Você está na página 1de 160

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e seus diversos parceiros,


com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou


quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e


propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o
conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando livros para gente
postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de servidores e obras


que compramos para postar, faça uma doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim
evoluir a um novo nível."

eLivros .love

Converted by ePubtoPDF
subcapa
6ª Edição - Revisada © 2012 Sankirtana Associação Civil

Capa: Nārada Muni Dāsa (Mateus Dias).


Preparação e Revisão Técnica: Bhagavān Dāsa (Thiago Costa Braga).
Revisão: Prāṇa-vallabha Devī Dāsī (Celeste Gomes dos Santos), Prema-vardhana Devī Dāsī (Flávia
Acácio Reis).
Diagramação: Kṛṣṇa-kṛpā Devī Dāsī (Laura Dias).
Versão e-Book: 1.0 - 23.12.2017

Dados da Catalogação Internacional na Publicação (CIP)

D244y Dauster, Gustavo

Yoga Sutra de Patanjali: Uma Abordagem Prática / Gustavo Dauster; 

Pindamonhangaba: Sankirtana Books, 2012.

2200Kb, ePub.

ISBN 978-85-64775-07-7

1.Religião I. Título

CDD 200

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total deste ebook.

sankirtana-books

Visite-nos na internet:
www.bbt.org.br
www.pandavas.org.br
www.sankirtana.com.br

Fontes incorporadas para o sânscrito no alfabeto latino:


Palatino (pala.ttf)
Palatino Itálico (palai.ttf)
Palatino Negrito (palab.ttf)
Palatino Negrito Itálico (palabi.ttf)
Prefácio

No outono de 2004, o Dr. Howard J. Resnick ministrou um


curso sobre o Yoga-sūtra de Patañjali para um grupo de
adeptos de yoga, em San Luis Obispo, Califórnia, E.U.A. Esta
tradução do sânscrito ao inglês dos sūtras feita pelo Dr.
Resnick merece atenção especial devido às suas imensas
qualificações. Dr. Resnick é doutor em Sânscrito e Estudos
Indianos pela Universidade de Harvard. Ele já se ocupou na
tradução e comentário de outros importantes e difíceis
textos védicos, com destaque para seu trabalho em finalizar
a tradução do Śrīmad-Bhāgavatam, iniciada por Śrī Śrīmad
A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda. Esta tradução
comentada do Śrīmad-Bhāgavatam é a mais apreciada e
elogiada nos círculos acadêmicos em todo o mundo. Além
disso, Dr. Resnick é praticante dedicado de bhakti-yoga há
quase 40 anos, tendo viajado mundo afora treinando
pessoas em bhakti-yoga e palestrando sobre o assunto de
yoga e filosofia védica. Ele tem, portanto, um profundo
domínio e vivência dos conceitos e das práticas daquilo que
Patañjali apresenta no Yoga-sūtra. Sua apresentação do
Yoga-sūtra se destaca por sua clareza e praticidade,
desmistificando o texto e mostrando sua sempre atual
relevância para todos aqueles interessados em evoluir como
pessoas.
Introdução

Sūtra significa fio, linha, cordão etc. em sânscrito. O termo é


utilizado também para descrever um gênero literário da
cultura védica, cujo objetivo é ser extremamente conciso,
expondo o conhecimento da forma mais condensada
possível. Por essa razão, os sūtras tradicionalmente são
acompanhados por comentários. Existem sūtras sobre
filosofia, sacrifícios ritualísticos, regras de comportamento
(dharma) etc. O Yoga-sūtra descreve a essência do yoga –
elementos práticos, obstáculos, resultados intermediários e
seu objetivo final. A palavra sânscrita yoga vem da raiz
“yuj”, que significa “conectar, unir, juntar”. Ainda temos um
eco desta palavra em nosso vocabulário nas palavras
“conjugar”, “cônjuge” etc., em que o “jug” nada mais é que
uma versão fonética do termo “yug”. Esta palavra é
frequentemente usada nos textos filosóficos védicos com o
sentido mais profundo de “estar agindo da forma certa”,
“estar em sintonia” etc. (como no popular “estou ligado”).
Um exemplo disso é o uso repetido da palavra “yukta”
(conectado) no Bhagavad-gītā. Existem na Índia seis
filosofias ortodoxas clássicas. São consideradas ortodoxas
porque têm como base os textos védicos. Certos grupos
originários da Índia, como os jainistas e os budistas,
rejeitaram a autoridade dos textos védicos e buscaram
estabelecer seus próprios preceitos, literatura etc. Esses
seis grupos ortodoxos são aceitos no contexto daquilo que
chamamos atualmente de “hinduísmo”. Yoga é um desses
seis sistemas e existe em harmonia com um outro: sāṅkhya.
Yoga e sāṅkhya formam um conjunto. No Bhagavad-gītā
(5.4), Kṛṣṇa explica que apenas aqueles que são “infantis”
consideram haver diferença entre yoga e sāṅkhya. Kṛṣṇa
explica que, aperfeiçoando-se em uma, recebe-se o
benefício de ambas. Quem compreende perfeitamente
sāṅkhya atinge a perfeição do yoga, e quem atinge a
perfeição do yoga compreende sāṅkhya. “Sāṅkhya” vem da
raiz “san”, que significa “junto”, e “khya”, que significa
“narrar, explicar etc.”. A palavra “sāṅkhya” significa
“número ou enumerar”. Como sistema filosófico, então,
sāṅkhya enumera os princípios básicos da realidade,
analisando quais são as coisas fundamentalmente reais do
mundo. Ao longo do texto do Yoga-sūtra, Patañjali usa
muitos termos da filosofia sāṅkhya, os quais serão
explicados nos comentários seguintes, para facilitar a
compreensão do que está sendo dito. Patañjali escreve o
Yoga-sūtra aceitando a visão e descrição da realidade
apresentada no sistema sāṅkhya. Acredita-se que Patañjali
tenha vivido no início do primeiro milênio, logo após o
aparecimento de Jesus. Mas é compreendido, como ficará
claro logo no primeiro sūtra, que ele está ensinando algo
muito mais antigo, existente antes de sua época.
Primeira Parte

Samādhi-pāda
A Iluminação

1.1

atha yogānuśāsanam
Agora, aos ensinamentos do yoga.

"Atha” significa “agora” em sânscrito e é comumente


utilizado para iniciar um sūtra. Os comentadores explicam
que “agora” é utilizado no sentido de “agora que você está
pronto para um nível mais profundo de conhecimento ou
sabedoria”. A palavra “anuśāsana” é formada pelas
palavras “anu” e “śāsana”, sendo que “anu” significa
“seguir”, e “śāsana” significa “ensinamentos”. Com o uso
da palavra “anu”, entende-se que Patañjali não está
apresentando um ensinamento novo, nem está criando
algo, mas apenas explicando ensinamentos previamente
existentes. A palavra “śāsana” é também muito
significativa, pois a raiz da palavra, “śās”, significa
“comando, ordem”, de onde surge a palavra “śāstra”, que
significa “escritura sagrada, livro de Leis”. Ou seja, Patañjali
está dizendo que o que ele apresentará no Yoga-sūtra são
comandos atemporais transmitidos por mestres anteriores.
Ele, a seguir, apresentará o primeiro “anuśāsana”.

1.2
yogaś citta-vṛtti-nirodhaḥ
Yoga significa controlar as funções da mente.

A palavra “vṛtti” significa “modificações”, “transformações”,


“variações” ou “funcionamento”, e “citta”, “mente”.
“Nirodhaḥ” significa “parar”, “restringir” ou “controlar”.
Patañjali inicia seu trabalho com uma definição de yoga que
pode ser interpretada de duas maneiras. A primeira, comum
nas traduções mais populares do Yoga-sūtra, é que as
funções, as agitações e os fluxos da mente precisam ser
parados. Bastam alguns segundos de autorreflexão para
percebermos que nossa mente normalmente está “a mil por
hora”, pensando em inúmeras coisas, no passado, presente
e futuro, pulando de um assunto para outro
ininterruptamente. Yoga, então, visa encerrar esse processo.
Porém, uma análise mais ampla deste e dos outros sūtras,
como também um estudo mais profundo da filosofia
sāṅkhya por trás do Yoga-sūtra, nos mostrará que esta é
apenas metade do trabalho. Será necessário também
direcionar e utilizar a mente da maneira correta, e não
somente deter ou mesmo reduzir os fluxos da mente. É
importante entender que nos sūtras, e em outros textos
védicos clássicos, como os Upaniṣads, é comum o uso de
uma definição negativa para definir que o aspecto mundano
de determinada coisa não existe ou deve ser eliminado, mas
que existe e deve ser atingido o seu aspecto espiritual
(transcendental). Ou seja, mostra-se o aspecto a ser
rejeitado e o aspecto a ser aceito da mesma coisa. Por
exemplo, Patañjali usará a mesma palavra “vṝtti” nos sūtras
3.43 e 4.18 para indicar modificações ou transformações da
mente necessárias para o sucesso em yoga. Nos Upaniṣads,
podemos encontrar uma instrução do tipo “a Verdade não
pode ser descrita em palavras”, porém os Upaniṣads estão
cheios de palavras! Há textos afirmando que o Senhor não
tem forma, junto com outros que explicam que Ele tem uma
forma eterna. Esta é uma característica comum dos textos
de sabedoria védica. Portanto, não devemos interpretar este
sūtra como uma instrução para “desligar” a mente, mas,
sim, para obter controle da mente objetivando “desligar”
seu aspecto mundano e direcioná-la para fins espirituais. O
próximo sūtra descreve este estado a ser atingido.

1.3

tadā draṣṭuḥ svarūpe ‘vasthānam


Então o observador estará situado em sua natureza
real.

O  resultado de controlar as funções da mente será, então


(tadā), que a pessoa (draṣṭuḥ) estará situada (avasthānam)
em sua verdadeira posição (svarūpa). O termo técnico para
descrever esse eu é “draṣṭuḥ”, que significa “observador”.
Este termo será utilizado em toda a extensão do Yoga-sūtra,
passando a ideia prática e simples do que é um “ser
consciente”, com ênfase no aspecto técnico necessário para
a autorrealização. A palavra “svarūpa” é muito interessante
e frequentemente mal traduzida. “Sva” é simplesmente o
“sua” do nosso idioma, herdado sem modificação do
sânscrito. “Rūpa” é “forma”, utilizado comumente também
como “corpo”. Isso implica que temos uma forma eterna, ou
corpo eterno, que também significa uma natureza eterna –
um estado de existência pessoal real (transcendental). De
forma muito clara, Patañjali afirma que a perfeição do yoga
é existir em nossa natureza real com uma forma eterna, e
não perder nossa forma ou perder nossa natureza
individual, deixando de existir ou nos fundindo em alguma
luminosidade transcendental. Não há nada no Yoga-sūtra
que indique que, em algum estágio de nossa evolução,
perderemos nossa individualidade. Tampouco encontramos
tais descrições em outros textos importantes da filosofia
védica, como o Bhagavad-gītā, que enfaticamente explica e
afirma o contrário. Um exemplo perfeito disso é o mantra
2.1.12 do Kaṭha-Upaniṣad, que diz: “nityo nityānāṁ cetanaś
cetanānām/ eko bahūnāṁ yo vidadhāti kāmān”, que
significa: “Entre os muitos seres eternos e conscientes,
existe um que é mais importante, pois supre as
necessidades dos demais”.
Este sūtra nos leva a entender também que, ao não
estarmos situados em yoga, estaremos vivendo num estado
(identificação, natureza, ação, desejos, forma, corpo etc.)
ilusório. Isso será descrito no sūtra seguinte.

1.4

vṛtti-sārūpyam itaratra
Caso contrário, vivem-se as designações da mente.

Caso contrário (itaratra), assume-se a forma (sārūpyam) dos


processos mentais (vṛtti). Patañjali aqui apresenta duas
opções: não praticar yoga e assumir as designações e
situações mentais falsas (sūtra 1.4) ou praticar yoga e
atingir nosso estado eterno e real (sūtra 1.3). No sūtra 1.2, é
explicado que o termo “vṛtti” diz respeito tanto aos
processos mundanos quanto aos transcendentais. Aqui, o
sūtra 1.4 descreve o que acontecerá se não praticarmos
yoga, ficando claro que “vṛtti” se refere aos constantes
fluxos mentais mundanos a serem eliminados pelo
praticante. Patañjali está nos explicando que, quando não
controlamos nossos processos mentais, ficamos sujeitos aos
mesmos, vivendo a realidade de acordo com as noções
ilusórias da mente desgovernada. Esses processos mentais
(vṛtti) serão descritos a seguir.

1.5

vṛttayaḥ pañcatayaḥ kliṣṭākliṣṭāḥ


Existem cinco tipos de processos mentais, dolorosos
ou não:

1.6

pramāṇa-viparyaya-vikalpa-nidrā-smṛtayah
discernir, enganar-se, imaginar, sonhar e lembrar.

Cada um destes processos mentais será detalhado mais à


frente por Patañjali. O ponto importante a ser entendido é
que, obviamente, não se trata simplesmente de eliminar
estas coisas de nossa vida. Até mesmo “viparyaya”, que,
literalmente, significa “ir para trás”, poderá ser utilizado de
forma positiva em seu estado eterno (svarūpa). Patañjali
não poderia sequer ter escrito o Yoga-sūtra se não se
“lembrasse” do sânscrito e do que é yoga, tampouco deixou
de “discernir” sobre o que seria melhor escrever. A memória
será citada no sūtra 1.20 como sendo um dos elementos
usados para atingir a sabedoria e o avanço em yoga. No
Bhagavad-gītā* (verso 6.17), encontramos a descrição de
que o yogī necessita regular seus hábitos de dormir, e não
simplesmente deixar de dormir. É necessário ir mais a fundo
para compreender os aspectos positivos e negativos destes
cinco termos. Ou seja, teremos de entender até que ponto
estes processos mentais tornam-se um problema e de que
forma eles nos são úteis. Este é o sentido de “dolorosos ou
não” (kliṣṭākliṣṭāḥ), o que se mencionou no sūtra anterior.
Com um pouco de auto-observação e compreensão sobre o
assunto, pode-se constatar que, a cada instante, estamos
ocupados em um ou mais desses processos mentais.
*Recomendamos o Bhagavad-gītā Como Ele É, escrito por
A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda, da editora
Bhaktivedanta Book Trust (BBT).

1.7

pratyakṣānumānāgamāḥ pramāṇāni
Discernimento [é baseado no conhecimento obtido de
três fontes]: a percepção direta, a lógica e a
autoridade no assunto.

Aqui, Patañjali descreve a epistemologia védica, presente na


cultura védica desde tempos imemoriais e utilizada até os
dias de hoje. Este sūtra expande o primeiro item (pramāṇa)
citado no sūtra 1.6, que, literalmente, significa “aquilo pelo
qual algo é medido” e é normalmente traduzido como
“evidência” ou “prova”. Assim, como processo, pramāṇa
descreve o ato de julgar ou discernir o que é determinado
pelo conhecimento que aceitamos, criando as bases para
nossas metas, avaliações e escolhas.
Pratyakṣa significa evidência direta, ou o conhecimento
obtido pela observação (aquilo que chamamos hoje de
“conhecimento empírico”). Inclui-se nessa definição estar
experimentando algo com qualquer um de nossos sentidos.
Ao contrário do que se considera hoje, na cultura védica
pratyakṣa é considerado o meio menos confiável de se
obter conhecimento, uma vez que os sentidos (incluindo a
mente) são imperfeitos e sujeitos a erros e ilusão. Anumāna
significa o uso da lógica (indução e dedução), considerado
superior à percepção direta. Āgama é o conhecimento
recebido de uma autoridade reconhecida no assunto.
Tratando-se de conhecimento transcendental, este deve ser
transmitido pelas escrituras, ensinado pelo mestre e
praticado pelos sábios. Āgama é considerado na cultura
védica o meio infalível de obter conhecimento e, portanto, a
evidência mais perfeita. É habitual recorrermos a esse tipo
de fonte de conhecimento, seja na forma de um médico, um
mecânico, seja na forma de um advogado, nossos
professores etc. Esta forma de obter conhecimento é
também utilizada com eficácia por governos, tribunais de
justiça, universidades, empresas e assim por diante.
O praticante de yoga precisa estar sempre ciente do
pramāṇa que está utilizando, pois sua qualidade influencia
diretamente os demais aspectos da vida (e todos os demais
processos mentais). Por isso, este é o primeiro item da lista
de Patañjali.

1.8

viparyayo mithyā-jñānam atad-rūpa-pratiṣṭham


Enganar-se é ter uma percepção falsa, não baseada
na realidade.

Enganar-se é o segundo item da lista mencionada no sūtra


1.6. Vale ressaltar que a avaliação do que é falso ou do que
é real depende do pramāṇa empregado.
Com o tempo, o praticante de yoga experimentará que
conhecimentos ou coisas que aceitava como sendo
verdadeiros e reais tornam-se falsos e irreais e vice-versa,
na medida em que sua percepção se expande e se
aperfeiçoa.

1.9

śabda-jñānānupātī vastu-śūnyo vikalpaḥ


Imaginação é um conhecimento sem substância
baseado em palavras.

Este sūtra descreve o terceiro item do sūtra 1.6. A partir de


palavras, é possível mentalizar objetos, mesmo que não
existam. Se falarmos “unicórnio”, que significa “de um só
chifre”, estaremos nos referindo a um animal mitológico
com um único chifre. Mas nunca vimos um verdadeiro
unicórnio. Assim, o unicórnio não tem substância (vastu).
Toda obra de ficção utiliza palavras conhecidas para
descrever pessoas, lugares e ações que não têm realidade.
O praticante de yoga, porém, poderá usar palavras como as
contidas no Yoga-sūtra ou no Bhagavad-gītā – as quais, num
dado estágio de sua evolução espiritual, não possuem
substância (por falta de realização prática do que está
sendo descrito) – para estabelecer seu objetivo, empregar
uma metodologia e fortalecer sua determinação. Isto é
comparável a uma pessoa que escuta descrições atraentes
sobre um determinado destino turístico. Tal descrição cria o
desejo de visitar o local e de saber como chegar lá. A
pessoa conhece as palavras, entende do que se trata, mas o
lugar e o caminho ainda não são reais para ela, pois ela
nunca esteve lá. Porém, baseada em tais palavras, ela
segue o caminho, chega ao destino e, por fim, experimenta
o que foi descrito.
1.10

abhāva-pratyayālambanā vṛttir nidrā


Sonhar é um processo mental baseado na percepção
daquilo que não existe.

“Nidrā” significa “dormir”, mas, como processo mental


(vṛtti), o significado mais adequado é “sonhar”.
Diferentemente da imaginação, que é baseada em palavras
ouvidas, no sonho temos a percepção direta de algo que
não existe (abhāva). Por outro lado, não é inteiramente
incomum a experiência de sonhos que trazem experiências
muito concretas. Existem relatos, em muitas tradições, de
pessoas santas ou yogīs que experimentam importantes
visões ou experiências transcendentais durante o sonho, ou
seja, experiências de coisas que externamente não existem,
mas que, nem por isso, deixam de ser reais ou válidas.

1.11

anubhūta-viṣayāsaṁpramoṣaḥ smṛtiḥ
Lembrar é não se livrar de uma percepção.

O  quinto e último item da lista do sūtra 1.6, “lembrar”, é


descrito aqui. Como nos demais sūtras, a descrição é bem
simples e técnica. A palavra “viṣaya” significa um objeto de
percepção (objeto dos sentidos). “Aṁpramoṣa” significa
“não se livrar”, e “anubhūta” significa “aquilo que foi
experimentado”.
Podemos ficar presos nas experiências do passado,
incapazes de nos livrar de certos condicionamentos e
emoções, o que impede nosso avanço ou a evolução de
nossa consciência. Por outro lado, existe a lembrança de
fatos, experiências e emoções de outra natureza
(transcendental), que nos ajuda a progredir no caminho do
yoga e que faz parte da perfeição do yoga.

1.12

abhyāsa-vairāgyābhyāṁ tan-nirodhaḥ
Estes processos são controlados através da prática e
do desapego.

Tendo percorrido os cinco principais processos da mente


(sūtras 1.6-1.11) e tendo explicado por que é necessário
controlá-los (sūtra 1.2), Patañjali agora explica como isso é
possível. “Abhyāsa” significa, literalmente, repetição, mas
implica prática regular. “Vairāgyābhyāṁ” significa
desapegar ou desapaixonar-se.

1.13

tatra sthitau yatno ‘bhyāsaḥ


Prática significa empreender esforço.

1.14

sa tu dīrgha-kāla-nairantarya-sat-kārāsevito dṛḍha-bhūmiḥ
Atinge-se uma posição segura ao cultivar essa
prática de forma fiel e ininterrupta, por longo tempo.
Os sūtras 1.13 e 1.14 descrevem o que é abhyāsa. Patañjali
está nos dizendo que a perfeição do yoga não é algo barato.
Será necessário grande esforço (que implica mais do que
meros processos mecânicos), feito de forma pura (“sat-
kārā” significa literalmente “correto”, “honroso”, “fiel”), sem
interrupções (nairantarya) e ainda por longo tempo (dīrgha-
kāla)! Quem está trilhando esse caminho sabe muito bem o
quão verdadeira é essa afirmação. Qualquer tentativa de
trilhar o caminho do yoga sem esse grau de abhyāsa
certamente trará poucos resultados.

1.15

dṛṣṭānuśravika-viṣaya-vitṛṣṇasya vaśī-kāra-saṁjñā
vairāgyam
Desapego é definido como o controle obtido por não
desejar os objetos dos sentidos, vistos ou descritos.

Patañjali agora descreve a segunda metade do sūtra 1.12,


explicando o que é desapego (vairāgya). Desapego significa
o controle obtido (“vaśī-kāra-saṁjñā”, o que também pode
ser entendido como “estar em controle de si mesmo, e não
controlado pelos desejos”), fruto de não estar sedento
(“vitṛṣṇasya” literalmente significa “não ter sede por algo”,
no sentido clássico de não desejar) pelos objetos dos
sentidos (viṣaya), tanto aqueles que conhecemos por
experiência direta (vistos) como os que ouvimos falar
(dṛṣṭānuśravika). Este termo “dṛṣṭānuśravika” é comum nos
textos de sabedoria védica, pois criamos apegos e desejos
não somente em relação a coisas que conhecemos
diretamente, mas também em relação a coisas das quais
somente ouvimos falar. Por isso, é enfatizada em outros
textos clássicos sobre yoga, como o Bhagavad-gītā, a
importância de ouvirmos constantemente sobre a vida
espiritual e a transcendência, pois assim poderemos
desenvolver um saudável apego e desejo por tais coisas, os
quais combaterão diretamente os perigosos apego e desejo
por objetos dos sentidos mundanos. Tendo explicado os dois
termos do sūtra 1.12, agora Patañjali nos explica que há
algo ainda mais importante do que prática e desapego.

1.16

tat-paraṁ puruṣa-khyāter guṇa-vaitṛṣṇyam


Além disso, ao saber da existência da Pessoa, livra-se
de todos os desejos mundanos.

“Puruṣa” significa literalmente “pessoa”. Este é um termo


central da filosofia sāṅkhya, que se refere à pessoa
individual transcendental, à alma, ao ser vivo eterno ou, em
outras palavras, “o eu”. “Puruṣa” também se refere a Deus,
e, nesse sentido, encontramos o termo “parama-puruṣa”, ou
“suprema pessoa”, também traduzido como “Suprema
Personalidade de Deus”. No sūtra 1.24, Patañjali utilizará o
termo “puruṣa-viśeṣa” (“pessoa especial” ou “pessoa
distinta”) para descrever o Senhor. Mas aqui Patañjali está
enfatizando a pessoa individual transcendental. “Khyāter” é
derivado da raiz “khyā”, que significa “declarar, perceber,
descobrir” e, dessa forma, significa “por causa desse
declarar, perceber e descobrir”. A raiz “khyā” também traz
a conotação de fama e glória – no sentido de se referir a
algo glorioso e muito importante. Ou seja, ao possuirmos
conhecimento de importantes fatos sobre nosso eu eterno e
sobre nossa verdadeira posição como centelhas divinas,
ficamos livres de desejos materiais (guṇa-vaitṛṣṇyam).
“Guṇa” é outro termo importante da filosofia sāṅkhya e se
refere aos elementos ou qualidades subatômicas
fundamentais que sustentam a realidade material.
Novamente, aqui é utilizado o termo “vaitṛṣṇyam”, no
sentido de “não desejar”.
Patañjali declara, portanto, que é pelo conhecimento de
nossa existência como pessoa eterna e transcendental que
ficamos totalmente livres das garras dos desejos mundanos.
Infelizmente, praticamente todas as traduções e
comentários do Yoga-sūtra, como também praticamente
todos os professores de yoga da atualidade, nos levam a
entender o contrário disto, ao afirmar que o objetivo final do
yoga é perder a nossa individualidade, deixando de existir
ou fundindo-nos na transcendência. Não é isto o que a
filosofia sāṅkhya autêntica nos ensina e não é isso que
Patañjali claramente explica aqui. É justamente por
regozijarmo-nos no conhecimento de nossa existência
pessoal transcendental que atingimos a perfeição do yoga.

