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ARTIGOS

O movimento das mulheres indígenas: da invisibilidade à luta


por direitos coletivos

Mariana Rezende Ferreira Yoshida


Raffaela Cássia de Sousa
Liana Amin Lima da Silva

Resumo: O presente artigo aborda o movimento das mulheres indígenas, com o objetivo de responder à seguinte pergunta: a
aplicação das normas internacionais e nacionais protetivas das mulheres seria (in)suficiente em relação às demandas (individuais
e coletivas) das mulheres indígenas? Para tanto, foi utilizada a abordagem qualitativa por meio da análise de legislação, trabalhos
científicos e uma entrevista semiestruturada. Os resultados demonstraram que, historicamente, as mulheres indígenas têm se
organizado em movimentos próprios, que também abrangem a luta contra a opressão territorial e cultural, sendo-lhes aplicáveis
as normas protetivas das mulheres à luz dos direitos socioambientais e direitos coletivos dos povos indígenas, resguardadas as
especificidades culturais de cada povo indígena.

Palavras-chave: Mulheres. Povos indígenas. Feminismos. Direitos coletivos.

Abstract: This article is about the indigenous women’s movement and objective to answer the question: The application of interna-
tional and national norms about women is enough to attend the indigenous women’s rights (collectives and individual)? Therefore,
a qualitative approach was used through the analysis of legislation, papers and a semi-structured interview. The results showed
that, historically, indigenous women have organized their own movements, also fighting against territorial and cultural oppression,
being also applicable to the protective norms of women and protective norms of sócio-environmental rights and indigenous peo-
ples coletive rights, respecting the cultural specificities of each indigenous people.

Keywords: Women. Indigenous people. Feminism. Colective rights.

1 Introdução nação, especialmente quando trata da dis-


criminação interseccional e intergeracional,
O presente artigo tem por objetivo alerta para a existência de um mandamento
analisar o movimento das mulheres indíge- constitucional de igualdade que rejeita prá-
nas pelo reconhecimento de seus direitos ticas homogeneizantes e excludentes de di-
individuais e coletivos, sob a perspectiva do reitos de grupos minoritários, como as mu-
direito da antidiscriminação, tendo como lheres, acrescentando ainda o estudo sobre
problema de pesquisa o questionamento múltiplos vetores de discriminação dentro
sobre o limite de aplicação das normas in- das várias relações de poder na sociedade.
ternacionais e nacionais protetivas das mu- No caso das mulheres indígenas, a condição
lheres para as mulheres indígenas. de pertencerem a povos tradicionais histo-
ricamente excluídos as torna suscetíveis a
A pesquisa se justifica em razão da
um maior grau de discriminação, em face
multiplicidade de fatores de discriminação
da opressão sofrida pelos povos indígenas.
sofridos pelas mulheres indígenas na imple-
mentação de seus direitos enquanto mulhe- Diante disso, para a consecução do
res e como membros pertencentes a grupos objetivo traçado, este trabalho estrutura-se
étnicos diferenciados dentro da sociedade em uma primeira parte que trata da cons-
brasileira. Além disso, trata-se de pesquisa trução dos direitos das mulheres, com foco
feita por mulheres sobre mulheres. na agência do feminismo. A segunda parte
pretende discorrer sobre o movimento das
Outrossim, o movimento feminista,
mulheres indígenas no Brasil, trazendo algu-
que luta contra a discriminação em razão
mas reflexões acerca da utilização do termo
do gênero, apesar de sua importância histó-
feminismo nesse contexto, bem como a en-
rica, pouco tem se voltado às reivindicações
trevista realizada com a primeira cacica da
das mulheres indígenas, e muitas destas
comunidade indígena Tereré, em Sidrolân-
preferem não se identificar como feminis-
dia, Mato Grosso do Sul. Na terceira parte,
tas. Inclusive, esse foi o motivo pelo qual o
pretende-se descrever as normas protetivas
presente artigo optou por se referir a “movi-
internacionais e nacionais que trazem dis-
mento das mulheres indígenas” em vez de
posições específicas sobre as mulheres indí-
“feminismo indígena”, como será explicado
genas. Na quarta parte, objetiva-se tratar do
no decorrer do trabalho.
direito da antidiscriminação, especialmente
Por seu turno, o direito da antidiscrimi- desenvolvendo os conceitos de interseccio-

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nalidade e discriminação intergeracional, tora, esse modelo resiste na atualidade e,
a fim de trazer à discussão a aplicação das embora surja com bases mais igualitárias no
normas protetivas das mulheres para as in- âmbito familiar, demonstra sua força com a
dígenas, na ordem nacional e internacional. hegemonia masculina, sobretudo nas insti-
tuições e no governo.
Quanto à metodologia, a abordagem
aqui utilizada tem inspiração feminista, ou Já Carole Pateman (2013, p. 58) lem-
seja, baseia-se na perspectiva da mulher, bra que o patriarcado encontrou uma base
com inspiração na luta das mulheres indí- teórica no liberalismo, por intermédio do Se-
genas, buscando-se refletir sobre o lugar de gundo Tratado de John Locke, para o qual a
fala de sujeitos(as) coletivos(as) de direitos condição natural de maior força e capacida-
e parte do pressuposto de que a sociedade de do homem implica na sujeição da mulher
retroalimenta uma estrutura que mantém a ele e, como um subordinado natural não
as mulheres de qualquer setor ou classe su- pode ser livre e igual, as mulheres perdem
bordinadas aos homens desse mesmo setor o status de indivíduos e devem ficar alheias
ou classe e relativamente com menos poder à esfera pública da igualdade e convenções,
que todos os homens (FACIO, 1999, p. 86). de modo que os postulados fundantes da
Para tanto, foi recrutado o método qualitati- Revolução Francesa não foram suficientes
vo, por meio da análise de legislação nacio- para libertar as mulheres naquele tempo.
nal e internacional, trabalhos científicos e
livros sobre a temática, pesquisa documen- Em prosseguimento, Adriana Piscitel-
tal, além de entrevista semiestruturada. li (2009, p. 135) muito bem sintetiza a lógica
patriarcal ao lembrar que o patriarcado co-
loca e enquadra a mulher na esfera privada
2 A construção dos direitos das mulheres
diante do patriarcado da vida, que é o espaço dos afetos, ideia que
ainda hoje vige nas sociedades modernas,
Falar sobre direitos das mulheres e as inclusive a brasileira, como já dito.
possíveis alternativas viáveis para a sua efeti-
vação demanda conhecer, ainda que breve- O patriarcado, destarte, traduz uma
mente, a trajetória histórica que nos condu- relação hierárquica de poder dos homens
ziu ao longo dessa jornada. sobre as mulheres, e, para sua manutenção,
baliza a condição feminina como realidade
De acordo com Michelle Perrot (1995, social inferiorizada (BOURDIER, 2020, p. 24),
p. 13), somente a partir do século XIX é que ideia que se faz presente até os dias atuais
as mulheres surgem como atrizes sociais e valida, na prática, a desigualdade de direi-
no relato histórico, pois até então o que se tos entre homens e mulheres, ainda que na
registrou acerca de eventos públicos e do- esfera das convencionalidades a igualdade
cumentos importantes traz a completa au- esteja resguardada.
sência de personagens femininas cuja exis-
tência ficou relegada às excepcionalidades, E, essa teorização acerca da condição
sempre vinculadas à beleza, heroísmo, ca- histórica da mulher e do patriarcado nasceu
tástrofes, mitos e heresias, “indicando que o embalada pelo feminismo, que pode ser en-
estatuto vigente das mulheres é o do silên- tendido, nos dizeres de Elsa Dorlin (2020, p.
cio que consente com a ordem”. 13-14), como:
[...] a tradição de pensamento e, por exten-
Essa realidade apenas começou a mu-
são, os movimentos históricos que, pelos
dar a partir dos anos 70 e 80, quando os tra- menos desde o século XVII, colocaram, se-
balhos domésticos e a vida privada, nichos gundo lógicas demonstrativas diversas, a
onde as mulheres estiveram confinadas, questão da igualdade dos homens e das
passaram a ser investigados pela história. mulheres, rastreando os preconceitos rela-
E é justamente nesse momento que sobre- tivos à inferioridade das mulheres ou de-
vém uma perspectiva teórica acerca do pa- nunciando a iniquidade de sua condição.
triarcado. “O pessoal é político” permanece o emble-
ma do saber feminista e remete, por um
Para Gerda Lerner (2019, p. 261), o pa- lado, ao trabalho de historização de uma
triarcado é uma criação histórica que levou relação de poder e, por outro lado, ao tra-
quase 2.500 anos até ser finalizada. Teve balho de conscientização sobre essa rela-
seus primórdios no período neolítico, basea- ção.
do na ideia de família patriarcal, em que há […]
nítida dominância do homem/pai sobre a É um trabalho que, ao encontrar tensões,
mulher/mãe na definição dos rumos da fa- as crises, as resistências soterradas ao
mília, como um poder absoluto. Para a au- longo da história das mulheres, do gênero

