciando
a leitura desta dissertação a partir deste capítulo introdutório que se segue com uma
exposição do objeto, objetivo e método aqui utilizado.
14
1
Apesar de Gotham City ser La Ciudad Gótica na versão em língua espanhola, o nome Gotham seria uma espécie de
apelido pejorativo dado a Nova York durante o século XIX que varia do inglês britânico. No folclore inglês há uma
pequena vila chamada Gotham ou Goat-Ham. Goat significando cabra enquanto ham seria uma variação de home ou lar
na pronúncia britânica. Esta pequena vila “lar de cabras” seria habitada por idiotas. Enquanto que no original britânico a
pronúncia de Gotham seja aproximada de Goat-Ham, nos quadrinhos pronuncia-se Goth-am com goth. Lembrando que
em inglês goth significa gótico (Burrows and Wallace, 1999).
15
Apesar de essas cidades terem sido criadas em conjunto com os seus personagens
os seus nomes foram dados algum tempo depois. A cidade do Super-Homem é nomeada
Metrópolis pela primeira vez apenas na revista Action Comics n° 16 de setembro de 1939,
enquanto Gotham recebe este nome no inverno de 1940 na revista Batman n° 4. Levando
em consideração que a análise que busco é a da imagem de cidade construída nestas
histórias e que essas já haviam sido delineadas antes de seus nomes serem dados, para
efeito analítico refiro-me aqui a Gotham e Metrópolis respectivamente como as cidades do
16
Batman e Super-Homem, mesmo quando analiso histórias em que estas cidades ainda não
haviam sido nomeadas como tal.
17
2
The Batman Chronicles Volume 1 (Finger, 2005), The Batman Chronicles Volume 2 (Finger, 2006), The Batman
Chronicles Volume 3 (Finger, 2007a) e The Batman Chronicles Volume 4 (Finger, 2007b).
3
The Superman Chronicles Volume 1 (Siegel, 2006), The Superman Chronicles Volume 2 (Siegel, 2007a), The
Superman Chronicles Volume 3 (Siegel, 2007b) e The Superman Chronicles Volume 4 (Siegel, 2008).
4
Utiliza-se estas noções não no sentido espacial, mas no sentido do exercício intelectual de interiorização, apreensão e
tradução cultural. Clifford Geertz (2001) faz uma reflexão interessante sobre a noção de distanciamento conforme usada
aqui. Ver: GEERTZ, Clifford. “O pensamento como ato moral”. In: Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001. p. 44.
18
(...) meu objetivo é fundamentar a cidadania plena das pesquisas antropológicas que não
recorrem a experiências canônicas de ‘trabalho de campo’.
19
É claro que o uso deste recurso como meio de investigação requer discussões e algumas
reelaborações de conceitos antropológicos, como por exemplo, os de ‘campo’, de
‘familiaridade com o grupo’, ‘chegar ao campo, ‘deixar o campo’ e, principalmente, o de
interação pesquisador/pesquisado (AMARAL, 2010).
20
21
e usos do espaço pelas personagens destas histórias. Desta forma, propõe-se uma análise
na cidade e da cidade (em quadrinhos) ao mesmo tempo.
Mas antes de chegarmos à análise etnográfica propriamente dita é preciso conhecer
melhor nossos nativos. Este é o propósito do capítulo a seguir que tomando as histórias em
quadrinhos como nativos tenta responder ao questionamento de quais seriam as
especificidades deste suporte midiático, evidenciando o seu contexto de criação em finais
do século XIX e chegando até à criação do fenômeno dos super-heróis das revistas em
quadrinhos.
22
5
Os hieróglifos misturam desenhos e letras, enquanto que os kanji ou letras japonesas são bastante figurativas. Por
exemplo: em kanji pessoa (hito) é representada por “人”, uma letra que lembra uma pessoa de pernas abertas (Moya,
1977).
6
A principal destas inovações foi o motor a vapor movido a carvão.
23
24
25
7
Na imagem acima se vê chineses, irlandeses, negros, poloneses e holandeses organizando-se em torno da bandeira
americana no que seria a uma brincadeira de crianças inspirada na Guerra Hispano-Americana de 1898. O título da tira
indica: “a guerra assusta no beco Alley”. A tira acaba sendo uma grande sátira ao sentimento patriótico dos imigrantes.
Lê-se em uma placa pendurada abaixo de uma janela com a vidraça quebrada: “Viva a velha Inglaterra”, enquanto o
garoto negro segura um piquete escrito: “Abaixo com a Inglaterra, eles não sabem com quem eles estão brigando”. Outro
garoto, um irlandês, carrega uma placa escrito: “América para os americanos ou qualquer um”. O negro parece usar uma
maquiagem e pintura labial, conforme a representação de atores brancos que se maquiavam para atuar em shows de
menestréis. A representação do irlandês também se aproxima daquela de cartuns norte-americanos do século XIX que
reproduziram a imagem de um irlandês irascível e de feições simiescas.
26
retratadas dos quadrinhos tornando-se um ícone desde o início dos quadrinhos modernos
com o Menino Amarelo.
Le Yellow Kid deviendra peu ou prou la première banda dessinée moderne. New York en
sera donc son berceau et la première icône urbaine de la bande dessinée (MORIN, 2010,
p. 36).
O que faz do bloco de imagens uma série é o fato de que cada quadro ganha sentido
depois de visto o anterior; a ação contínua estabelece a ligação entre as diferentes figuras.
27
Existem cortes de tempo e espaço, mas estão ligados a uma rede de ações lógicas e
coerentes” (COHEN ; KLAWA, 1977, p. 110).
É impossível apreender o todo em um único olhar uma vez que a leitura tem esse
caráter seqüenciado e fragmentado de apreensão. Jens Balzer (2010), utilizando-se de
Walter Benjamin (1997), afirma que assistimos ao surgimento histórico de uma nova
forma de olhar em que o sujeito moderno é incapaz de apreender o todo em um único olhar
seja enquanto pedestre em uma grande cidade, seja ao ler uma folha de jornal ou ao ler
quadrinhos.
Comics are in a league apart from the contemplative, frozen gaze of landscape paintings
in classical central perspective. They demand the distracted gaze of the flâneur in the city.
Constantly in motion, they set writing in verticals and decentralize the image. Their
distraction is the mirror image of the endless restlessness confronting gaze in modern
cities. Comics are part of an aesthetics that can consume the image of the “whole” only in
its disharmony8 (BALZER, 2010, p. 30-31).
8
O trecho correspondente na tradução é: “Os quadrinhos estão distantes do olhar contemplativo e estático das pinturas de
paisagem da perspectiva clássica. Eles exigem o olhar descentrado do flâneur na cidade. Em movimento constante, eles
posicionam a escrita em verticais e descentralizam a imagem. A sua descentralização é a imagem refletida do infinito e
incansável confrontamento do olhar nas cidades modernas. Os quadrinhos são parte de uma estética que possibilita o
consumo da totalidade da imagem apenas em sua desarmonia”.
28
Da Nova York do Yellow Kid e Little Nemo até as cidades de Gotham e Metrópolis
décadas se passaram. Em 1929 há a Grande Depressão Econômica e vemos surgir a épocas
dos heróis e super-heróis. O gênero da literatura em quadrinhos a que esta dissertação se
dedica é a superaventura ou quadrinhos de super-heróis, no qual o Batman e o Super-
Homem se encaixam. No entanto para chegarmos até eles é preciso compreender a
trajetória que levou ao seu desenvolvimento.
Os primeiros quadrinhos da história eram do gênero cômico, embora as histórias
em quadrinhos hoje em dia sejam um meio de comunicação bastante diversificado tanto
em gênero quanto em público. Essa é uma mídia que “amadureceu” desde a sua criação,
saindo do cômico, passando pela aventura, chegando a relatos autobiográficos de cunho
intimista e até mesmo ao gênero adulto.
Em países de língua inglesa o termo comics9 designa a literatura em quadrinhos de
forma geral, vinculando-a ao gênero comédia. Durante as primeiras décadas de sua
existência o gênero comédia foi o único e triunfante gênero deste tipo de literatura. Autores
como Nildo Viana (2005) apontam o surgimento do gênero aventura como datando de
1929. A partir daí a aventura não só introduz um novo gênero como revoluciona forma,
narrativa e conteúdo nas histórias em quadrinhos. A personagem de conteúdo cômico cede
lugar ao realismo das histórias de aventura. Aqui surge o herói, aquele com ímpeto de
9
A palavra inglesa comics significa história em quadrinhos e na verdade é um neologismo criado a partir do temo comic,
que significa cômico. O termo comics tem um sentido geral que no português pode ser traduzido simplesmente como
quadrinhos.
29
10
As personagens eram caricatas tanto em ações como em seus desenhos. Por exemplo, o menino amarelo: cabeça grande
e corpo pequeno.
30
heróis surgiram e se tornaram um grande fenômeno. As comics books nasceram tanto das
tiras em quadrinhos publicadas em jornais quanto da literatura popular das revistas de pulp
fiction11 e marcaram a cultura de consumo norte-americana do século XX (WRIGHT,
2003).
A forma de produzir, publicar e distribuir os quadrinhos em comic books é
completamente diferente das tiras de jornais. Para compreender um pouco melhor sobre as
especificidades dos quadrinhos de super-heróis, que tomo aqui como meus “nativos”, faço
um breve levantamento sobre o surgimento das comic books e sua indústria.
Desde o início do século XX jornais juntavam tiras e as republicavam em um
formato que ainda não era o das comics books. Em 1929 a Dell Publishing começou a
publicar semanalmente uma revista em formato de jornal com piadas, quebra-cabeças e
tiras em quadrinhos intitula The Funnies. No entanto a série foi cancelada depois do
trigésimo sexto número por ter tido poucas vendas (WRIGHT, 2003).
Já em 1933 dois empresários de Connecticut descobriram que placas padrão de
impressão podiam imprimir duas páginas de quadrinhos lado a lado ao tamanho de uma
página de jornal que ao dobrá-las dava o formato de uma comic book. Fundaram a Eastern
Color Printing e aos poucos o projeto foi crescendo, republicando tiras dos jornais. Em
1938 já havia várias outras editoras fazendo o mesmo, inclusive os próprios jornais que
antes apenas vendiam suas tiras para editoras de comic books começaram a lançar suas
próprias revistas (WRIGHT, 2003).
As maiores e mais antigas editoras de comic books que sobrevivem até hoje são a
DC Comics e Marvel Comics. Os quadrinhos do Batman e Super-Homem são publicados
pela DC que durante seus primeiros anos de existência chamava-se National Allied
Publications. Ela nasceu em 1935 quando Wheeler-Nicholson passou a produzir materiais
originais de quadrinhistas freelancers. A partir de um pequeno escritório em Nova York
ele começou a atrair jovens quadrinhistas e ilustradores desempregados dispostos a receber
cinco dólares por página. Desta forma ele evitou pagar as cada vez mais altas licenças para
republicar as tiras de jornais. Ele publicava duas revistas, a New Fun e a New Comics, até
que em 1937 Harry Donenfeld e Jack Liebowitz juntaram-se com Wheeler-Nicholson em
uma parceria, financiando um novo título, a Detective Comics, que mais tarde viria a dar
nome à companhia. Esta revista tinha um conteúdo diferente das primeiras cômicas. Mas a
11
As revistas pulp eram bastante populares e baratas, feitas com papel de baixa qualidade utilizando-se a polpa ou pulp
do papel.