1.17

vitarka-vicārānandāsmitā-rūpānugamāt saṁprajñātaḥ
O completo estado de conhecimento é atingido
através de análise, reflexão, bem-aventurança,
 individualidade e beleza.

“Asmi” significa literalmente “eu sou”, e “tā” é o estado de


ser. Portanto, “asmita” significa “estar vivendo sua
individualidade” ou “plena vivência da existência pessoal”.
Aqui, Patañjali enfatiza novamente a questão da
individualidade pessoal eterna ao qualificá-la como um dos
cinco componentes necessários para a obtenção de
conhecimento perfeito ou plena consciência. Ao incluir
“ānanda” (bem-aventurança, prazer transcendental) na
lista, Patañjali nos indica qual é o nosso estado perfeito de
existência. Outros textos védicos confirmam esta
informação, explicando que somos, por natureza,
constituídos de sac-cid-ānanda, ou eterna bem-aventurança
e conhecimento. E, ao incluir “beleza”, Patañjali nos indica
uma vida em variedade transcendental com formas
transcendentais. Outros textos mais confidenciais da cultura
védica, como o Śrīmad-Bhāgavatam, nos descrevem essa
variedade e beleza transcendental em grande detalhe.
Pratica-se yoga para reviver essa realidade.

1.18

virāma-pratyayābhyāsa-pūrvaḥ saṁskāra-śeṣo ‘nyaḥ


Outros têm como prática primária o cessar, deixando
apenas os condicionamentos sutis.

Como o Yoga-sūtra é um tratado científico, Patañjali aqui


descreve a prática (abhyāsa) seguida por outros praticantes
de yoga, a qual é diferente daquela apresentada até o sūtra
1.17. A análise de Patañjali, no entanto, indica que o mero
cessar (virāma) das atividades mentais é uma prática
inferior à descrita anteriormente, porque o praticante não se
livra do registro subliminar dos processos mentais
(saṁskāra). Isto se compara a algo como obter a cura de
uma doença, mas ainda ficar com uma cicatriz ou sequela.
Neste caso, o yogī teria então de continuar seus esforços
para obter a pureza total de consciência.
O próximo sūtra descreverá mais outro tipo de praticante de
yoga.
1.19

bhava-pratyayo videha-prakṛti-layānām
Outros, ainda com a consciência mundana, obtêm um
corpo celestial.

“Videha-prakṛti” refere-se a um corpo elevado, feito de


energia material sutil (não grosseira). Os textos védicos
contêm muitas descrições sobre a vida em outros planetas,
incluindo a vida em planetas celestiais (svarga), onde o
padrão de prazer material é milhares de vezes superior ao
terreno. Existia, assim, toda uma cultura dirigida à obtenção
de um nascimento elevado ao abandonar o corpo humano
atual. Patañjali usou o termo “bhava-pratyayaḥ”
(conscientes desse mundo) para enfatizar que tais
praticantes de yoga ainda não estão objetivando a
transcendência. Além do mais, transcendentalistas como
Patañjali alertam que, em última análise, tal esforço é em
vão, pois, mesmo nos planetas celestiais, a vida não é
eterna, e a morte ainda existe, forçando estas pessoas a
renascerem na Terra. O Bhagavad-gītā também contém este
mesmo alerta de forma bastante explícita, instruindo-nos a
resolver o problema de uma vez por todas ao buscarmos a
plena autorrealização, ou seja, buscando a verdadeira
perfeição em yoga.

1.20

śraddhā-vīrya-smṛti-samādhi-prajñā-pūrvaka itareṣām
Outros priorizam [em suas práticas] fé, vigor,
memória, transe e sabedoria.
“Samādhi” é o termo que descreve o último estágio de
yoga, mas aqui é mencionado como uma técnica, ou prática
de yoga, sendo, por isso, traduzido como “transe”. Mais
adiante, veremos maiores detalhes e graduações dessa
perfeição. “Prajñā” refere-se à sabedoria necessária para
atingir a perfeição do yoga. “Vīrya”, aqui traduzido como
“vigor”, significa também “força”, “habilidade” e
“coragem”. Como mencionado nos sūtras 1.6 e 1.11, a
memória (smṛti) é imprescindível tanto no caminho quanto
no estágio perfeito do yoga. O Bhagavad-gītā explica que,
sem memória, perdemos a inteligência.
Nem todos os praticantes de yoga estão em busca do
objetivo máximo. Os sūtras 1.18, 1.19 e 1.20 explicam esse
fato e mostram o que esses praticantes buscam. Nota-se
que foram apresentados níveis sucessivamente inferiores de
yoga. Até o sūtra 1.17, foram descritos o aspecto e o
objetivo mais elevados recomendados por Patañjali. Depois,
o sūtra 1.18 descreveu um estado ainda elevado (porém
incompleto) de total cessar dos processos mentais
mundanos. Já o sūtra 1.19 mencionou um yogī materialista,
desejando uma vida celestial. E o sūtra 1.20, ainda inferior,
descreve um yogī que objetiva apenas algumas qualidades
positivas, obteníveis neste corpo humano. Podemos
perceber essa mesma variedade de objetivos entre os
praticantes de diferentes caminhos espirituais ou tradições
religiosas nos dias de hoje.

1.21

tīvra-saṁvegānām āsannaḥ
[A perfeição do yoga] está próxima para aqueles que
são veementemente determinados.
“Tīvra-saṁvegāna” significa “veemência determinada”,
“força intensa”. Esta é uma expressão com sentido muito
forte em sânscrito, enfatizando a absoluta intensidade da
prática. “Āsanna” significa literalmente “sentado”, o que,
neste verso, adquire o sentido de “estar numa boa posição”
ou, em outras palavras, estar muito perto do objetivo
almejado.

1.22

mṛdu-madhyādhi-mātratvāt tato ‘pi viśeṣah


Há distinções [de intensidade de prática]: suave,
moderado e extremo.

Aqui, Patañjali expande o sentido do sūtra anterior,


afirmando que a proximidade da perfeição dependerá não
somente da determinação, mas também do nível de prática
efetivamente adotado. O termo “adhi-mātratvāt” é
traduzido como “extremo”, mas com uma conotação
positiva de “excelência”, “máximo esforço” ou “entrega
total”. “Madhya” significa “mediano” ou “intermediário”.
“Mṛdu”, traduzido como “suave”, significa literalmente
“macio” ou “leve” (algo parecido com nosso uso coloquial
de “mole” ou “light” para descrever a intensidade de
alguma coisa ou pessoa).
A partir de agora, nos sūtras de 1.23 a 1.32, Patañjali
introduzirá o termo “īśvara” (o Senhor), enfatizando a
importância da dedicação ao mesmo para o praticante de
yoga.

1.23
īśvara-praṇidhānād vā
Ou [atinge-se a perfeição] através da devotada
meditação no Senhor.

A  palavra “īśvara” significa “mestre”, “senhor”, “rei”,


“Deus” ou “Ser Supremo”. “Praṇidhāna” significa “conduta
respeitosa”, “prestar atenção”, “meditação religiosa”,
“veemente desejo”, “contemplação abstrata” e “oração”. E
“vā” é simplesmente “ou”, referindo-se a “saṁprajñātaḥ”
(perfeição do conhecimento ou o mais elevado estado de
consciência), introduzido no sūtra 1.17.
Como mencionamos na Introdução, o Yoga-sūtra é o livro
base do yoga como uma das seis escolas filosóficas
tradicionais védicas, formando par com outra, sāṅkhya. Ao
enumerar os “ingredientes” da realidade, a filosofia sāṅkhya
inclui elementos metafísicos, tais como a alma individual e
Deus. Ao falar sobre īśvara, Patañjali não está “pregando”
qualquer tipo de religião. Ele não está querendo convencer
ninguém sobre qualquer prática religiosa, nem entrará em
maiores detalhes sobre a transcendência, a vida eterna, o
relacionamento entre o ser vivo e Deus, descrições sobre
Deus etc. Isto é revelado em outra escola filosófica
tradicional védica, conhecida como vedānta (que significa
“o conhecimento final”), cujo texto definitivo é o Śrīmad-
Bhāgavatam. O Yoga-sūtra funciona mais como um livro no
estilo “autoajuda”, ou um guia prático para ajudar o leitor a
ser a melhor pessoa possível. Como pode ser visto até este
ponto, o foco maior do Yoga-sūtra é o psicológico, no
sentido de obter um maior controle sobre os processos
mentais, eliminando seus aspectos destrutivos ou
desfavoráveis e reforçando os positivos e favoráveis, com o
objetivo de atingir paz e bem-aventurança. Até mesmo a
questão dos āsanas, ou posturas, que são o ponto de
partida para muitos praticantes de yoga hoje em dia, é
pouco discutida no Yoga-sūtra, pois, na cultura védica, em
geral entende-se que o trabalho maior a ser feito é o
interno, que é aperfeiçoar e purificar a consciência, uma vez
que, embora estejamos no corpo, não somos o corpo.
Apesar de o yoga incluir aspectos externos, como posturas,
e aspectos profundamente internos, como devoção ao
Senhor, o Yoga-sūtra manterá o foco nos aspectos
intermediários (referentes ao funcionamento da mente).
Seria como ensinar a dirigir um carro, mas sem explicar
mecânica automotiva ou os diferentes destinos para onde o
carro pode nos levar. Por isso, Patañjali indica a relevância e
eficácia do aspecto devocional sem, contudo, aprofundar-se
no tema.

1.24

kleśa-karma-vipākāśayair aparāmṛṣṭaḥ puruṣa-viśeṣa


īśvarah
O Senhor é uma pessoa distinta, intocado por
problemas, karma, consequências materiais e
condicionamentos.

Este sūtra qualifica o termo “īśvara” para que não haja


dúvida sobre seu sentido, nem confusão sobre sua natureza.
Existem algumas interpretações do Yoga-sūtra que induzem
à crença de que “somos Deus” ou que podemos nos tornar
Deus através do yoga. Patañjali aqui elimina definitivamente
esse engano, ao enfatizar que o Senhor é uma pessoa
distinta (puruṣa-viśeṣa).
O Senhor é aqui também descrito como aparāmṛṣṭaḥ, que,
literalmente, significa “intocado” ou “incorrompido” por
elementos materiais, como: kleśa (problemas, dificuldades,
sofrimentos), karma (limitações impostas por ações prévias,
ou “destino”), “vipāka” (resultado de ações prévias, que
surgem a cada momento) e “āśayaiḥ” (estoque de reações
prévias ainda a serem vividas, ou “condicionamento”). Aqui,
então, está outra importante diferença entre o Senhor e os
demais seres vivos individuais, os quais se encontram, sem
exceção, completamente emaranhados em problemas,
karma, consequências materiais e condicionamentos. O
caminho do yoga é justamente a técnica para nos livrarmos
de tudo isso.

1.25

tatra niratiśayaṁ sarva-jñatva-bījam


Nele está a insuperável semente da onisciência.

Nele (“tatra” significa “lá”), está a semente (“bīja”, no


sentido de “eterna renovação”, “fonte”) insuperável
(“niratiśaya”, no sentido de que não há outra superior) da
onisciência (“sarva-jñatva”, que, literalmente, significa
“todo o conhecimento”). Patañjali está aqui afirmando que
nossa habilidade de saber qualquer coisa ou de obter
qualquer conhecimento vem do Senhor. No Bhagavad-gītā,
no verso 15.15, existe uma declaração idêntica,
acrescentando que nosso poder de lembrar e esquecer
também vêm do Senhor.

1.26

sa pūrveṣām api guruḥ kālenānavacchedāt


Por não ser limitado pelo tempo, Ele é o guru mesmo
dos anciãos.

Encontramos esta mesma descrição no início do capítulo


quatro do Bhagavad-gītā. A afirmação védica é que o
Senhor é a autoridade máxima para todo tipo de
conhecimento, em especial os de natureza metafísica.
Existem repetidas descrições nos Purāṇas (textos históricos
védicos) de Suas vindas, em diferentes milênios e diferentes
planetas, para reapresentar o conhecimento sobre a
natureza da realidade. Há uma lógica indiscutível na
afirmação de que o Senhor (īśvara) é o guru, ou mestre,
mesmo dos anciãos (no sentido de “aqueles que são os
mais sábios”). Primeiramente porque, como afirmado no
sūtra anterior, o Senhor é a fonte de todo conhecimento.
Segundo, porque os métodos de pesquisa direta para a
obtenção de conhecimento serão válidos somente quando
tratam de algo que pode ser controlado pelo pesquisador.
Isto nos remete novamente ao assunto de epistemologia,
tratado no sūtra 1.7. Se quisermos obter conhecimento
sobre assuntos que não estão sob nosso direto controle
(como os aspectos metafísicos da realidade ou Deus), o
único meio é recebê-los de uma autoridade no assunto, a
qual, comprovadamente, os tenha recebido de Deus
(normalmente por meio das escrituras reveladas e com a
ajuda de um mestre espiritual). Este conhecimento,
evidentemente, é propriamente compreendido pelo uso de
nossa lógica (anumāna) e em conformidade com nossas
observações diretas (pratyakṣa). Evita-se, deste modo, toda
sorte de especulação inútil sobre tais assuntos, como
também o misticismo barato, que muito tem contribuído
para confundir as pessoas e desencorajá-las da busca
espiritual.

1.27
tasya vācakaḥ praṇavaḥ
Sua fala é a sílaba “Oṁ”.

O “praṇava”, ou sílaba “oṁ”, é a vibração sonora básica da


transcendência, ou do divino, na cultura védica. Como
mencionado anteriormente, Patañjali está propositadamente
usando termos simples ou genéricos para descrever Deus.
Outros textos védicos descrevem em grande detalhe a “fala
de Deus”. O Bhagavad-gītā, por exemplo, significa “canção
(ou fala) de Deus”, pois contém Suas palavras, as quais
explicam o yoga e a transcendência em maior detalhe do
que aqui contido no Yoga-sūtra.

1.28

taj-japas tad-artha-bhāvanam
Entoando-o, compreende-se seu significado.

A meditação mântrica (japa) é um processo central do yoga.


Justamente por ser um processo muito poderoso, capaz de
afetar profundamente a consciência, não é recomendável
inventar um mantra, tampouco escolher um mantra
caprichosamente. O processo védico recomendado é
aproximar-se de um mestre espiritual e receber dele o
mantra, juntamente com as demais recomendações e
práticas auxiliares.

1.29

tataḥ pratyak-cetanādhigamo ’py antarāyābhāvaś ca


Daí se obtém realização interna e os obstáculos
deixam de existir.

Patañjali aqui glorifica a prática da meditação mântrica


(japa). Ele explica que a prática de japa conduz a dois
efeitos simultâneos: elevação da consciência (até o nível de
realização) e remoção dos obstáculos à transcendência.
Neste sūtra, ele introduz o assunto dos obstáculos que o
praticante de yoga deverá encontrar, os quais serão
descritos nos sūtras seguintes.

1.30

vyādhi-styāna-saṁśaya-pramādālasyāvirati-bhrānti-
darśanālabdha-bhūmikatvānavasthitatvāni citta-vikṣepās te
‘ntarāyāḥ
Os obstáculos que distraem a mente são: doença,
apatia, dúvida, descuido, preguiça, falta de
desapego, visão errônea, não obter uma posição
segura e falta de firmeza.

1.31

duḥkha-daurmanasyāṅgam-ejayatva-śvāsa-praśvāsā
vikṣepa-saha-bhuvaḥ
Miséria, melancolia, tremor e dificuldade respiratória
acompanham essas distrações.
1.32

tat-pratiṣedhārtham eka-tattvābhyāsaḥ
Para se livrar destas distrações, existe a prática da
verdade única.

“Tattva”, que significa “verdade”, é um termo importante


na filosofia védica em geral, que significa “um princípio
irredutível ou fundamental da realidade”. Os três princípios
mais importantes são: alma, Deus e energia material. Aqui,
então, Patañjali diz que, se “praticarmos uma única
verdade” (eka-tattvābhyāsa), nos livraremos das distrações
e misérias listadas nos sūtras 1.30 e 1.31. Como o assunto
desta seção (que termina com este sūtra) é īśvara, podemos
entender que ele está enfatizando que, ao meditarmos
puramente em Deus, que é também conhecido nos textos
védicos como a “Verdade Absoluta”, atingiremos a perfeição
que nos livrará de todo o sofrimento.

1.33

maitrī-karuṇā-muditopekṣaṇāṁ sukha-duḥkha-puṇyāpuṇya-
viṣayāṇāṁ bhāvanātaś citta-prasādanam
Desenvolve-se clareza e paz mental ao cultivar
amizade com pessoas felizes, misericórdia com as
pessoas infelizes, prazer na piedade e negligência da
impiedade.

Este sūtra é o início de um novo bloco, que se estenderá até


o final desta primeira parte, cujo tema é a clareza e paz
mental (citta-prasādana).
O sūtra é comumente mal traduzido, porque, na verdade,
apresentam-se duas listas de três itens, que formam três
pares, e não apenas duas listas que apresentam seis itens
distintos, para obtenção da consciência clara e pacífica.
O primeiro par diz que devemos desenvolver amizade
(maitrī) com “pessoas felizes” (sukha). Aqui, o termo
“pessoas felizes” possui um sentido mais profundo, de
verdadeira felicidade existencial, fruto da piedade e da
consciência pura, e não do prazer sensorial. Isto significa
que devemos buscar a companhia de pessoas com hábitos
puros e elevada consciência. Esta afirmação é muito
enfatizada e repetida em vários textos védicos como sendo
de suma importância para nosso bem-estar.
O segundo par diz que devemos cultivar a misericórdia
(karuṇā) com quem é infeliz (duḥkha). Não há sentido em
sermos misericordiosos com alguém que esteja bem ou
melhor situado do que nós. A misericórdia é algo a ser
direcionado a quem esteja numa posição inferior. Assim,
caso entendamos que ainda estamos “infelizes” ou, em
outras palavras, não evoluídos em consciência, poderemos
procurar a misericórdia de quem está mais avançado nesse
sentido, o que, novamente, nos leva à importância de
buscar a companhia de pessoas avançadas espiritualmente.
O terceiro e último par diz que devemos ter prazer em agir
de forma piedosa e evitar toda e qualquer ação que possa
ser classificada como impiedosa. Hoje em dia, a piedade
(compaixão, moralidade, ética etc.) está em baixa e é pouco
valorizada como meio de se tornar uma pessoa melhor, mas
o fato é que cultivar a piedade (puṇya) e evitar a impiedade
(apuṇya) são meios importantes para purificar e elevar a
consciência. Esta afirmação de Patañjali é universalmente
confirmada por diversas tradições de sabedoria.
1.34

pracchardana-vidhāraṇābhyāṁ vā prāṇasya
Ou através da retenção da inspiração e da expiração.

Este sūtra demonstra bem a natureza abrangente do Yoga-


sūtra. Patañjali, em um sūtra, enfatiza que, para atingir
estados elevados de clareza e paz mental, são necessários
ajustes muito éticos e nobres no nosso comportamento e,
no sūtra seguinte, diz que o mesmo resultado pode ser
obtido por um meio puramente mecânico, ou seja, por
exercícios de respiração. O Yoga-sūtra é muito moderno
nesse sentido, levando em consideração que cada indivíduo
tem sua bagagem cultural e gosto, e, assim, diferentes
caminhos serão mais atraentes e válidos, num dado
momento, para diferentes pessoas.

1.35

viṣayavatī vā pravṛttir utpannā manasaḥ sthiti-nibandhinī


Ou ao manter a mente fixa quando surgem atividades
sensoriais.

Aqui, Patañjali apresenta mais uma opção, muito fiel à


prática de yoga – o constante controle da mente,
impedindo-a de se agitar devido ao contato dos sentidos
com os objetos dos sentidos. Este deve ser um trabalho
constante do praticante de yoga.

1.36
viśokā vā jyotiṣmatī
Ou quando essas atividades são iluminadas e sem
tristeza.

Continuando o sūtra anterior, Patañjali explica que um yogī


também pode agir (pravṛtti), desde que a ação seja de duas
qualidades básicas: viśokā (destituída de tristeza ou de
lamentação) e jyotiṣmatī (iluminada, cheia de luz). Esta
questão é muito importante e bastante enfatizada também
no Bhagavad-gītā, pois define um aspecto prático do yoga,
eliminando a falsa percepção de que yoga, controle da
mente, perfeição mística ou a perfeição espiritual são
atingidos unicamente por se sentar e meditar em algum
lugar afastado. De fato, o yoga nos ensina a agir de forma
perfeita em qualquer circunstância – seja neste mundo, seja
nos planetas celestiais, seja no mundo espiritual. E não
importa quem sejamos agora – operários, comerciantes,
administradores, acadêmicos –, pois todos podem agir em
yoga. As mudanças profundas decorrentes da prática de
yoga acontecem internamente. As mudanças externas são
meras consequências. Este sūtra mostra quais são os sinais
desta mudança interna, descrevendo as atividades do yogī
bem-sucedido como sempre “iluminadas e livres de
lamentação”.

1.37

vīta-rāga-viṣayaṁ vā cittam
Ou quando a mente se fixa em objetos livres de
paixão.
Aqui, “vīta-rāga-viṣaya” (ter a mente fixa em objetos livres
de paixão) significa viver uma vida pacífica, escolhendo a
companhia de pessoas tranquilas, morando em lugares
calmos etc.

1.38

svapna-nidrā-jñānālambanaṁ vā
Ou [quando a mente se fixa] em conhecimento obtido
do sono ou sonho.

Patañjali aqui se refere ao trabalho de buscar clareza e paz


mental através da análise e compreensão dos sonhos, ou
através de alguma experiência iluminadora obtida durante o
sono.

1.39

yathābhimata-dhyānād vā
Ou através da meditação escolhida.

Aqui, “yathābhimata” significa literalmente “de acordo com


a escolha ou a preferência do praticante”. Isto, porém, não
deve ser algo caprichoso ou aleatório, devendo estar de
acordo com as variedades autorizadas de meditação. Ou
seja, neste estágio de obter clareza e paz mental, há
possibilidade de escolha, mas não significa que qualquer
meditação inventada surtirá efeito. Nesta, como em
qualquer outra prática, especialmente metafísica, é
necessário procurar quem entende do assunto, quem está
praticando algo com longa tradição e/ou indiscutíveis
resultados e então aprender e praticar, seguindo seus
passos.

1.40

paramāṇu parama-mahattvānto ’sya vaśīkāraḥ


Aquele que atingiu esse estado [de perfeita clareza e
paz mental] domina do menor ao maior.

Este sūtra é o primeiro, dentre outros que surgirão no Yoga-


sūtra, que explica os siddhis, ou perfeições místicas, obtidos
no caminho do yoga. Siddhis são poderes adquiridos através
do controle da mente e da força vital. “Paramāṇu” é um
termo que significa “átomo” nos textos védicos. E “parama-
mahattvā-ntaḥ” refere-se a “supremamente grande”.
Um dos significados desse poder é o de simplesmente
“dominar-se”, “obter controle de si mesmo” no sentido de
não mais ser influenciado, não mais ser vitimado pelos
impulsos ou desejos que surgem do contato com as coisas
(das menores às maiores). Ou seja, clareza e paz mental são
sinônimas de autocontrole.

1.41

kṣīṇa-vṛtter abhijātasyeva maṇer grahītṛ-grahaṇa-grāhyeṣu


tat-stha-tad-añjanatā samāpattiḥ
Quando os processos mentais são controlados,  a
mente se torna como uma excelente joia que,
naquele que percebe, na percepção e no percebido, é
colorida por aquilo que está próximo. Isto é a
meditação bem-sucedida. 