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ou das sexualidades, tornou possível um foram instituídas convenções, programas e
pensamento a respeito da historicidade de plataformas basilares aos direitos das mu-
uma relação de poder considerada a-histó- lheres. Nesse particular, já na Declaração
rica (“em todos os lugares e desde sempre Universal dos Direitos do Homem, de 1948,
as mulheres foram e são dominadas”).
é proclamada a igualdade entre homens e
Visto dessa forma, sintetiza Silvia Cha- mulheres. Em 1966, o Pacto Internacional
kian (2019, p. 140-153) que o movimento fe- sobre Direitos Civil e Políticos assegurou a
minista deu os seus primeiros passos no homens e mulheres igualdade no gozo de
final do século XIX com a reunião das cha- todos os direitos civis e políticos (art. 3º), no
madas sufragistas britânicas. Àquela altura, que foi seguido pelo Pacto Internacional so-
essas mulheres, tomadas pela Revolução bre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
Industrial, ocupavam as fábricas e indústrias do mesmo ano. Em 1967, sobreveio a Decla-
como operárias, todavia não lhes eram re- ração sobre a Eliminação da Discriminação
conhecidos os mesmos direitos que tinham contra a Mulher.
os operários, além de não poderem votar, Na sequência, foram realizadas diver-
situação que conduziu algumas para fun- sas conferências que culminaram em 1979
dação de um movimento político que anos na Convenção sobre a Eliminação de Todas
depois, em 1918, resultou no sufrágio femini- as Formas de Discriminação contra a Mu-
no na Grã-Bretanha, espraiando a ideia por lher (CEDAW), o diploma internacional mais
outras partes do mundo, inclusive o Brasil. importante e influente no direito das mu-
Esse movimento ficou conhecido como a lheres, pois “trata do princípio da igualdade,
primeira onda do feminismo. seja como uma obrigação vinculante, seja
Mais tarde, entre as décadas de 1960 como um objetivo” (PIOVESAN, 2012, p. 04).
e 1970, sobreveio o que se denomina a se- No Brasil, os efeitos da CEDAW rever-
gunda onda do feminismo, que teve como beraram de forma muito contundente. A
epicentros a Europa e os Estados Unidos. A valer, a tradição do direito brasileiro no to-
tônica dessa fase foi a crítica ao patriarca- cante às mulheres é opressora, pois, desde
do e as reivindicações de direitos sexuais e a Constituição de 1824, a igualdade exsurge
reprodutivos às mulheres. Já nas décadas como um valor formal no ordenamento jurí-
de 1980 e 1990 eclodiu a chamada terceira dico, sob o estatuto genérico de que “todos
(e por enquanto última) onda do feminis- são iguais perante a lei”. Enquanto isso, as
mo nos Estados Unidos e dessa vez a pauta normas infraconstitucionais reafirmavam
centrou-se nas relações de gêneros e no fe- inúmeros preceitos discriminatórios às mu-
minismo negro, que chamou atenção para lheres nas searas conjugais, trabalhistas,
especial condição de mulheres que, além eleitorais e até de maternidade dos filhos
do sexismo, estavam submetidas à chaga nascidos no estrangeiro (CHAKIAN, p. 219,
do racismo (ibd.). op. cit.).
Desde então, o que se observa é a pe- Nesse contexto, é importante lembrar
renidade e diversidade de movimentos fe- que o voto feminino foi conquistado no Bra-
ministas pelo mundo, os quais se ocupam sil somente em 1932 e embora o movimen-
das ações políticas e/ou teorias, e “o que há to feminista exercesse grande influência no
em comum entre eles é o esforço em com- país, sobretudo no período da segunda e
preender por que e como as mulheres ocu- terceira ondas, foi somente às vésperas da
pam uma posição/condição subordinada na Assembleia Nacional Constituinte em 1987
sociedade e o interesse em transformar a que se verificou uma guinada política efe-
realidade analisada” (SEVERI, 2018, p. 12). tiva, com a eleição de 26 Deputadas Fede-
Nesse passo, não é demais concluir rais e a efervescência da campanha “Mulher
que os direitos das mulheres têm sua gê- e Constituinte”, promovida pelo Conselho
nese e evolução calcadas nos movimentos Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM),
feministas surgidos a partir do final do sé- entidade à época presidida por Jacqueline
culo XIX e a primeira metade do século XX, Pitangy, que entregou à Câmara dos De-
período histórico em que também nasceu a putados a histórica Carta das Mulheres aos
Organização das Nações Unidas (ONU), cir- Constituintes, finalizada com o seguinte slo-
cunstância que fomentou sobremaneira a gan: “Constituinte pra valer tem que ter di-
construção de uma plataforma jurídica ca- reitos da mulher” (BRASIL, 1987, p. 6).
paz de tutelar as mulheres. Fruto disso foi a inserção de inúmeros
Com efeito, por intermédio da ONU direitos expressos às mulheres brasileiras na
Constituição Federal, valendo destacar o art.

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3º, IV, segundo o qual “constituem objetivos 52.000 mulheres e meninas foram estupra-
fundamentais da República Federativa do das e 230.160 foram agredidas fisicamente
Brasil […] promover o bem de todos, sem pre- (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚ-
conceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e BLICA, 2021).
quaisquer outras formas de discriminação”,
fixando, aqui, o critério proibido de discrimi- Na mesma toada, uma publicação de
nação em razão do sexo (RIOS, 2008, p. 51). 2016 revelou que, de acordo com o Fórum
Econômico Mundial, o Brasil levará cerca de
Também ganha relevo o art. 5º, que 95 anos para igualdade de gênero por fal-
arrola os direitos fundamentais e em seu ta de “políticas concretas […] que as liberte
inciso I já enuncia que “homens e mulhe- [as mulheres] para o trabalho”2. O relatório
res são iguais em direitos e obrigações, nos do mencionado órgão internacional tam-
termos desta Constituição” e, para o mesmo bém sustentou que “as brasileiras têm um
sentido, rumam diversos outros dispositi- desempenho melhor que os brasileiros nos
vos constitucionais, como o inciso XX desse indicadores de saúde e educação, mas ain-
mesmo artigo, além dos arts. 6º, 7º, XX, 40, da enfrentam acentuada discrepância em
143, 183, 189, 201, 203 e 226. representatividade política e paridade eco-
nômica”.
Outra questão crucial nessa temáti-
ca foi inserida na Constituição Federal por Quanto à representatividade nos es-
intermédio da Emenda à Constituição n. paços de poder, estudos do Tribunal Supe-
45/2004, que equiparou os tratados e con- rior Eleitoral3, da Câmara Federal (BRASIL,
venções internacionais sobre direitos huma- 2019a), do Senado Federal 4e do Conselho
nos que forem aprovados em cada Casa do Nacional de Justiça (BRASIL, 2019b), indi-
Congresso Nacional, em dois turnos, por três cam que em 2019/2020 o Brasil era governa-
quintos dos votos dos respectivos membros, do por um Presidente da República e tinha
às emendas à Contituição (art. 5º, § 3º), o que apenas 2 governadoras, 12% de prefeitas, 16%
certamente traz ainda mais relevo à norma- de senadoras, 15% de deputadas federais,
tiva internacional dos direitos das mulheres 15,5% de deputadas estaduais, 13,49% de ve-
e direitos dos povos no âmbito interno. readoras e 38,8% de magistradas.

Portanto, os paradigmas inaugura- Com relação às mulheres indígenas


dos a partir da Constituição Federal para as brasileiras, a realidade é ainda mais alar-
brasileiras constituem verdadeiro divisor de mante. A valer,
águas, ao menos no plano jurídico, pois de
maneira muito clara e incisiva reconheceu [...] segundo relatório da Organização das
Nações Unidas, publicado em 2010, as mu-
a discriminação histórica a que está sujeita
lheres são as principais vítimas da violência
a mulher e conferiu as bases para a legisla- praticada contra a população indígena no
ção infraconstitucional também corrigir as mundo e as indígenas têm mais chance de
desigualdades de forma mais pormenoriza- serem estupradas do que outras mulheres:
da nos mais diversos setores, o que ensejou mais de 1 em cada 3 mulheres indígenas
modificações importantes, por exemplo, no são estupradas ao longo da vida. Coadu-
Código Civil, Consolidação das Leis Traba- nam com essas informações os dados do
lhistas e leis eleitorais e penais, com desta- Sistema de Informação de Agravos de No-
que para a Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340, tificação (Sinan), do Ministério da Saúde,
de 7 de agosto de 2006. que apontou que entre 2007 e 2017, foram
registradas 8.221 notificações de casos de
Contudo, o estrondoso avanço nor- violência contra mulheres indígenas, a
mativo rumo à igualdade entre homens maioria entre 10 a 19 anos. Em dois terços
e mulheres não tem sido suficiente para a dos casos o agressor não é uma pessoa
próxima da família. 5
transformação da realidade social das brasi-
leiras, que hoje constituem numericamente Tais dados podem ser facilmente va-
a maioria (51,6%) da população 1. lidados por intermédio do relatório “Corpos
2 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/bra-
No quesito violência, durante o ano de sil-37758080. Acesso em: 27 jul. 2019.
2020, em plena pandemia da covid-19, 1.350 3 Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-t-
se/2020/Novembro/mulheres-representam-apenas-12-dos-pre-
mulheres foram vítimas de feminicídio, sen- feitos-eleitos-no-1o-turno-das-eleicoes-2020. Acesso em: 9 jan.
do mais de 80% pelas mãos de seus compa- 2021.
4 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/mate-
nheiros ou ex-companheiros. Ainda, mais de rias/2018/10/08/com-sete-senadoras-eleitas-bancada-femini-
1 Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o- na-no-senado-nao-cresce. Acesso em: 9 jan. 2021.
-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres. 5 Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/
html#:~:text=Segundo%20dados%20da%20PNAD%20Cont%- blog-do-monitoramento/as-lutas-das-mulheres-indigenas-e-
C3%ADnu, 51%2C8%25%20de%20mulheres. Acesso em: 9 jan. -negras-para-serem-ouvidas-e-respeitadas. Acesso em: 27 ago.
2021 2021.