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indústria das comic books apenas vão se tornar um negócio altamente lucrativo no ano
seguinte, quando a futura DC Comics resolve lançar um quarto título em junho de 1938, a
Action Comics, que estampava em sua capa o Super-Homem levantando um carro.
Em julho de 1939 o fenômeno “homem de aço” passou a ter uma comic book
reservada somente às suas aventuras, a revista Superman, nem por isso deixou de ter
histórias também publicadas na Action Comics. O mesmo aconteceu com o Batman que,
inicialmente publicado pela Detective Comics, em 1940 também passou a ter uma revista
exclusiva, a Batman. Portanto aviso desde já ao leitor não familiarizado com o mundo dos
quadrinhos que as histórias aqui analisadas serão sempre referenciadas a estas quatro
revistas, e que histórias inéditas sobre esses dois super-heróis continuaram ser publicadas
pela Action Comics e Detective Comics em periodicidade mensal, enquanto que as revistas
exclusivas eram de menor periodicidade mas continham muito mais histórias do mesmo
super em uma única publicação.
É a partir da criação do Super-Homem em 1938 e Batman em 1939 que começa a
nossa jornada rumo às cidades e imaginário urbano das histórias em quadrinhos. É claro
que desde as suas criações em finais de década de 1930 muita coisa mudou. Os quadrinhos
eram, ao lado do rádio e do jornal impresso, um dos meios de comunicação mais populares
desta época, sem falar no preço acessível. Ao custo de um centavo era possível ler estas
publicações.
A importância do jornal e do rádio durante as décadas de 1930 e 1940 pode ser
vista nas primeiras histórias dos super-heróis aqui analisados. A segunda história do
Batman, a Detective Comics n° 28, inicia-se com um grande grito de “EXTRA! Extra!” por
um pequeno garoto vendedor de jornais anunciando um roubo de jóias.
32
33
recorte os primeiros anos destes super-heróis até a entrada dos Estados Unidos na Segunda
Guerra, em dezembro de 1941.
Vimos anteriormente a importância dos Syndicates na produção e distribuição das
histórias em quadrinhos. No tópico a seguir tomo o tema da luta judicial entre os criadores
do Super-Homem e a atual Detective Comics, como uma forma de exemplificar a que
lógica produtiva os autores de quadrinhos em geral estavam subordinados.
Superman became the comic book industry’s first “star”, and DC Comics had him. By
1940 DC enjoyed healthy national distribution for all of its titles and average sales of
800,000 copies per issue, nearly 300,000 more than its closest competitor. According to a
1941 article in the Saturday Evening Post, the Superman title alone grossed $950,000 for
DC in 1940. For the time being, Siegel and Shuster also shared in some of the wealth
earned by their creation. The Post reported that they each earned thirty-five dollars per
page for their comic book work at DC – the highest rate paid in the industry – and five
percent of all other revenue earned from Superman. Their position was by no means
secure, however, since DC was under no obligation to retain their services in order to
keep Superman13 (WRIGHT, 2003, p. 14).
12
Desde seus primeiros rabiscos até a publicação o Super-Homem foi continuamente oferecido e rejeitado em vários
jornais e revistas em quadrinhos, chamado de muito fantasioso pelos editores. É importante esclarecer que o Super-
Homem tinha vários poderes como super-força, habilidade de pular sobre arranha-céus, correr mais rápido que um trem,
ter pele impenetrável a tiros... Mas o nosso herói ainda não voava e não tinha visão de raio laser, por exemplo,
habilidades que os roteiristas lhe atribuíram ao longo do desenvolvimento e crescente aceitação do personagem pelo
público.
13
O trecho correspondente na tradução é: “O Super-Homem se tornou a primeira “estrela” da indústria das histórias em
quadrinhos, e a DC Comics o tinha. Em 1940 a DC desfrutava de uma distribuição nacional de todos os seus títulos com
uma média de vendas de 800,000 tiragens por número, aproximademente 300,000 mais que sua competidora mais
próxima. De acordo com um artigo de 1941 do Saturday Evening Post, o título do Super-Homem sozinho arrecadava
$950,000 para a DC em 1940. Por algum tempo Siegel e Shuster também dividiram alguns dos lucros ganhos com a sua
34
criação. O jornal The Post publicou que cada um deles [Siegel e Shuster] ganhavam trinta e cinco dólares por página por
seus trabalhos na DC – a mais alta cifra paga pela indústria – e cinco por cento de todas outras vendas ganhas com o
Super-Homem. A sua posição não era de forma alguma segura, por quanto a DC não se encontrava sob nenhuma
obrigação de manter os seus serviços em ordem de manter os direitos do Super-Homem”.
35
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37
38
Toda a teoria simmeliana pode ser compreendida como tendo uma de suas
principais motivações a análise do conflito entre indivíduo e sociedade na Modernidade,
tendo em vista as transformações impostas no modo de vida ocorridas após a Revolução
Industrial. As cidades grandes14, emblemas da modernidade, vão ser tomadas por Simmel
como o espaço em que essas transformações manifestam-se de forma mais contundente
através da economia monetária, da perda de laços tradicionais, do anonimato e do
individualismo metropolitano.
Em seu célebre ensaio A Metrópole e a Vida Mental Simmel (1997) enfatiza o
processo contraditório e ambíguo por que passa o homem citadino ao tentar conciliar
pressões sociais e individuais, afirmando que um dos problemas mais graves da vida
moderna seriam decorrentes da tentativa de conciliar estas forças. É na metrópole que se
14
É importante lembrar que uma das conseqüências da Revolução Industrial e do advento da modernidade foi o
crescimento urbano e o surgimento da metrópole moderna.
39
Da repressão que operava por meio de tais instituições, que perderam toda legitimidade
essencial, surgiu o ideal da simples liberdade do indivíduo. Bastava que caíssem aquelas
amarras que obrigavam as forças da personalidade a trilhar caminhos antinaturais para que
todos os valores internos e externos, todas as capacidades previamente existentes até
então refreadas política, religiosa e economicamente, se desenvolvessem e conduzissem a
sociedade da irracionalidade histórica para a sociedade da racionalidade natural
(SIMMEL, 2006, p. 92).
40
(...) a liberdade institucionalizada torna-se novamente ilusória por ação das relações
pessoais; como em todas as relações de poder, a vantagem obtida faz mais fácil a
conquista de outra vantagem – de que a ‘acumulação de capital’ é apenas um exemplo
isolado -, e assim a desigualdade do poder iria se tornar maior em progressão velocíssima,
15
Weber (1987), no texto A Cidade, conceitua a cidade enquanto tipo-ideal, caracterizando-a por constituir mercado e
possuir autonomia política. Para este autor a cidade moderna é o espaço da racionalização e da emergência de uma
conduta racional voltada para fins que possibilitou o desenvolvimento do capitalismo.
41
(...) conseqüência de uma divisão do trabalho mais desenvolvida, cada espírito se encontra
voltado em direção a um ponto diferente do horizonte, refletindo um aspecto diferente do
mundo e, portanto, o conteúdo das consciências difere de um sujeito para outro.
Encaminha-se assim, pouco a pouco, em direção de um estado, que é quase atingido desde
já, e em que os membros de mesmo grupo social não terão mais nada em comum entre
eles senão sua qualidade de homem, senão os atributos constitutivos da pessoa humana
em geral (DURKHEIM, 2007, p. 306).
42
parecem ter mais facilidade em abraçar estes valores já que podem se destacar de forma
sobre-humana em suas identidades de supers e ao mesmo tempo manterem-se anônimos
sob suas capas.
43
16
Mais uma vez podemos ver o caráter ambíguo na teoria simmeliana: é por meio de um comportamento objetivo e
racional que este homem consegue preservar sua subjetividade.
44
Em sua primeira aparição pela revista Action Comics n° 1, de junho de 1938, Clark
Kent consegue sair em um encontro romântico com Lois Lane, colega de trabalho por
quem é apaixonado e que não lhe dava chances. No meio de uma dança o casal é
atrapalhado por um homem que rudemente manda Clark Kent se afastar para que ele possa
dançar com Lois Lane. Lois exige que Clark se imponha, o que ele não faz. No final ele é
afrontado pelo homem e por Lois Lane, que vai embora do salão dirigindo-lhe uma última
fala: “Você me perguntou mais cedo esta noite por que eu te evitava. Eu te direi o porquê
agora! Porque você é um fraco e insuportável covarde!”.
(...) o Superman vive entre os homens sob as falsas vestes do jornalista Clark Kent; e
como tal, é um tipo aparentemente medroso, tímido, de medíocre inteligência, um pouco
embaraçado, míope, súcubo da matriarcal e mui solícita colega Míriam Lane [Lois Lane],
que, no entanto, o despreza e está loucamente enamorada do Superman. Narrativamente, a
dupla identidade do Superman tem uma razão de ser, porque permite articular de modo
bastante variado a narração das aventuras do nosso herói, os equívocos, os lances teatrais,
um certo suspense próprio de romance policial. Mas, do ponto de vista mitopoiético, o
achado chega mesmo a ser sapiente: de fato, Clark Kent personaliza, de modo bastante
típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezados por seus semelhantes;
através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de uma cidade
norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes da
sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de
mediocridade (ECO, 2008, p. 247-248).
45
não Clark Kent, ele ainda agradece. Lois comenta que é irritante a maneira como Clark
deixa o colega sair impune de suas brincadeiras.
Ilustração 10: imagem retirada da revista Action Comics n° 8 republicada no livro The Superman
Chronicles Volume 1 (2005).
46
O empregado Clark Kent anda vestido como toda a gente, mas, quando se transforma em
Superman, ao mesmo tempo que o corpo se modifica, veste a capa e o fato justo. Como é
que o poderíamos imaginar vestido vulgarmente a fazer reinar a ordem em Metrópolis?
(MARNY, 1988, p. 124).
O aspecto exterior se caracteriza, então, por uma mistura de elementos de formas de vestir
passadas com elementos “modernos” como o corte de cabelo e a barba raspada ou o
aspecto aerodinâmico e algo atemporal do conjunto de roupas. Atemporal no sentido de
que o uniforme é formado de elementos diversos oriundos de diferentes épocas e países
não se podendo, portanto, dizer: o uniforme do SH a, b, c é cópia fiel da vestimenta de
indivíduo que tenha vivido em um país determinado em uma dada época (NEVES, 1971,
p. 71-72).
O Super-Homem então, com sua roupa atemporal e inusitada, parece ter lançado
moda não apenas em super-habilidades, assim fundando um novo gênero, mas também
17
SH é uma abreviação para Super-Heróis.
47
determinando a forma de vestir dos outros supers, geralmente com uso de colants e capas,
além do já citado caráter atemporal, evidenciando ainda mais a autonomia dos super-heróis
com relação à sua historicidade pelo meio do uso de roupas que tentam romper com a
moda instituída. O irônico, no entanto, é o fato de que na tentativa de distinguirem-se uns
dos outros os indivíduos modernos assemelham-se em sua ânsia por distinção.
Encontramos então o mesmo padrão na moda e na moda mais específica que aqui
analisamos: a vestimenta de super-herói.
Ao passo que exploramos a idéia do Clark Kent como homem da multidão, o
milionário Bruce Wayne, por sua vez, esconde-se na figura blasé. Este tipo de
comportamento é característico de Bruce desde a primeira história em quadrinhos do
Batman (publicada na revista DC n° 27), como veremos a seguir. Bruce é amigo do
comissário de polícia Gordon e já nos primeiros quadros desta história finge desinteresse
para poder se inteirar do caso de um assassinato.