A  mente é um instrumento para o ser vivo. Nos Vedas, a


mente é chamada de sexto sentido, pois controla os outros
cinco. Em um estado já avançado de yoga, a mente se torna
como uma joia pura, pois não interfere nem distorce a
informação que a ela chega, permitindo que a alma ou
consciência perceba a realidade exatamente como ela é.
Igualmente, a pureza da mente permite que os impulsos do
eu sejam perfeitamente direcionados aos sentidos. Em
outras palavras, atinge-se um grau avançado de
objetividade real e controle sensorial, o qual permite que o
ser vivo aja de maneira iluminada e centrada, não mais
sendo influenciado ou confundido por processos mentais
espúrios.
Este estágio que está sendo descrito agora e que será ainda
mais explicado nos sūtras seguintes, descreve um
praticante que já venceu os condicionamentos do corpo, ou
seja, um yogī que já não é mais vítima das demandas da
luxúria, da ganância, dos diferentes objetos dos sentidos
etc. Neste estágio, o yogī está lidando apenas com os
resquícios mentais mundanos, basicamente na forma dos
instrumentos que ele utilizou para chegar até este ponto,
em especial a razão e a reflexão.
O termo central aqui é “samāpatti”, que significa,
literalmente, “completa unificação”, no sentido de que o
objeto de meditação e o meditador estão perfeitamente
unificados. A tradução utilizada foi “meditação bem-
sucedida”, no sentido prático de que este é o estado
máximo da prática de meditação.
1.42

tatra śabdārtha-jñāna-vikalpaiḥ saṁkīrṇā sa-vitarkā


samāpattiḥ
Quando esta meditação bem-sucedida contém
 imaginações baseadas nos significados de palavras,
 ela é chamada de meditação bem-sucedida  com
dúvidas especulativas.

Aqui, “vitarka” significa “conjectura”, “dúvida” ou


“incerteza”. Neste nível de meditação, os processos mentais
espúrios foram conquistados, porém, para se chegar a esse
estágio, foi utilizada a inteligência, a qual certamente fez
uso de palavras ou diálogos internos. Assim, ficam ainda os
resquícios desse processo baseado em palavras. Por isso, a
mente do praticante (sua consciência) ainda não está em
um estado completamente puro de percepção.

1.43

smṛti-pariśuddhau svarūpa-śūnyevārtha-mātra-nirbhāsā
nirvitarkā
Quando a memória está plenamente  purificada e
somente os objetos da percepção se destacam
luminosamente, a meditação bem-sucedida está sem
identificação  própria e sem dúvidas especulativas.

Aqui, é descrito um nível superior de consciência


(“nirvitarkā”, ou seja, “sem conjectura, dúvida ou
incerteza”). Isto acontece quando nossa memória está
completamente purificada (smṛti-pariśuddhau), não mais
guardando condicionamentos ou resquícios dos processos
que foram utilizados para chegar a este ponto. Quando isso
acontece, as coisas são vistas exatamente como são (ārtha-
mātra-nirbhāsā), uma vez que a mente não mais impõe sua
forma aos pensamentos e percepções (“svarūpa-śūnya”
significa literalmente “sem forma”). Isso é algo comparável
a usar óculos que são tão perfeitos (transparentes, zero
peso, zero interferência) que nem se percebe quando estão
sendo usados – porém, vemos tudo perfeitamente. É este
estágio de pureza de consciência que se busca no yoga.

1.44

etayaiva sa-vicārā nirvicārā ca sūkṣma-viṣayā vyākhyātā


Apenas assim fica explicada a meditação com ou sem
reflexão sobre um objeto sutil.

O  termo utilizado nos sūtras 1.43 e 1.44 foi “tarkā”, que


significa “razão”, ou “lógica”. Foram descritos dois estágios
de “samāpatti” (meditação ou consciência), um com tarkā,
e outro sem tarkā. Explicou-se que essa é uma forma de
descrever o uso da razão, da inteligência (sa-vitarkā), para
nos livrarmos dos processos mentais espúrios. Porém,
chega-se ao nível onde este processo também precisa ser
vencido (nirvitarkā) para atingir a pureza completa. Agora,
Patañjali introduz mais dois níveis sutis de avanço, que vão
além do nível “nirvitarkā”, utilizando o termo “cārā”. “Cārā”
é quase sinônimo de “tarkā”, mas tem o sentido de
“reflexão”. Ou seja, a reflexão é mais um instrumento para
atingir a pura consciência, o qual, posteriormente, também
é descartado.
1.45

sūkṣma-viṣayatvaṁ cāliṅga-paryavasānam
A definição de um objeto sutil é aquele que não tem
um sinal visível.

Neste sūtra, Patañjali define melhor o termo “sūkṣma”, no


intuito de deixar bastante claro que o tema aqui abordado
se refere a objetos sutis da mente (e não externos).

1.46

tā eva sa-bījaḥ samādhiḥ


Este é o transe com semente.

O estágio de meditação bem-sucedida (descrito nos sūtras


anteriores) é considerado samādhi (transe, um estágio
elevado de consciência), sendo este o último estágio do
yoga, ou a perfeição do yoga. Porém, há graduações de
samādhi, as quais serão definidas no decorrer do Yoga-
sūtra. O nível de transe “com semente”, referido neste
sūtra, implica que a semente daquilo que nos perturbava
ainda está presente e, portanto, ainda se manifesta de
tempos em tempos, mesmo que de forma muito sutil. A
presença desta semente implica necessidade de utilizarmos
nossa razão e nossa reflexão sempre que isto aconteça,
pois, se não o fizermos, regrediremos ainda mais, uma vez
que ainda não estamos com a consciência completamente
livre.

1.47
nirvicāra-vaiśāradye ’dhyātma-prasādaḥ
Com clareza e paz mental sem reflexão, o eu superior
encontra felicidade.

Neste sūtra, é introduzido um termo importante: “ātma”,


que é o termo védico para o ser vivo espiritual (alma), mas
que também pode ser utilizado para definir apenas o eu, ou
a mente. Já o termo “adhyātma” significa o eu superior,
para deixar claro que o objeto do qual estamos falando é o
aspecto divino (transcendental) do eu. “Prasāda” significa
“misericórdia”, “graça”, mas implica também “sublime
felicidade”, ou “estado de graça”.
Neste estado, entende-se que o praticante não mais precisa
se preocupar com possíveis recaídas, em razão de já ter se
livrado completamente de qualquer condicionamento
indesejado. Isto não é algo comum, sendo que os sūtras
1.13 e 1.14 (e outros que seguiram) descrevem o intenso
caminho trilhado para chegar a esse nível.

1.48

ṛtaṁbharā tatra prajñā


Nesse estado, a sabedoria sustenta a verdade.

A palavra comum para verdade em sânscrito é “sattva”. Já


“ṛta”, usada aqui, é uma verdade superior ou fundamental,
uma verdade cósmica.

1.49
śrutānumāna-prajñābhyām anya-viṣayā viśeṣārthatvāt
Por ter um propósito especial, esta verdade tem um
foco diferente da sabedoria das escrituras ou
inferência lógica.

Patañjali aqui admite a existência de outros caminhos e


enfatiza que, neste caminho do yoga da meditação, a
sabedoria é de outra natureza, diferente daquela obtida
através das escrituras (śruti) ou da lógica (anumāna). Ele
não está dizendo que tal sabedoria é superior, mas
simplesmente reconhecendo que existem outros tipos de
sabedoria.

1.50

taj-jaḥ saṁskāro ’nya-saṁskāra-pratibandhī


Uma impressão mental nascida desta sabedoria
obstrui outras impressões mentais.

O termo técnico “saṁskāra” é comum nos textos de yoga e


significa uma impressão, ou marca, que fica na consciência.
Estas “impressões”, criadas nesta e em outras vidas,
formam nosso inconsciente, que influencia nossa
personalidade e nossas escolhas atuais. Patañjali aqui
afirma que este elevado nível de consciência também causa
“impressões” na nossa consciência, mas de natureza
positiva e útil. A filosofia do yoga explica que, a cada
instante, estamos reconstruindo nossa consciência,
adicionando novas impressões. As impressões de natureza
mundana terão um efeito mundano em nossa consciência.
Se forem impressões mundanas de natureza piedosa,
poderemos nos elevar materialmente; se forem de natureza
impiedosa, nos degradaremos. Além destes dois, as
impressões de natureza transcendental têm o efeito de
“empurrar” para fora de nossa consciência as impressões
mundanas. Da mesma forma que, ao encher um copo com
água, o ar é expulso, na medida em que “enchemos” nossa
consciência com assuntos, sentimentos, desejos e
experiências de natureza transcendental, gradualmente nos
livramos da consciência mundana.

1.51

tasyāpi nirodhe sarva-nirodhān nirbījaḥ samādhiḥ


Quando até mesmo isto é controlado, então tudo o
mais é controlado, atingindo-se o transe sem
semente.

Quando todos os nossos saṁskāras mundanos são


substituídos por saṁskāras transcendentais, como
explicado nos sūtras de 1.46 a 1.50, finalmente se atinge o
estágio de liberação definitiva dos problemas da existência
material (caracterizados pela ansiedade, miséria e
lamentação), sem risco de recaída, e o praticante fica
eternamente situado em bem-aventurança e sabedoria (ou
conhecimento), que é o nosso estado natural e original. Isto
é yoga.
Segunda Parte

Sādhana-pāda
A Prática 

2.1

tapaḥ-svādhyāyeśvara-praṇidhānāni kriyā-yogaḥ
Yoga da ação é austeridade, estudo dos Vedas e
devoção a Deus.

A  segunda parte do Yoga-sūtra chama-se Sādhana-pāda.


“Sādhana” é um termo comum nos textos védicos e
significa “aquilo que é feito para atingir um objetivo”. Trata-
se da prática (normalmente diária) ou da técnica utilizada
pelo praticante espiritual para atingir seu objetivo.
“Kriyā” significa literalmente “ação”, da raiz “kri”, da qual
se deriva a palavra “criar”. O primeiro item da descrição do
que é kriyā-yoga (aqui traduzido como “yoga da ação”, mas
que pode também ser entendido como “ação em yoga”) é
austeridade (tapaḥ). As austeridades praticadas por yogīs,
descritas nos textos védicos, eram muitas vezes extremas e
impossíveis de serem praticadas hoje. Porém, a ideia básica
por trás da austeridade é criar resistência interna às
demandas do corpo físico, vencendo, assim, o profundo
condicionamento mundano de viver em torno da satisfação
dos sentidos do corpo. O termo “austeridade” também pode
ser compreendido como autodisciplina, o que implica resistir
às demandas do corpo e da mente, objetivando uma meta
suprema.
O segundo item é o estudo dos textos filosóficos védicos
(svādhyāya), pela razão óbvia de que, ao receber
informações acerca da sabedoria que nos fixa no caminho
da transcendência, gradualmente substituímos o tipo de
informação e pensamento que nos mantém atraídos pelas
ilusões do mundo material. O último item é o mesmo citado
no sūtra 1.23 como sendo o mais indicado para atingir a
perfeição do yoga: īśvara-praṇidhāna, ou devoção a Deus.
Este sūtra, portanto, descreve o sādhana completo do yoga,
o qual simultaneamente trabalha corpo (austeridade),
mente (estudo védico) e alma (devoção a Deus).

2.2

samādhi-bhāvanārthaḥ kleśa-tanū-karaṇārthaś ca
O propósito é atingir o transe e diminuir o
sofrimento.

Patañjali aqui explica que há dois objetivos


simultaneamente atingidos com essa prática (kriyā-yoga)
descrita no sūtra anterior. O primeiro é atingir o transe
(samādhi), a perfeição do yoga. O segundo é livrar-se do
sofrimento (kleśa-tanū).
O próximo sūtra nos ajudará a entender melhor o que são
esses kleśas, que, literalmente, significam “dor”,
“problemas”, “sofrimento” etc.

2.3

avidyāsmitā-rāga-dveṣābhiniveśāḥ kleśāḥ
Os sofrimentos são: ignorância, egoísmo, paixão,
ódio e obstinação.

Na visão védica, devemos evitar esses males porque nos


trazem muita dor e sofrimento. Tal atitude deve ser adotada
não por querermos ser “bonzinhos”, mas porque, enquanto
seres inteligentes, queremos eliminar de nossa vida tudo
aquilo que nos traz miséria e que é miserável de se
experimentar. Os defeitos que encobrem a pessoa pura que
somos (puruṣa) não só nos trazem misérias como também
são, por si só, miseráveis de vivenciar. Viver sem ser
egoísta, ganancioso, luxurioso etc. é, simplesmente,
superior a viver sendo dominado por esses males. Não
somente a experiência imediata de viver assim é superior,
mas os resultados também o são.
Os próximos sūtras descreverão cada um dos itens em
maior detalhe. Esta é uma técnica comum nos textos de
sabedoria – identificar claramente nossos “inimigos” ou
obstáculos no caminho da perfeição.

2.4

avidyā kṣetram uttareṣāṁ prasupta-tanu-vicchinnodārāṇām


Ignorância é o campo dos demais [sofrimentos], que
podem estar dormentes, diminuídos, esporádicos ou
proeminentes.

Aqui, encontramos o termo “kṣetra”, que, literalmente,


significa “campo”, no sentido de “local onde as coisas
crescem ou acontecem”. Este termo é muito usado também
no texto ainda mais famoso de yoga, o Bhagavad-gītā.
Patañjali então nos alerta que todos os demais sofrimentos
(dores) nascem da ignorância (os próximos sūtras
explicarão essa ignorância, ou avidyā). Inclusive, utiliza-se
nos Vedas o termo “avidyā” para denotar a “criação
material”, o que implica que toda a existência material tem
como base a ignorância, ou seja, o esquecimento da
realidade transcendental por parte de seus habitantes.

2.5

anityāśuci-duḥkhānātmasu nitya-śuci-sukhātma-khyātir
avidyā
Ignorância é aceitar o impermanente como
permanente, o impuro como puro, a infelicidade
como felicidade e aquilo que não é o eu como sendo o
eu.

O último item da lista acima (aceitar o não-eu como o eu) é


o mais importante e é muito enfatizado em praticamente
todos os textos de sabedoria védica. O Bhagavad-gītā, por
exemplo, inicia com essa explicação. Aquilo que não é o eu
é o corpo (e mente e inteligência ainda mundanas). O
verdadeiro eu é a consciência eterna individual, ou centelha
divina, que dá vida ao corpo. No ocidente, é comum ouvir
dizer: “Eu tenho uma alma”. Mas não é isso. O conceito
védico é: “Eu sou a alma e tenho um corpo”. Ao nos
identificarmos com o corpo, e com tudo a ele ligado, todos
os nossos problemas começam. O sūtra 1.16 enfatizou esse
ponto, dizendo que basta obter plena realização da
existência da “pessoa”, nosso verdadeiro eu, para nos
iluminarmos.
A questão da pureza é muito enfatizada na cultura védica,
pois se identifica pureza com clareza de consciência. Na
medida em que comemos alimentos puros, vivemos em
ambientes puros, bebemos água pura, mantemos nosso
corpo puro (livre de venenos), mantemos nossa mente pura
(evitando pensamentos negativos e degradantes, bem
como a associação de pessoas com esse tipo de
pensamento) etc., nossa consciência naturalmente se
purifica e se expande, ou, em outras palavras, atingimos um
maior grau de clareza e paz mental.
Felicidade não é mero prazer. Como já mencionado,
felicidade aqui significa um estado de satisfação existencial
muito mais profundo e constante. O perigo está em viver a
vida correndo atrás de prazeres passageiros ou baseados
em nossas insignificantes conquistas mundanas e assim
perder o estímulo para a busca da verdadeira felicidade
duradoura, a qual nem mesmo a morte poderá afetar. Pior
ainda é a pseudofelicidade daquele que causa sofrimento a
outros seres vivos ou a si mesmo, algo infelizmente muito
comum.
Confundir o impermanente com o permanente é
simplesmente confundir o material com o espiritual. Tudo o
que é material é temporário, incluindo este universo. E tudo
o que é espiritual (ou transcendental) é eterno – sempre
existiu, existe agora e sempre existirá.
Ao nos identificarmos com o corpo, tornamos material a
nossa consciência, que é, por natureza, não material
(transcendental). A partir da consciência mundana, nossa
ignorância se alastra ilimitadamente. Aqui, Patañjali aponta
os mais graves erros que podemos cometer quando em
consciência material. Basta uma análise cuidadosa desta
lista e um pouco de reflexão para compreendermos como
cada um desses erros resulta em ilimitadas variedades de
sofrimento.
2.6

dṛg-darśana-śaktyor ekātmatevāsmitā
Egoísmo é considerar o olho e o poder de visão como
sendo idênticos.

O  olho é algo material, mas o poder de visão é uma


extensão do ser vivo. Portanto, egoísmo nada mais é do que
se identificar com o corpo. Uma vez que isso é feito,
naturalmente nossos desejos e ações serão egocêntricos ou
centrados em nosso corpo. Mesmo que esse centro se
expanda para incluir toda a nossa família, todo o nosso país,
todo o nosso planeta, o sistema solar etc., ainda assim é
egoísmo, pois esse centro estendido ainda é o falso eu.

2.7

sukhānuśayī rāgaḥ
Paixão é apego à felicidade.

“Anuśayī” é formado pelas raízes dos verbos “seguir” e


“deitar”, no sentido de “querer agarrar e se envolver em
algo”. O que Patañjali está dizendo (e isto é comum nos
textos védicos) é que o problema não está em experimentar
o prazer, mas sim em querer manter, guardar ou estender o
prazer de forma artificial. As situações prazerosas
acontecem naturalmente, da mesma forma que as
situações problemáticas também acontecem naturalmente.
O problema surge quando nos apegamos aos prazeres ou,
igualmente, quando nos prendemos à lamentação em
relação a algo desagradável que tenha ocorrido. Em ambos
os casos, a mentalidade é a mesma, e sua adoção nos trará
dificuldades e ansiedade.

2.8

duḥkhānuśayī dveṣaḥ
Ódio é apego à infelicidade.

Aqui, a mesma palavra é usada (anuśayī), porém com o


objeto oposto. Quando cultivamos o ódio, estamos
simplesmente nos apegando a uma situação ou pessoa que
nos trouxe ou traz infelicidade. Obviamente, se algo ou
alguém nos traz infelicidade, a melhor coisa que temos a
fazer é nos desapegarmos, pois assim mais rapidamente
encerraremos nossa conexão com a fonte de infelicidade.
Por esta razão, todas as tradições de sabedoria enfatizam o
perdão.
A prática de yoga nos leva a evitar esses kleśas ao mostrar-
nos um nível mais profundo de existência e de prazer (a
verdadeira felicidade e bem-aventurança), além das
dualidades mundanas (rāga-dveṣa), o que pode ser
conseguido quando mantemos nossa consciência fixa no
īśvara (sūtra 1.23) e em nosso verdadeiro eu (sūtra 1.16).
Se compreendermos que īśvara é o senhor e o controlador
de tudo, não mais haverá espaço para que proclamemos
posse ou controle de qualquer pessoa ou coisa (boa ou má).
Daí surge o verdadeiro desapego e, portanto, a habilidade
de não se prender à lamentação ou à busca dos prazeres
sensoriais.

2.9
sva-rasa-vāhī viduṣo ’pi tathārūḍho ‘bhiniveśaḥ
Mesmo em uma pessoa culta, a obstinação, movida
por sentimentos pessoais, é profundamente
enraizada.

Aqui, o quinto e último kleśa, listado no sūtra 2.3, é


explicado. O desejo de querer que as coisas aconteçam do
nosso jeito é algo profundamente enraizado, mesmo nas
pessoas mais bem educadas. A razão disso é que a
obstinação é “sva-rasa-vāhī”, movida por gosto (desejo,
sentimento etc.) pessoal. Isso decorre do fato de que o
oposto do yoga é querer agir como o īśvara, ou controlador.
Assim, a prática de yoga é, em última análise, o processo de
entender que não somos controladores nem precisamos ser.
Pelo contrário, a verdadeira libertação do sofrimento e
ansiedade é atingida quando se abandona completamente
tal conceito ilusório. Os próximos sūtras nos ajudarão a
entender como isto deve ocorrer.

2.10

te pratiprasava-heyāḥ sūkṣmāḥ
Os sofrimentos sutis são anulados revertendo seu
fluxo.

“Prati” significa “combater”, “contrariar”, e “prasava”


significa “criar, gerar, nascer”. Assim, “pratiprasava”
significa reverter o processo que gerou ou criou algo. Neste
caso, Patañjali utiliza o termo “sūkṣma”, ou “sutil”,
referindo-se ao aspecto sutil dos problemas citados nos
sūtras anteriores. Ao revertermos o processo que gerou os
sofrimentos, os mesmos serão sobrepujados (heyāḥ).
A anulação dos sofrimentos sutis implica, portanto, um
processo de reflexão, em que estudamos o que gerou o
problema e “voltamos atrás”, buscando anular seu
resultado. Por exemplo, suponhamos uma situação
estressante no trabalho devido ao apego ao resultado de
algum projeto ou negociação (tecnicamente este é o
sofrimento descrito como “paixão”). Podemos analisar a
situação friamente. Traçar o que nos levou a desenvolver
esse apego passo a passo, voltando atrás até nos
lembrarmos de um momento em que não estivéssemos com
essa preocupação excessiva, e aí então manter esse estado
anterior de consciência. É exatamente como retraçar o
caminho percorrido quando percebemos que estamos
perdidos ou indo na direção contrária à desejada.

2.11

dhyāna-heyās tad-vṛttayaḥ
Estas funções da mente são anuladas através da
meditação.

Aqui, Patañjali volta a usar o termo “vṝtti”, central no Yoga-


sūtra, que significa “funções da mente” ou “transformações
mentais”. Ele diz que essas funções da mente ligadas aos
diferentes tipos de sofrimento são anuladas (ou
sobrepujadas, vencidas etc.) através de dhyāna, meditação.
Isto significa que, meditando nas consequências e origens
dos diferentes sofrimentos, podemos anulá-los, uma vez
que, tornando-nos cientes dos mesmos, podemos,
propositadamente, não mais permitir sermos influenciados
por tais processos dolorosos. Um processo análogo é a
ajuda de um psicólogo, que busca anular um sofrimento ou
comportamento doentio ao entender sua origem. Só que,
neste caso, Patañjali está nos apontando a origem de todos
os sofrimentos – a chave mestra –, em vez da chave de
apenas uma porta.
Um detalhe semântico interessante é saber que a palavra
“zen” é o resultado da tentativa de nativos do Japão de
pronunciar a palavra sânscrita “dhyāna”. Na medida em que
o budismo deixou a Índia e se espalhou pela Ásia, muitos
termos e conceitos da cultura védica o acompanharam. O
zen budismo enfatizou a meditação e assim adotou essa
terminologia do yoga.

2.12

kleśa-mūlaḥ karmāśayo dṛṣṭādṛṣṭa-janma-vedanīyaḥ


O acúmulo de karma tem sua raiz nesses
sofrimentos, e é conhecido através de nascimentos
vistos e não vistos.

“Kleśa-mūlaḥ” significa que a raiz dos sofrimentos é nosso


karma, mas também que nosso karma é a raiz dos
sofrimentos. A ação feita sob a influência da ignorância
(sūtra 2.5) sempre gera algum tipo de reação (karma). Um
conceito popular errôneo é achar que karma significa
apenas algo ruim. Karma significa “ação” e também
“resultado da ação”, podendo ser bom, neutro ou ruim,
dependendo da qualidade da ação realizada, dentro dos
quase ilimitados graus de nuanças relacionadas a qualquer
ação (agente, objeto, propósito, tempo, circunstância, local
etc.). Bom ou ruim, acumular karma significa que teremos
de aceitar outros nascimentos para receber o resultado, e
isso, para nós seres transcendentais eternos, é sempre
ruim, pois estaremos experimentando ou gerando mais
kleśas, sofrimentos. O caminho do yoga é, em última
análise, para aqueles (os transcendentalistas) que querem
encerrar definitivamente este ciclo de nascimentos e voltar
a agir como centelhas divinas, completamente livres da
ignorância e, por consequência, do sofrimento.

2.13

sati mūle tad-vipāko jāty-āyur-bhogāḥ


Quando a raiz existe, frutifica como nascimento, um
prazo de vida e experiências mundanas.