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silenciados, vozes presentes: a violência no [...] de modo que as pessoas sentem receio
olhar das mulheres Kaiowá e Guarani”, ela- só de ouvir falar no assunto, por exemplo,
borado pelo coletivo de mulheres daquela quando a vítima é adolescente não de-
etnia com o objetivo de mapear a violência nuncia porque fica com vergonha de ser
mal falada, não arrumar um namorado e
contra as mulheres Kaiowá e Guarani no sul
outros casos. Temos que ganhar confiança
do estado de Mato Grosso do Sul (KUÑAN-
das mães, que muitas vezes não denun-
GUE ATY GUASU, 2021). O levantamento ciam por ameaças que sofrem” (ibd., p. 11).
demonstrou que o termo “violência” não
possui paralelo na língua Guarani e Kaiowá Dessa forma, as descrições e os indi-
e a palavra mais próxima para retratar o cadores trazidos neste capítulo, para o ob-
conceito “seria o reko vaí (viver/comportar- jeto do presente estudo, alertam para duas
-se de forma ruim/negativa)” (ibd., p. 7). Des- questões fundamentais: 1) as bases do mo-
se modo, a violência para as mulheres Gua- vimento feminista, em grande parte de sua
rani e Kaiowá pode ser exemplificada pelas construção histórica, encontram guarida
seguintes condutas: em preceitos eurocêntricos e colonialistas,
perpassando demandas de mulheres per-
Espancar/bater nas mulheres Kaiowá e
tencentes a grupos especialmente oprimi-
Guarani, xingamento, negação de direito,
ameaça à vida/existência, o paradigma de
dos por esses modelos, como as negras e
que a natureza precisa gerar lucro, afirmar as indígenas; e 2) os direitos das mulheres,
que uma criança tem prazer de ser estu- tais quais configurados hoje, não têm sido
prada ou durante o estrupo, expressar que bastantes para proteger satisfatoriamente
as pessoas indígenas só gera prejuízo para a vida e dignidade das mulheres brasileiras,
o desenvolvimento da economia do esta- sobretudo daquelas atravessadas por fato-
do, que somos invasores das terra e não res discriminatórios adicionais ao sexismo,
plantamos: tudo isso também é violência como a etnia e a raça.
contra os nossos corpos (ibd., p. 9).

No relatório, ainda foi mencionada a 3 A construção dos movimentos e


violência simbólica decorrente de olhares organizações de mulheres indígenas no
brasil
e proibições no tocante às vestimentas e à
linguagem indígenas, bem como se ressal- A primeira e segunda ondas do mo-
tou a violência institucional do Estado no vimento feminista englobavam generica-
enfrentamento deficitário da pandemia da mente as mulheres em busca de direitos
covid-19 e da violência doméstica em terri- que seriam universalmente aplicáveis a to-
tórios indígenas. As indígenas também se das elas. No entanto, essas duas ondas, ape-
referiram à adoção da tese do marco tem- sar de suas importantes conquistas, falha-
poral pelo Poder Judiciário6, que ao não se ram ao não perceberem que as aspirações
atentar para as especificidades desses po- feministas não eram iguais para todas e va-
vos, acaba por desumanizá-los (KUÑANGUE riavam conforme a raça, origem e condições
ATY GUASU, op. cit., p. 18). Foram igualmente sociais. Diante disso, o feminismo negro
destacadas a intolerância religiosa, os con- passou a criticar as duas primeiras ondas do
flitos territoriais com fazendeiros, a violência movimento, pois elas abrangiam apenas as
obstétrica e os crimes sexuais intrafamilia- pretensões de mulheres brancas e de classe
res que vitimam tragicamente as meninas média, como o voto e os direitos sexuais e
indígenas. Em especial sobre os casos de reprodutivos.
violência sexual, foi dito que ainda se trata
de tabu no seio da comunidade indígena, Desse modo, descreve Bell Hooks que
6 A Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos originá- as feministas da época:
rios dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocu-
pam (artigo 231). Contudo, no caso Raposa Serra do Sol (Pet
3.388), o STF decidiu que seria considerada, para fins de com- [...] entraram para o movimento apagan-
provar a posse indígena, a ocupação do território em 1988, na do e negando a diferença, sem pensar em
data da promulgação da Constituição. A interpretação jurídica
que dispõe sobre o marco temporal fixa um momento tempo- raça e gênero juntos, mas eliminando raça
ral específico para que a posse do território seja comprovada do cenário. Priorizar gênero significou que
para fins de demarcação, alegando segurança jurídica, o que
se contrapõe à teoria do indigenato que reconhece os direitos mulheres brancas podiam assumir o palco,
congênitos e originários dos povos sobre suas terras. A inter- dizer que o movimento era delas, mesmo
pretação restritiva do marco temporal acaba por violar os direi-
tos territoriais dos povos garantidos na Constituição Federal de ao convocar todas as mulheres para ade-
1988 e Constituições anteriores, assim como ignora o histórico
de expulsão e desterritorialização promovida pelo próprio Esta- rir. A visão utópica de sororidade evocada
do nas décadas anteriores. Está em pauta no STF o julgamento em um movimento feminista que inicial-
do Recurso Extraordinário n. 1.017.365, que envolve a demar-
cação da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ do povo Xokleng de mente não considerava diferença racial ou
Santa Catarina, caso de repercussão geral e oportunidade para a luta antirracismo séria não captou o pen-
que o STF reveja sua jurisprudência em conformidade com a
Constituição Federal. Até a data do fechamento deste artigo samento da maioria das mulheres negras/
(12 de setembro de 2021), a posição da Procuradoria-Geral da não brancas (2019, p. 90).
República e do Ministro Relator Edson Fachin é quanto à supe-
ração da famigerada tese do marco temporal.

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Em face dessa crítica, a terceira onda discurso do intelectual e escritor indígena
do feminismo passou a abranger também Ailton Krenak na Constituinte7, entre outras
as reivindicações das mulheres negras, in- lideranças masculinas que à época repre-
clusive a questão da discriminação racial. sentavam o movimento nacional, ainda que
algumas possam ser rechaçadas pelo mo-
Todavia, as mulheres indígenas não fi- vimento atual por apresentarem posições
zeram parte das reivindicações do feminis- contraditórias em relação aos interesses e
mo, em razão de sua invisibilidade perante direitos dos povos, a exemplo de Álvaro Tu-
a sociedade. Francesca Gargallo Celentani kano8 e a questão da mineração em terras
(2012, p. 67) explica que as mulheres indí- indígenas. Entre outras lideranças mascu-
genas têm sido formadas em sociedades linas que seguem desde os anos 1980 com
androcêntricas, ou seja, sociedades nas reconhecimento e legitimidade na luta dos
quais o masculino é considerado modelo povos indígenas, pode-se citar a liderança
de representação para todos. Inclusive, es- Davi Kopenawa Yanomami, reconhecido in-
tudos etnográficos e evidências históricas ternacionalmente, justamente por defender
levantadas por Rita Segato demonstram os direitos territoriais dos povos indígenas
“de maneira incontestável a existência de em face da ameaça do garimpo e minera-
um ‘patriarcado de baixa intensidade’ nas ção em terras indígenas.
sociedades tribais afro-americanas e indí-
genas” (BALLESTRIN, 2017, p. 1.049). Além No fim da década de 1980, contudo,
disso, as suas culturas sofreram influência uma imagem correu o mundo e mostrou
da sociedade dos não índios, que também a força e a coragem das mulheres indíge-
é androcêntrica, de forma que as mulheres nas no campo das lutas de base e defesa de
indígenas enfrentam dificuldades para seus direitos coletivos, direitos culturais e
ocupar lugares de destaque em suas territoriais (direitos socioambientais). A ima-
comunidades e permanecem confinadas gem9 retrata a indígena Tuíra do povo Kaya-
em papéis subalternizados nas dinâmicas pó com um facão encostado no rosto do en-
sociais. tão diretor da Eletronorte, em resistência ao
megaprojeto da Usina Hidroelétrica de Belo
No Brasil, somente a partir dos anos Monte, que quase três décadas mais tarde
de 1980, começaram a surgir as primeiras seria “fato consumado” e a barragem viria a
associações de mulheres indígenas. As duas alagar a região da Volta Grande do rio Xingu,
primeiras a surgirem foram a Associação em Altamira, Pará.
das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro
(AMARN) e a Associação das Mulheres Indí- Em âmbito nacional, nas duas últimas
genas do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e décadas, é possível identificar a forte pre-
Tiquié (AMITRUT) (GUAJAJARA, 2020, p. 28). sença feminina nas mobilizações nacionais
indígenas, marchas e Acampamento Terra
Observa-se, em termos de espaço- Livre (ATL) no mês “Abril Indígena”. A Articu-
-tempo, que o período coincide com o sur- lação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
gimento das primeiras organizações as- foi formada em 2005, no segundo ano de
sociativas indígenas, que fortaleceram o existência do ATL como uma “instância de
surgimento de um movimento indígena aglutinação e referência nacional do movi-
em âmbito nacional que antecedeu a Cons- mento indígena no Brasil” (APIB, 2021).
tituinte de 1987. Nos termos do movimento
indígena organizado, trata-se também da A Apib é uma instância de referência na-
mesma região no noroeste amazônico, onde cional do movimento indígena no Bra-
foi formada a Federação das Organizações sil, criada de baixo pra cima. Ela aglutina
Indígenas do Rio Negro (FOIRN), que ins- nossas organizações regionais indígenas
e nasceu com o propósito de fortalecer a
pirou outras organizações locais que se so-
união de nossos povos, a articulação entre
maram à União das Nações Indígenas (UNI) as diferentes regiões e organizações indí-
para conquista dos direitos constitucionais genas do país, além de mobilizar os povos
indígenas em 1988. e organizações indígenas contra as amea-
7 Recomenda-se o filme documentário ÍNDIO CIDADÃO? (DF,
Ao longo da história do movimento 2014, 52›). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-
indígena, é possível observar a presença fe- Ti1q9-eWtc8. Acesso em: 12 set. 2021.
8 Notícias relacionadas. Disponível em: https://www.brasilde-
minina na resistência de base e defesa de fato.com.br/2021/05/30/a-verdadeira-historia-da-visita-de-jair-
seus territórios, ainda que no período cons- -bolsonaro-aos-yanomami; https://apiboficial.org/2021/05/27/
carta-de-repudio-a-visita-do-presidente-jair-bolsonaro-a-terra-
tituinte as lideranças que se destacaram -indigena-yanomami-no-alto-rio-negro-e-a-sua-pauta-anti-in-
digena-em-favor-da-mineracao-em-terras-indigenas/. Acesso
no campo político foram majoritariamente em: 12 set. 2021.
masculinas e que “personificaram” o mo- 9 Disponível em: https://www.museudeimagens.com.br/india-
-tuira/ ; https://escoladeativismo.org.br/tuira-a-imagem/; entre
vimento indígena, a exemplo do histórico outras páginas. Acesso em: 12 set. 2021.