Alguns quadros adiante ele torna a fingir desinteresse apenas para poder se ausentar
e ir resolver o caso. Ao final da história, quando os crimes foram resolvidos por ele mesmo
vestido de Batman, nosso herói encontra-se novamente com o comissário Gordon, e não só
se mostra desinteressado sobre as ações do Batman como ainda faz piadas ao ouvir que
este supostamente teria desaparecido nos céus. Comenta Bruce Wayne: “Que belo conto de
fadas comissário”.
48
Ilustração 13: imagem retirada da revista Detective Comics n° 27 republicada no livro The Batman
Chronicles Volume 1 (2005).
49
50
(...) Cunha é acolhedora e nela as pessoas se sentem queridas e reconhecidas, por outro
lado, ela também oprime, e nela as pessoas se sentem controladas e restringidas pelas
regras e expectativas a cumprir e atender. São as delícias do tratamento pessoalizado, de
ser reconhecido, considerado e estimado (e por isso os cunhenses adoram Cunha); e as
agruras da falta de privacidade, de se sentir hiper-exposto, contido, coibido (e por isso os
cunhenses detestam Cunha). São as delícias e agruras do controle social. Os sabores e
dissabores da cidade pequena, regida pelas relações pessoais, o paraíso e inferno da
pessoalidade (PRADO, 1997, p. 53).
51
52
53
A sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma liberdade total. O
simbolismo se crava no natural e se crava no histórico (ao que já estava lá); participa,
enfim, do racional. Tudo faz com que surjam encadeamentos de significantes, relações
54
entre significantes e significados, conexões e conseqüências, que não eram nem visadas
nem previstas (CASTORIADIS, 1995, p. 152).
Para este autor, a dimensão simbólica da vida social se situa em instituições como,
por exemplo, a escola e o aparelho jurídico. Apesar de não se reduzirem a operações
simbólicas, estas instituições não existiriam sem suas redes de significações. A sociedade
constrói seu simbolismo, ligando-o à natureza, à história e ao racional, remetendo-o ao
imaginário.
Compreendendo a dimensão temporal e histórica do urbano, a historiadora Sandra
Jatahy Pesavento faz uma análise cultural do urbano enquanto dado ou documento capaz
de registrar o imaginário urbano de uma época. No livro Imaginário da Cidade: visões
literárias do urbano (PESAVENTO, 1999) esta historiadora faz uma belíssima análise do
imaginário urbano de três cidades em diferentes obras literárias. A mesma cidade pode ser
representada de forma diferente dependendo do lugar de onde se fala, seja no tempo ou
socialmente. Esta é, por exemplo, a diferença entre o Rio de Janeiro de Lima Barreto e
Machado de Assis.
As cidades imaginárias são pensadas a partir das cidades reais. Sempre existiram as
mais diversas representações do urbano, seja enquanto crítica ou utopia. Cidades caóticas,
odiadas, sonhadas ou poéticas são representações que cabem e couberam a muitas cidades
ao longo da história. Pesavento (2007) considera que a cidade contém uma dimensão do
sensível que a integra a um processo simbólico de atribuição de significado. O urbano
abarca a dimensão física e cultural da cidade, em um processo de construção material e
simbólico de uma cidade que habita no pensamento. Para a autora a cidade em sua
dimensão da sensibilidade é, sobretudo, a produção de imagens e discursos que enquanto
representação se coloca no lugar da materialidade. Para Pesavento (2007, p. 14), cidades
sensíveis e pensadas podem ser “capazes de se apresentarem mais ‘reais’ à percepção de
seus habitantes e passantes do que o tal referente urbano na sua materialidade e em seu
tecido social concreto”. A dimensão sensível do urbano corresponde, portanto, a uma
cidade de forte imaginário.
Sem dúvida, essa cidade sensível é uma cidade imaginária construída pelo pensamento e
que identifica, classifica e qualifica o traçado, a forma, o volume, e os atores desse espaço
urbano vivido e visível, permitindo que enxerguemos, vivamos e apreciemos desta ou
daquela forma a realidade tangível. A cidade sensível é aquela responsável pela atribuição
de sentidos e significados ao espaço e ao tempo que se realizam na e por causa da cidade.
É por esse processo mental de abordagem que o espaço se transforma em lugar, ou seja,
portador de um significado e de uma memória; (PESAVENTO, 2007, p. 14-15).
55
Sandra Jatahy Pesavento defende uma história cultural urbana que estude não
apenas os processos econômicos e sociais que ocorrem na cidade, mas que estude o
imaginário criado em seu ambiente, assim como as representações sobre a cidade. Um
imaginário sobre a cidade e criado na cidade é um objeto que tem sido analisado também
pela sociologia. Esta dissertação, ao propor um estudo do imaginário urbano em uma
análise de representações sobre as cidades de Gotham e Metrópolis, busca justamente
identificar, a partir dessas cidades, o imaginário urbano de sua época. Pesavento define
imaginário urbano como:
(...) o imaginário urbano, como todo imaginário, diz respeito a formas de percepção,
identificação e atribuição de significados ao mundo, o que implica dizer que trata das
representações construídas sobre a realidade - no caso, a cidade. (PESAVENTO, 2007, p.
15).
18
A imagem de uma cidade como sua representação simbólica pode ser explorada tanto pelo domínio da imagem visual,
como pelo âmbito da imagem no sentido difuso e mais abrangente que abarca a dimensão cultural e simbólica da vida
urbana (LYNCH, 2006; FORTUNA, 1997).
56
19
Utiliza-se, neste ponto, do conceito weberiano de tipo-ideal como forma de evidenciar o caráter instrumental e
aproximativo dos modelos urbanos aqui empregados (WEBER, 2006).
57
de pensamento. Mas em linhas gerais, é possível observar essa tradicional ruptura entre o
que seria o modelo naturalista, progressista e culturalista.
O modelo progressista, segundo a autora, estaria presente desde, por exemplo,
Proudhon, Owen e Fourier. Mas é com o movimento modernista dos CIAM20,
principalmente com Le Corbusier e a concepção da residência como “máquina na qual
viver”21, que o modelo progressista se encaixa radicalmente em um pensamento otimista
orientado para o máximo rendimento da sociedade industrial. A composição do espaço
urbano seria amplamente aberta e racional, de uma estética funcional, ligando a beleza à
lógica.
O modelo culturalista, segundo a autora, abrange autores como Ruskin, William
Morris, Ebenezer Howard (criador do movimento Cidade Jardim) e Camilo Sitte. Os
partidários desse modelo seriam pensadores que evocam o passado e criticam a morte da
comunidade diante do processo de industrialização. Essa visão seria pessimista, contrária
às metrópoles modernas e voltada para um tempo anterior, ao passo que a concepção do
modelo progressista é extremamente positiva quanto à possibilidade de crescimento urbano
ordenado e também quanto à crença no progresso.
Já o modelo naturalista, segundo Françoise Choay (2003) e Jean-Louis Harouel
(1990), seria um fenômeno de concepção anti-urbana próprio dos Estados Unidos,
impulsionado pelo mito dos pioneiros que colonizaram o país e pela nostalgia de uma
natureza virgem. Essa forte corrente anti-urbana não teria a abrangência tal dos modelos
anteriormente citados, mas conta com nomes como Louis Sullivan e Frank Loyd Wright,
além de ter exercido grande influência sobre as concepções urbanas norte-americanas do
século XX.
Em suma, o modelo naturalista e o modelo culturalista teriam concepções
pessimistas quanto ao crescimento (mesmo que ordenado) das grandes cidades. Já o
modelo progressista tenta aliar o crescimento à ordem.
A cidade do modelo culturalista tem limites fixos que circunscrevem as suas
dimensões. A composição estética dessas cidades seria contrária aos padrões e protótipos
20
O movimento modernista na arquitetura se consolida a partir do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna
(CIAM) em Atenas, no ano de 1933, estabelecendo diretrizes e consensos que culminaram com a redação da Carta de
Atenas.
21
As cidades passaram a ser criadas como máquinas que desprezavam a personificação e a ornamentação, projetadas
visando apenas a sua funcionalidade. Segundo Benevolo (1976), Le Corbusier se preocupava com a utilidade e
aplicabilidade de suas obras, submetendo a arquitetura ao controle dos traçados geométricos e reguladores. Le Corbusier
faz uma analogia entre casa e máquinas para explicar a construção em série de habitações econômicas.
58
22
Lembrando que o modelo naturalista representa um caso particular ocorrido nos Estados Unidos da América, e que os
modelos culturalista e progressista são infinitamente mais significativos para a história do urbanismo.
59
Hoje, quase ninguém mais se ocupa da construção urbana enquanto obra de arte, mas
apenas enquanto um problema técnico. E posteriormente, quando o efeito artístico não
corresponde às expectativas, ficamos espantados e desnorteados; entretanto, em um
próximo empreendimento, tudo será tratado do ponto de vista técnico, como se
estivéssemos traçando uma linha férrea, onde não há questões artísticas envolvidas
(SITTE, 1992, p. 94-95).
Ebenezer Howard, assim como Sitte, viveu as turbulências geradas pela revolução
industrial, grande crescimento urbano e problemas sociais. Influenciado pelo reformismo
60
(...) a luz solar vem sendo cada vez mais barrada e o ar está tão viciado que belos edifícios
públicos, assim como os pardais, rapidamente se cobrem de fuligem, estando as próprias
estátuas em condição desesperadora. Edifícios suntuosos e aterrorizantes cortiços são as
estranhas feições complementares das cidades modernas.
Para Ebezener Howard a cidade jardim representa uma junção dos benefícios da
vida em comunidade com os benefícios da vida urbana. Este modelo de cidade, como dito
anteriormente, é enquadrado por historiadores do urbanismo como culturalista. É
importante lembrar que os modelos culturalista e progressista surgem depois do advento
das cidades modernas e das transformações sociais ocorridas após a revolução industrial,
como a emergência do liberalismo e do individualismo. Estes modelos propõem diferentes
soluções, o progressismo adotando o individualismo e a cidade industrial, e o culturalismo
propondo um retorno a comunidade de relações pessoais. Neste ponto, Gotham City pode
se assemelhar a crítica das grandes cidades tecida por Howard, a uma crítica ao
impessoalismo e às “estranhas feições” da cidade moderna.
É importante elucidar que Gotham City é relacionada aqui apenas com a noção
crítica e anti-urbana de Ebenezer Howard e não com o seu modelo de Cidade-Jardim
construído como contraponto às grandes cidades da sua época. O que se tenta é aproximar
a representação de Gotham a outras representações críticas das metrópoles modernas,
23
Howard queria criar agrupamentos urbanos de pequeno porte em contrapartida às grandes cidades industriais. O seu
modelo de cidade representava a junção das partes boas das cidades grandes e das partes igualmente boas do campo,
criado para dar qualidade de vida aos operários instalados precariamente nas cidades industriais. A cidade-jardim foi
projetada para alojar os operários a baixo-custo e alta qualidade ambiental.
24
Robert Owen e Charles Fourier foram os precursores do reformismo social aliado a novas formas de habitação.