A  partir da existência dessa raiz (sati mūle), gera-se (tad-


vipāka) o nascimento (jāti), a duração de vida (āyur) e as
experiências mundanas (bhoga).
Enquanto houver qualquer “raiz” de karma não
experimentado na presente vida, torna-se obrigatório um
próximo nascimento. Este é o problema que o
transcendentalista visa resolver. Não adianta apenas lidar
com as situações em que nos encontramos ou batalhar para
melhorá-las. Precisamos agir de forma a sair
definitivamente do ciclo de ação e reação (saṁsāra). O
transcendentalista entende que não adianta apenas almejar
um bom nascimento, uma longa duração de vida, com boas
experiências, pois sua existência pura transcendental é
muito superior a qualquer situação mundana. Além do mais,
o transcendentalista compreende que toda situação
mundana é impermanente, e que, portanto, jamais poderá
oferecer uma solução definitiva a algum problema.
2.14

te hlāda-paritāpa-phalāḥ puṇyāpuṇya-hetutvāt
Por serem a causa de piedade e impiedade, seus
frutos são o prazer e o sofrimento.

Patañjali nos apresenta aqui uma definição padrão sobre a


lei do karma, dizendo que o resultado das atividades
piedosas ou impiedosas serão, respectivamente, o prazer e
o sofrimento mundanos. Com isso, ele também explica que
a qualidade do nascimento, da duração de vida e das
experiências mundanas será o resultado do tipo de
atividades realizadas anteriormente. Tais conceitos são
básicos à filosofia védica, sendo um fato comum aceito por
todos os membros da sociedade védica (e ainda são hoje
em muitas partes do mundo).

2.15

pariṇāma-tāpa-saṁskāra-duḥkhair guṇa-vṛtti-virodhāc ca
duḥkham eva sarvaṁ vivekinaḥ
Com as misérias de um mundo material em
constante mutação, vivendo sob o jugo de nosso
condicionamento, e por causa dos conflitantes modos
da natureza, tudo é apenas miséria para a pessoa de
discernimento.

Esta é a visão do transcendentalista. Pode parecer um tanto


chocante ou mesmo pessimista para uma pessoa que ainda
não tenha parado para analisar a vida de forma profunda, e
assim não conhece o objetivo da vida e a transcendência. O
transcendentalista sabe que a vida sob o jugo de
ignorância, sofrimentos, repetidos nascimentos e mortes,
reações kármicas em série etc. não é vida real ou algo
aceitável para o ser eterno e divino que somos. Este tipo de
vida é realmente apenas a experiência de diferentes graus
de miséria. Existe outra forma de existência prontamente
disponível, aqui e agora, e é isso que o transcendentalista
(o yogī) busca.
Neste sūtra, Patañjali faz referência novamente aos guṇas,
que são as qualidades fundamentais da natureza, cada qual
exercendo uma influência diferente sobre as coisas e sobre
a nossa consciência.

2.16

heyaṁ duḥkham anāgatam


Deve-se evitar a miséria que está ainda por vir.

Este sūtra demonstra que a visão descrita no sūtra anterior


não é pessimista, pois pode ser evitada. Temos o poder de
evitar as misérias, mas, para isso, precisaremos levar a
sério nosso sādhana (prática de yoga). Afinal, este é o
assunto desta segunda parte do Yoga-sūtra, e a segunda
meta da prática (sūtra 2.2) é evitarmos as misérias. Ou seja,
os problemas existem, mas a solução também. Os próximos
sūtras descreverão alguns pontos essenciais para a solução.

2.17

draṣṭṛ-dṛśyayoḥ saṁyogo heya-hetuḥ


Deve-se abandonar o conceito de que o observador e
o observado são iguais.

Devemos abandonar (heya-hetuḥ) o conceito de que o


observador e o observado (draṣṭṛ-dṛśyayaḥ) são iguais
(“saṁyoga” significa literalmente “conectar”, “ligar”,
“equivaler”). Esse ponto é central no Yoga-sūtra. Existem
três maneiras de cometer este erro.
A primeira delas é considerar outras pessoas como sendo
objetos da nossa percepção, entendendo que seus corpos,
influência, beleza, poder etc. podem ser instrumentos de
nossos desejos ou planos egocêntricos. Cada um de nós é
um observador individual, e, quando observamos outras
pessoas (qualquer outro ser vivo), não devemos esquecer
que estamos observando outros observadores, e não meros
objetos de nossa observação. 
A segunda maneira é nos identificarmos com algum objeto
ou muitos objetos, ao ponto de eles se tornarem parte
integrante de nossa existência. Isto significa acreditar que
nosso carro, nossa casa, nossa roupa etc. definem quem
somos, ou achar que não podemos existir sem aquele novo
celular etc. Infelizmente, este processo é cumulativo.
Podemos continuamente adicionar mais e mais objetos à
nossa definição de quem somos. Isso pesa e prende nossa
consciência, assim como uma âncora prende uma
embarcação, destruindo a possibilidade de avançarmos a
estados de consciência mais elevados.
A terceira forma é uma combinação das duas acima, já
tendo sido mencionada anteriormente: a vida espiritual
começa quando entendemos a diferença entre a energia
material e a energia espiritual, ou seja, a diferença entre as
“pessoas” eternas e conscientes (Deus e as entidades
vivas) e a matéria morta manipulada por elas (que inclui os
corpos das entidades vivas).
2.18

prakāśa-kriyā-sthiti-śīlaṁ bhūtendriyātmakaṁ
bhogāpavargārthaṁ dṛśyam
O observado, caracterizado por clareza, atividade e
estado de ser, constituído de elementos materiais e
órgãos dos sentidos, tem como propósito o desfrute
material ou a libertação espiritual.

A primeira parte deste sūtra apresenta uma simples análise


daquilo que pode ser observado, basicamente identificando
que pode ser matéria simples (uma coisa) ou matéria
orgânica (o corpo de um ser vivo, inclusive o do próprio
observador).
Na segunda parte, encontramos um ponto essencial para o
sucesso em yoga: temos a escolha, a qualquer momento, de
ver a realidade à nossa volta com fins de desfrute mundano
ou com o objetivo de evoluir espiritualmente. Em outras
palavras, podemos utilizar nossa vida (e as coisas e pessoas
à nossa volta) apenas para extrair algum prazer mundano
egoísta, ou para evoluir espiritualmente. Este é o constante
desafio do praticante de yoga: livrar-se da tendência de
querer um prazer barato, imediato, buscando a verdadeira
bem-aventurança eterna. Enquanto ficarmos presos ao
conceito do desfrute mundano, ficaremos à mercê das
misérias da vida mundana e não teremos acesso ao
incomparável estado de divina consciência ao qual temos
direito. Devemos, então, decidir se iremos nos satisfazer
com a medíocre vida da busca pelo prazer egocêntrico ou
se iremos nos esforçar seriamente pela gloriosa existência
transcendental. A cada passo, portanto, o praticante de
yoga precisa estar ciente da maneira como observa a
realidade.

2.19

viśeṣāviśeṣa-liṅga-mātrāliṅgāni guṇa-parvāṇi
As divisões das qualidades (do visível) são:
específica, não específica, marcada e não marcada.

Este sūtra apenas contém uma descrição técnica adicional


daquilo que pode ser observado.

2.20

draṣṭā dṛśi-mātraḥ śuddho ’pi pratyayānupaśyaḥ


O observador é simplesmente o poder de observar.
Apesar de o observador ser, assim, pura cognição, é
possível ver o observador mediante firme convicção.

A  função do observador (draṣṭā) é simplesmente observar


(dṛśi-mātraḥ). No entanto, mesmo sendo muito sutil e puro
(śuddho ‘pi), ele também pode ser visto (anupaśyaḥ)
através de firme convicção (“pratyaya” significa também
“fé”, “intenção”, “percepção” ou “compreensão correta”).
Patañjali afirma neste sūtra que é possível ver a alma, ver o
ser vivo eterno, mas não da mesma forma como vemos um
objeto material. Apesar de ser pura cognição; como foi
explicado na primeira parte do Yoga-sūtra, o ser vivo tem
sua forma eterna (sūtra 1.3), completamente
transcendental, e mantém sempre sua personalidade e
individualidade (sūtra 1.16).

2.21

tad-artha eva dṛśyasyātmā


A única razão de ser do observado é o observador.

Teleologia é o estudo do propósito último das coisas ou da


realidade. E aqui Patañjali apresenta a visão teleológica do
yoga: toda manifestação material (ou tudo o que é
observável materialmente) existe, em última análise, para
que possamos atingir a autorrealização (que, literalmente,
significa nos conhecermos plenamente).
Este sūtra também enfatiza que a visão védica é
fenomenológica. Em outras palavras, a visão védica é que o
mundo, tal como o vemos, cheiramos, escutamos etc., é seu
aspecto mais importante. Não é necessário, portanto,
buscar uma compreensão da realidade física além daquilo
que naturalmente observamos, mas, sim, uma compreensão
metafísica.

2.22

kṛtārthaṁ prati naṣṭam apy anaṣṭaṁ tad-anya-


sādhāraṇatvāt
Apesar de ter perdido seu valor para aquele que já
cumpriu seu propósito, o observado não perdeu seu
valor para os outros.
Para o yogī que atingiu a autorrealização, o propósito da
manifestação material foi cumprido (kṛtārthaṁ prati) e, por
isso, ela automaticamente perde (naṣṭam) seu valor. Mesmo
assim (api), ela não perde (anaṣṭam) seu valor totalmente,
porque existem outras pessoas (tad-anya) com uma visão
comum das coisas (sādhāraṇatvāt), e, para estas, a
manifestação material ainda possui propósito válido.
Isto significa que as pessoas espiritualmente avançadas
devem se comportar de forma digna, respeitando a visão
mundana dos demais. Significa também que somos
indivíduos (cada qual em seu estágio de evolução
espiritual), e que a realidade existe, não sendo uma mera
criação de nossa imaginação, nem dependente de como a
percebemos.

2.23

sva-svāmi-śaktyoḥ svarūpopalabdhi-hetuḥ saṁyogaḥ


Identifica-se a natureza da energia daquilo que é
possuído com a do possuidor.

Novamente, Patañjali aqui procura deixar clara a


importância de não confundir o corpo (ou as posses ligadas
ao corpo) com a alma, ou a matéria com o ser vivo eterno e
consciente. Como já discutido, na filosofia sāṅkhya
compreende-se que existem duas categorias básicas de
energia: a material (sem consciência, morta) e a espiritual
(composta por ilimitadas unidades individuais de
consciência pessoal). Nessa compreensão, a fonte dessas
duas energias é Deus (“śaktimān”, em sânscrito, sendo que
“śakti” é “energia”, ou “poder”, e “mān”, “cheio de”). Aqui,
Patañjali usa esses termos falando das duas energias: “sva”,
aquilo que é possuído (matéria), e “svāmi”, que significa
“aquele que possui” (o indivíduo).

2.24

tasya hetur avidyā


A causa [desta identificação] é a ignorância.

A  causa da errônea identificação das duas categorias de


energia (“possuidor” e “possuído”, ou “matéria” e
“espírito”) é a ignorância. O sūtra 2.4 já havia explicado que
a ignorância é o “campo” das demais formas de sofrimento.
Por isso, é tão essencial que o yogī tenha plena
compreensão da distinção entre estes dois tipos de
energias, pois é unicamente esta errônea identificação que
abre o caminho para todas as formas de sofrimento.

2.25

tad-abhāvāt saṁyogābhāvo hānaṁ tad-dṛśeḥ kaivalyam


Quando a ignorância não existe, a identificação não
existe; o abandono dessa visão é liberação.

Ao nos livrarmos da ignorância, não mais confundiremos os


dois tipos de energias e, com isso, atingiremos a liberação
(kaivalyam), que significa “o estado de pureza de
consciência” ou “emancipação”, ou seja, o estágio final do
yoga. O próximo sūtra nos explica como podemos atingir
esse estado desejado.

2.26
viveka-khyātir aviplavā hānopāyaḥ
A maneira de abandonar essa visão é manter
ininterrupta consciência da distinção.

Como mencionado no sūtra 1.14, não se atinge a perfeição


do yoga de forma barata. É necessário esforço constante e
ininterrupto para nos livrarmos da ignorância. Este esforço
tem como aspecto central a ininterrupta compreensão da
realidade como ela é, distinguindo matéria de espírito. Esta
é a mensagem central do Yoga-sūtra e o principal processo
recomendado.

2.27

tasya saptadhā prānta-bhūmiḥ prajñā


A fase final deste processo é a sabedoria de sete
partes.

Acadêmicos confessam não saber exatamente o que


Patañjali está dizendo aqui. Não há um registro ou uma
definição unânime do que são as “sete partes”, pois não
encontramos essa terminologia em outros textos de filosofia
védica ou mesmo em outros textos clássicos de yoga, como
o Bhagavad-gītā. Infelizmente, isso não impediu que
pessoas inescrupulosas criassem vários tipos de
especulação sobre o que seriam as sete partes. Podemos
ficar tranquilos, porém; porque, se fosse algo crucial,
Patañjali teria, na sequência, explicado cada uma das sete
partes, como fez em relação às várias outras “listas” que
apresentou até o momento e ainda apresentará.
O ponto é que o objetivo final é prajñā, ou “sabedoria
perfeita”, e não somente se livrar da ignorância. É
importante compreender que a perfeição transcendental
buscada pelo yogī é ativa e real, e não apenas a anulação
da confusão e do sofrimento. Ou seja, o caminho do yoga
nada tem a ver com o caminho do niilismo.

2.28

yoga-aṅga-anuṣṭhānād aśuddhi-kṣaye jñāna-dīptir āviveka-


khyāteḥ
Ao praticar os componentes do yoga, as impurezas
são destruídas, e a luz do conhecimento revela as
verdadeiras distinções.

Da prática fiel (anuṣṭhānād) dos componentes do yoga


(yoga-aṅga), as impurezas são destruídas (aśuddhi-kṣaye),
e, com isso, surge a luz do conhecimento (jñāna-dīptiḥ),
revelando as verdadeiras distinções (āviveka-khyāteḥ).
Este sūtra, como muitos outros no Yoga-sūtra, deixa claro
que não existe em yoga o conceito de que não há distinções
e que tudo, em última análise, é uma única “coisa”
metafísica uniforme (uma teoria denominada “monismo”, ou
“impersonalismo”). Os grandes textos védicos rejeitam as
teorias do niilismo e do monismo, populares entre supostos
seguidores da espiritualidade oriental.
Este sūtra dá continuidade aos sūtras anteriores, ao
enfatizar a necessidade de compreendermos a distinção
entre as energias material e espiritual.

2.29
yama-niyama-āsana-prāṇāyāma-pratyāhāra- dhāraṇā-
dhyāna-samādhayo ’ṣṭāvaṅgāni
Os oito componentes do yoga são:
autocontrole, observâncias, posturas físicas, controle
da respiração, retração dos sentidos, concentração,
meditação e transe.

Aqui encontramos a famosa descrição dos oito (aṣṭa)


componentes (aṅgas) do yoga, que serão detalhados nos
sūtras a seguir.

2.30

ahiṁsā-satya-asteya-brahmacarya-aparigrahā yamāḥ
Autocontrole significa não ferir, ser veraz, não roubar,
ser casto e não ser possessivo.

Aqui se detalha o primeiro componente do yoga, que é


também o primeiro passo, ou primeiro estágio, de perfeição
necessário para seguir o caminho do yoga, que é
autocontrole, ou yama.
O primeiro item deste primeiro passo é ahiṁsā, que,
literalmente, significa não causar dano, dor, sofrimento,
violência etc. A violência embrutece a consciência, tornando
impossível a compreensão e vivência das práticas de yoga,
o que dizer da perfeição em yoga. Na prática, em especial,
significa ter uma dieta livre do sofrimento e matança de
animais e agir de forma a não causar qualquer tipo de
agressão gratuita aos outros, seja física, verbal ou psíquica.
O segundo item é satya, veracidade. Na busca da Verdade,
a mentira se torna um fardo. Mentir significa ser falso, e
todo o caminho do yoga visa buscar o eu verdadeiro. Em
especial, devemos ser muito verazes com nós mesmos,
encarando com muita sinceridade nosso real estado de
saúde emocional e espiritual.
O terceiro item, asteya, significa não roubar, o qual não
necessita de maiores explicações.
O quarto item é brahmacarya. “Brahma” significa
literalmente “o Absoluto”, mas também é um termo para
descrever os Vedas. E “acarya” significa se comportar de
forma exemplar. Então, uma tradução direta de
“brahmacarya” é agir de acordo com os Vedas, o que
significa agir de uma forma muito correta e casta. Porém,
brahmacarya também é o estágio de estudante na vida
daqueles que seguem a cultura védica, em que o estudante
morava com o guru aprendendo os Vedas. Nessa cultura,
isso implicava a observância estrita do celibato, logo a
palavra também significa “celibato”.
O quinto e último item é aparigrahā. “Grahā” significa
“pegar”, “possuir”; “pari”, “tudo”, e “a”, “não”. Ou seja, não
cultivar um sentimento de posse sobre as coisas (e
pessoas). O ponto é que nada nos pertence de fato (nem
mesmo o nosso corpo), em virtude do que qualquer
sentimento de possessividade, como já explicado
anteriormente, pesará sobre nossa consciência e confundirá
nossa autoidentificação.

2.31

jāti-deśa-kāla-samaya-anavacchinnāḥ sārva-bhaumā mahā-


vratam
Estas regras de autocontrole são universais, e não
limitadas por nascimento, lugar, tempo ou
circunstância. Esse é o grande voto.

Para que não haja dúvida de que essas regras se aplicam a


todos, Patañjali aqui deixa claro o quão importantes e
universais elas são. Segui-las é o grande voto (mahā-vrata).
Ao contrário dos demais componentes do yoga, o yama
necessita ser praticado sempre.
Patañjali também não deixa margem aqui para acharmos
que estas regras se aplicam a outra cultura, outro povo,
outra era, outro tipo de pessoa etc. Quem quiser de fato se
aperfeiçoar, purificar sua consciência e atingir a liberação
(ou seja, seguir o caminho do yoga) tem necessariamente
que aceitar esse “grande voto”. E este é apenas o primeiro
passo!

2.32

śauca-saṁtoṣa-tapaḥ-svādhyāya-īśvara-praṇidhānāni
niyamāḥ
As observâncias são: limpeza, satisfação,
austeridade, estudo e devoção ao Senhor.

Além de ser autocontrolado (ter um comportamento moral


perfeito conforme descrito nos sūtras 2.31-32), o yogī
precisa também preparar seu estado interior para seguir o
caminho do yoga. Este segundo componente do yoga tem
esse propósito, e, ao segui-lo, cultivamos as qualidades
necessárias para atingir os mais avançados (e
progressivamente mais sutis) estados de consciência
transcendental em yoga. Somente por seguir esses dois
componentes do yoga (yama-niyama), já podemos vivenciar
rapidamente um estado de paz, clareza, firmeza,
autoconhecimento e entusiasmo pelo qual praticamente
todos anseiam. Os demais componentes do yoga não
existem independentemente destes dois, da mesma forma
que uma flor não existe independentemente de seu caule. A
perfeição nestes dois primeiros componentes do yoga
(yama-niyama) vem automaticamente pelo cultivo
ininterrupto desse modo de viver, especialmente o último
item citado por Patañjali, devoção ao Senhor (īśvara-
praṇidhāna). No sūtra 1.23, Patañjali já havia mencionado
que esta prática (īśvara-praṇidhāna) por si só já é suficiente
para atingir a perfeição e, no sūtra 2.1, explicou que os
últimos três itens aqui citados (austeridade, estudo e
devoção ao Senhor) são os alicerces da prática do yoga.
Sem seguir fiel e estritamente estes dois primeiros
componentes, a tentativa de realizar os demais
componentes do yoga, inclusive as diferentes posturas
físicas (āsanas), exercícios de respiração (prāṇāyāma) e
meditação (dhyāna), trarão apenas insignificantes
resultados mundanos e temporários, muito aquém da
perfeição que o caminho do yoga oferece.

2.33

vitarka-bādhane pratipakṣa-bhāvanam
Quando vitimado por más deliberações, deve-se
efetuar o oposto.

No sūtra a seguir, Patañjali explicará mais detalhadamente


este ponto, mas a ideia a princípio é simples. Ao
detectarmos um fluxo de desejos, pensamentos e ações
negativos ou destrutivos, devemos combatê-los imediata e
deliberadamente com o oposto. Assim, não basta apenas
“observar a mente”. Precisamos observar a mente e, se
necessário, combater ativamente aquilo que é indesejável.

2.34

vitarkā hiàsā-ādayaḥ kṛta-kārita-anumoditā lobha-krodha-


moha-pūrvakā mṛdu-madhya-adhimātrā duḥkha-ajñāna-
ananta-phalā iti pratipakṣa-bhāvanam
Deve-se efetuar o oposto porque as más
deliberações, tais como ferir outros, seja
diretamente, indiretamente ou permitindo que
aconteça,
baseado em ganância, raiva ou ilusão, seja em grau
leve, médio ou severo, trazem infindáveis frutos de
miséria e ignorância.

Quase que de forma jurídica, Patañjali aqui deixa muito


claro que não importa qual o tipo de mal cometido (aqui ele
cita hiṁsā, “violência”, “dor”), qual o nosso nível de
envolvimento (mesmo por permitir que aconteça já nos
implicamos), qual seu grau ou motivação (a ilusão, confusão
etc. não são desculpas), o fruto será apenas sofrimento para
o autor, na forma de miséria e ignorância.
O que dizer de seguir o caminho do yoga, não há
possibilidade para uma vida sem sofrimentos quando
causamos sofrimentos aos outros.
Tendo explicado os efeitos negativos, Patañjali, a seguir,
discorrerá sobre os aspectos positivos de seguirmos os
diferentes itens do primeiro componente do yoga, que é o
autocontrole (yama).

2.35

ahiṁsā-pratiṣṭhāyāṁ tat-sannidhau vaira-tyāgaḥ


Ao situar-se em não-violência, não haverá hostilidade
ao redor. 

Por aceitar de forma muito profunda (pratiṣṭha) o voto de


“não ferir” (ahiṁsā), as pessoas em nossa presença
desistirão de sua hostilidade. Ou seja, paz é contagiante.
Todos buscam a paz, mas devemos saber que a paz precisa
ser cultivada primeiramente dentro de nós mesmos, de
forma muito sincera e profunda.

2.36

satya-pratiṣṭhāyāṁ kriyā-phala-āśrayatvam
Ao situar-se em veracidade, a ação e seus frutos
terão uma base válida.

Ao cultivarmos a veracidade de forma profunda (de novo a


palavra “pratiṣṭhāyāṁ”, que será usada em todos esses
sūtras), nossas ações e seus frutos serão reais, pois nossas
ações e seus frutos baseados em falsidade serão sempre
ilusórios, inúteis e falsos. Basta um pouco de reflexão para
percebermos que cada um de nós já experimentou isso em
algum momento de nossa vida. Quando agimos de forma
artificial, nossas ações e seus frutos não têm a mesma
potência (não são reais) como quando agimos de maneira
integral e autêntica. No que diz respeito a relacionamentos,
pessoas mais sensíveis percebem a falta de veracidade
imediatamente, e o resultado final é sempre amargo. No
que diz respeito a empreendimentos, o resultado daquilo
feito em falsidade é rapidamente desfeito e de pouco valor.

2.37

asteya-pratiṣṭhāyāṁ sarva-ratna-upasthānam
Ao situar-se em não roubar, todas as riquezas estarão
à mão.

“Ratna” significa “joia”, “tesouro”, “riqueza” ou


simplesmente “algo valioso”. Em outras palavras, ao não
roubar, acumulamos bom karma que poderá nos trazer
riquezas no futuro, e, no presente, experimentamos a
valiosa satisfação da honestidade e da conduta reta.

2.38

brahmacarya-pratiṣṭhāyāṁ vīrya-lābhaḥ
Ao situar-se em castidade, ganha-se potência.

Aqui, a palavra “vīrya” significa “força heroica”, ou


“potência”, e é usada também no sentido de “virilidade”. Os
textos védicos muito enfatizam o enorme ganho de potência
para práticas espirituais e conquistas ióguicas decorrente do
celibato e da castidade, tanto para homens quanto para
mulheres. O ganho não só vem do aspecto puramente
fisiológico e energético, por não dissipar inutilmente nossa
energia vital, mas também por questões psicológicas, no
sentido de que pensamentos sobre o próximo parceiro
sexual, a conquista, o encontro etc. podem ocupar a mente
de forma predominante, em detrimento da concentração no
divino.

2.39

aparigraha-sthairye janma-kathaṁtā-saṁbodhaḥ
Ao situar-se em não possessividade, atinge-se a
compreensão do nascimento.