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ças e agressões aos direitos indígenas. vid-19, as organizações de mulheres indíge-
(APIB, 2021). nas tiveram um papel de protagonismo na
arrecadação de fundos para o apoio às fa-
Observa-se que, especialmente na úl-
mílias indígenas, como se pode observar no
tima década, lideranças femininas ganha-
âmbito das etnias Kaiowá e Guarani:
ram destaque na mobilização nacional e
coordenação executiva da Apib, a exemplo As Mulheres Kaiowá e Guarani, enfrentam
de Sônia Guajajara10, Cristiane Julião Panka- essa pandemia coronavírus em seus Te-
raru, Célia Xacriabá, entre outras11. Assim koha, diante de uma infraestrutura pre-
como é crescente o número de acadêmicas cária, onde acesso aos direitos Guarani e
e advogadas indígenas, a exemplo de Sama- Kaiowá estão cada vez mais distante. Seus
ra Pataxó e Cristiane Baré, que no dia 1º de corpos são expostos em mais de 73 barrei-
ras sanitárias Guarani e Kaiowá, isolamen-
setembro de 2021, pela primeira vez, reali-
to para quem? Quem tem o privilégio de
zaram sustentação oral no Supremo Tribu- ficar em casa? (KUÑANGUE, 2021).
nal Federal (STF) no julgamento do Recur-
so Extraordinário n. 1.017.365, que envolve a Aliás, um exemplo significativo dessa
demarcação da Terra Indígena Ibirama La- forma de mobilização é a KUÑANGUE ATY
klãnõ do povo Xokleng (SC), representando GUASU, que existe desde 2006 e se constitui
um momento histórico para a advocacia na Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá
indígena, juntamente com Eloy Terena e Ivo e Guarani, etnias situadas na região Sul do
Macuxi. Vale ressaltar que, na advocacia in- Estado de Mato Grosso do Sul.
dígena, quem inaugurou a tribuna da Corte
Constitucional foi também uma mulher in- Por intermédio do coletivo:
dígena: Joênia Wapichana, no julgamento
[...] as mulheres Guarani e Kaiowá em as-
da demarcação da Terra Indígena Raposa sembleias debatem pautas que vão além
Serra do Sol, em 2008. Dez anos depois, Joê- da questão territorial, pautas que fazem
nia se tornou a primeira mulher indígena a parte do cotidiano delas como: demarca-
ser eleita Deputada Federal no Brasil (Elei- ção das terras tradicionais, promoção da
ções de 2018)12. cidadania, direitos sociais, segurança pú-
blica e participação social. Pautas especí-
De acordo com dados do Instituto So- ficas como: violência doméstica, violência
cioambiental da Amazônia (ISA)13, existem do estado contra os Guarani e Kaiowá,
atualmente 85 organizações formadas por violência nos acampamentos por conta
mulheres indígenas no Brasil, o que repre- dos ataques dos pistoleiros a comunidade,
senta 9% do total de organizações que lu- alimentação/roça, soberania alimentar e o
tam pelos direitos dos povos indígenas no consumo de alimentos sem agrotóxico e
país. Essas organizações das mulheres indí- os impactos da monocultura ao entorno
das aldeias Guarani e Kaiowá, racismo, pre-
genas estão presentes em 21 estados da Fe-
conceito, intolerância religiosa, direito das
deração, sendo o estado do Amazonas o que crianças e adolescentes, direito das anciãs
apresenta a maior quantidade delas (32,35% e anciões, meio ambiente, clima e a agen-
do total). da de luta/mobilização Guarani Kaiowá
(sic) 15.
Ainda segundo o ISA, o período de
maior incremento das organizações de mu- Assim, o movimento de mulheres in-
lheres indígenas ocorreu entre os anos de dígenas no Brasil é um fenômeno recente
2000 e 200914, quando 33 instituições foram cujo incremento ocorreu a partir dos anos
criadas. Além disso, com a pandemia de co- 2000. No entanto, como visto, essas organi-
10 Notícias relacionadas. Disponível em: https://apiboficial. zações, diferentemente dos movimentos fe-
org/2020/10/30/sonia-guajajara-entre-as-100-personalidades-
-mais-influentes-do-mundo/. ministas, não reivindicam apenas os direitos
11 Recomenda-se o webinário “Mulheres Indígenas em Abril” das mulheres, elas buscam conferir maior
promovido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região e Co-
missão de Equidade de Gênero. EMAG-TRF3. 27 a 30 de abril de visibilidade à coletividade indígena de que
2021. Disponível em: https://www.trf3.jus.br/emag/cursosemag/
cursos-2021/559-mulheres-indigenas-em-abril/.
fazem parte, dando voz às mulheres para
12 Notícias relacionadas. Disponível em: https://www.geledes. reivindicar o direito de todos e todas, opor-
org.br/joenia-wapichana-rede-e-eleita-primeira-mulher-indi- tunidade em que algumas delas buscam
gena-para-cargo-na-camara-dos-deputados/?gclid=CjwKCA-
jwyvaJBhBpEiwA8d38vM4_aDt_KOACdWq-cwO4GSpJbFFvK- também denunciar os abusos e as violações
JpyasT-kF4N8z4J2d4pIEIzYxoCDuwQAvD_BwE.
13 Dados obtidos relativos a janeiro de 2020 por meio de acesso
sofridas pelas mulheres.
ao site do ISA. Disponível em: https://www.socioambiental.org/
pt-br/noticias-socioambientais/organizacoes-de-mulheres-in- Nesse contexto, insere-se a formação
digenas-no-brasil-resistencia-e-protagonismo. Acesso em: 28
mar. 2021. da Articulação Nacional das Mulheres Indí-
14 Dados obtidos relativos a janeiro de 2020 por meio de acesso genas Guerreiras da Ancestralidade (ANMI-
ao site do ISA. Disponível em: https://www.socioambiental.org/
pt-br/noticias-socioambientais/organizacoes-de-mulheres-in-
digenas-no-brasil-resistencia-e-protagonismo. Acesso em: 28 15 Disponível em: https://www.kunangue.com/. Acesso em: 24
mar. 2021. ago. 2021.