61
tendo em vista que as aventuras do Batman se passam em uma cidade com alguns
lunáticos, gangues e violência, enquanto a cidade do Super-Homem tem que enfrentar
problemas técnicos e crimes de motivações e soluções morais, como veremos no capítulo a
seguir a partir da análise de que tipos de crime, migração e delinquência habitam nessas
cidades.
62
63
64
A Escola de Chicago teve grande influência de Georg Simmel. Este sociólogo foi
um dos primeiros sociólogos a pensar as formas de vida nas grandes cidades, tornando-se
referência para os estudos urbanos até os dias de hoje. Simmel foi um dos pensadores que
mais influenciou as discussões da Escola de Chicago. Basta dizer que Park havia estudado
com ele na Alemanha e que o American Journal of Sociology, editado pela Universidade
de Chicago, publicou várias traduções de Simmel do alemão para o inglês.
Robert Ezra Park (1987) foi um dos mais importantes nomes da Escola de Chicago.
No seu artigo A Cidade: Sugestões para a Investigação do Comportamento Humano no
Meio Urbano, este autor afirma que a cidade não seria “um simples amontoado de
homens” ou uma “mera constelação de instituições”. Para Park, a cidade seria um produto
da natureza humana na medida em que representa um “estado de espírito”, com sua
cultura, costumes e tradições próprias. Neste ponto pode-se notar como Park, a partir de
Simmel, começa a pensar a cultura urbana.
No referido artigo de 1916, Park propõe o uso da etnografia para a compreensão do
meio urbano, algo completamente inovador na época tanto para a sociologia quanto para a
antropologia, que ainda se dedicava aos estudos de sociedades exóticas. Outra proposição
já citada é a de se enxergar a cidade como uma espécie de laboratório social. Estas noções
foram desenvolvidas pelos pesquisadores da Escola de Chicago.
A cidade moderna, segundo Park, é caracterizada pela divisão social do trabalho, o
que diversifica e complexifica os tipos humanos metropolitanos, pois a vida citadina
moderna compreende uma grande variedade de ocupações e profissões. Esta noção está
presente desde Weber e Simmel.
Apesar de haver uma grande divergência de métodos e idéias entre os
pesquisadores da Escola de Chicago o que fez dela uma corrente de pensamento foi a
inquietação com temas coincidentes, principalmente a migração, a delinqüência e
criminalidade, além do compartilhamento da preocupação com análises empíricas. Tanto
em Park como em Burgess há a compreensão do espaço urbano em sua fragmentação como
espaço heterogêneo e diversificado. Este pressuposto é também tomado pelos
pesquisadores da referida escola de pensamento.
As cidades de Gotham e Metrópolis, além de terem a recorrência de crimes,
delinquência e imigrantes são cidades de estrutura urbana diversificada com formação de
bairros pobres e imigrantes. Veremos a seguir os pontos coincidentes e divergentes na
representação destes temas nos quadrinhos do Batman e Super-Homem, bem como suas
65
possíveis aproximações com as teorias da Escola de Chicago. Este capítulo está dividido
em três tópicos principais. O tópico 4.1traz uma análise de Batman e Super-Homem a
partir das teorias sobre migração e assimilação da Escola de Chicago. O tópico 4.2 faz-se
uma análise do tipo de crime em Gotham e Metrópolis e o tópico 4.3 que encerra este
capítulo é uma análise da delinqüência em duas histórias em quadrinhos dos supracitados
super-heróis.
O tema da migração está presente nos quadrinhos desde sua origem. Em capítulo
anterior vimos como o quadrinho nova-iorquino Yellow Kid, considerado por muitos como
a primeira tira em quadrinhos da história, narrava de forma cômica o convívio de crianças
imigrantes e negras em um beco de um bairro pobre. O Hogan’s Alley, ou beco do Hogan,
aproxima-se inclusive da noção de um gueto moderno, segundo a definição do grande
sociólogo da Escola de Chicago, Louis Wirth (1966).
Mas antes mesmo dos quadrinhos existirem, outra forma de representação gráfica,
os cartuns, já desempenhavam o papel de retratar cômica e satiricamente os imigrantes. Ao
longo do século XIX os irlandeses foram um dos grupos de maior migração para os
Estados Unidos e portanto um dos mais caricaturados. Appel e Appel (1994) demonstram
como o irlandês passa de uma representação grostesca e símia durante o século XIX a de
pequeno burguês já em inícios do século XX.
Os cartuns utilizavam-se de um humor étnico e da construção de um estereótipo
gráfico. Por vezes representavam ataques sutis motivados por preconceitos de classe de
imigrantes estabelecidos contra recém-chegados.
Alguns chargistas encontravam novos alvos nos “novos” imigrantes vindos da Europa
Ocidental e Oriental, que eles representavam como ainda mais alienígenas e, portanto,
mais ameaçadores aos valores e padrões americanos do que os católicos irlandeses e
alemães que foram vítimas de sátiras gráficas mais antigas. Pensava-se duas vezes antes
de se ofender os leitores católicos, muitos dos quais agora eram membros dos grupos
consumidores de classe média, cortejados pelos grandes anunciantes (APPEL ; APPEL,
1994, p. 68).
66
67
Acima vemos Maggie “enquadrar” Jiggs porque ele teria sido visto na taverna do
Dinty’s. Abaixo vemos a esposa horrorizada com os modos do seu marido à mesa. As
situações na tira sempre se desenrolam a partir deste conflito entre hábitos do marido e
anseios de ascensão da esposa, que ao final acaba tomando atitudes pouco educadas e
refinadas para repreender seu marido. Parece que em muito sentido a classe-média norte-
americana se identificou com estes conflitos.
68
Ilustração 18: Publicação de 1921 dos quadrinhos Bringing Up Father (Fonte: site My Comic Shop.
Disponível em http://www.mycomicshop.com/).
69
Como foi dito anteriormente, Batman foi lançado em maio de 1939 pela revista
Detective Comics n° 27. Já em sua terceira publicação na Detective Comics n° 29 de julho
de 1939 surge a figura do vilão Doutor Morte e seu ajudante Jabah. Jabah é representado
aqui com camisa e calças largas, um turbante azul e uma espécie de cinta branca em sua
cintura, além de ter a tez mais escura, em um tom avermelhado se comparado a outros
personagens como o próprio Doutor Morte.
No quadro abaixo é revelada a nacionalidade de Jabah quando o narrador o chama
de “gigante indiano”. Em outro quadro ainda o narrador refere-se a Jabah como “gigante
servente do Doutor Morte”.
Abaixo vemos Jabah de turbante azul, camisa vermelha, calça verde, cinta branca e
uma capa roxa pelas ruas da cidade.
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71
Assim que esta notícia chega às manchetes de jornais outros grupos criminosos
interessam-se pelo rubi.
72
Ilustração 24: imagem retirada da revista Detective Comics n° 35 republicada no livro The Batman
Chronicles Volume 1 (2005).
73
porta da “curios shop” ou loja de antiguidades de Sin Fang. À direita desta loja há um
comércio de venda de Chop Suey.
Batman então encontra-se com Wong, prefeito de Chinatown descrito pelo narrador
como um homem sábio e honesto, e é dele de que recebe as informações de que precisa
sobre Sin Fang. Nosso herói é alertado para tomar cuidado com o interceptador chinês.
Batman então vai ao encontro de Sin Fang e exige a estátua. Sin Fang explica que
ele não sabia que a estátua era roubada e pede para o Batman acompanhá-lo que ele irá
devolver a estátua. O chinês abre uma porta e segundo o narrador “dois mongóis gigantes
saem com duas cimitarras em punho”.
74
O explorador havia matado Sin Fang e assumido seu lugar, além de ter contratado
falsos hindus para forjar sua morte e conseguir vender a estátua e recuperá-la novamente.
O que esta história nos relata é que apesar de todos os crimes terem sido tramados
por um norte-americano ele os faz encobrindo-se nas representações criminosas de
imigrantes, aproveitando-se e mesmo corroborando a representação ambígua e pouco
confiável que o imigrante assume nestas histórias e fora delas. Afinal o Sin Fang
verdadeiro era de fato um nada confiável interceptador de mercadorias roubadas, isso sem
falar nos seus capangas mongóis, embora o nosso herói tenha sempre tratado com o
Sheldon Lenox se passando por Sin Fang.
Na Detective Comics n° 39 de maio de 1940 Batman e Robin29 enfrentam a horda
do dragão verde. A história desenrola-se a partir do seqüestro de dois milionários e com a
morte de um de seus motoristas com um machado. Batman então vai a Chinatown
investigar o crime porque “Tem apenas um tipo de povo que mata com machado...”. Nosso
herói reencontra-se com Wong, o “bom” chinês da história da estátua de rubi. O narrador
define este personagem, assim como havia feito na história anterior, como um homem
sábio e honrado, embora desta vez nos seja acrescentado que Wong é o prefeito não-oficial
de Chinatown, revelando a organização social particular deste bairro.
29
Desde a Detective Comics n° 38 Robin passa a ser o fiel escudeiro e ajudante do Batman.
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Ilustração 30: imagem retirada da revista Detective Comics n° 39 republicada no livro The Batman
Chronicles Volume 2 (2006).
“The idol of the Green dragon kills its own!!!” ou “O ídolo do dragão verde mata os
seus”, conta-nos o narrador no quadro acima.
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79
There is no process but life itself that can effectually wipe out the immigrant’s memory of
his past. The inclusion of the immigrant in our common life may perhaps be best reached,
therefore, in cooperation that looks not so much to the past as to the future. The second
generation of immigrant may share fully in our memories, but practically all that we can
ask of the foreing-born is participation in our ideals, our wishes, and our common
enterprises31 (PARK ; BURGESS, 1921, p. 740).
80
de “diálogo” ou fusão, em que há uma troca entre cultura de origem e cultura de adoção, o
imigrante é compelido a “naturalmente” deixar seu passado e sua memória.
Na Detective Comics n° 52 de 1941 temos novamente a presença de chineses e
mongóis, além de um personagem de participação secundária chamado Achmed, sobre o
qual não sabemos a nacionalidade, apenas que é vendedor em uma loja de antiguidades.
Achmed, assim como Mikhail, ajudante do Doutor Morte na DC n° 30, apelam a uma
representação genérica oriental do homem de turbante.
Nesta história de junho de 1941 aparece a máfia chinesa e a sua prática de extorsão
que alarma os moradores do bairro chinês.
81
Diz o narrador: “Dias passam. Então, coisas estranhas acontecem no bairro oriental,
em lojas de chá, espaços de chop suey, lavanderias...” Esta é uma descrição interessante do
bairro e do tipo de função que os imigrantes chineses ali ocupam.
82
aparece neste encontro e promete acabar com a máfia, que seria comandada, de acordo
com a história, por um “descendente de Gengis Khan”.
Transcrevo a fala dos dois personagens chineses do quadro acima: “Por muito
tempo o nosso povo não foi incomodado pelos bandidos de Khan, mas agora...”; “Agora
nós ouvimos que um Khan usa o anel aqui na América”. Eles se referem a um anel que
representa a descendência de Gengis Khan. Mas o mais importante desta fala é a idéia do
descendente que está na América e que de certa forma ameaça o padrão americano de vida
ou o american way of life.
Ao final Loo Chung, novo prefeito de Chinatown revela-se como o chefe da máfia
chinesa, traindo a confiança do Batman. Chung o prende em uma espécie de prisão
subterrânea e em sua fuga o Batman encontra um chinês idoso acorrentado sendo açoitado
por um mongol.