O que nos prende ao mundo material são os nossos desejos


de assenhorearmo-nos da natureza material (a energia
material do Senhor). Caso realmente atinjamos o elevado
estágio de não desejar nada material, atingiremos a plena
consciência transcendental e não teremos mais razão para
nascer. A grande chave é compreender que absolutamente
nada aqui nos pertence, e, por ser energia de Deus, tudo a
Ele pertence, inclusive nossos corpos.
Com este sūtra, encerra-se a descrição dos benefícios
decorrentes do aperfeiçoamento nos itens do “grande voto”
do autocontrole. Agora Patañjali descreverá os benefícios
dos itens do segundo componente do yoga, observâncias
(niyama).

2.40

śaucāt svāṅga-jugupsā parair asaṁsargaḥ


Da limpeza, surge a aversão ao corpo e ao contato
íntimo com os corpos de outros.
A  palavra “jugupsā” tem o sentido literal de “desgosto”,
“repugnância” ou “aversão”. O significado dessa “aversão
ao corpo” não possui sentido vulgar ou doentio. Esta
“aversão” ocorre quando o yogī entende que ele não é o
corpo, em decorrência do que ele não mais se sente
inclinado a ficar por demais apegado à sua “gaiola”, e muito
menos a se interessar pelo prazer mundano do contato com
outros corpos. Ou seja, este é o resultado natural de
vivermos em compreensão plena de nosso estado como
seres vivos divinos e eternos, dentro de corpos materiais
temporários. No sūtra 2.18, Patañjali já havia explicado que,
a cada instante, o praticante de yoga deve decidir se usará
a realidade para o desfrute imediato dos sentidos materiais
(manter-se condicionado) ou para se libertar (avançar em
yoga). Portanto, o yogī bem-sucedido, que cultivou a
limpeza do corpo e da mente, não tenta usar seu corpo para
o desfrute dos sentidos, e sim para a liberação.

2.41

sattva-śuddhi-saumanasya-eka-agrya-indriya- jaya-ātma-
darśana-yogyatvāni ca
E também surge a pureza de ser, alegria, foco, vitória
sobre os sentidos, autoconhecimento e aptidão para
o yoga.

A  limpeza do corpo e da mente nos traz ainda outros


importantes benefícios. “Sattva-śuddhi” significa a
purificação da nossa existência. “Saumanasya” significa,
literalmente, “uma boa mente”, ou “um estado mental
feliz”, traduzido aqui como “alegria”. “Eka-agrya” significa,
literalmente, “um ponto”, ou seja, a capacidade de manter-
se focado. No Bhagavad-gītā, também encontramos que
manter o foco é uma qualidade essencial para o sucesso em
yoga. “Indriya-jaya” é “vitória sobre os sentidos”, um dos
objetivos primários do yogī para poder fazer verdadeiro
avanço. Se nossos sentidos nos puxam para todos os lados,
exigindo todo tipo de gratificação, não haverá possibilidade
de usarmos nosso corpo para o avanço em yoga.
Primeiramente, devemos estar em pleno controle do
veículo, para depois podermos guiá-lo ao destino desejado.
“Ātma-darśana” significa “visão do eu”, ou “capacidade de
se enxergar”. E o último benefício é “yogyatvāni”, que
significa “estar apto para o yoga”. Em outras palavras, sem
cultivar a limpeza (do ambiente, dos hábitos, do corpo e da
mente), não há possibilidade de avançar em yoga.
Quem duvidar disso, pode praticar e experimentar os
resultados. Logo verá o quão importante é essa pureza. A
limpeza externa é sem dúvida muito importante, mas é
internamente que é especialmente importante, cultivando
pensamentos puros e vibrações transcendentais. Sabemos o
quão importante é beber água pura, respirar ar puro, comer
comidas puras (orgânicas, integrais e naturais). Então, não
é difícil compreender a importância de viver num ambiente
e num corpo puros, bem como cultivar um coração puro.

2.42

saṁtoṣād anuttamaḥ sukha-lābhaḥ


Da satisfação obtemos a maior felicidade.

O  mundo parece imperfeito, e praticamente todos os dias


nos sujeitamos a situações desagradáveis, à frustração de
nossos planos, a agressão etc. Isso ocorre porque não
somos o īśvara, o controlador (Senhor). A arte da felicidade,
portanto, está em não mais depender desses
acontecimentos externos. Necessitamos aprender que a
verdadeira felicidade (bem-aventurança) já existe
naturalmente dentro de nós, nada tendo a ver com nosso
corpo ou com o que acontece ao seu redor. Patañjali aqui
usa o termo “anuttama”, indicando que não há felicidade
superior àquela que é atingida pela satisfação. O caminho
do yoga existe para que nos restabeleçamos nessa
plataforma divina de existência. Não há nem nunca haverá
satisfação na gratificação dos sentidos, nem no acúmulo de
bens. Isso é óbvio, mas, ainda assim, vez por outra caímos
nessa armadilha. Portanto, é necessário cultivar esse estado
de satisfação com aquilo que vem automaticamente de
nossos esforços, não importando se for pior, igual ou melhor
do que esperávamos, para que obtenhamos essa felicidade
natural. A forma mais fácil de obter este resultado é através
da devoção ao Senhor, sabendo que tudo o que recebemos
e tudo o que acontece conosco é uma benção para nos
ajudar a mais rapidamente atingir a perfeição do yoga (a
união com o Senhor).

2.43

kāya-indriya-siddhir aśuddhi-kṣayāt tapasaḥ


Da austeridade – da destruição das impurezas –, vem
a perfeição do corpo e dos sentidos.

A  prática da austeridade tem o poder de destruir as


impurezas, tanto grosseiras quanto sutis, de nossa
existência, deixando o corpo e os sentidos perfeitos. É
comum encontrar nas escrituras védicas descrições de
grandes sábios que praticavam rígidas austeridades por
anos a fio, adquirindo com isso poderes sensoriais sobre-
humanos. Num nível mais acessível e prático, ao viver uma
vida simples (sem indulgências degradantes), com uma
dieta pura e hábitos regulados (que é uma espécie de
austeridade), naturalmente nossa saúde se torna muito boa
e nossos sentidos funcionam muito bem.

2.44

svādhyāyād iṣṭa-devatā-saṁprayogaḥ
Do estudo de textos sagrados, vem a comunhão com
a deidade escolhida.

O  grande valor decorrente de estudar os textos sagrados é


que imediatamente entramos em comunhão com a deidade
abordada no texto sob estudo. Ao lermos textos que falam
do Senhor, podemos entrar em comunhão direta com o
Senhor, obtendo toda uma gama inconcebível de resultados
divinos. Esta é uma prática seguida e recomendada por
pessoas santas e piedosas desde tempos imemoriais, em
todas as partes do mundo.
Aqui, o termo “iṣṭa-devatā” significa literalmente “a deidade
escolhida”. Na cultura védica, como em outras culturas
antigas, existem descrições de vários deuses da natureza,
controladores secundários do cosmo, também conhecidos
como “semideuses”. A compreensão existente era que
certas pessoas mais materialistas não tinham inclinação
para adorar o Senhor diretamente, motivo pelo qual
adotavam a adoração a uma deidade cujas bênçãos e cuja
presença poderiam ser mais facilmente percebidas. As
escrituras deixam claro, porém, que, muito além de todos
esses semideuses, está o Senhor e que adorá-lO é o
propósito final de todos os processos. O próprio Yoga-sūtra
declara este objetivo repetidamente, e o próximo sūtra
enfatizará de forma definitiva este ponto. Porém, mesmo
para aqueles que adoram o Senhor, existem diferentes
aspectos dEle (como “o Deus invejoso” do Antigo
Testamento, o “Pai” do Novo Testamento, e o Deus “Todo-
Atraente”, Kṛṣṇa, das escrituras confidenciais védicas). Tal
como no sūtra 1.39, Patañjali aqui utiliza uma linguagem
não sectária (própria ao yoga), a qual, contudo, não
estimula a leviandade ou a imaginação caprichosa na
definição dos detalhes de nosso caminho espiritual.

2.45

samādhi-siddhir īśvara-praṇidhānāt
Da devoção ao Senhor, vem a perfeição do transe.

O último dos oito componentes do yoga (descrito no sūtra


2.29) é samādhi, traduzido como “transe”. Este é o estágio
final, a perfeição do yoga. Há, porém, diferentes graduações
dessa perfeição. Mas aqui Patañjali declara que a “perfeição
da perfeição” vem de īśvara-praṇidhāna ou, literalmente,
“devoção ao Senhor”.
Este sūtra encerra as descrições do segundo componente
do yoga, composto das observâncias (niyama).

2.46

sthira-sukham āsanam
A postura do yoga é firme e confortável.

Apesar de a palavra “āsana” significar literalmente “um


assento”, ou “uma postura sentada”, é também usada nos
textos de sabedoria com o significado de “postura diante da
vida”, ou seja, a maneira como nos situamos em nossa vida.
Assim, num sentido superficial, este sūtra afirma que a
postura a ser usada nas práticas de yoga deve ser firme e
confortável. Mas, num sentido mais profundo, significa que
devemos encarar nossa prática do yoga também de forma
firme e confortável. Ou seja, nem de forma dura demais,
nem frouxa demais. Se o assento (a postura diante da vida)
for confortável demais, poderemos dormir ou nos
acomodarmos. Se for duro demais, poderemos não suportar
e desistiremos da prática. Temos de buscar esse equilíbrio, o
qual será diferente para cada um de nós. Um dos grandes
desafios do sucesso em yoga é nos mantermos nesse
equilíbrio, adaptando-o de acordo com nossa evolução.

2.47

prayatna-śaithilya-ananta-samāpattibhyām
Atinge-se isso relaxando o esforço e ficando como
Ananta.

Ananta, que literalmente significa “sem fim”, é uma


serpente divina (uma forma de Deus) que descansa sobre
as águas cósmicas. Ananta tem como papel acomodar o
Senhor Viṣṇu, a forma de Deus responsável pela origem e
manutenção da criação cósmica. Entre praticantes do yoga,
existe uma pequena controvérsia no que tange à definição
exata de quem seria o Senhor (īśvara), mencionado tantas
vezes por Patañjali. Alguns dizem que o Senhor é Śiva, e
outros, que é Viṣṇu. Nota-se, porém, que não há qualquer
menção ao Senhor Śiva no Yoga-sūtra, mas há, aqui,
menção específica do carregador do Senhor Viṣṇu. Este
sūtra é apontado por acadêmicos como uma prova de que o
próprio Patañjali era devotado ao Senhor Viṣṇu, mas que ele
não enfatiza tal ponto diretamente para não criar atrito
entre os praticantes de yoga que adoram Śiva, indicando
que esta polêmica é muito antiga. Outros textos védicos,
em especial o Bhagavad-gītā, também confirmam que Kṛṣṇa
(a origem de Viṣṇu) é o Supremo Senhor.
Apesar de não confirmado por textos sagrados, é popular a
ideia de que Patañjali era uma encarnação de Ananta.

2.48

tato dvandva-anabhighātaḥ
Assim, fica-se inatingido pelas dualidades.

Estando bem situado em yoga, as dualidades da vida não


têm a capacidade de nos atingir. Podemos medir nosso grau
de sucesso em nosso posicionamento em yoga através
desse parâmetro.
As dualidades são os conceitos mundanos de bom e mau,
frio e quente, ganho e perda, prazer e dor etc., no sentido
específico de como encaramos tais eventos. Ficar livre das
dualidades não significa que o yogī deixará de perceber se
está quente ou frio. Ele apenas não se perturbará ou se
agitará desnecessariamente, pois seu objetivo existencial
primário não é buscar o conforto externo, o qual é
sabidamente efêmero e inatingível a longo prazo. Ao
evoluirmos no caminho do yoga, ficamos gradualmente
livres dessa dependência em relação às condições externas,
experimentando um padrão crescente de paz e felicidade,
fruto da consciência transcendental.

2.49
tasmin sati śvāsa-praśvāsayor gati-vicchedaḥ prāṇāyāmaḥ
Nesse estado, atingimos o controle da respiração
regulando o fluxo da inalação e da exalação.

Esta é a definição do terceiro componente do yoga, o


prāṇāyāma, ou controle da respiração. Mesmo do ponto de
vista mais mecânico, é de conhecimento comum que, ao
controlarmos a respiração, respirando de forma profunda e
regulada, podemos nos acalmar.
É importante, porém, realçar que o prāṇa é mais do que
simplesmente o “ar”. É a energia vital, conhecida na cultura
chinesa como o “chi” (escrito também como “qi”). Prāṇa é a
força que mantém os organismos em funcionamento.
Num sentido mais abstrato, mas não menos importante,
controlar o prāṇa significa controlar nossa energia como um
todo, ou, em última análise, controlar como utilizamos
nossa vida.

2.50

bāhya-abhyantara-stambha-vṛttiḥ deśa-kāla-saṁkhyābhiḥ
paridṛṣṭo dīrgha-sūkṣmaḥ
O fluxo da respiração é constituído de inalação,
exalação e retenção, podendo ser superficial ou
profundo, de acordo com onde, por quanto tempo e
por quantos ciclos é mantida.

Aqui, Patañjali apresenta uma breve descrição das


modalidades de exercícios de respiração, que basicamente
significa regular a profundidade, o tempo e o número de
ciclos respiratórios dos diferentes processos de inalar,
exalar e reter a respiração.

2.51

bāhya-abhyantara-viṣaya-ākṣepī caturthaḥ
Um quarto tipo vai além da inalação e exalação.

Os três tipos de respiração que podem ser trabalhados de


diferentes formas, conforme o sūtra anterior explica, são
inalação, exalação e retenção. Além desses, existe um
quarto (caturthaḥ) controle da energia vital, que vai além
(ākṣepī) do processo mecânico de respirar.

2.52

tataḥ kṣīyate prakāśa-āvaraṇam


Com isso, a cobertura da iluminação é removida.

Como resultado (tataḥ) do domínio do controle da


respiração, ou da energia vital, a cobertura (āvaraṇa) da
iluminação (“prakāśa” significa também “revelação”) é
removida (kṣīyate).
Uma forma de compreender este sūtra, baseado em outros
sūtras do Yoga-sūtra e em outros textos do yoga, como o
Bhagavad-gītā, é que podemos atingir a iluminação (a
transcendência) quando corretamente controlamos e
guiamos nossa energia, ou seja, nossa vida.

2.53
dhāraṇāsu ca yogyatā manasaḥ
Então, a mente se torna capaz de se concentrar.

Controlando a respiração (energia vital), dotamos nossa


mente com grande poder de concentração (dhāraṇā), que é
o sexto componente do yoga. A concentração é possível
somente com a retração dos sentidos (pratyāhāra), o quinto
componente do yoga, o qual será a seguir explicado. Afinal,
não é possível nos concentrarmos se nossa atenção estiver
“no mundo”, buscando informações sensoriais.

2.54

sva-viṣaya-asaṁprayoge cittasya sva-rūpa-anukāraiva


indriyāṇāṁ pratyāhāraḥ
A retração dos sentidos é como uma imitação da
forma intrínseca da mente, e isto acontece
quando cada um dos sentidos está desconectado de
seu objeto.

Patañjali aqui está usando, novamente, a linguagem do


sāṅkhya. Na filosofia sāṅkhya, o termo “objeto do sentido” é
utilizado para indicar tudo aquilo com o que os sentidos
podem interagir. A retração dos sentidos só pode ocorrer,
então, quando todos os sentidos encontram-se separados
dos objetos dos sentidos. É importante entender que são
todos os sentidos simultaneamente, pois basta um único
sentido estar desgovernado para arrastar a consciência e
destruir a concentração, o que dizer da meditação e do
transe.
Manter os sentidos nos objetos dos sentidos significa viver
em consciência mundana. Portanto, ao retrair todos os
sentidos, assumimos, mesmo que de forma temporária (por
isso a palavra “imitação”), o estado original que buscamos –
a forma intrínseca da mente.

2.55

tataḥ paramā vaśyatā indriyāṇām


Com isto, obtém-se o supremo controle dos sentidos.

Este é um dos importantes objetivos do yoga – controle dos


sentidos. Sem esse controle dos sentidos, não há
possibilidade de elevarmos a consciência além do plano
mundano onde os sentidos mundanos operam. O que dizer
de experimentar a transcendência. Sem controle dos
sentidos, não há possibilidade de viver de forma digna,
centrada e proveitosa, mesmo no plano mundano.
Terceira Parte

Vibhūti-pāda
Os Poderes 

3.1

deśa-bandhaś cittasya dhāraṇā


Concentração é prender a consciência em um único
lugar.

A  terceira parte do Yoga-sūtra começa definindo o sexto


componente do yoga, concentração (dhāraṇā), de forma
muito objetiva.

3.2

tatra pratyayaikatānatā dhyānam


Meditação é fixar a consciência em um único objeto.

Aqui, o sétimo componente do yoga, meditação (dhyāna), é


descrito. A meditação é mais intensamente focada do que a
concentração. Concentração significa manter a consciência
dentro de um campo restrito, enquanto a meditação
significa manter a concentração totalmente focada em um
único objeto. Vale ressaltar que ambas as práticas são muito
difíceis, e só é possível dominá-las passando primeiramente
pelas demais etapas iniciais do yoga. Tornou-se popular a
ideia de que meditar significa ficar sentado com os olhos
semicerrados ou fechados, tentando apenas “enxergar” os
pensamentos passando pela mente. Mas isto, na verdade,
não é meditação. Isso é a mera observação do estado
conturbado da mente, devendo apenas servir de estímulo
para seguirmos seriamente o caminho do yoga e, assim,
controlar de fato os processos mentais.
Outro ponto importante é entender que, quando se fala em
manter a consciência focada em um único “lugar”, ou
“objeto”, não se está falando de coisas mundanas (como um
ponto na parede). Como já mencionado anteriormente, as
fases de concentração e meditação foram precedidas pela
retração dos sentidos de todos os seus objetos
(“pratyāhāra”, o quinto componente do yoga). Assim,
necessariamente o “lugar” e o “objeto” são de natureza não
mundana, ou seja, são transcendentais. Patañjali não entra
em maiores detalhes sobre estes pontos no Yoga-sūtra, mas
indica como obter essa informação ao enfatizar, na segunda
parte do livro, que a prática do yoga exige o estudo das
escrituras e a devoção ao Senhor. Outros textos de yoga,
como o Bhagavad-gītā, definem melhor estes detalhes.

3.3

tad eva artha-mātra-nirbhāsaṁ sva-rūpa-śūnyam iva


samādhiḥ
Transe é a pura meditação que ilumina apenas o
objeto, ao ponto que o sujeito parece perder sua
forma.

O  último componente do yoga é o transe (samādhi). O


transe é a meditação levada ao ponto extremo, onde
apenas o foco da consciência, ou o objeto da meditação,
fica iluminado, e o próprio yogī perde qualquer noção de si
mesmo. Muito importante realçar que o termo aqui é
“parece perder sua forma” (sva-rūpa-śūnyam iva). O yogī
nunca perde realmente sua forma ou existência, pois
Patañjali já deixou claro, na primeira parte do livro, que uma
das conquistas do yoga é encontrar nossa forma eterna,
nossa individualidade pessoal eterna.

3.4

trayam ekatra saṁyamaḥ


Estes três [concentração, meditação e transe]
focados em um único ponto constituem a perfeita
disciplina.

O  autocontrole total, ou perfeita disciplina (saṁyama),


significa manter este foco absoluto no objeto final de
meditação.

3.5

taj-jayāt prajñālokaḥ
Ao conquistar isso, a sabedoria é revelada.

Esta perfeita disciplina nos leva à pura sabedoria. Patañjali


está aqui enfatizando o objetivo de todas as práticas
mencionadas anteriormente.

3.6
tasya bhūmiṣu viniyogaḥ
Esta prática é realizada em etapas.

Tendo explicado o auge do processo do yoga (a disciplina


perfeita) e seu resultado (pura sabedoria), Patañjali agora
volta a enfatizar que a perfeição do yoga só pode ser
atingida gradualmente, havendo a necessidade, portanto,
de seguirmos um método autorizado e definido.

3.7

trayam antar-aṅgaṁ pūrvebhyaḥ


Em contraste com os outros, estes três componentes
são internos.

Para nos ajudar a melhor entender os oito componentes do


yoga, aqui Patañjali explica que há uma divisão natural
entre os cinco primeiros e os três últimos. Os cinco
primeiros determinam a relação do ser vivo (o eu) com o
mundo externo – o que fazer, o que não fazer, como se
situar, como controlar a respiração e a energia vital e,
finalmente, como retirar os sentidos do mundo. Os três
últimos, porém, são funções internas – concentrar, meditar
e situar-se em transe. Para se obter sucesso nesses três
últimos, porém, é preciso ser bem-sucedido nos cinco
primeiros. Caso contrário, as tentativas de concentrar,
meditar e atingir o transe serão prematuras e infrutíferas,
pois nossa consciência ainda estará fora de controle,
envolvida com o mundo externo.

3.8
tad api bahir-aṅgaṁ nirbījasya
Mesmo estes três é uma parte externa do transe sem
semente.

Mesmo os componentes internos do yoga são ainda tingidos


com aspectos não transcendentais e, portanto, “externos”
aos estágios mais elevados de transe sem semente (nirbīja-
samādhi). O transe sem semente é um estado liberado no
qual não há mais esforço para manter a consciência livre da
matéria (livre da ilusão). Este transe sem semente já foi
explicado no sūtra 1.51 (e nos sūtras que o precedem).

3.9

vyutthāna-nirodha-saṁskārayor abhibhava-prādurbhāvau
nirodha- kṣaṇa-citta-anvayo nirodha-pariṇāmaḥ
A transformação em direção à cessação é um
processo de reforçar as impressões subliminares da
cessação vencendo os condicionamentos mundanos,
e é acompanhada por momentos mentais de
cessação.

Este sūtra inicia uma subseção, cujo tema é pariṇāma, ou


“transformação”. Devemos lembrar que a cessação
(nirodha) mencionada é no sentido mundano – o cessar dos
processos mentais mundanos baseados no desfrute
egocêntrico da realidade –, e não no sentido de cessação
absoluta da realidade, como alguns comentadores por vezes
interpretam.
O processo do yoga é gradual, e aqui Patañjali nos explica o
que acontece nos momentos mais avançados, nos quais o
praticante já conquistou os primeiros cinco componentes do
yoga e agora está agindo internamente nos últimos três.
Esta fase tem como objetivo a reta final do yoga, descrita
no sūtra 1.2: o controle dos processos mentais, que significa
a cessação dos processos mentais mundanos. Durante este
processo, existe a competição entre dois tipos de
saṁskāras. A palavra “saṁskāra” foi traduzida
anteriormente como “condicionamentos sutis”, ou
“condicionamentos mundanos”, mas aqui (e no próximo
sūtra) também pode ser mais bem traduzida como
“impressão subliminar”, quando se refere a algo positivo
para o praticante de yoga. Estes dois saṁskāras são, então,
os condicionamentos mundanos sutis (vyutthāna-saṁskāra)
e as impressões subliminares do estado iluminado (nirodha-
saṁskāra). Ou seja, nesta etapa, o yogī já conseguiu
vislumbrar esse estado iluminado de consciência
transcendental, mas não consegue manter-se nele, e essa
impressão o impele e o guia para cada vez mais se situar
assim e cada vez menos se manter nos estados “distraídos”
dos condicionamentos mundanos.

3.10

tasya praśānta-vāhitā saṁskārāt


Esse fluxo sereno [da transformação] vem da
impressão subliminar [da cessação].

Atransformação, ou a evolução da consciência, é um fluxo


(vāhitā) sereno (praśānta). Não é algo traumático ou
instantâneo. E aqui Patañjali reforça que são esses
vislumbres de consciência transcendental que impelem o
praticante de yoga em seu caminho rumo à perfeição.
Afinal, uma vez que experimentamos mesmo que uma gota
desse estado divino, dessa bem-aventurança, não nos resta
dúvida de que temos de seguir em frente. Não há nada,
absolutamente nada, que sequer se aproxime dessa
experiência. É verdadeiramente um “gosto superior”, como
é descrito no Bhagavad-gītā, no verso 2.59.

3.11

sarva-arthataika-agratayoḥ kṣaya-udayau cittasya samādhi-


pariṇāmaḥ
A transformação em direção ao transe é a redução da
atenção nos objetos externos e o aumento da
atenção num único ponto.

Agora, Patañjali descreve outra transformação, além do


mero cessar dos processos mentais mundanos, que é a
transformação que leva ao transe. E a explicação básica é
que esta transformação pode ser medida pela redução da
fixação da consciência em qualquer objeto mundano e o
subsequente aumento da consciência unicamente focada no
Absoluto.