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GA) e a Marcha Nacional das Mulheres In- de uma perspectiva de gênero situada cul-
dígenas. A II Marcha Nacional das Mulheres turalmente, que vem a questionar tanto o
Indígenas foi realizada de 7 a 11 de setem- sexismo e o essencialismo das organizações
bro de 2021, em Brasília, por ocasião do dia indígenas, como o etnocentrismo do “fe-
internacional das mulheres indígenas (5 de minismo hegemônico” (CASTILLO, 2014, p.
setembro). Organizaram-se por mulheres- 280).
-biomas e lançaram o Manifesto “Reflores-
tarmentes”. Nesse contexto, Francesca Gargallo
Celentani (2014, p. 119-120) aponta que exis-
Trata-se de um grande chamamento que tem quatro linhas do pensamento feminis-
fazemos à humanidade, na tentativa de ta entre as mulheres indígenas. O primeiro
proporcionar a todos os povos do mundo são as mulheres indígenas que lutam por
uma nova forma possível de nos relacio- melhores condições de vida em sua própria
narmos com a Mãe Terra, e também entre
comunidade, de acordo com a sua cultura.
nós, seres que nela vivemos. É necessário
e urgente nos reconectarmos com a Mãe
Não se chamam de feministas porque te-
Terra, pois essa é a única forma de man- mem que as demais mulheres e os homens
termos nossos corpos vivos – e é essen- de sua comunidade sintam-se incomoda-
cialmente sobre a vida e o bem-viver que dos com esse termo, porque estariam ques-
falamos quando colocamos o movimento tionando a dualidade masculino-feminino
Reflorestarmentes ao conhecimento e ao dentro de sua própria comunidade.
acesso de todas e todos. (ANMIGA, 2021).
A outra linha de pensamento repre-
Acerca dos movimentos das mulheres senta as indígenas que negam ser chama-
indígenas no estado do Amazonas Ivânia das de feministas, porque questionam a
Vieira (2017, p. 140) elaborou tese de douto- forma como as feministas não indígenas
rado na qual entrevistou 12 indígenas de di- expressam suas pretensões. Já a terceira li-
versas etnias localizadas no referido estado nha se refere às mulheres que identificam
com o objetivo de analisar os movimentos pontos de contato entre as suas pretensões
de organização dessas mulheres. No traba- e as reivindicações das não indígenas para
lho desenvolvido, a pesquisadora observou se libertarem de atitudes misóginas e, a par-
que, entre as mulheres indígenas, “o femi- tir disso, reivindicam-se feministas.
nismo aparece como ideia diluída nas lutas
das mulheres nas organizações e nos movi- A quarta linha representa as mulheres
mentos indígenas.” indígenas que são abertamente feministas,
que organizam e participam de encontros
De acordo com a mesma pesquisa, as públicos e estão em permanente crítica e
mulheres indígenas apresentam dificulda- diálogo com outros movimentos feministas,
de de se autoafirmarem feministas em face tais como as indígenas que se identificam
da diferença de direitos reivindicados. Além com o feminismo comunitário.
disso, “o modelo vigente de feminismo as
oculta ou secundariza o lugar das indígenas O feminismo comunitário nasceu de
nesse movimento.” (ibd., p. 141). Ainda, con- reflexões de mulheres indígenas que iden-
forme a tese de doutorado, as mulheres in- tificam que a terra e as origens étnicas são
dígenas posicionam-se de forma cordial em imprescindíveis para a construção de uma
relação às feministas, mas buscam possibili- identidade política. A escritora Julieta Pare-
dades de encontrar seus próprios caminhos. des Carvajal (2019, p. 80-81), que é indígena
boliviana e ativista do feminismo comuni-
Fenômeno semelhante é observado tário, explica que esse tipo de feminismo
no México, onde mulheres indígenas rela- nasceu na Bolívia e luta pela construção do
tam suas lutas para serem pontes entre o bem-viver, tendo decorrido da luta das mu-
movimento indígena, que se nega a reco- lheres indígenas. De acordo com a escrito-
nhecer seu sexismo, e um movimento femi- ra, a luta das mulheres contra o patriarcado
nista, que se recusa a reconhecer seu etno- não surgiu na Europa, mas em Abya Yala
centrismo. Com efeito, trata-se de uma luta (América), onde as suas antepassadas já lu-
em muitas frentes: por um lado as mulheres tavam pelos seus direitos. Explica ainda que
indígenas organizadas têm unido suas vozes o feminismo ocidental não compreende as
ao movimento indígena nacional para de- mulheres de Abya Yala e, por isso, há a ne-
nunciar a opressão econômica e o racismo cessidade de construção de um feminismo
que marca a inserção dos povos indígenas comunitário que agregue também as lutas
no projeto nacional. Paralelamente, essas das mulheres indígenas.
mulheres estão desenvolvendo um discur-
so e uma prática política própria, a partir Em face dessa divisão, que nem sem-

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pre conduz à identificação das indígenas ta, muita discriminação, tanto de homens
com o movimento feminista, o presente ar- quanto de mulheres, em relação ao fato de
tigo fez a opção pelo uso da nomenclatura uma mulher se candidatar para a função de
de movimento e organizações de mulheres cacique. Conforme conta a cacica, “as pes-
indígenas em vez de utilizar a expressão fe- soas diziam que não seriam mandadas por
minismo indígena, como já fora adiantado mulher”, no entanto a situação atual se tor-
na introdução deste trabalho. E, para enri- nou diferente, pois, em seu município, ou-
quecer a pesquisa, foi realizada uma entre- tras mulheres também alcançaram funções
vista semiestruturada com a primeira caci- de poder, como na Prefeitura e na Câmara
ca da comunidade Tereré, situada em Mato de Vereadores, e essa conjuntura acabou
Grosso do Sul, cujas impressões constam a repercutindo positivamente em sua comu-
seguir. nidade, com a aceitação de seu nome para
concorrer à função de comando.
3.1. A cacique/cacica
Não obstante, na comunidade Tereré
Como o presente trabalho analisa o ainda não exista um movimento específico
movimento das mulheres indígenas pelo das mulheres indígenas, Ana Batista, após
reconhecimento de seus direitos, é impres- ter alcançado a função que antes só era
cindível que se valha da perspectiva delas exercida por homens, passou a influenciar
para a melhor compreensão desse proces- as meninas e mulheres de sua comunida-
so de conquista de direitos, de forma que de, demonstrando que elas podem atingir a
pareceu muito relevante escutar a voz de posição que quiserem. Além disso, segundo
uma mulher indígena em exercício de ca- a cacica, as guerreiras (nome dados às mu-
cicado, posto historicamente conferido aos lheres de sua comunidade) agora possuem
homens, seja por tradição, seja por influên- representatividade e o seu exemplo pode
cia do homem-colonizador e das relações ser repetido.
de poder com a sociedade patriarcal envol-
Conversando sobre o feminismo, a ca-
vente. Dessa forma, optou-se por entrevistar
cica salientou que até existe uma discussão
uma cacique/cacica, ou seja, uma mulher
sobre os direitos das mulheres em sua co-
em exercício de liderança política dentro de
munidade, no entanto elas não nomeiam
sua comunidade para compartilhar a sua
de feminismo. Segundo ela, a reivindicação
experiência, razão pela qual foi convidada
das mulheres indígenas é mais ampla do
a cacica Ana Batista Figueiredo Almeida,
que a das não indígenas, pois as primeiras
primeira mulher eleita para essa função na
também lutam pelos direitos de seu povo,
comunidade Tereré, em Sidrolândia, Mato
como, por exemplo, a questão territorial.
Grosso do Sul.
A cacica também relatou já ter partici-
A cacique Ana16, como prefere ser cha-
pado anteriormente de Marchas das Mulhe-
mada, destaca-se por ter sido votada pelos
res Indígenas, que são eventos anuais pen-
membros de sua comunidade e eleita como
sados “como um processo, iniciado em 2015,
cacica, função ocupada pela primeira vez
de formação e empoderamento das mulhe-
por uma mulher naquela localidade. Indíge-
res indígenas” 18. De acordo com o documen-
na da etnia Terena, a cacica assumiu, em 23
to final da I Marcha das Mulheres Indígenas,
de novembro de 2020, a administração da
realizada em agosto de 2019, em Brasília/DF
comunidade indígena urbana Tereré, que
“ao longo desses anos dialogamos com mu-
reúne grupos interétnicos, tendo sido esco-
lheres de diversos movimentos e nos demos
lhida por homens e mulheres após vencer
conta de que nosso movimento possui uma
as eleições locais, conforme organização so-
especificidade que gostaríamos que fosse
cial-política própria da sua comunidade.
compreendida” 19.
De acordo com a cacica, durante en-
Dessa forma, Ana exaltou a importân-
trevista concedida por meio de plataforma
cia de integrar tais eventos para que se en-
virtual17, ela enfrentou, antes de ser elei-
16 Foi respeitada a forma como a Cacique Ana se apresenta. xergasse como alguém capaz de ocupar o
Contudo, se reconhece que também tem sido utilizada a for- posto que hoje ocupa, reconhecendo nesse
ma com flexão de gênero por mulheres indígenas “cacicas”
de outros povos ou outras regiões. Exemplo da Cacica Kerexu movimento a sua representatividade. Rela-
Yxapyry, reconhecida como a primeira Cacica Guarani no Brasil.
https://midianinja.org/news/kerexu-yxapyry-foi-a-primeira-ca- tou com entusiasmo que já havia preparado
cica-guarani-reconhecida-no-brasil/. Acesso em: 12 set. 2021. meninas de sua comunidade para participa-
17 A entrevista com a cacique Ana foi realizada no dia 4 de se-
tembro de 2021, com o auxílio da plataforma Zoom, pelas pes- sentam seus agradecimentos.
quisadoras Mariana Rezende Ferreira Yoshida e Raffaela Cássia
de Sousa. Naquela oportunidade, a cacica Ana autorizou a di- 18 Disponível em: https://cimi.org.br/2019/08/marcha-mulheres-
vulgação da entrevista e de seu nome neste artigo, tendo ex- -indigenas-documento-final-lutar-pelos-nossos-territorios-lu-
pressado seu consentimento livre, prévio e informado. Em face tar-pelo-nosso-direito-vida/. Acesso em: 10 set. 2021.
da colaboração prestada pela cacica, as pesquisadoras apre- 19 Ibd.