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A última fala do Batman nesta história dirige-se ao velho chinês que ele libertou:
“Agora seu povo pode andar livre novamente como todos os homens deveriam”.
Nestas histórias do Batman vemos uma ambigüidade na representação do homem
oriental, ora retratado como confiável, ora como criminoso. Mas a ambigüidade maior
decorre do fato de que muitas vezes um mesmo personagem aparece como confiável e em
seguida ataca o herói, em uma representação do lugar de desconfiança que assume a figura
do imigrante, do “outro”, daquele que não se conhece ao certo. É como se o nosso herói,
por não dominar os códigos culturais destes imigrantes, incorresse no erro de confiar em
personagens como Loo Chung ou Sin Fang.
Em muito sentido essa histórias ajudam a construir uma noção estereotipada, uma
imprecisão dos grupos culturais, sejam chineses, hindus ou mongóis, inclusive em suas
representações imprecisas das especificidades culturais e nacionais de personagens como
Mikhail e Achmed, que ajudam a corroborar uma idéia geral de oriente ou orientalismo33
(SAID, 2007).
Por outro lado estas mesmas histórias reservam um espaço para os imigrantes em
vias de assimilação pela sociedade norte-americana, como no caso dos comerciantes de
Chinatown e da mãe e filha que rezam por aquele que vem libertar seu povo. O Batman,
assim como o Super-Homem são super-heróis que encarnam os ideais norte-americanos de
liberdade, e aqui nestas histórias pode-se perceber como o Batman em seu papel de libertar
o povo chinês, na alegoria do velho chinês acorrentado, representa um ideal de nação livre.
Esta alegoria aponta para o ideal de nação e a preocupação da época, compartilhada pela
Escola de Chicago, com a integração do imigrante a sua nova sociedade. Os Estados
Unidos nesse caso representa um lugar onde o imigrante pode ser livre, mas em
contrapartida precisaria abdicar de certos traços tradicionais, como o “anel de Khan” e
algumas de suas superstições. Estes quadrinhos demonstram o próprio conflito cultural por
que passa o imigrante e como a assimilação é um processo negociado em que alguns de
seus traços culturais tornam-se mais exaltados e outros esquecidos.
O tema da migração e assimilação compreende uma das principais preocupações da
Escola de Chicago de Sociologia, corrente de pensamento a que esta pesquisa recorre como
forma de teorizar a produção do imaginário urbano nos quadrinhos do Batman. A cidade
33
Orientalismo define a visão eurocêntrica que trata de forma indistinta as culturas ditas orientais, representando toda
uma vasta de gama de culturas e sociedades “fora” do contexto ocidental e europeu sob o signo homogêneo do
orientalismo. Há na construção desta representação imprecisa e unívoca do que seria o Oriente mecanismos implícitos de
dominação que podem ser encontrados em várias esferas, inclusive na literatura ocidental, como nos demonstra Said
(2007), desde Homero a Flaubert. Nos quadrinhos do Batman essas representações imprecisas são abundantes.
85
86
(…) the chief obstacle to the assimilation of the Negro and the Oriental are not mental but
physical traits. It is not because the Negro and the Japanese are so differently constituted
that they do not assimilate36 (PARK, 1921, p. 760).
The fact that the Japanese bears in his features a distinctive racial hallmark, that he wears,
so to speak, a racial uniform, classifies him. He cannot become a mere individual,
indistinguishable in the cosmopolitan mass of the population, as is true, for example, of
the Irish, and, to a lesser extent, of some of the other immigrant races37 (PARK, 1921, p.
761).
35
O trecho correspondente na tradução é: “Nos Estados Unidos tem se tornado proverbial que poloneses, lituânios ou
noruegueses não se podem ser distinguidos em sua segunda geração de um americano nascido de pais nativos”.
36
O trecho correspondente na tradução é: “O maior obstáculo para a assimilação do negro e do oriental não são questões
mentais, mas físicas. Não é porque o negro e o japonês são tão diferentemente constituídos que eles não são assimilados”.
37
O trecho correspondente na tradução é: “O fato de que os japoneses carregam uma distintiva marca racial, que ele
veste, por assim dizer, uma veste racial que o classifica. Ele não pode ser tornar um mero indivíduo indistinto na massa
da população metropolitana, como acontece, por exemplo, com o irlandês e em uma menor extensão com outros grupos
de imigrantes”.
87
Em 1849 acontece a primeira onda de migração chinesa, trazidos como mão de obra
barata para trabalhar principalmente em minas de ouro e construção de ferrovias. Apesar
de em 1872 ter sido proibida a importação da mão de obra braçal chinesa , em 1882 já
havia 130 mil chineses no país. Esse ano representou um marco da imigração chinesa nos
Estados Unidos: 39 mil chineses migraram para o país somente neste ano. O movimento
anti-migração chinesa tomou força na medida em que muitos trabalhadores organizados
passaram a reclamar do fato de que a mão-de-obra chinesa seria muito barata e que a sua
concorrência seria desleal. Neste mesmo ano, 1882, a imigração chinesa especializada e
não-especializada foi proibida. Esta proibição somente foi revogada em 1902
(BOGARDUS, 1919).
Vimos com Appel e Appel (1994) como o irlandês foi caricaturado de forma
estereotipada até haver a suavização e mesmo o declínio de sua representação em cartuns.
Para estes autores o declínio foi um processo natural da assimilação. A partir do momento
em que são assimilados deixam de ser exóticos e ameaçadores, e por isso passam a ser um
objeto caricatural menos interessante.
Os chineses, hindus e mongóis são representados no Batman sem características de
beleza, ao contrário dos heróis Batman e Robin. A cor da sua pele é visivelmente diferente.
Essa questão fica mais evidente a partir do momento em que Sheldon Lenox, na DC n° 35,
passa-se pelo chinês Sin Fang utilizando luvas amareladas, como esclarece o próprio
Lenox.
Embora os chineses tenham sido vítimas de cartuns durante o século XIX, assim
como os irlandeses, os primeiros continuam a ser representados como imigrante na década
de 1930 e 1940, como demonstrado a partir dos quadrinhos do Batman. Segue abaixo
cartum da Puck de 1887 criticando a imigração chineses, tratada como “o problema
chinês”.
88
89
A esta altura o leitor pode estar se perguntando sobre o tema da migração nos
quadrinhos do Super-Homem, outro super-herói que luta por liberdade nos moldes do
american dream. Nas histórias dos primeiros anos de vida deste super-herói a presença da
migração é muito pequena, quiçá nula. Em um ou outro quadrinho vemos surgir um
imigrante. Cito a breve passagem de um personagem na Action Comics n°3. Esta história
mostra o desabamento em uma mina de carvão e a ação de nosso herói salvando os
trabalhadores soterrados. Em meio aos escombros o Super-Homem encontra Stanislaw
Kober, resgatando-o. Este personagem é claramente reconhecido como imigrante não só
por seu nome como por sua fala. No hospital, depois de saber que ficaria para sempre
aleijado por conta do desabamento, Kober afirma: “Meses atrás nós sabia a mina é
insegura – mas quando nós fala aos supervisores do chefe eles dizem: ‘não gosta trabalho,
Stanislaw? Pede demissão!’ ”; “Mas nós não demite – tem mulher, crianças, contas! Então
de volta nós temos que ir para a mina e longas horas de trabalho e pouco pagamento... e
talvez para morrer!”38. O dono da mina, em entrevista a Clark Kent afirma que Kober não
tem direito a pensão apesar de ter ficado aleijado em serviço. O imigrante é representado
38
Cito a fala original: “Months ago we know mine is unsafe - - but when we tell boss’s foremen they say: ‘no-like job,
Stanislaw? Quit!’ ”; “But we no-quit – got wife, kids, bills! So back we go to mine an long hours an little pay… an
maybe to die!”.
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um casal de idosos, os Kent, que depois de o terem levado ao orfanato resolveram retornar
e o adotar.
Essa história nos lembra alguma coisa? De certa forma remete à viagem dos
imigrantes que tiverem que cruzar o mar até o novo mundo, reverberando em uma
experiência e imaginário mítico da construção dos Estados Unidos como nação multi-
cultural. Autores como Umberto Eco (2008) ou Sérgio Augusto (1971), por sua vez,
remontam a construção do Super-Homem como um mito moderno que recorre a esquemas
e heróis da mitologia clássica. O Super-Homem venceria qualquer herói grego, de Hércules
a Sansão, além de ter uma moralidade messiânica. O Super-Homem em sua cápsula
assemelha-se a Moisés, o profeta judeu que quando bebê também foi colocado em uma
cápsula para ser levado pelas águas do Nilo.
O Super-Homem é um mito moderno que representa a moralidade bem como os
ideais norte-americanos de liberdade e assimilação. Ele é o imigrante intergaláctico
símbolo da cidadania e do sucesso dos não-nascidos nos Estados Unidos que foram
assimilados e integrados a essa sociedade. O Super-Homem, mesmo não tendo nascido nos
EUA, é patriótico e superamericano em suas ações e ideais. Ao mesmo tempo em que
representa o ideal da assimilação, nosso herói representa o sucesso máximo desta. Apesar
do tema da migração não estar presente de forma explícita no Super-Homem através da
constante presença de personagens imigrantes, a construção do personagem principal
reflete o próprio ideal da assimilação.
4.2 Crime
Neste tópico interessa compreender que tipo de cidade é representada através dos
crimes nas histórias em quadrinhos do Batman e Super-Homem. O que seria à primeira
vista uma simples separação entre cidades pela questão do dia e da noite, revela
representações complexas que vão além da idéia de Gotham ser noturna porque seu
personagem principal é um morcego: o tipo de crime que toma lugar em uma cidade como
Gotham é de caráter diferente do tipo de crime em Metrópolis. As diferenças entre as
referidas cidades extrapolam a mera noção de representações de cidades em seu período
diurno ou noturno. A própria frase "Metropolis is New York in the daytime; Gotham City is
92
New York at night" tem sido atribuída ao famoso roteirista e desenhista de quadrinhos
Frank Miller.
É claro que os períodos do dia diferenciam o caráter dos espaços. Determinado
espaço não é o mesmo de dia e de noite, assim como qualquer cidade não é a mesma de
sábado à noite em uma segunda pela manhã. No entanto a representação de Gotham e
Metropolis diverge em muitos outros aspectos, como na própria questão de que tipo de
crime, criminoso e vítima existem nestas histórias em quadrinhos. Nunca é demais
salientar como o crime é importante para as narrativas de superaventura em quadrinhos. É
a partir de um problema que o super-herói tem que inexoravelmente resolver que a história
desenvolve-se, geralmente este problema é um crime.
Para uma análise inicial comparativa de que tipos de crime/problema que o super-
herói tem que solucionar, cito as primeiras cinco histórias do Batman e Super-Homem
como uma forma de traçar um panorama que possibilite uma identificação de que tipos de
crime ocorrem em cada uma destas cidades. Em seguida faz-se uma abordagem mais
específica de casos que exemplificam melhor estas diferenças.
Na revista Action Comics n° 1 o Super-Homem impede um marido de bater em sua
esposa e convence o governador da inocência de uma outra mulher que teria sido
condenada à pena de morte.
Ilustração 41: imagem retirada da revista Action Comics n° 1 republicada no livro The Superman
Chronicles Volume I (2005).