3.12

tataḥ punaḥ śāntoditau tulya-pratyayau cittasyaikāgratā-


pariṇāmaḥ
Por outro lado, a transformação da fixação num único
ponto acontece quando a mente está equilibrada em
consciência pacífica e crescente.
Aqui, consciência pacífica (śānta) significa um estado
mental no qual estamos pacificando um estado não ideal de
consciência, enquanto consciência crescente (uditau)
significa um estado mental favorável que está surgindo na
mente, como consequência. E, quando estes dois estados
estão cada vez mais próximos um do outro, chegamos ao
ponto (realizando a transformação) de ter nossa consciência
fixa num único ponto.
Em termos práticos, isso é bem real e simples na vida do
praticante de yoga. A cada instante (não distraído!), o
praticante de yoga está observando seu estado mental,
tentando manter sua concentração, meditação e,
finalmente, seu transe na transcendência. Neste processo,
surgem interferências que nos tiram dessa rota ou desse
estado e imediatamente precisamos lidar com isso (pacificar
a turbulência), novamente direcionando nossa atenção
corretamente (elevando-a). Quanto mais neófitos somos,
maior é a diferença entre um estado e outro. Mas, na
medida em que progredimos, constatamos que as
diferenças diminuem, e que nos encontramos numa “faixa”
cada vez menor e mais elevada de consciência, até que não
haja mais diferença ou variação de grau. Neste ponto,
atingiu-se o perfeito transe.

3.13

etena bhūtā-indriyeṣu dharma-lakṣaṇa-avasthā-pariṇāmā


vyākhyātāḥ
Com isso, explicam-se as transformações de
propriedades, características e condições dos
elementos materiais e órgãos dos sentidos.
As transformações explicadas nos sūtras 3.9-12 criam um
efeito que transforma também a realidade em torno do yogī.
Uma maneira simples de compreender este ponto é
fenomenológica: na medida em que nossa consciência
muda, vemos tudo de forma diferente. As coisas não mais
parecem as mesmas, e nossos órgãos dos sentidos já não
têm os mesmos desejos ou falhas. Nossos gostos mudam,
nossos apegos mundanos diminuem. Assim, a realidade se
transforma.

3.14

śānta-udita-avyapadeśya-dharma-anupātī dharmī
O possuidor de propriedades se comporta
diferentemente na medida em que a propriedade
está neutra, ativa ou indefinida.

De uma maneira que parece complicada (devido à tradução


literal do sânscrito), Patañjali está dizendo algo simples.
Todos nós temos propriedades e características variadas,
mesmo no estado liberado de existência. Em um dado
momento, agimos de acordo com alguma propriedade em
nós, a qual pode variar de intensidade (de perfeitamente
ativa a perfeitamente neutra). Podemos, por exemplo, ter a
propriedade de gostar de brincadeiras (bom humor). Mas,
num momento, isto pode estar bastante ativo e, em outro,
pode estar aparentemente ausente (neutro), ou pode ser
algo entre esses dois extremos.

3.15
krama-anyatvaṁ pariṇāma-anyatve hetuḥ
A razão para a diferença nas transformações está na
diferença entre as sequências.

A transformação espiritual tem um progresso diferente para


cada um de nós, apresentando diferentes sequências. Isso
ocorre devido ao fato de possuirmos diferentes
propriedades individuais e também pelo fato de que existe
um controlador ativo (īśvara), o Senhor. Cada um de nós,
portanto, interage com o Senhor durante o progresso da
evolução espiritual e, assim, cada qual segue seu caminho
particular rumo à iluminação.
Este sūtra encerra a subseção que trata das
transformações. Deste ponto até o final da terceira parte,
serão descritos os diferentes poderes especiais e
conhecimentos obtidos pelo yogī.
O conteúdo dos próximos sūtras em geral poderá parecer
estranho, mitológico ou falso. O fato é que serão descritos
resultados obtidos a partir de um nível de perfeição no yoga
de oito componentes (aṣṭāṅga-yoga) praticamente
inatingível nos dias de hoje. Caso haja algum yogī com uma
fração desses poderes no mundo hoje, ele certamente
estará sendo muito humilde e se mantendo em reclusão (o
que faz sentido, pois, para atingir esse nível de perfeição, é
necessário morar em um lugar muito afastado e já ter
vencido o orgulho ou desejo por fama). Infelizmente, é
comum ouvir pessoas dizerem que possuem poderes ou que
podem ensinar tais poderes, mas, na prática, nada é
comprovado. Quando algo é visto, é completamente
insignificante diante do que será descrito, esporádico ou
simplesmente um truque (ilusionistas fazem hoje coisas
mais impressionantes do que qualquer autodeclarado
avatāra de Deus).
É fato, porém, que as escrituras e textos védicos contêm
inúmeros exemplos e descrições de tais poderes, e que
todos eles têm um ponto em comum, de que o poder ou
conhecimento sobrenatural é obtido através da perfeita
concentração da mente em um determinado aspecto da
realidade. Vale lembrar que esta prática foi descrita
anteriormente e implica na completa absorção da
consciência de maneira totalmente objetiva e livre de
condicionamentos. Algo nada barato ou fácil de atingir, e
que é possível somente depois de todo um trabalho de
perfeito autocontrole, perfeita observância, perfeito
posicionamento, perfeito controle da energia vital e perfeita
capacidade de recolher os sentidos dos objetos dos sentidos
(os primeiros cinco componentes do yoga). Encontramos
descrições nos textos védicos de yogīs que meditavam por
milhares ou dezenas de milhares de anos para atingir esses
poderes, pois a duração de vida era superior em outras
eras.
Outro ponto a ser levado em consideração é que, na cultura
védica, existe o conceito de que tudo está interligado
(conceito esse que se tornou muito apreciado depois da
popularização das teorias de física quântica). Os Vedas
contêm descrições muito detalhadas de diferentes fórmulas
para ativar e acessar essa interligação dos diferentes
aspectos do cosmos, através de vibrações sonoras
(mantras), geometria, uso de materiais específicos, fogos
sagrados, rituais e meditação. É dito também que essas
técnicas, em geral, não podem ser realizadas na era atual
(que começou há 5200 anos), por falta do ambiente
apropriado e de pessoas qualificadas para administrar esses
intricados processos.
Muito importante ainda é entender que esses poderes não
são o objetivo da prática do yoga. No Yoga-sūtra e em
outros textos védicos, é claramente declarado que o
praticante de yoga que se apegar a esses poderes, ou
mesmo apenas desejá-los, estará perdendo tempo, correndo
risco de perder seu avanço, e se desviando do objetivo
último – que é justamente se livrar de todos os desejos
egocêntricos e obter a comunhão perfeita (yoga) com o
divino.

3.16

pariṇāma-traya-saṁyamād atīta-anāgata-jñānam
Conhecimento do passado e do futuro é obtido pelo
total controle das três transformações.

Resumindo os sūtras anteriores, as transformações são: 1) a


transformação em direção ao controle dos processos
mentais, 2) a transformação em direção ao transe e 3) a
transformação de lidar com os fluxos mentais positivos e
negativos rumo à iluminação.
Estes três processos significam controle mental e conexão
ao divino, e aqui Patañjali está nos dizendo que isto traz um
conhecimento do passado e do futuro. Tal afirmação faz
sentido, visto que o Senhor certamente sabe tudo sobre o
passado e o futuro e que, portanto, o contato com Ele,
combinado com a paz e pureza mental da prática séria das
três transformações, pode nos dar acesso a este tipo de
informação. Outra forma de compreender este sūtra é
entendendo que existe conhecimento por toda parte: nas
estrelas, na fisionomia, nas pedras, nas folhas de chá, na
íris, na mão etc., e, ao limparmos a mente do lixo das
qualidades mundanas egocêntricas, revelamos cada vez
mais nossa natureza divina e assim nos abrimos a novos
canais de informação.
3.17

śabda-artha-pratyayānām itara-itarā-adhyāsāt saṁskaraḥ


tat-pravibhāga-saṁyamāt sarva-bhūta-ruta-jñānam
Confusão surge ao identificar erroneamente
palavras, objetos e ideias um com o outro; da
perfeita disciplina da distinção entre eles, obtém-se a
compreensão dos sons de todas as criaturas.

O problema está em impor (adhyāsa) a confusão (saṁskara)


de palavras, objetos e ideias (śabda-artha-pratyayāna) entre
si (itara-itarā). Pela perfeita disciplina ou controle
(saṁyamā) da distinção entre eles (tat-pravibhāga),
atingimos o conhecimento (jñāna) do som ou chamado de
todas as criaturas (sarva-bhūta-ruta).
Se pararmos por um momento e pensarmos no assunto,
poderemos perceber que, quando contemplamos um
determinado objeto, há uma tendência natural em
aglomerar, como algo único, tanto a ideia, quanto o nome,
como o objeto em questão. Experimente, por exemplo,
pensar num objeto a sua frente e separar o objeto em si do
nome a ele dado e das ideias que guarda em relação a ele.
Veja o objeto sem rótulos, veja o nome e como outros
nomes existem para ele (em outras línguas etc.) e analise
as ideias que carrega em relação a esse objeto. Isso
significa encarar a realidade de forma pura, desvendando a
ilusão.
Ao obter perfeição nesta prática, Patañjali afirma que
poderemos obter o poder de desvendar e compreender os
sons emitidos por todas as criaturas. Outra forma de
compreender esse poder é obtido ao interpretar a palavra
“ruta” no seu sentido literal de “choro”. Ou seja, ao
desenvolver perfeita objetividade sobre a realidade,
obtemos perfeita empatia com todas as criaturas.

3.18

saṁskāra-sākṣāt-karaṇāt pūrva-jāti-jñānam
Ao observar diretamente o condicionamento
sutil,surge o conhecimento de vidas passadas.

Aqui, a palavra “sākṣāt” significa literalmente


“testemunhar”. Ao testemunharmos nossos
condicionamentos sutis (saṁskāra), podemos entender
nossos nascimentos anteriores. A causa existe no efeito.
Isso não é tão difícil de entender, pois a psicologia moderna
é baseada no conceito de estudar os condicionamentos
atuais para entender o que ocorreu no passado. Um
determinado psicólogo se tornou muito famoso ao usar a
hipnose (uma técnica para acessar nosso inconsciente, ou
saṁskāras) para revelar as vidas passadas de seus
pacientes. O que é fascinante é que Patañjali falou sobre
isso praticamente dois mil anos atrás, com uma linguagem
muito científica.

3.19

pratyayasya para-citta-jñānam
Ao observar diretamente a consciência, surge o
conhecimento da mente de outros.
É  sabido que um psicólogo bem treinado, ou uma pessoa
madura e experiente, que já observou bastante o
funcionamento da mente, consegue compreender
(conhecer) a mente de outros. O yogī precisa ser um
perfeito psicólogo de si mesmo (o caminho do yoga já foi
bastante comparado à psicologia), pois yoga significa ter
esse total controle da própria mente e suas transformações,
obtendo, assim, uma consciência perfeitamente clara,
calma e focada.

3.20

na ca tat sālambanaṁ tasya aviṣayī-bhūtatvāt


Esse conhecimento, contudo, não inclui o
conhecimento do conteúdo da mente de outros,
porque isto não é um objeto de percepção.

Há um limite no poder citado no sūtra anterior. Patañjali


está dizendo que este poder de conhecer a mente dos
outros não significa literalmente saber tudo o que se passa
na cabeça do outro, mas sim compreender a outra pessoa
de forma profunda, tal como um psicólogo experiente, ou
como fazemos com uma pessoa com quem temos um
profundo e longo relacionamento.

3.21

kāya-rūpa-saṁyamāt tad-grāhya-śakti-stambhe cakṣuḥ-


prakāśa-asaṁprayoge ’ntardhānam
Pelo completo controle da forma do corpo, pode-se
ficar invisível, bloqueando o poder de perceber o
corpo e interferindo na aparência
do corpo nos olhos dos outros.

Aqui, o termo “torna-se invisível” é “antardhāna”, que é


composto por duas palavras: dentro (antar) e colocar
(dhānam).
Seria como sair do mundo externo e entrar no mundo
interno. É comum nas escrituras védicas encontrar relatos
de grandes sábios, yogīs e outros seres celestiais que
possuem o poder de desaparecer da visão das pessoas.
Patañjali nos explica que esta habilidade acontece ao
conseguir impedir (interromper) o poder dos outros de
perceberem o corpo, que é provocado pelo poder de
controlar por completo a forma externa do corpo.

3.21a

etena śabda-ādi-antardhānam uktam


Por essa habilidade, é dito que o som etc. tornam-se
imperceptíveis.

Este sūtra não aparece em todos os Yoga-sūtras, por isso


aqui foi identificado como 3.21a. Ele explica que o mesmo
poder mencionado no sūtra anterior pode ser aplicado ao
som que emitimos etc. Por exemplo, pouco adianta ser
invisível se nossos passos ou o som de nossa roupa podem
ser ouvidos, se nosso cheiro é perceptível etc.

3.22
sa-upakramaṁ nirupakramaṁ ca karma tat-saṁyamād
aparānta-jñānam ariṣṭebhyo vā
As reações kármicas incluem aquilo que  já está
acontecendo e o que ainda está para acontecer; pelo
perfeito controle de karma, ou dos presságios, surge
o conhecimento do fim último, ou da morte.

Nosso corpo, nossa situação econômica, nosso nível


intelectual etc. são resultados ativos de nosso karma. Além
destes, existe um estoque de reações kármicas que estão
por acontecer. Aqui, Patañjali afirma que, ao obter perfeito
controle (ou conhecimento) desse estoque de karma já ativo
e daquele ainda não vivido, ou por obter perfeito
conhecimento dos presságios, podemos chegar ao ponto de
predizer o momento de nossa própria morte, ou seja, o fim
desta encarnação atual. Isso pode parecer um tanto
macabro, mas, para o transcendentalista, esta informação é
muito útil, pois permite melhor preparo para este momento
de transição tão importante.

3.23

maitryādiṣu balāni
Pela perfeita disciplina em amizade etc., surgem seus
respectivos poderes.

Aqui, “amizade etc.” refere-se ao sūtra 1.33, que lista:


amizade com pessoas felizes, misericórdia para com as
pessoas infelizes, prazer com pessoas piedosas e
indiferença com as impiedosas.
3.24

baleṣu hasti-balādīni
Pela perfeita disciplina dos poderes, obtém-se a força
do elefante etc.

Os poderes existem por si mesmos, mas se manifestam em


diferentes formas, como a força no elefante, o poder de
respirar embaixo d´água dos peixes, o poder de voar dos
pássaros etc. Aqui, Patañjali afirma que existe uma maneira
de acessar esses poderes diretamente, ao meditar
perfeitamente neles.

3.25

pravṛttyāloka-nyāsāt sūkṣma-vyavahita-viprakṛṣṭa-jñānam
Ao iluminar as atividades da mente, surge o
conhecimento do sutil, oculto e distante.

Aqui, “āloka-nyāsā” significa literalmente “colocar luz”, e o


termo “nyāsā” é utilizado também para colocar marcas
sagradas no corpo com mantras (formando um escudo de
proteção divina ou simplesmente marcando o corpo como
algo a ser utilizado no serviço a Deus – uma prática milenar
muito comum na cultura védica e praticada até os dias de
hoje).
Na medida em que nossa mente é clareada (iluminada)
pelas práticas meditativas, pela devoção, pelo estudo e
pelos demais componentes do yoga, ela naturalmente se
torna um instrumento cada vez mais possante e refinado,
conseguindo, assim, detectar, assimilar ou perceber cada
vez mais coisas.

3.26

bhuvana-jñānaṁ sūrye saṁyamāt


Pela perfeita disciplina no Sol, surge o conhecimento
dos mundos.

Ao focar nossa meditação no Sol, o rei dos astros


(fenomenologicamente dizendo para quem habita a Terra),
podemos obter o conhecimento dos demais planetas
(mundos) que giram em torno do Sol.

3.27

candre tārā-vyūha-jñānam
Pela perfeita disciplina na Lua, surge o conhecimento
das estrelas.

Ao focar nossa meditação na Lua, que predomina o céu


noturno, podemos obter conhecimento dos demais corpos
celestiais visíveis à noite.

3.28

dhruve tad-gati-jñānam
Pela perfeita disciplina na estrela polar, surge o
conhecimento do movimento das estrelas.
A estrela polar mantém-se fixa, e as demais estrelas giram
em torno dela. Patañjali afirma então que, ao fixar a mente
perfeitamente na estrela polar, podemos obter o
conhecimento completo do movimento das estrelas.

3.29

nābhi-cakre kāya-vyūha-jñānam
Pela perfeita disciplina no cakra do umbigo, surge o
conhecimento da formação do corpo.

Na compreensão da medicina védica (āyurveda), o corpo


contém sete cakras, ou centros energéticos. Um deles está
situado dois dedos abaixo do umbigo e representa o sistema
reprodutor, a fonte da criação de demais corpos.

3.30

kaṇṭha-kūpe kṣut-pipāsā-nivṛttiḥ
Pela perfeita disciplina no cakra da garganta,
conquistam-se a fome e a sede.

Aqui, “kaṇṭha-kūpe” significa, literalmente, “cavidade da


garganta” e refere-se ao cakra da garganta.

3.31

kūrma-nāḍyāṁ sthairyam
Pela perfeita disciplina no kūrma-nāḍī, surge a
estabilidade.
O  kūrma-nāḍī é um centro energético (às vezes também
considerado um nervo) que fica próximo à garganta.
“Kūrma” significa “tartaruga”, e seu nome já é assim
porque esse ponto confere estabilidade (firmeza etc.) para a
pessoa (como a estabilidade de uma tartaruga).

3.32

mūrdha-jyotiṣi siddha-darśanam
Pela perfeita disciplina no cakra do topo da cabeça,
surge a capacidade de ver seres perfeitos.

O  termo “mūrdha-jyotis” literalmente significa “luz da


cabeça” e refere-se ao cakra situado no topo da cabeça.

3.33

prātibhād vā sarvam
Pela perfeita disciplina na intuição, realmente surge
o conhecimento de tudo.

3.34

hṛdaye citta-saṁvit
Pela perfeita disciplina no coração, surge completa
compreensão da consciência.
3.35

sattva-puruṣayor atyanta-asaṁkīrṇayoḥ pratyaya-aviśeṣo


bhogaḥ para-arthatvāt sva-artha-saṁyamāt puruṣa-jñānam
A experiência mundana é causada pela não distinção
entre a qualidade lúcida da natureza e o espírito.
Pela perfeita disciplina na distinção entre o espírito
como sujeito de si mesmo e na qualidade lúcida da
natureza como objeto dependente, surge o perfeito
conhecimento do espírito.

Este é o ponto central da evolução espiritual e já foi


diversas vezes enfatizado no Yoga-sūtra, sob diferentes
formas e pontos de vista. A essência está em entender que
existem duas categorias de energia – a espiritual
(transcendental) e a material (natureza). A energia
espiritual é vida e consciência. A energia material é apenas
um objeto dependente da energia espiritual. Quando
confundimos as duas energias (especialmente ao nos
identificarmos com nosso corpo feito de energia material),
então nos prendemos à experiência mundana, à vida
condicionada na plataforma material e, como foi explicado
de forma elaborada na segunda parte do Yoga-sūtra,
sofremos as misérias deste tipo de consciência limitada e
ilusória.
Aqui, o termo “qualidade lúcida da natureza” (sattva) se
refere ao mais elevado modo (guṇa) da natureza material.
Como discutido antes, a compreensão dos diferentes guṇas
é algo central na filosofia sāṅkhya e, portanto, essencial à
prática do yoga. O Bhagavad-gītā explica este assunto mais
detalhadamente. O termo “sattva” é também traduzido
como “modo da bondade” e é caracterizado por paz,
limpeza, discernimento, calma, bondade etc. Aqui, Patañjali
está nos dizendo que o entendimento da diferença entre a
vida sob a influência do modo material da bondade (a mais
elevada piedade material) e a verdadeira vida espiritual é a
forma de adquirir perfeito conhecimento espiritual. Em
outras palavras, é necessário entender perfeitamente a
diferença entre o aspecto mais elevado da natureza
material (sattva) e a verdadeira transcendência ou alma
(puruṣa). O mais elevado estado da natureza material nos
traz saúde, paz, felicidade, conhecimento etc., porém ainda
é material e, por não incluir conhecimento e vivência
transcendentais, não é capaz de nos trazer liberdade eterna
e total.

3.36

tataḥ prātibha-śrāvaṇa-vedana-ādarśa-āsvāda-vārtā jāyante


Este conhecimento fornece formas intuitivas de ouvir,
tocar, ver, degustar e cheirar.

Existe toda uma variedade de experiências na plataforma


transcendental, com todo o campo de emoções e
sensações, pois este é o sintoma da vida. Ao evoluirmos
espiritualmente, não morremos, não deixamos de existir,
sentir ou pensar. Apenas deixamos de fazer isso tudo dentro
da esfera material, que é limitada e temporária, e que, por
isso, nos traz frustração e ansiedade.

3.37
te samādhāv upasargā vyutthāne siddhayaḥ
Ao tornarem-se distrações, estes poderes de
perfeição transformam-se em impedimentos ao
perfeito transe.

Aqui está o alerta, comum aos textos de yoga, sobre os


poderes resultantes do alto grau de poder mental e
concentração (siddhis). O praticante, na verdade, não deve
desejar tais poderes, pois eles criam obstáculos na
obtenção do transe (samādhi). Devemos apenas nos fixar
na pura devoção ao Senhor, a qual Patañjali explicou ser a
causa da verdadeira perfeição do samādhi (veja sūtras 1.23
e 2.45). É a vida nesse perfeito e fixo estado de conexão
com o divino que o yogī deve buscar, pois ela lhe trará
eterna bem-aventurança em sua forma eterna (sūtra 1.3).
Ao desejar poderes mundanos e gozar dos mesmos, o
praticante de yoga apenas cai novamente na medíocre
plataforma material de viver em ilusão egocêntrica.

3.38

bandha-kāraṇa-śaithilyāt pracāra-saṁvedanāc ca cittasya


para-śarīra-āveśaḥ
Ao afrouxar os laços com o corpo e conscientemente
se projetar, os pensamentos podem entrar no corpo
de outro.

De um ponto de vista mais compreensível, Patañjali está


explicando que, ao nos tornarmos menos apegados ao
nosso corpo, podemos mais facilmente compreender os
outros, praticar a empatia. Quanto mais “presos” (bandha)
estamos ao corpo pelos laços de apego, luxúria, ganância
etc., mais difícil é compreender ou ter empatia pelos outros.

3.39

udāna-jayāj jala-paṅka-kaṇṭaka-ādiṣvasaṅga utkrāntiś ca


Por dominar a energia vital que sobe, adquire-se o
poder de não afundar na água, na lama, entre
espinhos etc., elevando-se sobre eles.

No sistema de medicina védica, compreende-se que a


energia vital (ou ar vital) é dividida em cinco componentes.
Um deles é udāna, que é a energia ascendente, ou ar vital
que sobe.
O controle perfeito dessa energia vital que sobe pode nos
tornar mais leves (e o oposto também é verdadeiro:
controlando a energia vital que desce ficamos mais
pesados). Praticantes de Tai Chi Chuan e de outras artes
marciais também aprendem a dominar o fluxo da energia
vital e adquirem habilidades nesse sentido.

3.40

samāna-jayāj jvalanam
Por conquistar a energia vital digestiva, adquire-se
uma aura brilhante.

Outro componente da energia vital é samāna, que é


responsável pelo processo digestivo, ou fogo digestivo.
3.41

śrotra-ākāśayoḥ saṁbandha-saṁyamād divyaṁ śrotram


Pela perfeita disciplina da relação entre o ouvido e o
espaço, adquire-se audição divina.

3.42

kāya-ākāśayoḥ saṁbandha-saṁyamāl laghu-tūla-


samāpatteś ca ākāśa-gamanam
Pela perfeita disciplina da relação entre o corpo e o
espaço e ao se tornar leve como o algodão, pode-se
viajar pelo espaço.

A  cultura védica tem descrições detalhadas do universo e


da vida em diferentes planetas, e há frequentes menções de
viagens interplanetárias em naves ou, em se tratando de
grandes sábios, sem ajuda mecânica alguma (como descrito
neste sūtra).

3.43

bahir akalpitā vṛttir mahā-videhā tataḥ prakāśa-āvaraṇa-


kṣayaḥ
O processo mental sem referência ao mundo externo
é “o grande pensamento não corporificado”, e, por
ele, o véu que encobre a iluminação é destruído.
O  propósito da prática de yoga é controlar os processos
mentais (vṛttis) para que se possa vencer a visão mundana
(escuridão) e adquirir uma forma de pensar que seja livre do
condicionamento corporal (mahā-videha), aqui traduzido de
forma mais literal como “o grande pensamento não
corporificado”. Este estado de consciência além do corpo
(consciência transcendental) destrói o véu da ilusão
(prakāśa-āvaraṇa-kṣayaḥ).