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rem da Marcha de 2021 e que tem realizado entre a totalidade da população indígena
trabalhos voltados especialmente às mulhe- e o restante da comunidade nacional (não
res da localidade, como palestras sobre a Lei índios), conforme arts. 2, item 2, a, 21. Não
Maria da Penha e atendimentos específicos havia a percepção de que as mulheres in-
para mulheres em situação de violência do- dígenas também sofriam violações de seus
méstica. direitos nem a preocupação em conceder
um tratamento igualitário entre os homens
Assim, esclarecida a realidade em que e as mulheres dentro da própria comunida-
as mulheres indígenas vivem e se organi- de indígena.
zam politicamente, mister analisar a norma-
tiva pertinente a elas. Com a aprovação da Convenção 169,
em 1989, pela OIT, a preocupação com a
4 O tratamento das mulheres indígenas garantia de direitos para as mulheres in-
nas normas protetivas internacionais e no dígenas e com a discriminação de gênero
direito interno passou a constar expressamente nesse do-
cumento internacional. Nesse ponto, a Con-
As principais normas vigentes em venção previu no art. 3º, especificamente,
âmbito internacional que tratam dos povos que os povos indígenas gozam de direitos
indígenas são: a Convenção 169 da Organi- e liberdade fundamentais, os quais deverão
zação Internacional do Trabalho (OIT, 1989), ser aplicados sem discriminação entre ho-
a Declaração das Nações Unidas sobre o Di- mens e mulheres. Além disso, apresentou
reito dos Povos Indígenas (2007) e a Decla- também a preocupação com igualdade en-
ração Americana sobre os Direitos dos Po- tre homens e mulheres indígenas, prevendo
vos Indígenas (2016). Em que pese esses três no art. 20, item, 3, d, a proteção em igualda-
instrumentos jurídicos internacionais sejam de de oportunidades entre esses homens
considerados de grande relevância por bus- e essas mulheres, inclusive contra assédio
carem a proteção dos povos indígenas no sexual.
que concerne a seus direitos individuais e
coletivos, no presente artigo eles serão ana- Outro documento internacional, qual
lisados tão somente sob o aspecto da prote- seja, a Declaração das Nações Unidas sobre
ção específica das mulheres indígenas. os direitos dos povos indígenas, aprovada
em 13 de setembro de 2007, também traz
A Convenção 169 da OIT, que foi apro- menções específicas às mulheres indígenas
vada naquela organização internacional em ao prever, no art. 22, a atenção especial aos
1989, é conhecida por ter introduzido os di- direitos e às necessidades dessas mulheres
reitos de autorreconhecimento (autoatribui- e a adoção de medidas para assegurar às in-
ção), direitos de participação, de consulta e dígenas garantia contra todas as formas de
consentimento livre, prévio e informado, à violência e discriminação.
luz da autodeterminação dos povos.20 No
entanto, pouco se fala da importância desse A Declaração Americana sobre os di-
normativo para as mulheres indígenas. An- reitos dos povos indígenas, aprovada na ter-
tes da Convenção 169, vigia a Convenção n. ceira sessão plenária da Organização dos
107, de 5 de junho de 1957, que tratava das Estados Americanos (OEA), realizada em 15
“populações” indígenas, ou seja, nem se de junho de 2016, traz um artigo específico
quer reconhecia o termo “povos indígenas”, sobre os direitos das mulheres indígenas,
o que já indica seu caráter assimilacionista e com o título “igualdade de gênero”. Trata-se
de tutela indígena. Essa Convenção de 1957 do art. 7º, item 1, que prevê que as mulheres
não mencionava as mulheres indígenas e indígenas “têm direito ao reconhecimento,
limitava-se a tratar os integrantes dessas proteção e gozo de todos os direitos huma-
comunidades como membros de popula- nos e liberdades fundamentais”. Reconhece
ções tribais ou semitribais. Na Convenção ainda que a violência contra os povos indí-
107, também não havia preocupação com genas, em especial contra as mulheres indí-
a igualdade “intraétnica” (entre os próprios genas, impede o gozo de seus direitos. É de
indígenas), mas apenas com a igualdade se destacar também o art. 32, que preconiza
20 O direito de consulta previsto no art. 6º da Convenção 169
que “todos os direitos e liberdades reconhe-
prevê o direito dos povos indígenas serem consultados toda vez cidos na presente Declaração serão garanti-
que houver medidas legislativas ou administrativas capazes de
afetá-los. O artigo 7o reconhece o direito que os povos têm de dos igualmente às mulheres e aos homens
decidir sobre o processo de desenvolvimento que lhes afetem,
incorporando a livre determinação dos povos, que foi disposta indígenas.”
expressamente nas Declarações seguintes (ONU, 2007 e OEA,
2016). A Convenção 169 da OIT inaugura, portanto, um novo No âmbito internacional, portanto, as
parâmetro nas relações entre Estados e povos indígenas, su-
perando o paradigma assimilacionista anterior. Sobre o direito normas protetivas aprovadas após a Con-
de consulta prévia, recomenda-se: SILVA, Liana Amin Lima da
(2017). venção 169 da OIT trazem a previsão de

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proteção “intraétnica” para as mulheres in- mentos que podem vir explícitos no orde-
dígenas, reconhecendo a necessidade de namento jurídico, por meio de uma enume-
garantir a essas mulheres a proteção contra ração taxativa ou exemplificativa, ou ainda
a violência e a discriminação. conjugados nas mais diversas situações. O
sexo e a questão étnica e racial são exem-
No âmbito interno, observa-se que a plos desses critérios proibidos que podem
Constituição de 1988 não faz menção espe- aparecer sozinhos ou conjugados. Assim,
cífica às mulheres indígenas, assim como o uma mulher branca pode ser discriminada
Estatuto do Índio (Lei n. 6.001, de 1973) tam- por ser mulher; já uma mulher negra pode
bém não lhes reserva um tratamento ade- vir a sofrer discriminação racial, além da-
quado. Por outro lado, é de se ressaltar que quela decorrente do sexo. Uma mulher in-
a Resolução n. 287, de 25 de junho de 2019, dígena pode também vir a ser vítima desse
do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe processo de exclusão para além das ques-
sobre o tratamento das pessoas indígenas tões de sexo e raça, mas também em razão
acusadas ré, condenadas ou privadas de li- de sua diferença cultural. Esses critérios,
berdade, resguardou um artigo específico portanto, não são fixos e estáticos, pois vá-
para tratar das mulheres indígenas. Trata-se rias questões podem deles advir, bem como
do art. 13, que prevê que a prisão domiciliar podem se interrelacionar nas mais diversas
da mulher indígena mãe, gestante ou res- situações.
ponsável por criança ou pessoa com defi-
ciência será cumprida na própria comuni- Nesse ponto, dentro do direito da an-
dade. tidiscriminação, têm-se as teorias da discri-
minação interseccional e intergeracional. A
Portanto, ao se buscar fazer um para- teoria da discriminação interseccional ana-
lelo acerca da atuação do movimento femi- lisa mais de um vetor para estudar a discri-
nista e o movimento das mulheres indíge- minação na sociedade, pois, mesmo dentro
nas no Brasil, verificam-se as limitações do de grupos minoritários semelhantes (ex.:
primeiro por abranger as esferas dos direi- mulheres), há outros fatores de opressão
tos e liberdades individuais, ainda que abar- que incidem de forma diferente em partes
que os direitos civis e políticos, os direitos desse grupo (ex.: mulheres brancas, negras
sociais, econômicos e culturais (relações de e indígenas). Assim, deve-se pensar o sujeito
trabalho, por exemplo), está longe de com- dentro das diversas posições ocupadas den-
preender os direitos coletivos específicos tro da sociedade.
dos povos. Os direitos socioambientais lan-
çam algumas luzes sobre essa compreen- Os estudos relativos à intersecciona-
são, pois as reivindicações das mulheres in- lidade são associados ao feminismo negro,
dígenas contra a opressão (patriarcal) têm em que se propôs a observação da discrimi-
se mostrado indissociáveis das lutas por nação contra as mulheres negras em uma
seus direitos territoriais, direitos de existên- perspectiva mais ampla quando comparada
cia na diversidade e de livre determinação às mulheres brancas, que incluísse não só a
enquanto pertencentes a povos indígenas. questão de gênero, mas também a questão
racial (MOREIRA, 2020, p. 415).
5 O direito da antidiscriminação:
a discriminação interseccional e A expoente dessa teoria é a feminista
intergeracional negra estadunidense Kimberlé Crenshaw
(2002), segundo a qual,
O direito da antidiscriminação “vol-
ta sua atenção, desde o início, para o fenô- como é verdadeiro o fato de que todas as
meno da discriminação, suas modalidades, mulheres estão, de algum modo, sujei-
tas ao peso da discriminação de gênero,
seus principais desafios e questões”. (RIOS,
também é verdade que outros fatores re-
2008, p. 13). Ele compreende o direito de lacionados a suas identidades sociais, tais
igualdade como um mandamento de não como classe, casta, raça, cor, etnia, religião,
discriminação, sendo, portanto, um sistema origem nacional e orientação sexual, são
protetivo que pretende “estabelecer respos- ‘diferenças que fazem diferença’ na forma
tas legítimas a questões jurídicas suscitadas como vários grupos de mulheres viven-
por demandas de direitos elaboradas por ciam a discriminação.
grupos que estão em uma situação de des- […]
vantagem.” (MOREIRA, 2020, p. 98). A interseccionalidade é uma conceitua-
ção do problema que busca capturar as
Entre os elementos do direito da anti- consequências estruturais e dinâmicas da
discriminação, Rios (2008, p. 51) destaca os interação entre dois ou mais eixos da su-
chamados critérios proibidos, que são ele-