93
se alistar e lutar na guerra, este mesmo homem afirma ter começado a odiar guerras e no
próximo quadro vemos este personagem retornando para os Estados Unidos convencido a
não mais fabricar armas.
Na Action Comics n°3 ele convence um dono de mina a melhorar as condições de
segurança e trabalho. Ele consegue tal feito colocando o dono da mina em uma situação de
desabamento.
Na Action Comics n°4 ele testemunha um atropelamento correndo para salvar o
motorista de uma tragédia maior. Em seguida ele escuta o plano de um treinador de um
time de futebol americano para seqüestrar dois jogadores do time adversário. Super-
Homem assume a posição de um destes jogadores, ganha o jogo e ameaça expor o
treinador do time adversário se ele não pedir demissão após o jogo, o que ele faz.
Na Action Comics n ° 5 o nosso herói fica sabendo da notícia de uma represa em
iminente rompimento. Durante a viagem para salvar a represa e a vida dos moradores
próximos ele também evita que uma ponte caia enquanto um trem passava sobre ela. Ele
não consegue impedir que a represa rompa, mas consegue retardar o processo, fazendo
com que a cidade próxima seja evacuada.
Em uma breve análise destes cinco exemplos de crime/problema pode-se observar
que Metropolis tem como um dos seus maiores desafios o crime de dimensão moral e
problemas advindos da modernidade tecnológica, como atropelamentos, quedas de pontes
e rompimentos de represas. O Super-Homem sempre consegue converter o criminoso à sua
moralidade, o que veremos, não acontece no Batman.
Já na primeira história em quadrinhos do Batman, a Detective Comics n° 27, a
história desenvolve-se a partir de séries de assassinatos que se descobre mais tarde estão
ligados a uma sociedade de indústrias químicas. Um dos sócios estava matando os outros.
Ao final o sócio que havia planejado os crimes tenta atirar no Batman, mas leva um soco e
cai em um tanque de ácido. Abaixo vemos a capa da primeira história em quadrinhos do
Batman com gângsters armados.
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96
Kal-El [nome do Super-Homem em seu planeta natal] veio de um mundo edênico, veio do
céu, Cristo às avessas. Como Rômulo-Remo, Perseu, Zeus, Dionísio, Fleur de Marie
(lembram-se Eugène Sue?), Tarzan e os gêmeos da Tour de Nesle, e outras tantas crianças
de messiânica dinastia, foi salvo por acaso (AUGUSTO, 1971, p. 29-30).
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Ilustração 44: imagem retirada da revista Action Comics n° 4 republicada no livro The
Superman Chronicles Volume I (2005).
99
herói, em seu papel de Clark Kent, aproxima-se da multidão e pergunta o que teria
acontecido, um homem responde que “alguém foi atropelado por um motorista
imprudente”. Clark abaixa-se perto do corpo enquanto a multidão permanece em pé e um
homem pergunta: “ele era um amigo seu?”, nesse momento Clark Kent se dá conta de que
conhece a vítima e responde: “Santo Deus! Charlie Martin – Morto!”. Vemos abaixo dois
quadrinhos do atropelamento.
Ilustração 46: imagem retirada da revista Action Comics n° 12 republicada no livro The Superman
Chronicles Volume I (2005).
Em seguida Clark Kent, em seu papel de cidadão comum, telefona para o prefeito e
pergunta por que a sua cidade tem uma das piores situações de trânsito no país. O prefeito
concorda que o trânsito é mesmo muito ruim, mas questiona: “o que se pode fazer?”
Clark resolve fazer alguma coisa, mas não sem antes colocar as vestes do Super-
Homem, demonstrando que o que o homem comum não consegue resolver diante da
burocratização do mundo de fato se torna, para usar o bordão, “um trabalho para o Super-
Homem”.
Nosso herói invade o estúdio de uma rádio para fazer um anúncio: “Atenção
cidadãos desta cidade! Um aviso do Super-Homem – prestem bastante atenção! As taxas
de morte por acidentes de carro desta comunidade é algo que deveria envergonhar a todos
nós! Está constantemente crescendo e é inteiramente devido aos motoristas imprudentes e à
ineficiência! Mais pessoas foram desnecessariamente mortas por carros do que na Primeira
Guerra Mundial! A partir deste momento eu declaro guerra aos motoristas imprudentes – a
partir de agora, motoristas homicidas responderão a mim!”
Suas primeiras ações de “guerra” são destruir os carros do estacionamento
temporário de violadores do trânsito e de uma loja que vende carros usados em mal estado.
100
Segundo nosso herói, estes carros usados são acidentes ambulantes. Em seguida o Super-
Homem posiciona-se no topo de um arranha-céu à procura de “violadores do trânsito”
quando enxerga um carro trafegando do lado contrário da pista com um motorista bêbado
dentro. Nosso herói para o carro e dá um grande susto no motorista pulando de uma ponte
com o carro suspenso no ar. O motorista promete não mais beber e em seguida desmaia
antes do Super-Homem o colocar em segurança de volta na rua.
Após recolocar este carro na rua, nosso herói é atropelado por um veículo em alta
velocidade que foge sem prestar socorro. O Super-Homem persegue o carro e os
tripulantes assustados pensam que ele é o fantasma do homem atropelado. O suposto
fantasma afirma que enquanto eles forem motoristas imprudentes ele os irá assombrar.
O nosso herói segue para uma indústria de carros com a intenção de questionar ao
seu dono o porquê de seus carros estarem envolvidos na maioria dos acidentes de trânsito.
O dono da indústria responde que seria apenas azar, enquanto o Super-Homem argumenta:
“Você mente! É porque vocês usam peças e metal inferior para gerar maiores lucros ao
custo de vidas humanas!”. O empresário responde que supondo que esse fosse o caso, o
que o Super-Homem poderia fazer a respeito? O Super-Homem então destrói os
equipamentos e maquinarias da fábrica.
Para finalizar sua “guerra contra motoristas imprudentes” nosso herói empreende
ainda uma reforma urbana, modificando o trajeto de uma via com curva. Abaixo vê-se uma
placa escrito “curva perigosa à frente”. O Super-Homem afirma: “Dizem que uma linha
reta é a distância mais curta entre dois pontos”. No último quadro os motoristas agradecem
ao Super-Homem que diz “dirijam em linha reta senhores, com os meus cumprimentos”.
101
Ilustração 47: imagem retirada da revista Action Comics n° 12 republicada no livro The Superman
Chronicles Volume I (2005).
Para finalizar suas ações o Super-Homem obriga o prefeito para ver os corpos de
vítimas do trânsito, afirmando que o prefeito os havia matado condenando-os à morte por
não ter tratado com seriedade as leis de trânsito. Enfim o prefeito assegura o Super-
Homem de que ele o havia mostrado um novo ponto de vista e que a partir de agora ele iria
fazer tudo o que lhe fosse possível para que as leis de trânsito fossem rigidamente
empregadas.
Esta história da Action Comics n° 12 é bastante interessante porque aqui temos o
Super-Homem enfrentando questões morais e técnicas ao mesmo tempo. Há uma falta de
cumprimento das leis de trânsito que se coloca no campo moral, desde os motoristas que
bebem e dirigem até o prefeito. Para estes temos ações morais desde “sustos” a
argumentações. Para as questões técnicas como traçados de ruas e fábricas que usam
materiais de segunda qualidade temos a intervenção técnica de um super-herói que é capaz
de em segundos abrir uma estrada sobre um morro ou destruir uma fábrica.
102
Este tópico sobre o crime em Gotham inicia-se com a análise de duas histórias
emblemáticas que mostram o assassinato dos pais na origem do Batman e do Robin: a
Detective Comics n° 38 de abril de 1940, primeira aparição do Robin e a história “A Lenda
de Batman: Quem é ele e como surgiu” publicada na revista Batman n° 1 de 1940. Esta
última história conta como os pais de Bruce Wayne foram assassinados por um assaltante
quando voltavam para casa depois de uma sessão de cinema. O jovem Wayne testemunhou
o assassinato e mais tarde jurou lutar contra o crime, tornando-se o Batman quando adulto.
Vemos abaixo o assassinato. No último quadro o olhar do garoto que mais tarde vai se
tornar o Batman assiste à morte de seus pais diante de uma silhueta de cidade impassível
que se coloca ao fundo da cena.
103
Ilustração 49: imagem retirada da revista Batman n° 1 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 1 (2005).
A Detective Comics n° 38 por sua vez mostra como o jovem Dick Grayson resolve
se tornar o super-herói Robin depois de também ter seus pais assassinados. Dick Grayson
trabalhava em um circo com seu pai e mãe até os dois morrerem em uma apresentação que
foi sabotada por gângsteres. Os pais do Robin (Dick Grayson) são mortos durante um
“acidente provocado” ou sabotagem durante uma apresentação por conta do dono do circo
não ter cedido à extorsão dos gângsteres.
Nestas duas histórias vemos como o assassinato dos pais é o arauto trágico que
transforma tanto Bruce como Dick em super-heróis. Para estes dois personagens o crime
específico (morte dos pais) é o evento que muda suas vidas e lhes dá existência enquanto
super-heróis. Na mesma medida os crimes em geral sustentam esta existência.
No quadro abaixo, à esquerda, aparece Dick ouvindo a ameaça dos gângsteres ao
dono do circo. Lê-se: “Se você pagar, a gente te protege, entendeu, Haly?”; “Sim, entendi!
Vocês são gângsteres! Estão me chantageando e eu vou chamar a polícia!”. No quadro à
direita lê-se: “Você não quer morrer, quer? Seja inteligente! Pague e evite acidentes no
show”, o dono do circo responde: “Pra fora! Pra fora” e o gângster conclui: “Ok, amigo! É
o seu funeral... ‘Acidentes’ irão acontecer!”.
104
Gotham é uma cidade que tem desde pequenos grupos criminosos a grandes
organizações criminosas. Outra questão que se relaciona ao crime nesta cidade é a doença
mental. Não raro as organizações criminosas são comandadas por indivíduos com
perturbações mentais como veremos no caso dos vilões Doutor Morte e Coringa.
Faris e Dunham (1948) fizeram um interessante estudo sobre perturbações mentais
em áreas urbanas a partir da análise de casos de internações em instituições de saúde
mental na cidade de Chicago. Partindo de noções que relacionam grau de urbanização com
105
39
As zonas da hobohemia seriam distritos com aluguéis de baixo custo geralmente ocupados por hobos ou homens sem
domicílio fixo e grande mobilidade em busca de trabalho.
106
Este vilão é o chefe de uma gangue que tem feito vários assaltos a bancos na
cidade. Seu esconderijo fica em um armazém próximo ao cais do porto. Neste ponto há a
aproximação com as teorias da Escola de Chicago inclusive com a noção da espacialização
da criminalidade e delinqüência em áreas industriais e comerciais. Abaixo vemos o
Batman no galpão lutando com os homens da gangue.
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Ilustração 52: imagem retirada da revista Detective Comics n° 36 republicada no livro The Batman
Chronicles Volume 1 (2005).
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No primeiro quadro lê-se: “E mais uma vez o Professor Hugo Strange está livre
para executar seu próximo plano diabólico”; “Extra! O Professor Hugo Strange escapa da
prisão!”. No segundo quadro anuncia o narrador: “Na noite seguinte, no manicômio da
cidade...”; “Libertem todos, rápido!”; “Vamos, seus malucos!”.