3.44

sthūla-svarūpa-sūkṣma-anvaya-arthavattva-saṁyamād
bhūta-jayaḥ
Pela perfeita disciplina nos aspectos grosseiros,
intrínsecos, sutis, relacionais e propositais dos
elementos da matéria, obtém-se domínio sobre eles.

Agora, Patañjali descreve um nível ainda superior de poder:


bhūta-jayaḥ, “conquista sobre a matéria”. Isso é obtido
perfeitamente meditando nos diferentes aspectos dos
elementos materiais: 1) sthūla, o aspecto grosseiro ou
externo; 2) svarūpa, o aspecto intrínseco ou aquilo que
compõe ou define o elemento; 3) sūkṣma, o aspecto sutil,
fisicamente não detectável, ou seu aspecto potencial; 4)
anvaya, o aspecto relacional ou a maneira com que o
elemento se relaciona com os demais aspectos da
realidade, e 5) arthavattva, o aspecto proposital ou o
propósito do elemento.
Em outras palavras, Patañjali está falando aqui de uma
forma muito profunda e muito detalhada de perfeitamente
compreender a natureza material. O que a ciência moderna
faz é bastante similar a isso – estudando a natureza de
forma minuciosa, obtém cada vez maior domínio sobre ela.

3.45

tato ’ṇima-ādi-prādurbhāvaḥ kāya-saṁpat tad-dharma-


anabhighātaś ca
Com isso, poderes extraordinários surgem, como o
poder de ficar pequeno como um átomo, como
também a perfeição corporal e a imunidade contra as
restrições da matéria.

Na vida condicionada, é comum abusarmos de qualquer


poder que nos é dado. Usamos qualquer “opulência” para
tirar proveito pessoal, dominar os outros etc. Podemos
imaginar, então, o estrago que tais poderes poderiam
causar em uma alma condicionada. Daí o alerta no sūtra
3.37 de que é mais importante cultivar as verdadeiras
qualidades divinas, ou seja, buscar o transe perfeito em
consciência transcendental.

3.46

rūpa-lāvaṇya-bala-vajra-saṁhananatvāni kāya-saṁpat
Perfeição corporal inclui beleza, graça, força e um
brilho como o de um diamante.

3.47
grahaṇa-svarūpa-asmitā-anvaya-artha- vattva-saṁyamād
indriya-jayaḥ
Pela perfeita disciplina nas funções receptivas,
intrínsecas, existenciais, relacionais e propositais dos
órgãos dos sentidos, obtém-se domínio sobre eles.

A  mesma técnica descrita no sūtra 3.44 para analisar os


elementos da natureza também pode ser utilizada para
conhecer e dominar os órgãos dos sentidos do corpo do
yogī.

3.48

tato mano-javitvaṁ vikaraṇa-bhāvaḥ pradhāna-jayaś ca


Com isso, adquirem-se rapidez de raciocínio,
percepção extrassensorial e domínio sobre a
natureza primordial.

Mais um termo da filosofia sāṅkhya é utilizado aqui:


“pradhāna”. No conceito sāṅkhya, aquilo que constitui a
realidade material é precedido por “pradhāna”, “natureza
primordial”. Ou seja, essa natureza primordial é o estado
não agitado, inerte, da natureza material (composta pelos
três modos da natureza material, ou “três guṇas”). Outra
maneira de compreender o pradhāna é como o aglomerado
homogêneo da totalidade da energia material sem o fator
tempo. O termo também é utilizado para descrever a
totalidade da natureza material em geral (já ativa).

3.49
sattva-puruṣa-anyatā-khyāti-mātrasya sarva-bhāva-
adhiṣṭhātṛtvaṁ sarva-jñātṛtvaṁ ca
Pela perfeita compreensão da distinção entre a
qualidade lúcida da natureza e o espírito, surgem a
onisciência e poder sobre todos os estados de
existência.

Novamente, como no sūtra 3.35, Patañjali reforça a


importância da perfeita compreensão entre o aspecto mais
elevado da natureza material (sattva, a qualidade lúcida, ou
modo da bondade) e o ser vivo (puruṣa). Esta perfeita
distinção é o sucesso final do yoga em termos de realização,
situando o yogī firmemente na plataforma transcendental,
livre da ilusão e da lamentação. Neste estado, o ser vivo
tem pleno conhecimento (ao menos no sentido de estar
livre da ignorância) e se situa acima de todos os estados
existenciais (tradução literal de “sarva-bhāva-
adhiṣṭhātṛtva”, aqui traduzido como “poder sobre todos os
estados de existência”).

3.50

tad-vairāgyād api doṣa-bīja-kṣaye kaivalyam


Por não haver apego mesmo a estes poderes, surge a
liberdade do espírito e a destruição da semente do
erro.

Em última análise, estes poderes são apenas a última


tentação para distrair o yogī em seu caminho rumo à
liberdade. Utilizá-los com um grão que seja de egocentrismo
significa gerar karma novamente e, assim, regar as
sementes (bīja) do erro (“doṣa” é uma qualidade ruim, uma
falha e, nesse sentido, uma ação que não está em harmonia
com o divino), emaranhando o yogī novamente nos
condicionamentos mundanos e no ciclo de nascimentos e
mortes do qual ele buscou se livrar. Vale aqui lembrar que
todos nós temos algum grau de poder: algum grau de
inteligência, beleza, força, riqueza, fama e desapego. Assim,
devemos estar muito atentos à maneira como usamos esses
“poderes”, mesmo que aparentemente insignificantes, pois
isso revela nossa natureza e determina nosso destino.
Patañjali nos explica que o yogī precisa estar desapegado
desses poderes místicos quase inconcebíveis, como
também devemos estar atentos a como lidamos com os
insignificantes poderes que temos agora. Ao detectar apego
aos minúsculos e desprezíveis poderes que temos hoje,
podemos analisar o quanto necessitamos nos aprofundar no
caminho do yoga para nos elevarmos.

3.51

sthāny-upanimantraṇe saṅga-smaya-akaraṇaṁ punar


aniṣṭa-prasaṅgāt
Não se deve criar apego ou orgulho em relação às
tentações oferecidas pelos poderosos, caso contrário
surgirá novamente o indesejado.

Patañjali reafirma o alerta do sūtra anterior de modo


negativo. Esta é uma técnica comum nos textos védicos
para enfatizar um ponto importante. O mesmo assunto é
explicado de forma positiva (dizendo que se deve fazer algo
para obter tal bom resultado) e depois negativa (dizendo
que não se deve fazer o contrário daquilo, se não resultados
indesejados serão obtidos). Aqui, “sthāni” significa
literalmente “aqueles bem posicionados, que têm status” e
refere-se aos seres poderosos, como deuses da natureza, ou
ao próprio Senhor.

3.52

kṣaṇa-tat-kramayoḥ saṁyamād viveka-jaṁ jñānam


Pela perfeita disciplina dos momentos e pela
sequência do tempo, obtém-se o conhecimento que
nasce do discernimento.

Este ponto será mais detalhadamente explicado na quarta e


última seção do Yoga-sūtra. A ideia é que o espiritual é
eterno e não mutável, mas aquilo que é material está em
constante transformação. Analisando profundamente o
efeito do tempo sobre a realidade, podemos obter a
realização desta diferença fundamental entre as duas
energias da realidade (material e espiritual), atingindo o
supremo discernimento (viveka) de não mais confundi-los.

3.53

jāti-lakṣaṇa-deśair anyatā-anavacchedāt tulyayos tataḥ


pratipattiḥ
Pelo discernimento, compreende-se a diferença da
origem, característica ou posição que distingue duas
coisas aparentemente similares.
3.54

tārakaṁ sarva-viṣayaṁ sarvathā-viṣayam akramaṁ ca iti


viveka-jaṁ jñānam
O conhecimento nascido do discernimento é
transcendental, inclusivo, relacionado com tudo o
que existe e instantâneo.

3.55

sattva-puruṣayoḥ śuddhi-sāmye kaivalyam iti


Absoluta liberdade é obtida quando a qualidade
lúcida da natureza e o espírito estão puramente em
equilíbrio.

No Bhagavad-gītā e no Śrīmad-Bhāgavatam, encontramos o


termo “śuddha-sattva” (o modo da bondade puro) como
sendo sinônimo de vida espiritual. Ou seja, a vivência no
estado perfeitamente puro da energia material é igual à
vivência na plataforma transcendental. A característica mais
importante do estado puro da natureza lúcida da matéria é
a não existência de quaisquer resquícios das qualidades
inferiores (ou outros guṇas) da matéria, de onde surgem os
apegos, vícios, comportamentos degradantes etc.

Absoluta liberdade é a perfeição máxima (vibhūti, “o poder


máximo”) obtido pelo yogī. É importante entender que este
sūtra, o último da seção dedicada aos poderes do yoga,
enfatiza que a vida espiritual, a vida na plataforma
transcendental, é o objetivo último do yoga. Esta absoluta
liberdade surge não de poderes capazes de afetar as coisas
e as pessoas à nossa volta, ou mesmo nosso corpo, mas da
pureza interna, da pureza da consciência. Liberdade
significa não ser vítima daquilo que é estranho à
consciência pura: os condicionamentos, as influências
materiais, os desejos mesquinhos e egocêntricos, a ilusão
ou, em suma, a ignorância. Ignorância, Patañjali explicou na
segunda parte do Yoga-sūtra, é a fonte de toda miséria e
sofrimento. Outros textos mais confidenciais, como o
Śrīmad-Bhāgavatam, revelam que o sofrimento último
causado pela ignorância é a nossa incapacidade de amar
puramente. Sob os efeitos da ignorância, não conseguimos
amar, nem conseguimos encontrar um objeto definitivo para
o nosso amor. Dominados por desejos egocêntricos e pelos
condicionamentos, não conseguimos expressar o amor de
forma incondicional. E, arrastados para diferentes situações
e corpos, não conseguimos nos fixar num objeto eterno e
perfeito para o nosso amor. Este puro amor só é possível na
plataforma transcendental, ou seja, quando estivermos
completamente livres da ignorância. Somente então
poderemos expressar nossa natureza divina e (re)encontrar
o objeto perfeito de nosso amor. Absoluta liberdade, então,
é a liberdade de poder amar puramente.
Quarta Parte

Kaivalya-pāda
A Perfeita União

4.1

janma-oṣadhi-mantra-tapaḥ-samādhi-jāḥ siddhayaḥ
Os poderes da perfeição podem ser obtidos através
do nascimento, ervas, austeridades e pura
meditação.

Aqui, Patañjali explica que os poderes (como os


mencionados na seção anterior) também podem ser obtidos
de outras formas, além da meditação. Com isso, ele encerra
o assunto de poderes especiais.

4.2

jāty-antara-pariṇāmaḥ prakṛtyāpūrāt
A transformação para outra espécie acontece pela
abundância de uma natureza em particular.

De uma forma simples, Patañjali aqui explica o princípio da


transmigração da alma, ou reencarnação. O conceito védico
sobre transmigração da alma é que cada ser vivo aceita um
determinado tipo de corpo exatamente de acordo com a
característica ou características predominantes da
consciência que cultivou. Ou seja, o corpo material é uma
mera decorrência daquilo que desejamos e merecemos na
plataforma material. O objetivo do yogī, portanto, é cultivar
uma consciência não material e, assim, não mais receber
um corpo material, para então finalmente se livrar do
cansativo ciclo de nascimentos e mortes.
De um ponto de vista ainda imaturo, alguns corpos podem
parecer melhores (como o corpo de um poderoso semideus
da natureza ou um corpo de um grande sábio cósmico
repleto de poderes místicos) e outros inferiores, mas, para a
pessoa com discernimento, são apenas diferentes gaiolas
que em muito restringem nossa liberdade.

4.3

nimittam aprayojakaṁ prakṛtīnāṁ varaṇa-bhedas tu tataḥ


kṣetrika-vat
A causa instrumental não faz com que isso aconteça,
mas sim as diferentes divisões de escolhas de
natureza, assim como faz um fazendeiro.

Um fazendeiro escolhe diferentes sementes para plantar e,


com tempo e cultivo, colherá diferentes frutos. Da mesma
forma, os diferentes tipos de escolhas que fazemos, a cada
instante, trarão certo resultado futuro. O que determina o
próximo corpo não é simplesmente a natureza geral daquilo
que fazemos (causa instrumental), mas sim a qualidade das
escolhas que fazemos. De fato, mesmo a curtíssimo prazo, a
qualidade das escolhas influenciam nosso futuro.
Nos próximos três sūtras, Patañjali discutirá a transformação
do pensamento.

4.4
nirmāṇa-cittānyasmitā-mātrāt
Pensamentos são formados por uma medida de nossa
individualidade.

Como já mencionado anteriormente, o trabalho do


praticante de yoga é predominantemente psicológico. O
yogī que busca aprimorar seus processos mentais,
purificando sua consciência, o faz porque sabe que ele é a
consciência, e não o corpo. Um dos requisitos para o
aprimoramento dos processos mentais é observar a
qualidade dos pensamentos, os quais têm a capacidade de
gerar escolhas com profundas e longínquas consequências,
como descrito nos dois sūtras anteriores. Externamente, o
yogī deve adaptar seu comportamento para influenciar
positivamente sua mente, através da retidão moral e
hábitos que estimulem a pureza e a paz. Internamente, o
yogī continua o trabalho, tentando, com cada vez mais
intensidade e estabilidade, concentrar sua mente na
transcendência, na devoção ao Senhor.
Aqui, Patañjali introduz uma definição da origem do
pensamento, explicando que este surge de um aspecto, ou
medida (mātra), de nossa individualidade (asmitā). Em
outras palavras, a soma total de nossos pensamentos define
quem somos. Por isso, todo cuidado é pouco no que diz
respeito ao tipo de pensamento que estamos cultivando a
cada instante. Literalmente, nos envenenamos ao cultivar
pensamentos negativos, invejosos, raivosos, luxuriosos,
gananciosos etc.

4.5
pravṛtti-bhede prayojakaṁ cittam ekam anekeṣām
Um único pensamento pode produzir a diversidade de
ações de muitos pensamentos.

Este sūtra pode ser entendido de duas maneiras. A primeira,


conforme traduzido aqui, é que devemos ficar cientes do
poder de multiplicação dos pensamentos. Um mínimo de
observação da mente nos revelará que um pensamento
gera ilimitados outros em sequência. Uma imagem ou
cheiro, por exemplo, é suficiente para ativar o pensamento
a respeito de uma pessoa ou evento, que, por sua vez, pode
gerar uma enorme sequência de pensamentos referentes
àquela pessoa ou evento. E cada detalhe em si pode gerar
mais outros tantos pensamentos. É por isso que a mente
nunca está naturalmente silenciosa. Essa “bola de neve”
nunca termina, e estamos sempre com mil pensamentos
passando pela cabeça e mais mil à espera, um sendo
puxado pelo outro. A prática de yoga busca, por meio de
suas técnicas, direcionar e controlar todo este processo.
Outra forma de compreender este sūtra é traduzindo a
palavra “citta” como “mente” em vez de “pensamento” (a
palavra tem estes dois sentidos). Se interpretarmos assim,
veremos que Patañjali está afirmando outra verdade: uma
única mente (só temos uma!) produz ilimitados
pensamentos que geram ilimitadas ações. Isto significa que,
apenas controlando esta única mente, poderemos controlar
nossos pensamentos e consequentes ações.

4.6

tatra dhyāna-jam anāśayam


Um pensamento nascido da meditação não deixa
rastros de intenção subliminar.

Agora, Patañjali explica outro tipo de pensamento – o


pensamento puro nascido da meditação (dhyāna-jam), ou,
em outras palavras, o pensamento transcendental. Isso é
importante, uma vez que existe o equívoco, largamente
difundido, de que a perfeição do yoga, ou mesmo da vida
espiritual, é não ter pensamentos. Vários sūtras do Yoga-
sūtra já mostraram que este não é o caso, explicando sobre
nossa forma eterna, processos mentais perfeitos e a
perfeição da eterna devoção ao Senhor. O presente sūtra
enfatiza novamente este ponto, ao descrever mais o
aspecto da existência além da consciência mundana. Outros
textos védicos também explicam detalhadamente este
ponto. O pensamento mundano naturalmente deixa rastros
subliminares na forma de condicionamentos e sementes de
futura ação. Já o pensamento transcendental, assim como a
ação transcendental fruto desse pensamento, não prende o
indivíduo, pois não gera rastro de intenção subliminar, ou,
em outras palavras, não gera karma. A razão para isso é
que o pensamento e a ação transcendentais, por definição,
não são vinculados ou centrados na concepção egocêntrica
ilusória e, portanto, não estimulam ou prolongam a
existência nessa esfera.

4.7

karma-aśukla-akṛṣṇaṁ yoginaḥ tri-vidham itareṣām


A ação do yogī não é preta nem branca; a ação dos
demais pode ser preta, branca ou preta e branca.
Aqui, o termo “karma” significa simplesmente ação, e não
no sentido filosófico clássico de ação e reação. Patañjali
continua o tema do sūtra anterior, onde ele explicou que o
pensamento do yogī tem uma natureza diferente do
pensamento do ser vivo condicionado, ou em consciência
mundana. Aqui, ele explica que a ação do yogī também tem
esta mesma característica. Os termos “preto ou branco”
(aśukla-akṛṣṇa) são usados no sentido clássico de positivo
ou negativo (iluminado ou não iluminado, piedoso ou
impiedoso, bom ou mau etc.). A ação do yogī, por ser de
natureza transcendental, não é nem piedosa nem
impiedosa, nem boa nem má etc. Já a ação daqueles que
ainda possuem consciência mundana (ainda estão agindo
sob o conceito de identificação corpórea e egocêntrica)
pode ser completamente boa ou completamente má, ou, o
que é mais comum, uma combinação de ambos.

4.8

tatas tad-vipāka-anuguṇānām eva abhivyaktir vāsanānām


Cada tipo de ação gera um rastro de memória que
corresponde ao fruto [da ação].

A importância do sūtra anterior é aqui explicada. Cada ação


gera um resultado, uma impressão na consciência. Não
somente a ação é um resultado de nossa consciência, como
também cada ação deixa um rastro que afeta a consciência.
Com isso, podemos entender o funcionamento dinâmico da
formação de quem somos hoje e de quem podemos ser no
futuro. Ao compreendermos esse ponto e tomarmos a
decisão de controlar esse processo, efetivamente
assumimos o controle de quem seremos no futuro. Se não
tiramos proveito desta oportunidade, apenas ficamos à
mercê das correntes geradas pelas nossas ações do
passado. O yogī utiliza esse poder para o bem máximo: a
purificação total de sua consciência e a eterna liberdade.

4.9

jāti-deśa-kāla-vyavahitānām apyānantaryaṁ smṛti-


saṁskārayor eka-rūpatvāt
A uniformidade da memória e impressões
subliminares sustentam sua continuidade, mesmo
através das interrupções de nascimento, lugar e
tempo.

Aqui, Patañjali explica mais um detalhe importante relativo


ao processo de transformação da consciência. Ele diz que a
totalidade de memórias e impressões subliminares tem uma
uniformidade (eka-rūpatva), que constitui nosso estado
atual de consciência. Ele explica ainda que esta
uniformidade sustenta o processo através de aparentes
interrupções, incluindo a passagem do tempo, a mudança
de local e até mesmo a mudança de corpo. Nossos
condicionamentos existem sempre na forma de memória
(consciente) ou impressões subliminares (saṁskāras, nosso
inconsciente). Assim, não adianta achar que seremos, em
essência, pessoas diferentes, seja por mudarmos de
ambiente, seja pela mera passagem do tempo ou mesmo
pela morte. Nossa consciência só mudará para melhor se
nos esforçarmos nesse sentido ativa e cientificamente.
Nossa consciência muda de dentro para fora, pois tudo o
que acontece externamente à nossa consciência (inclusive
nosso corpo, como foi explicado no sūtra 4.2) é resultado da
qualidade de nossos pensamentos. O externo nos afeta no
sentido de deixar mais um registro (consciente ou
inconsciente), mas os sūtras 4.5 e 4.7 explicam que a ação
(e seu acúmulo, que é nossa situação externa atual) é um
resultado dos pensamentos cultivados.
Isso demonstra o grande erro da procrastinação existencial,
deixando para o futuro o processo de elevação espiritual ou
de aperfeiçoamento. Tal atitude não faz sentido, pois, a
cada pensamento, nosso futuro está sendo reescrito. Se
nossos pensamentos são de natureza mundana, estamos
apenas estendendo nossa existência mundana. Cultivar
pensamentos mundanos com a expectativa de que possam
gerar uma consciência espiritualizada no futuro é um
engano. Os pensamentos moralmente corretos e
mundanamente puros ajudam a acalmar e estabilizar a
mente para seguirmos de forma mais eficiente no caminho
espiritual. Mas são somente os pensamentos
transcendentais (como explicados no sūtra 4.6) que podem
elevar nossas ações além da plataforma da dualidade
mundana. Isto significa que o momento para tal cultivo é
agora. Não podemos pensar que existe prioridade a
acabarmos com a ignorância. Como pode haver prioridade
maior do que combater a raiz daquilo que gera todos os
nossos problemas?

4.10

tāsām anāditvaṁ ca āśiṣo nityatvāt


As impressões subliminares não têm começo, pois os
desejos que as sustentam são eternos.

No sânscrito, existem diferentes formas de descrever o


eterno. Aqui, dois termos são usados: “anādi”, que significa,
literalmente, “sem começo”, e “nitya”, “eterno”. “Anādi” é
utilizado especificamente para indicar aquelas coisas cuja
origem é tão remota que não se pode averiguar seu começo
– são de tempos imemoriais. Não significa, porém, que
jamais começaram, mas apenas que não há mais registro
do começo. Esta é a condição de nossos desejos materiais
atuais. Eles são eternos no sentido de existirem por
incontáveis vidas, mas não no sentido de existirem sempre.
“Nitya” é utilizado no sentido de algo que continuará por um
período indeterminado. Isso significa que o ciclo descrito
nos sūtras anteriores (rastros subliminares gerando
pensamentos que geram ações que, por sua vez, geram
rastros subliminares) continuará por tempo indeterminado,
até que tomemos uma atitude a respeito. Aquilo que é
verdadeiramente eterno, de fato nunca acaba. Algo que
acaba, por definição, um dia começou. Todo o processo do
yoga é acabar com os desejos materiais e com os processos
mentais mundanos, o que implica que um dia eles
começaram. O processo de yoga não visa acabar com nossa
existência individual ou nossa consciência, pois estas são
eternas no sentido pleno – sempre existiram e sempre
existirão.

4.11

hetu-phala-āśraya-ālambanaiḥ saṁgṛhītatvād eṣām abhāve


tad-abhāvaḥ
Como as impressões subliminares são mantidas pela
interdependência de causa e efeito; quando uma
deixa de existir, a outra também deixa.

Por tratar-se de um ciclo, a interrupção do processo, em


qualquer estágio, provoca sempre o mesmo resultado. Ao
nos esforçarmos para interromper o ciclo de consciência
mundana, seja externamente (mudando o padrão de
comportamento), seja internamente (por meio da meditação
e devoção ao Senhor), efetivamente reduzimos sua força
até que o processo é encerrado por completo, sem
possibilidade de reinício. Este estágio foi descrito como o
último componente do yoga, o transe (samādhi) em sua
forma pura, quando não há mais qualquer traço de
impressão subliminar, isto é, o transe sem semente (nirbīja-
samādhi).
Este sūtra encerra uma fascinante e importante análise da
consciência (sūtras 4.2-11), analisando como ela se forma,
como se transforma e como se relaciona com o mundo
externo.

4.12

atīta-anāgataṁ sva-rūpato ’styadhva-bhedād dharmāṇām


O passado e o futuro existem em tudo porque as
propriedades da natureza seguem um ritmo
diferente.

O  presente é um resultado do passado e gera o futuro. A


cada instante, diferentes causas se concretizam trazendo
efeitos em diferentes momentos do futuro. O presente é,
assim, a vivência dos efeitos de causas passadas que estão
se manifestando agora. Algumas causas trazem efeitos
imediatos, outras podem levar muito tempo para se
manifestarem. Todas as aparentes injustiças manifestadas é
o resultado de uma falta de apropriada profundidade na
compreensão das causas em jogo.