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bordinação. Ela trata especificamente da pede as minorias de ascender na sociedade
forma pela qual o racismo, o patriarcalis- e de possuir os meios de alteração de suas
mo, a opressão de classe e outros sistemas condições de existência, reproduzindo-se a
discriminatórios criam desigualdades bá- exclusão social por diversas gerações. Por
sicas que estruturam as posições relativas
isso, esses processos históricos de margi-
de mulheres, raças, etnias, classes e outras.
nalização social que perduram ao longo
Além disso, a interseccionalidade trata da
forma como ações e políticas específicas dos anos são difíceis de superar (MOREIRA,
geram opressões que fluem ao longo de 2020, p. 475).
tais eixos, constituindo aspectos dinâmi-
cos ou ativos do desempoderamento.
No caso dos povos indígenas, há um
longo processo de invisibilidade, em que
Diante disso, os diversos elementos essas coletividades foram colocadas à mar-
envolvidos na discriminação contra as mu- gem da sociedade. Chegaram a ser consi-
lheres não devem ser vistos de forma isola- derados silvícolas e incapazes pelo Código
da, mas dentro das mais variadas relações Civil de 1916 e pelo Estatuto do Índio, vindo
de poder existentes na sociedade, de sorte somente a ser considerados povos cultural-
que a interseccionalidade tem como pressu- mente diferenciados, com o respeito à sua
posto a rejeição da homogeneidade social, organização social, aos costumes, às cren-
pois nitidamente existem relações assimé- ças e às tradições, com a Constituição de
tricas de poder dentro dos próprios grupos 1988, que também garantiu o direito sobre
minoritários. as terras que tradicionalmente ocupavam. É
por isso que, Carlos Frederico Marés de Sou-
Como bem elucida Carla Akotirene za Filho (2018, p. 165), diz que, com a norma
(2019, p. 22), “enquanto as mulheres bran- de 1988, “os índios vêm adquirindo o “estra-
cas têm medo de que seus filhos possam nho” direito de continuar a ser índio, depois
crescer e serem cooptados pelo patriarca- de quinhentos anos de integração forçada”.
do, as mulheres negras temem enterrar
seus filhos vitimados pelas necropolíticas, As mulheres indígenas, como visto,
que confessional e militarmente matam e não foram totalmente contempladas pelo
deixam morrer”. Em semelhança à realida- feminismo, mas estão construindo um mo-
de das mães indígenas, Juliana Mota et al vimento próprio, de reconhecimento dos di-
(2021) relatam que, em virtude da precária reitos da coletividade e de seus próprios di-
territorialização da população Guarani e reitos enquanto mulheres e indígenas. Por
Kaiowá em Mato Grosso do Sul, há um pre- isso, o direito da antidiscriminação e suas
juízo enorme na “reprodução de um modo teorias da interseccionalidade e da discrimi-
correto, bom e ideal de viver — o teko porã”, nação intergeracional se apresentam rele-
o que enseja a vulnerabilidade desses povos vantes para a compreensão do processo his-
e os alarmantes índices de acolhimento ins- tórico de exclusão social dessas mulheres.
titucional de crianças indígenas, refletindo
por via oblíqua em “uma violência contra as 5.1 A antidiscriminação e a aplicação das
mulheres indígenas, sobretudo a negação normas protetivas das mulheres para as
ao seu direito à maternidade”. mulheres indígenas

E, ao tempo em que a discriminação A publicação da Comissão Interame-


interseccional atinge vários critérios proibi- ricana de Direitos Humanos “Mujeres indí-
dos, a intergeracional afeta as minorias em genas” (2017, p. 32) apresenta os princípios a
diferentes gerações, em razão de processos serem aplicados às mulheres indígenas. En-
históricos de exclusão. De acordo com Mo- tre eles encontra-se o princípio da intersec-
reira (2020, p. 474), esse tipo de discrimina- cionalidade que, segundo a Comissão, é um
ção indica que “efeitos da exclusão social conceito para compreender que a abran-
podem se reproduzir ao longo do tempo, fa- gência dos deveres estatais com as mulhe-
zendo com que diferentes gerações de um res indígenas vai além da questão do sexo
mesmo grupo sejam afetadas por práticas e gênero e inclui a origem étnica e outros
discriminatórias”. fatores, dada a identidade multidimensional
dos povos indígenas. Assim, a discriminação
Essas práticas de exclusão são direcio- contra a mulher indígena expõe a necessi-
nadas a manter o privilégio de determinado dade de compreender a interseccionalidade
setor da sociedade enquanto outros gru- com outros fatores.
pos são ou permanecem excluídos, invisi-
bilizando as diversidades existentes. Nesses Partindo do conceito de interseccio-
termos, a discriminação intergeracional im- nalidade, tem-se que as regras que prote-
gem as mulheres em geral, mesmo que não

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mencionem as mulheres indígenas, podem mente a mulher indígena como objeto de
a elas ser aplicadas, respeitadas as diferen- proteção. No entanto, por ser uma norma
ças culturais. Em se tratando de normas criada nos anos 90, após o início dos movi-
protetivas, o objetivo do diploma normativo mentos dos povos indígenas, traz a proteção
não é provocar a diferença negativa em ra- da mulher também em face de sua origem
zão de origem étnica e raça, mas promover étnica. Assim, o art. 9º prevê que os Estados
cada vez mais a proteção de todas as mu- partes deverão considerar, para a adoção
lheres. de medida de proteção para as mulheres, a
condição de vulnerabilidade à violência em
De acordo com Francesca Gargallo face de sua raça, origem étnica ou condição
Celentani (2012, p. 69), os direitos das mulhe- de migrante, refugiada ou deslocada, entre
res indígenas são os mesmos das não indí- outros motivos.
genas, mas devem ser aplicados de acordo
com as necessidades das primeiras, sem Outro documento internacional ela-
nenhum tipo de opressão. Ademais, as mu- borado no ano de 1995, e, portanto, o mais
lheres indígenas têm também os mesmos recente entre os normativos citados nos pa-
direitos que os homens de sua comunidade. rágrafos anteriores, é a Declaração e Plata-
forma de Ação da IV Conferência Mundial
Além disso, a discriminação sob o as- sobre a Mulher, realizada em Pequim, que
pecto intergeracional sofrida pelos povos identificou doze áreas de preocupação prio-
indígenas ao longo da sua história reforça ritária, sendo elas: o aumento das mulheres
a importância da abrangência dos direitos em situação de pobreza; a desigualdade do
das mulheres indígenas que, além da busca acesso à educação e à capacitação; a desi-
pela concretização dos direitos territoriais e gualdade do acesso aos serviços de saúde;
culturais de toda a coletividade, ainda inten- a violência contra a mulher; os efeitos dos
tam o reconhecimento de seus direitos en- conflitos armados contra a mulher; a de-
quanto mulheres. sigualdade de participação nas estruturas
econômicas, nas atividades produtivas e no
Diante da explicitação do conceito de
acesso a recursos; a desigualdade de parti-
interseccionalidade e da indicação de que
cipação no poder político e nas instâncias
as normas protetivas das mulheres, ain-
decisórias; a insuficiência das medidas de
da que não se refiram às indígenas, tam-
promoção do avanço das mulheres; a defi-
bém são aplicáveis a elas, respeitada a sua
ciência de proteção e promoção dos seus
cultura, passa-se a analisar se os diplomas
direitos; o tratamento estereotipado; a desi-
normativos que tratam especificamente da
gualdade na participação de decisões sobre
proteção e resguardo dos direitos das mu-
o manejo de recursos naturais e proteção
lheres trazem disposições sobre as mulhe-
ao meio ambiente; e a necessidade de pro-
res indígenas.
teção e promoção de ações para os direitos
No âmbito da ONU, a principal nor- das meninas. A referida declaração trouxe
ma internacional que prevê a proteção das ainda a noção de transversalidade que “bus-
mulheres é a Convenção sobre a Elimina- ca assegurar que a perspectiva de gênero
ção de Todas as Formas de Discriminação passe efetivamente a integrar as políticas
contra a Mulher, conhecida como CEDAW. públicas em todas as esferas de atuação go-
Essa Convenção foi aprovada em 1979 pela vernamental.”
Assembleia Geral da ONU e, no Brasil, sua
Pode-se dizer que, em termos de in-
promulgação ocorreu em 13 de setembro de
terseccionalidade e abrangência feminina,
2002, pelo Decreto n. 4.377. A CEDAW não
essa plataforma é um dos documentos mais
traz nenhuma menção específica à mulher
relevantes para as mulheres indígenas. Isso
indígena, tampouco à proteção da mulher
porque a plataforma de Pequim introduziu
em face da diferença étnica.
a preocupação com as mulheres indíge-
Dentro do sistema interamericano de nas, que até então não possuíam menção
direitos humanos, a principal convenção so- expressa nas pautas de lutas pelos direitos
bre as mulheres é a Convenção Americana das mulheres. Antes dessa Declaração e
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Plataforma de Ação, as mulheres indígenas
contra a Mulher, de 1994, conhecida como possuíam menção expressa apenas nos nor-
Convenção de Belém do Pará. Esse diploma mativos internacionais que tratavam especi-
internacional foi promulgado no Brasil em ficamente dos povos indígenas (Convenção
1996 pelo Decreto n. 1.973. Da mesma for- 169, Declaração da ONU e a Interamericana
ma que a CEDAW, a Convenção de Belém sobre Direitos dos Povos Indígenas).
do Pará também não menciona especifica-