Na mesma revista Batman n° 1 de 1940 são publicadas duas histórias com o
Coringa. Na primeira delas o narrador o descreve como “um mestre do crime” que
“aterroriza as ruas da cidade”. Nesta, que foi a primeira aparição do famoso vilão, o
Coringa anuncia previamente para toda a cidade, por meio do radio, vítima e horário em
que irá cometer seus crimes. Assim ele executa uma série de assassinatos deixando suas
vítimas mortas com um sorriso assustador. Nesta mesma história o Batman refere-se ao
Coringa como um maníaco. Ao final o nosso super-herói captura e deixa o vilão amarrado
na porta da delegacia.
Ilustração 54: imagem retirada da revista Batman n° 1 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 1 (2005).
Na segunda história sobre o Coringa publicada na revista Batman n°1 ele consegue
escapar da prisão e volta a cometer seus crimes. Desta vez o narrador refere-se a ele como
maluco, enquanto o Batman o descreve como “um homem incomum! É astuto,
escorregadio e, acima de tudo, cruel!”. Ao final desta história o Coringa luta com o Batman
109
e por engano esfaqueia-se a si mesmo. Nosso herói foge achando que ele estava morto. No
entanto ele fora levado por uma ambulância para um hospital.
Na revista Batman n° 2 de 1940 o super-herói descobre que o Coringa está no
hospital e resolve seqüestrá-lo antes que ele esteja forte o bastante para fugir. Mas qual
seria o plano do Batman? Precisamente seqüestrar e levar o Coringa a um famoso
especialista cerebral que o possa curar e transformar em um cidadão de valor40!
Nesta história surgem as noções mais interessantes sobre a loucura enquanto
problema e solução no Batman. Apesar de ter uma solução esboçada, o Coringa consegue
fugir antes de o Batman chegar ao hospital e junta-se a uma gangue, a Crime Syndicate Inc.
O que poderia ser mais perigoso que um louco nos quadrinhos do Batman? Um louco com
sua própria gangue.
A Detective Comics n° 41 demonstra o caráter potencialmente perigoso da loucura
nos quadrinhos do Batman. Esta história inicia-se com os dois quadrinhos abaixo. Lê-se:
“Um maníaco homicida escapou do asilo de loucos...”; “Hee! Hee! Me prender, eles irão?
Me chamam de louco, eh? Hee hee! Eu sou esperto o bastante para escapar!”; “Mais tarde,
no chão de uma elegante escola privada para garotos das redondezas, o supervisor escolar é
encontrado morto... estrangulado...”
110
zelador da escola, ficando claro para o leitor que ele havia confundido tanto o supervisor
quanto o zelador com guardas do asilo enviados para prendê-lo. Mais adiante o Robin luta
com o “maníaco” e o prende.
111
A partir dos exemplos analisados pode-se perceber como a loucura está associada
ao crime e caracteriza, ao lado do crime organizado, um dos maiores perigos da cidade de
Gotham. Na passagem em que o Professor Hugo Strange manda soltar todos os loucos do
manicômio ele aterroriza a cidade com a idéia de homens com perturbação mental estão a
solta. Gotham seria um espaço da loucura em potencial, um espaço em que loucos estão
soltos?
Essa cidade com homens loucos soltos nas ruas de certa forma representa um medo
da cidade moderna em que se pode deparar a qualquer momento com um louco quando não
se sabe ao certo com quem lidamos no dia a dia em meio à multidão e ao anonimato.
Gotham pode ser vista assim como uma representação da cidade moderna como espaço da
loucura aos moldes da relação entre desorganização social, urbanização e perturbação
mental traçadas por Faris e Dunham (1948). A cidade como espaço em que a loucura,
assim como outros fenômenos ligados a desorganização social se agravam. Não por acaso
um destes outros fenômenos, segundo apontamentos de vários pensadores da Escola de
Chicago, seriam a criminalidade e a delinqüência.
As gangues enquanto crime organizado são grupos geralmente formados a partir de
pequenas gangues ou grupos de garotos de bairro. Estas gangues de bairro, no entanto, não
se assemelham em nada às gangues do crime organizado como era o caso da gangue de
Capone. É importante lembrar que em inglês o termo gang significa grupo, no entanto, em
seu uso moderno, está associado ao crime organizado. As gangues de garotos de bairro ou
de esquina41 (WHYTE, 2005) geralmente estavam ligadas aos índices de delinqüência e
envolvidas em pequenos crimes, embora algumas não fossem criminosas, culminando em
clubes atléticos ou políticos.
41
William Foote Whyte (2005) lança em 1943 o livro Street Corner Society, defendido como sua tese de doutoramento
pela Universidade de Chicago, embora seu trabalho de campo tivesse sido desenvolvido durante a década de 1930 no
âmbito de um programa de bolsas da Universidade de Harvard. Foote Whyte etnografa de forma sensacional o bairro de
Eastern City, área pobre e degrada de Boston, majoritariamente habitada por imigrantes italianos, tendo sido
originalmente habitada por imigrantes irlandeses. Este bairro tinha um histórico de abrigar imigrantes e ocupava um lugar
bastante nebuloso na idéia dos americanos de classe –média. O bairro tinha uma imagem de lugar perigoso e com alta
criminalidade. Foote Whyte relata a existência de quatro tipos de organização no bairro: a gangue de esquina, o clube
organizado por “rapazes formados”, a organização mafiosa e a política partidária. Os dois primeiros abrigam os “peixes
miúdos”: os “rapazes de esquina”, que ocupam a posição mais baixa na hierarquia social, e os “rapazes formados”, que se
encontram em meio a trajetórias de ascensão social. Já os gângsteres e os políticos seriam os “peixes graúdos”, ocupando
o topo da hierarquia local. Whyte (ibid.) aponta que as organizações mafiosas se desenvolveram durante a Lei Seca,
começando atividades ilegais de venda de bebidas.
112
4.3 Delinqüência
Após este quadro de abertura há um corte e somos levados para uma “Seção da
Corte Juvenil” em que um Frankie Marello, um adolescente, está sendo acusado por
agressão.
113
Ao falar em sua defesa o garoto usa gírias o que leva o juiz a sentenciar: “Você fala
como um criminoso durão. Neste caso eu não tenho outra escolha a não ser...”. Neste ponto
a fala do juiz é interrompida pela mãe do garoto que afirma: “Claro que ele fala duro – o
que mais nós é42 ensinado, sua excelência – mas ele é apenas como os outros garotos em
nossa vizinhança... duros, ressentidos, desprivilegiados. Ele é meu único filho, senhor ele
poderia ter sido um bom garoto exceto por seu ambiente. Ele ainda pode ser – se você for
misericordioso!”.
114
meio por sua mãe, embora ela veja possibilidades dele ainda se tornar um “bom garoto”.
Estudos da Escola de Chicago sobre delinqüência demonstram um padrão espacial deste
fenômeno que relaciona delinqüência a desorganização social, imigração e bairros
fisicamente deteriorados.
O Super-Homem está presente no julgamento como o repórter Clark Kent, ele
pensa consigo mesmo: “A mãe está certa! Mas se eu conheço a Corte da Lei... seu apelo
não tem uma chance!”. Ao final o garoto é condenado, mas o Super-Homem, com sua
super-audição escuta a conversa de quatro rapazes, amigos da gangue de Frankie. Ele
descobre que os garotos marcaram uma reunião à noite em um beco do seu bairro e o
Super-Homem resolve investigar. Vemos na imagem abaixo o nosso herói saindo de sua
janela passar pela imponente cidade de arranha-céus durante a noite para chegar a um
bairro pobre.
115
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traçado retilíneo, como vemos nos quadros em que o nosso herói carrega os quatro garotos
no braço.
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Nosso herói afirma nos quadros abaixo, enquanto derruba as casas do bairro:
“Então o Governo reconstrói áreas destruídas com apartamentos modernos para aluguel de
baixo custo? (...) Quando eu terminar, esta cidade estará livre de seus infestados,
criminosos e imundos bairros pobres43!”
43
A versão original seria: filthy, crime, festering slums.
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esplêndida e eu gostaria de lhe apertar a mão!”. Este quadro mostra, não por acaso, o chefe
de polícia apertando a mão do Clark Kent sem saber que este é o Super-Homem.
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Na história The Crime School for Boys, publicada na revista Batman n°3, o Batman
luta contra a formação de uma escola dirigida por um criminoso para ensinar e inserir
crianças e adolescentes de um bairro pobre na vida do crime. Vemos abaixo a capa desta
história.
122
Dentro deste galpão o criminoso chamado Pockets ensina garotos a retirar carteiras
da calça de transeuntes, além de prometer aos seus melhores pupilos serem inseridos na
famosa gangue do Big Boy Daniel’s.
Mais tarde em sua casa o Batman explica ao Robin porque não encerrou
prontamente com a escola: “Mesmo que eu entregasse o professor a para a polícia isso não
123
faria com que os garotos parassem de admirar criminosos. Nós temos que ser sutis (...).
Nós temos que fazer com que esses garotos odeiem o crime e a maldade, e não admirarem
um gângster extorsionário como o Big Boy Daniels, que provavelmente é o ideal deles”. O
Batman, portanto, alugou um velho celeiro no bairro pobre e resolveu abrir um ginásio
para as “as crianças desprivilegiadas desta vizinhança”. Além de tudo Dick Grayson, o
Robin, passou a freqüentar o bairro e o ginásio, de início ele chegou a brigar com um
garoto que se disse ser “o chefe do quarteirão”, como vemos em sua primeira chegada ao
bairro, no quadrinho abaixo.
124
Em seguida Dick faz amizade com todos os garotos e lhes passa a servir de
exemplo, convidando-os para o ginásio e lhes ensinando através do esporte a serem o que
este personagem considera como honestos: jogar o “fair play” ou jogo limpo.
Ilustração 78: imagem retirada da revista Batman n° 3 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 2 (2006).
125
luta sem armas. Big Boy Daniels, ao perceber que estava perdendo a briga saca um
revólver. Assim as próprias crianças se viram contra os gângsters ao perceber que eles não
usam de “fair play” em suas lutas.
Ao final as crianças decepcionam-se com a vida de crimes e resolvem seguir uma
vida honesta, além de continuarem a freqüentar o ginásio de esportes. Dick Grayson
comenta com Bruce Wayne, o Batman, que eles haviam terminado este trabalho, e o nosso
herói responde: “Nós fizemos o nosso, sim, mas cabe a outras cidades fazerem o mesmo,
construir mais áreas de recreação, ginásios – encorajar os jovens a ir a escola e igrejas,
fazendo isso nós varreremos o crime”. Nesta história do Batman, portanto, a solução para a
delinqüência veio por meio da criação do ginásio e da desconstrução da referência para
esses garotos dos gângsters como modelo.
Tomando as histórias da Action Comics n° 8 e a Crime School for Boys da revista
Batman n°3 gostaria de apontar coincidências e divergências entre elas no tratamento da
delinqüência.
Percebe-se nas duas histórias uma espacialização da pobreza e da delinqüência,
assim como uma transformação desta em problema social, bem como a necessidade de
respostas e soluções para esta questão. Nestas duas histórias a delinqüência surge em áreas
de bairros pobres através da formação espontânea de grupos de garotos que eventualmente
se ligam a estruturas mais organizadas do crime, seja no caso da Escola do Pockets e da
gangue do Big Boy Daniels ou no caso do interceptador Gimpy.