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A mencionada declaração reconhe- menciona a mulher indígena. Por isso, a De-
ceu, no capítulo IV, item 46, que as mulhe- claração e Plataforma de Ação da IV Confe-
res enfrentam barreiras para a igualdade rência Mundial sobre a Mulher, além de ser
devido a fatores como “raça, idioma, origem um importante documento para o femi-
étnica, cultura, religião, deficiência física ou nismo, também é extremamente relevante
outros, como pertencerem às populações para o movimento das mulheres indígenas.
indígenas”. Além disso, entre os objetivos es- Isso não significa, no entanto, que as outras
tratégicos, constou expressamente no item declarações e convenções internacionais
58, alínea q, a necessidade de adotar me- não se apliquem à mulher indígena. Ao con-
didas para promover e fortalecer políticas trário, todos os documentos internacionais
para as mulheres indígenas a fim de permi- que protegem os direitos das mulheres são
tir a participação plena delas na sociedade, também normas protetivas para as indíge-
respeitando a sua diversidade cultural. nas, desde que respeitadas as suas especifi-
cidades culturais.
Outros objetivos identificados nes-
sa declaração foram: no item 61, alínea c, a A Convenção de Belém do Pará, por
menção para os países ratificarem a Con- exemplo, mesmo não dispondo expressa-
venção 169 como um esforço para prote- mente sobre a mulher indígena, já teve sua
ger os direitos dos povos indígenas; o apoio aplicação reconhecida às indígenas pela
para reconhecer os direitos das indígenas à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
educação (alínea n do item 83); o reconhe- Trata-se do caso Inês Fernández Ortega x
cimento das atividades artísticas, espirituais México e do caso Rosendo Cantú x México.
e culturais das mulheres indígenas (alínea Ambos se referem a mulheres indígenas
o do item 83), programas de saúde que in- que foram violentadas e não tiverem o tra-
cluam as mulheres indígenas (alínea c e y tamento adequado de seus casos perante o
do item 106); o reconhecimento do valor da país de origem. Esses processos chegaram
medicina tradicional praticada pelas mulhe- à Corte Interamericana, que reconheceu
res indígenas (alínea j do item 109); o reco- a violação dos direitos dessas mulheres in-
nhecimento de que as mulheres indígenas dígenas com base na Convenção Intera-
são particularmente vulneráveis à violência mericana para Prevenir, Punir e Erradicar
(item 116); a necessidade de prestar apoio a Violência contra a Mulher (Convenção de
às atividades econômicas desenvolvidas por Belém do Pará).
mulheres indígenas (alínea f do item 175); o
incentivo à participação da mulher indíge- O caso Inês Ortega se refere à senten-
na na tomada de decisões (alínea g do item ça proferida pela Corte Interamericana de
190); a tradução de leis e as informações so- Direitos Humanos, em 30 de agosto de 2010,
bre igualdade de condição para os idiomas em que esta reconheceu a violação de direi-
indígenas (alínea a do item 233). tos da Sra. Inês Ortega, em face de a indíge-
na ter sido vítima de tortura e estupro por
A Plataforma reconhece, no item 32, militares do México.
que as mulheres indígenas “enfrentam bar-
reiras tanto por sua condição de mulher Conforme explica Eliane Moreira (2017,
como por serem membros de comunidade p. 168), a senhora Inês era uma mulher indí-
indígenas” e a alínea o do item 230 prevê a gena Me’phaa que residia em uma área de
necessidade de assegurar o pleno respeito difícil acesso. A casa dela foi invadida por 11
das mulheres indígenas por meio de uma militares mexicanos que, após perguntarem
declaração dos direitos das pessoas indíge- pelo marido e descobrirem que ele não se
nas. encontrava na casa, violentaram a Sra. Inês
Ortega.
Outro ponto a ser destacado é o reco-
nhecimento da desigualdade não só entre Nos termos dos pontos resolutivos da
homens e mulheres, mas entre as próprias sentença, especialmente do item 3, a Corte
mulheres. Assim, o item 83 diz que, além da Interamericana reconheceu que o México
desigualdade entre homens e mulheres, ou- foi responsável “pela violação dos direitos
tro obstáculo que impede que as mulheres à integridade pessoal, à dignidade e à vida
atinjam os mais altos níveis de bem-estar é a privada”, previstos na Convenção Americana
desigualdade “[...] entre mulheres de regiões sobre Direitos Humanos, na Convenção In-
geográficas, classes sociais e grupos indíge- teramericana para Prevenir e Punir a Tortura
nas e étnicos diferentes.” e pelo descumprimento do dever estabele-
cido no artigo 7º da Convenção Interameri-
A maioria das normas internacionais cana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-
que tratam dos direitos das mulheres não lência contra a Mulher. Nesse caso, a Corte

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expressamente reconheceu a violação dos discriminação de gênero e de etnia, estive-
direitos de uma mulher indígena com base ram à margem do feminismo e passaram a
na Convenção Interamericana para Prevenir, se organizar em movimentos próprios, que,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher além de pautarem os direitos relativos às
(Convenção de Belém do Pará). mulheres, também lutam principalmente
contra a opressão territorial e cultural. No
O caso Rosendo Cantú foi julgado pela Brasil, esse fenômeno passou a ser notado a
Corte Interamericana de Direitos Humanos partir dos anos 80 e hoje se estima que exis-
no ano de 2010. A vítima Rosendo Cantú tem cerca de 85 movimentos de mulheres
também era uma mulher indígena do povo indígenas de etnias diversas que se reúnem
Me’phaa e residia em local de difícil acesso. periodicamente em forma de grandes as-
Na época dos fatos, a Sra. Rosendo tinha 17 sembleias e marchas nacionais.
anos e tinha uma filha, tendo sido a senhora
Rosendo Cantú violentada “por militares do De modo a ultrapassar os limites e as
exército mexicano quando lavava roupas no fronteiras epistemológicas do movimento
rio” (2010, p. 169). feminista, o movimento de mulheres indí-
genas no Brasil tem alçado voos em termos
Conforme os pontos resolutivos da de mobilização coletiva em prol da visibili-
sentença, especialmente o item 3, a Corte dade e reconhecimento de suas especifi-
Interamericana reconheceu que o México cidades culturais e demandas que são, por
foi responsável por violar os direitos de in- sua própria essência, coletivas. Trata-se de
tegridade pessoa, dignidade e vida privada demandas e reivindicações coletivas que
previstos na Convenção Americana sobre devem e podem ser albergadas pelo direito
Direitos Humanos, na Convenção Interame- na perspectiva da interseccionalidade e in-
ricana sobre Tortura e também na Conven- tergeracionalidade, que são aportes teóricos
ção Interamericana para Prevenir, Punir e trazidos pelo direito da antidiscriminação.
Erradicar a Violência contra a Mulher.
Para nós, mulheres Karaí (brancas),
Ambos os casos demonstram a inter- entendermos as demandas e reivindicações
seccionalidade entre as normas protetivas do movimento das mulheres indígenas, faz-
das mulheres que, ainda quando não expli- -se necessário compreendermos que as vio-
citem elementos específicos quanto à ori- lências sofridas pelas mulheres indígenas
gem étnica, aplicam-se a todas elas, inclusi- inserem-se em um contexto de violência es-
ve às mulheres indígenas. trutural e violação de direitos humanos dos
povos indígenas; faz-se necessário realizar
6 Considerações Finais um exercício de alteridade-aprendizagem
com a escuta das demandas e reivindica-
Ao se observarem a construção e evo- ções coletivas das mulheres indígenas que
lução dos direitos das mulheres, verifica-se lutam pela vida de seus corpos-territórios-
que o movimento feminista, historicamen- -biomas. Essa luta pelo direito à vida das
te, teve e tem papel fundamental. No en- mulheres deve ser compreendida em uma
tanto, nem todas as mulheres sentiram-se concepção ampla, ou seja, é indissociável da
contempladas pelo feminismo, na medida luta pela existência enquanto povo, da luta
em que suas reivindicações extrapolavam pelo direito ao tekoha (território) e teko joja
os limites do gênero e abarcavam questões (vida em harmonia).
outras, fundamentais para suas sobrevivên-
cias em sociedades profundamente desi-
Referências
guais e discriminatórias como é a brasileira.
Essa questão, inclusive, é objeto de discus- AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São
são dentro do próprio feminismo, sobretudo Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
por iniciativa das mulheres negras a partir
da década de 80 e, nos dizeres de Cinzia ARTICULAÇÃO DAS MULHERES INDÍGENAS
Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser GUERREIRAS DA ANCESTRALIDADE (ANMI-
(2019, p. 29), somente “pela associação com GA). Reflorestarmentes de sonhos, afetos,
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Raffaela Cássia de Sousa


Mestranda em Direito e Poder Judiciário (ENFAM). Juíza Federal (TRF1).

Liana Amin Lima da Silva


Professora de Direitos Humanos e Fronteiras da Faculdade de Direito e Relações Internacionais e do Programa de
Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora em
Direito Socioambiental (PUCPR).

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