O padrão espacial da delinqüência foi apontado por Clifford Shaw (1948). Para este
autor as áreas de delinqüência teriam características específicas como a deterioração física,
a pobreza, a residência em meio a indústria e comércio, a concentração de imigrantes, a
carência de organização da vizinhança para a vida comunitária convencional, assim como
altas taxas de crimes de adultos.
Para Shaw (1948) os criminosos mais velhos seriam modelos de sucesso para as
crianças do bairro que vêm de famílias pobres e trabalhadoras, o próprio modelo dos pais,
por mais presente que seja, geralmente entra em conflito com o modelo do gângster bem
sucedido. A ação do Batman é bastante forte neste sentido de desfazer o gângster como
ideal ou modelo para os garotos do bairro.
Shaw (1948) trata a delinqüência como um produto social e não como um
fenômeno individual de tendências inatas. O delinqüente é produto de seu meio, como
também apontam as histórias em quadrinhos aqui referidas, embora o Super-Homem
126
pareça colocar a sua causa mais na estrutura física e condições de moradia do bairro
deteriorado, enquanto para o Batman o meio considerado é o social. A solução para a
delinqüência para o primeiro reside na reforma de apartamentos modernos, enquanto que
para o segundo está na construção de espaços que fortaleçam os laços sociais, como
igrejas, escolas e ginásios esportivos.
Nas duas histórias está presente a idéia de que os garotos podem sim sair da
situação de delinqüência, reiterando a noção de que eles não seriam delinqüentes de forma
inata. Por conta das altas taxas de delinqüência nos bairros imigrantes e pobres em finais
do século XIX e início do século XX era comum a formulação de que os imigrantes seriam
inatamente criminosos e violentos. A explicação do porque das taxas de delinqüência
serem tão altas entre os imigrantes seria, segundo Clifford Shaw (1948), por conta da
desorganização social e dos padrões culturais confusos dos grupos imigrantes que sofrem
mudanças bruscas entre perda das tradições e assimilação de padrões culturais novos.
Apesar da Escola de Chicago ter identificado um padrão entre delinqüência e áreas pobres
da cidade a sua causa não se encontrava na questão da deterioração física dos bairros e sim
na desorganização social dos mesmos. Há neste ponto um diálogo dos quadrinhos com as
teorias da Escola de Chicago na medida em tanto no Batman como no Super-Homem os
bairros pobres e degradados são reconhecidos como o padrão espacial da delinqüência,
embora o Batman se aproxime mais destas resoluções ao propor soluções que emergem do
fortalecimento da vida comunitária, enquanto o Super-Homem encontra uma resposta na
reforma urbana de cunho modernista. O Super-Homem, por outro lado, aponta a área pobre
como área imigrante ao colocar um garoto chamado Frankie Marello, provável filho de
imigrantes, no tribunal. A sua mãe inclusive comete erros gramaticais, típico dos recém-
chegados obrigados a aprender o inglês como segunda língua. De certa forma a fala errada
denota também a falta de escolas e educação formal nestas áreas.
Nas duas cidades percebe-se a heterogeneidade sócio-espacial na medida em que há
a separação entre as áreas ricas e pobres. A Action Comics n°8 mostra isso claramente.
Dentro da mesma história o Super-Homem acessa essas diferentes zonas da cidade. No
Batman existe também a área pobre dos slums, assim como o bairro chinês e a zona rica,
como se pode perceber em várias histórias.
A gangue, segundo Frederick Thrasher (2000), pode ser tanto um grupo de garotos
de bairro como uma organização criminosa. Para este autor a zona das gangues seria o
cinturão de pobreza que circunda a área comercial central da cidade. Sua gênese está em
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Ilustração 79: Imagem retirada
da Detective Comics n° 29
republicada no livro The Batman
Chronicles Volume 1 (2005).
Mas quais dos dois prédios seria o Edifício Beverly, já que os dois estão colocados
no mesmo plano e são quase idênticos, cada um ocupando um lado da rua? Isto não fica
claro para o leitor.
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Ilustração 80: O Batman na cobertura do Edifício Beverly. Imagem retirada da
Detective Comics n° 29 republicada no livro The Batman Chronicles Volume 1 (2005).
Abaixo vemos o nosso herói em um canteiro de obras, que mais tarde se torna
comum nas cenas de luta do Batman.
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Ilustração 82: Imagem retirada da Detective Comics
n° 38 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 1 (2005).
Ilustração 83: Imagem retirada da Detective Comics
n° 38 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 1 (2005).
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Ilustração 84: Imagem retirada da Action Comics n° 1 republicada no livro The
Superman Chronicles Volume 1 (2006).
Na imagem acima vemos Clark Kent, ainda sem a roupa do Super-Homem, pulando
um prédio e levantando uma viga de aço em um canteiro de construções.
Os arranha-céus realizam o desejo de obter uma visão panorâmica da cidade que
sob um olhar totalizante imobiliza e homogeniza todas as diferenças e conflitos vividos
pela cidade lá embaixo (CERTEAU, 1994). Entretanto, para Certeau (1994), o olhar fixo
do panorama não alcança as práticas cotidianas que verdadeiramente fazem a cidade.
No Super-Homem vemos surgir imagens panópticas de cidade nos saltos
precursores dos vôos do nosso herói. Este herói não precisa subir no World Trade Center
para ter a contemplação que Certeau chamou de “atopia-utopia do sabe óptico”, basta pular
e mais tarde voar para apreender a cidade na totalidade de um olhar.
A imagem panóptica da cidade nos primeiros quadrinhos do Super-Homem
geralmente são desenhadas como quadros de abertura das histórias. Esses quadros têm um
espaço de destaque na página, ocupam um terço desta e não necessariamente se relacionam
diretamente com as ações dos quadros seguintes, como vemos na imagem abaixo da Action
Comics n° 6, em que se vê a cidade e em seguida pula-se para outro quadro em que a
história desenrola-se na prática da vida cotidiana e não na distância da imagem fixa de
cidade. Pode-se notar nesta imagem que os prédios de fato se destacam no Super-Homem.
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Ilustração 85: Imagem retirada da Action Comics n° 6 republicada no livro The Superman
Chronicles Volume 1 (2006).
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Ilustração 87: Imagem do filme King Kong retirada do site Rotten Tomatoes.
Ilustração 88: Imagem retirada da revista Batman n° 1 republicada no livro The
Batman Chronicles Volume 1 (2005).
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Por que o homem-monstro subiu no arranha-céu? Com certeza não foi para olhar a
cidade. Segundo o narrador ele escala o prédio porque em sua perseguição ao batplano
pensou que lá de cima o conseguiria alcançar. Ele cai e tudo o que vemos além do topo do
edifício são névoas e um pequeno pedaço de cidade. A cidade panorama não existe.
No lado esquerdo da imagem acima quase não dá para ver através da névoa a ponte
e alguns prédios ao fundo enquanto o corpo do homem-monstro despenca para sua morte.
Em outras histórias em que o Batman usa seu avião ou em que sobe em topo de edifícios
ou mesmo em altas estruturas de aço de canteiros de obras, tampouco surgem imagens
panorâmicas da cidade. A cidade do Batman, quando nas alturas, se revela em prédios que
se colocam de forma indistinta ao fundo das cenas. Não há a contemplação de um
panorama. A elaboração da cidade em seus detalhes acontece sempre em quadros que
retratam becos ou ainda um olhar de cima que se projeta para baixo para destacar apenas
uma rua ou janelas do edifício da frente, mas raramente a cidade de forma panorâmica.
Na imagem abaixo da Detective Comics n° 28 vemos o Batman lutando contra uma
gangue de ladrões de jóias no topo de um edifício. A cidade ao fundo é escura, de prédios
indistinguíveis. O elemento arquitetônico que se destaca é o pórtico da fachada do prédio
em que a luta se passa e uma chaminé vermelha, bem como o telhado do edifício vizinho.
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Ilustração 93: Imagem retirada da revista Batman n° 1 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 1 (2005).
O Batman, mesmo quando no alto, parece não ter o desejo de olhar para baixo e
exercitar a contemplação panorâmica de sua cidade. As imagens mais comuns desta cidade
se revelam em pequenos quadros ao fundo dos saltos do nosso herói mascarado. As
representações mais amplas de Gotham a reduzem a um amontoado de prédios, enquanto
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um pouco do comum nas histórias do Batman porque, apesar de representar uma cidade de
prédios indistinguíveis, há a presença dos letreiros e propagandas na cidade.
Ilustração 96: Imagem retirada da revista Batman n° 1 republicada no livro The Batman
Chronicles Volume 1 (2005).
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6 CONCLUSÕES
Ora, uma metrópole propicia aos seus habitantes representações contraditórias do espaço e
das sociabilidades que aí têm lugar. Ela é, por um lado, luz, sedução, meca da cultura,
civilização, sinônimo de progresso. Mas, por outro lado, ela pode ser representada como
ameaçadora, centro de perdição, império do crime e da barbárie, mostrando uma faceta de
insegurança e medo para quem nela habita. São, sem dúvida, visões contraditórias, de
atração e repúdio, de sedução e rechaço, que, paradoxalmente, podem conviver no mesmo
portador. (PESAVENTO, 1999, p. 19).
Nos primeiros quadrinhos do Batman existem passagens em que este herói atua
explicitamente em Nova York, principalmente antes da revista Batman n° 4, de 1940, em
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Ilustração 100: Imagem retirada da revista Batman n° 1 republicada no livro The Batman Chronicles
Volume 1 (2005).
As referências a Nova York na cidade do Super-Homem não são tão explícitas. Mas
na revista Superman n° 2, do outono de 1939, o Super-Homem está em uma viagem e
envia um telegrama para Metrópolis, localizada aqui no estado de Nova York.
Apesar de Gotham e Metrópolis serem cidades imaginárias inspiradas na cidade de
Nova York, as diferenças entre estas duas cidades vão desde as suas representações em
panoramas até as sociabilidades ou práticas do cotidiano, como diria Certeau, que
constroem essas cidades. Como procurei demonstrar, a primeira cidade é sempre
representada em panoramas sombrios de prédios indistinguíveis, enquanto a segunda é
constantemente contemplada de cima, iluminada e com prédios que se destacam. Da
mesma forma, os tipos de crimes e problemas enfrentados por essas cidades, bem como as
soluções que elas exigem corroboram para a construção de imagens distintas de cidades.
Mesmo durante a noite a cidade de Metrópolis é iluminada e seus prédios
destacam-se e impõem-se, reiterando a tese aqui defendida, de que as explicações sobre as
diferenças de representações entre estas cidades vão muito além da simples questão do dia
e da noite. Vemos abaixo imagens da Metrópolis noturna e iluminada.
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(...) não há como não reconhecer esse sentimento, e eu próprio o experimentei muitas e
muitas vezes: os grandes prédios da civilização; os pontos de encontro; as bibliotecas e
teatros, as torres e cúpulas; e – muitas vezes ainda mais emocionante – as casas, as ruas, a
tensão e o entusiasmo de estar no meio de tanta gente, com tantas metas diferentes. Já me
vi em muitas cidades e experimentei essa sensação – nas diferenças físicas entre
Estocolmo, Florença, Paris e Milão, esta qualidade identificável e comovente: o centro, a
atividade, a luz. Como todo mundo, também já senti o caos dos metrôs e engarrafamentos
de trânsito; a monotonia das casas idênticas enfileiradas; a pressão agressiva de multidões
de desconhecidos (WILLIAMS, 2011, p. 17).
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