4.13
te vyakta-sūkṣmā guṇa-atmānaḥ
Tais propriedades da natureza, visíveis ou sutis, são
a essência das coisas materiais.

4.14

pariṇāmaikatvād vastu-tattvam
Uma coisa é real porque se mantém única através
das transformações.

Além das transformações que nunca cessam, existe uma


realidade fundamental. Materialmente, essa realidade
fundamental é a energia material como um todo, que
permanece a mesma, apesar de estar em constante
transformação. Em termos da consciência (energia
espiritual), nós, como seres dotados de personalidade e
individualidade eternas, somos reais, apesar dos constantes
processos e transformações mentais, mudanças de corpo
etc. Visto de outra forma, a atual manifestação de qualquer
objeto ou pessoa não é, em última análise, real, pois está
sujeito a transformações. Isso, no entanto, não significa que
a realidade fundamental por trás das transformações seja
irreal.

4.15

vastu-sāmye citta-bhedāt tayor vibhaktaḥ panthāḥ


Apesar de um objeto permanecer o mesmo, a
percepção dele difere porque as pessoas associam a
ele diferentes pensamentos.

Uma grande dificuldade presente em praticamente todos os


relacionamentos é que cada pessoa (o que dizer de cada ser
vivo) possui uma noção diferente da mesma realidade.
Quando nos comunicamos, a mensagem é diferente para
quem está falando e para quem a está ouvindo. O assunto
discutido é visto de forma diferente, como também o serão
os pensamentos em relação àquele assunto. Nunca
devemos esquecer que a realidade é filtrada por nossa
consciência, e, portanto, como cada um tem sua
consciência individual, nossa percepção sempre será
diferente da percepção do outro.

4.16

na caika-citta-tantraṁ vastu tad-apramāṇakaṁ tadā kiṁ


syāt
Um objeto não situado em um pensamento não
continua a existir?

Apesar das tentativas de algumas filosofias orientais e


interpretações impróprias da física quântica levarem
pessoas a duvidarem da existência de um objeto não
observado (uma espécie de subjetividade extremista), aqui
Patañjali deixa claro que a realidade existe
independentemente de um observador, até porque o Senhor
é o observador supremo, e nunca algo está fora de Sua
observação. O fato de pessoas diferentes perceberem
objetos de formas diferentes não altera a realidade em si,
nem significa que ela possa não existir.
Filosoficamente falando, se alguém insistir que nada é
objetivo, então seu argumento e ponto de vista também
não são objetivos, e assim não são universalmente
aplicáveis, invalidando o argumento como descrição da
realidade.

4.17

tad-uparāga-apekṣitvāt cittasya vastu jñāta-ajñātam


Algo é conhecido ou não ao pensamento de
acordo com a maneira como o objeto colore o
pensamento.

A imparcialidade é a chave para a verdadeira compreensão


da realidade. Quanto mais trazemos nossa bagagem de
pensamentos e noções (preconceitos) para perceber a
realidade (tanto em referência a pessoas como a objetos),
mais a distorceremos. A imparcialidade surge da purificação
da consciência. Assim, aqueles que têm a consciência pura
enxergam tudo como sendo divino.

4.18

sadā jñātāś citta-vṛttayas tat-prabhoḥ puruṣasya


apariṇāmitvāt
Os processos mentais são sempre conhecidos pela
pessoa que os conquistou, porque a pessoa é
imutável.
Como explicado anteriormente, “puruṣa” é o termo da
filosofia sāṅkhya utilizado para descrever a “pessoa” eterna
(alma, ser vivo, centelha divina etc.). Tendo obtido sucesso
no processo do yoga, tornamo-nos cientes, podemos obter
controle sobre nossos processos mentais, e ficaremos
perfeitamente conscientes de nossa constituição eterna
transcendental. Ao falar simultaneamente sobre os
processos mentais e a respeito da “pessoa” imutável,
Patañjali indica que a vida continua na plataforma eterna,
com processos mentais puros.
Em termos práticos, a autorrealização nos dá uma base fixa
e segura para encararmos as modificações materiais
(mentais ou externas). Obtendo o centramento definitivo
por meio da nossa identificação transcendental, não mais
seremos arrastados pelas flutuações mentais (nossas e de
outros).

4.19

na tat svā-bhāsaṁ dṛśyatvāt


A mente mundana não se ilumina, pois é um objeto
de percepção mundano.

Em contraste com o sūtra anterior que tratou da mente (ou


processos mentais) no estado puro, aqui Patañjali fala da
mente em seu estado mundano. Com a mente mundana,
não é possível conhecer o puruṣa, ou o verdadeiro eu. A
mente mundana é apenas um objeto mundano. Na filosofia
sāṅkhya, a mente (mundana) é considerada como sendo um
elemento material. Porém, para o ser autorrealizado, a
mente se torna o palco das realizações transcendentais na
vida eterna. É, por essa razão, que o mero
autoconhecimento mundano (exaustiva psicanálise,
autorreflexão etc.) não leva à transcendência nem à
resolução definitiva dos problemas. É necessária a adoção
de um processo verdadeiramente transcendental (o
processo do yoga) para obter a iluminação e a liberação
verdadeiras.

4.20

eka-samaye ca ubhaya-anavadhāraṇam
E não existe simultânea compreensão de ambos.

4.21

citta-antara-dṛśye buddhi-buddher atiprasaṅgaḥ smṛti-


saṁkaraś ca
Se um pensamento fosse o objeto de outro
pensamento, existiria uma complexidade
injustificável de um estado mental a outro, bem como
confusão de memória.

Entrando mais a fundo na psicologia do yoga, Patañjali


explica que um pensamento não é um objeto a ser
analisado. O pensamento se detém sempre em um objeto,
nunca em si mesmo.
Patañjali está nos ajudando a compreender que não é
possível ficar apenas analisando a mente e seus
pensamentos, pois isso só trará confusão mental. É
necessário direcionar os pensamentos ativamente rumo à
transcendência. Estar ciente dos pensamentos e direcioná-
los (essencial à prática de yoga) não é o mesmo que apenas
ficar observando e analisando a mente.

4.22

citer apratisaṁkramāyās tad-ākāra-āpattau sva-buddhi-


saṁvedanam
Quando a consciência está pura e assume sua própria
forma, existe a percepção da inteligência.

Consciência pura, tecnicamente, é consciência espiritual.


Quando falamos em consciência mundana, estamos falando
de consciência misturada com algo impuro, que encobre
nossa percepção e assim nos impede de agir de forma
inteligente. Sem impurezas, podemos agir livres da
ignorância.

4.23

draṣṭṛ-dṛśyoparaktaṁ cittaṁ sarva-artham


Tingido pelo observador e pelo objeto, o pensamento
aceita tudo como objeto.

O  pensamento, que não é um objeto em si, é influenciado


tanto pelo objeto quanto pelo observador. Isso reforça o que
foi explicado no sūtra 4.15.

4.24
tad asaṁkhyeya-vāsanābhiś citram api para-arthaṁ
saṁhatya-kāritvāt
Com uma variedade causada por ilimitados traços de
memória, o pensamento funciona ao fazer
associações, com um propósito além de si.

Continuando sua análise do pensamento, Patañjali explica


que o pensamento tem como função fazer associações,
usando como elementos os registros de memória, com um
propósito que não faz parte do pensamento em si. Este
propósito além de si é servir ao consciente, ao observador,
à pessoa. O processo do yoga é fundamentado em
entendermos quem realmente somos para que, aí então, os
pensamentos possam verdadeiramente nos servir. No
estado condicionado, nos identificamos erroneamente com
o corpo (e tudo a ele ligado), o que naturalmente faz com
que nossos pensamentos sejam centrados apenas em
assuntos igualmente mundanos. Na medida em que
praticamos as três vertentes básicas do yoga descritas no
sūtra 2.1 (austeridade, estudo e devoção ao Senhor),
gradualmente compreendemos quem realmente somos
(autorrealização), e, assim, naturalmente nossos
pensamentos mudam de natureza.

4.25

viśeṣa-darśina ātma-bhāva-bhāvanā-vinivṛttiḥ
Aquele que vê a distinção deixa de cultivar um
estado egocêntrico.
A distinção a ser vista é aquela já mencionada várias vezes:
a distinção entre matéria e espírito. 

4.26

tadā viveka-nimnaṁ kaivalya-prāg-bhāraṁ cittam


Então, em profundo discernimento, os pensamentos
se direcionam naturalmente à liberação.

Existe um estágio na prática do yoga em que agir de forma


correta, ou seja, agir e pensar de forma transcendental, se
torna algo perfeitamente natural. Mesmo ainda não estando
completamente puro (como será mencionado no próximo
sūtra), o yogī ainda assim possui suficiente gosto
transcendental e visão clara da realidade para que sua
consciência flua livremente rumo à liberação (kaivalya).

4.27

tac-chidreṣu pratyaya-antarāṇi saṁskārebhyaḥ


Quando há falhas no discernimento, distrações
surgem do registro de impressões subliminares.

Enquanto a consciência não estiver completamente pura,


sempre haverá o risco de surgirem distrações, as quais são
alimentadas pelo registro de impressões subliminares
(saṁskāras).

4.28
hānam eṣāṁ kleśavad uktam
A destruição dessas distrações é dito ser como a
destruição dos problemas.

Todos os nossos problemas surgem do condicionamento


mundano, alimentado pela memória mundana e pelos
registros subliminares. Quando, pelo processo de yoga, esse
estoque de desejos e impressões mundanas é
perfeitamente destruído, então os problemas (frutos da
ilusão e da consciência egocêntrica) não mais poderão
surgir.

4.29

prasaṁkhyāne ’py akusīdasya sarvathā viveka-khyāter


dharma-meghaḥ samādhiḥ
Aquele que não busca ganho egoísta mesmo com o
mais alto conhecimento, fixo em discernimento,
atinge o transe da abundância da virtude.

A  raiz de todos os problemas é a ignorância, que começa


com o conceito de errônea identificação egocêntrica. Por
isso, rumo à perfeita liberdade, este conceito egocêntrico
será o último obstáculo a ser vencido. Como no caso dos
poderes especiais descritos na seção anterior, os altos
níveis de consciência e conhecimento obtidos pelo yogī
também podem constituir um obstáculo ou tentação,
levando-o novamente a agir de forma egoísta.
Aqui, o termo “dharma-meghaḥ samādhi”, traduzido como
“o transe da abundância da virtude”, significa que a
perfeição espiritual é enraizada em abundante virtude, ou
profunda moralidade. A retidão moral (ou comportamento
ético) não só é um primeiro componente da prática do yoga
(veja sūtras 2.30 e 2.31), mas também um aspecto prático
do resultado final.
Existe uma espécie de trocadilho aqui, pois Patañjali usa as
palavras “kusīda”, que literalmente significa “uma pessoa
muito gananciosa que empresta dinheiro a juros altos”;
“prasaṁkhyāne”, que significa “grandes quantidades”, e
“megha”, que significa “abundância”. Então, ele diz que
aqueles que não são gananciosos diante da riqueza do
conhecimento atingem grande abundância.

4.30

tataḥ kleśa-karma-nivṛttiḥ
Com isso, encerram-se as atividades problemáticas.

Novamente indicando a vida eterna e perfeita, Patañjali aqui


enfatiza que, ao obtermos a realização última do estado da
realidade descrita no sūtra anterior, as atividades
problemáticas se encerrarão, mas não as atividades em si.
Vida perfeita significa ter processos mentais perfeitos e
atividades perfeitas, livres do egoísmo e da ilusão material.

4.31

tadā sarva-āvaraṇa-mala-apetasya jñānasyā anantyāj


jñeyam alpam
Então, a infinidade de conhecimento, liberada das
impurezas que tudo obscurecem, deixa pouco a ser
conhecido.

O conhecimento “sem fim” já existe à nossa disposição,


mas está agora obscurecido, ou coberto (āvaraṇa). E o que
encobre esse conhecimento é “mala”, literalmente
“sujeira”. Esta “sujeira” são os processos mentais
mundanos já longamente discutidos ao longo do texto
(especialmente na primeira e segunda seções).

4.32

tataḥ kṛta-arthānāṁ pariṇāma-krama-samāptir guṇānām


Este conhecimento infinito coloca um fim à sequência
de transformações materiais, cumprindo seu
propósito.

Para o ser vivo eterno e espiritual, não há nada de interesse


na energia material. O conhecimento transcendental nos
libera do cativeiro material. Toda a criação material existe,
em última análise, apenas para nos dar a possibilidade de
nos redimirmos de nossos desejos egocêntricos.

4.33

kṣaṇa-pratiyogī pariṇāma-aparānta-nirgrāhyaḥ kramaḥ


Uma sequência corresponde a uma série de
momentos percebidos ao final de um processo de
transformação.
O  yogī consegue perceber que a realidade material é
apenas uma sequência de momentos distintos que juntos
formam um processo de transformação e cujo único
propósito é a autorrealização.

4.34

puruṣa-artha-śūnyānāṁ guṇānāṁ pratiprasavaḥ kaivalyaṁ


svarūpa-pratiṣṭhā vā citi-śaktir iti
Liberação é reverter o fluxo das coisas materiais, as
quais não têm sentido para o espírito; é também o
poder da consciência no estado de identificação
verdadeira.

A  vida material é artha-śūnya para o puruṣa, ou seja,


completamente sem valor para a alma. O ser vivo busca a
emoção, os sentimentos frutos do amor, e não as coisas
mortas da energia material. Todos nós queremos apenas o
gosto dos relacionamentos interpessoais, os quais, em suas
versões impuras (como experimentamos sob nosso atual
estado condicionado), não podem nos trazer completa
satisfação e, invariavelmente, nos deixam frustrados. Como
explicado no final da terceira seção, não é possível
experimentar o amor puro enquanto nossa consciência
estiver coberta por impurezas e presa a situações
passageiras.
A palavra “kaivalya” significa “o estado de perfeita união” e
é utilizada no sentido de “liberação”; “yoga” também
significa “união”. Neste último sūtra, Patañjali quer deixar
claro que o objetivo final do processo do yoga é obter esta
perfeita união com o Divino, restaurando a consciência ao
seu estado original (aqui, “svarūpa-pratiṣṭha” significa,
literalmente, “firmemente situado em sua forma”). Mais
uma vez, não há margem para considerar que esta perfeita
união seja na forma de perder a existência, fundindo-se no
divino, pois, por várias vezes, Patañjali fez referência à
nossa forma eterna, aos processos mentais puros, à
conquista da pura inteligência e à abundância da virtude –
todos como resultados da perfeição, não como meras
etapas rumo à perfeição. Somado a outros sūtras que tanto
enfatizaram a devoção ao Senhor (especialmente o sūtra
2.45), fica claro que o objetivo final do yoga é a união
perfeita em puro amor e devoção ao Senhor. Esta perfeição
é vivida eternamente, com forma, processos mentais
(emoções etc.), inteligência e ação – todos além das
impurezas da ignorância, egoísmo, luxúria, ganância etc.
Compreender isso não é fácil. Atingir, menos ainda. É
necessário se situar no caminho do yoga, belamente
descrito no Yoga-sūtra, para gradualmente clarear a
consciência nesse sentido e galgar essa perfeição. Yoga não
se atinge apenas lendo o Yoga-sūtra, mas sim seguindo suas
instruções com a ajuda de um guia mais experiente. Quem
embarcar nessa jornada certamente não se decepcionará, e
todo progresso realizado será duradouro.
Posfácio

Yoga nos Dias de Hoje

O objetivo do presente posfácio é tentar compreender as


principais formas pelas quais o yoga é apresentado hoje no
mundo, bem como apresentar ao leitor os fundamentos das
tradições ainda vivas que mais se aproximam daquilo que
foi detalhado no Yoga-sūtra e demais textos védicos sobre
yoga.
Para fins didáticos, com exceção do yoga moderno, não farei
menção às inúmeras escolas baseadas no yoga ou na
espiritualidade védica que surgiram a menos de cem anos,
com suas variadas práticas e filosofias, as quais
frequentemente guardam pouca ou nenhuma relação com a
doutrina e filosofia originais, encontradas nos textos
védicos.

O Yoga Moderno

A popularidade do yoga não para de crescer. Academias de


yoga surgem em cada vez mais cidades e bairros ao redor
do mundo. A técnica apresentada nessas academias é
geralmente composta por técnicas de respiração
(prāṇāyāma) e relaxamento, um pouco de filosofia e,
principalmente, uma sequência de posturas (āsanas). Os
detalhes mudam, novas variações surgem, mas o “pacote”
é basicamente o mesmo. Este tipo de yoga é identificado
por acadêmicos como “yoga moderno”. O termo vem do
fato de que essa escola, ou forma de apresentar yoga, foi
criada a menos de um século.
O pai do yoga moderno foi Tirumalai Krishnamacharya
(1888-1989). Entre seus discípulos, que foram responsáveis
por levar essa forma de praticar yoga para o ocidente, estão
Pattabhi Jois (nascido em 1915) e B. K. S. Iyengar (nascido
em 1918). Seu filho, T. K. V. Desikachar (nascido em 1938)
continua formando muitos instrutores de yoga do
ocidente[1].
Krishnamacharya nasceu numa família de brāhmaṇas
(intelectuais) vaiṣṇavas (praticantes de bhakti-yoga).
Durante toda a sua vida, foi um devotado seguidor e
praticante da milenar tradição do Śrī Vaiṣṇavismo, que
valoriza os aspectos ritualísticos e formais da devoção ao
Senhor. Seu pai lhe ensinou o Yoga-sūtra quando ele ainda
era criança. Ele foi um estudioso muito dedicado e, ao final
de sua vida, possuía o equivalente a quatro doutorados em
filosofia indiana e sânscrito. Um de seus professores na
faculdade, conhecendo seu interesse por yoga, aconselhou-
o a procurar um grande mestre de haṭha-yoga chamado
Ramamohan Brahmacari, que residia numa remota caverna
perto do lago Mānasa-sarovara, no Himalaia tibetano. Aos
28 anos, foi ao encontro deste mestre e lá permaneceu por
sete anos como seu discípulo. Krishnamacharya e seu
mestre conversavam em sânscrito, e é dito que o mestre
tinha, quando se encontraram, 150 anos de idade. Durante
este período, ele memorizou o Yoga-sūtra, aprendeu
diferentes āsanas, técnicas de prāṇāyāma e aspectos
terapêuticos do yoga[2]. É dito que Ramamohan Brahmacari
conhecia sete mil āsanas e que Krishnamacharya aprendeu
três mil deles (sendo que só conseguiu transmitir 640 para
seu discípulo Pattabhi Jois, cujo principal aluno, seu neto,
dominou somente 150)[3].
Em 1931, Krishnamacharya tornou-se professor de yoga e
sânscrito na faculdade de sânscrito de Mysore, com o apoio
financeiro da família real local. O rei de Mysore era diabético
e ficou muito contente com o trabalho terapêutico de yoga
de Krishnamacharya, que o ajudou a lidar com sua
condição. Ele financiou viagens e demonstrações de
Krishnamacharya por toda a Índia. Foi nesse período que
Krishnamacharya desenvolveu o sistema que ele chamou de
aṣṭāṅga-vinyāsa-yoga (mais tarde simplesmente viniyoga),
cujo ponto central eram as diferentes sequências de āsanas.
O foco, em seu trabalho, era apresentar uma técnica de
saúde baseada no yoga, como forma de reduzir o
sofrimento das pessoas. Ele via isso como um ato de
caridade e ajuda ao próximo, característico de sua intensa
religiosidade e devoção ao Senhor.
Mais tarde, na década de 50, Krishnamacharya adaptou o
sistema, criando sequências diferenciadas, compatíveis com
diferentes tipos de pessoas. Para os alunos mais avançados,
ele introduzia os aspectos mais puramente espirituais e o
canto de mantras. Ao longo de toda a sua carreira como
professor de yoga, sempre enfatizou, para aqueles
dispostos a ouvir, que o único objetivo do yoga era a
devoção e meditação no Senhor. Quando ele ensinava as
diferentes técnicas de respiração (prāṇāyāma), ele dizia,
“quando inspirar, lembre-se de que esse alento lhe foi dado
por Deus, e, quando expirar, lembre-se de que o alento está
voltando a Ele”[4]. Seus ensinamentos eram, assim,
completamente saturados de bhakti (amor e serviço a
Deus). Ele compreendia que a saúde física e mental são
importantes alicerces para a prática espiritual e, também,
que o aspecto externo terapêutico do yoga serviria de ponte
para o aspecto mais importante – o espiritual e devocional.
Estes ensinamentos propagados por Krishnamacarya estão
perfeitamente de acordo com o Yoga-sūtra, que enfatiza não
somente o aspecto interno, mas, em última análise, o
objetivo devocional da prática de yoga. Não é por acaso que
não são encontrados maiores detalhes no Yoga-sūtra sobre
diferentes āsanas e técnicas de prāṇāyāma. Mesmo o texto
base do haṭha-yoga, o Haṭha Yoga Pradīpikā, escrito no
século XV, lista apenas quinze āsanas. O ponto é que
existem inúmeros métodos para se manter a boa saúde
física. A tradição chinesa nos traz a acupuntura, técnicas de
massagem, Tai Chi Chuan, Qi Qong etc. Na cultura indiana,
temos o haṭha-yoga e também a medicina, a massagem e a
dieta aiurvédicas. A cultura ocidental se utiliza da ciência
moderna para desenvolver programas de musculação,
alongamento, nutrição etc. Aqueles interessados em saúde
física também podem se valer de diferentes técnicas
combinadas. Todos esses programas para a boa saúde são
perfeitamente compatíveis com as práticas internas do
yoga. É dito inclusive que Krishnamacharya utilizou
conhecimento de exercícios usados por lutadores indianos e
técnicas da ginástica inglesa ao desenvolver diferentes
āsanas. Um exemplo disto é a famosa sequência de
posturas sūrya-namaskāra, adaptada por Krishnamacharya.
É dito que a sequência, como é praticada hoje, foi primeiro
ensinada por Krishnamacharya na mesma época em que o
pai do halterofilismo moderno, o inglês Eugene Shadow,
publicou um livro com este exercício em 1928[5].
Resumindo, o yoga moderno foi fundado por um praticante
de bhakti-yoga, que adaptou os ensinamentos de haṭha-
yoga e outros conceitos de saúde disponíveis em sua época
para criar um programa terapêutico, com o intuito de aliviar
o sofrimento das pessoas, mas sem deixar de enfatizar que
o verdadeiro objetivo do yoga é a devoção ao Senhor.

Os Ascetas

Quando se fala em espiritualidade ou misticismo da Índia;


para muitos, a primeira imagem que vem à mente é a dos
ascetas do norte da Índia, os quais se vestem com apenas
um trapo ao redor da cintura, usam os cabelos em
dreadlock, o corpo coberto de cinzas ou poeira, contas de
madeira ao redor do pescoço e marcas de barro em
diferentes partes do corpo. Esse tipo de renunciante (tyāgī)
dos dias de hoje não é exatamente um yogī, mas
certamente suas práticas contêm elementos tradicionais da
cultura do yoga. A maioria vive em peregrinação, indo para
diferentes lugares sagrados e festivais. Todos são
celibatários, sem vínculos familiares, e a maioria tem o
hábito de fumar maconha. A técnica que mais utilizam é a
do asceticismo e austeridade severa, como forma de
adquirir poder e avanço espiritual. Das diferentes ordens
monásticas do norte da Índia, a maior hoje é dos vaiṣṇavas
rāmānandīs, um grupo de tyāgīs cujas práticas culminam
em adoração ao Senhor (bhakti)[6].
Este grupo, assim como os demais tyāgīs, inclui elementos
de haṭha-yoga em suas práticas. Isto se dá pelo fato de que
as práticas de haṭha-yoga, como são vistas hoje, foram
introduzidas pelos Naths, que eram a predominante ordem
monástica de tyāgīs nos séculos XIV e XV. Como essas
diferentes ordens não seguem os textos védicos clássicos,
elas têm se transformado ao longo do tempo, assimilando
práticas de outros grupos. Um exemplo vívido disto é o uso
da maconha, que foi introduzido na Índia por ascéticos
itinerantes sufis por volta do século XIV[7], apesar desta
prática contrariar as regras encontradas nas escrituras
védicas do yoga, as quais enfatizam a importância de
pureza e busca pela clareza mental.
Mais em linha com os textos védicos, os vaiṣṇavas
rāmānandīs advogam a meditação nas formas de Rāma e
Sītā e a constante repetição de Seus santos nomes[8]. O rei
Rāma e Sua rainha Sītā são importantes avatāras
(encarnações) da cultura védica. O grande épico Rāmāyaṇa,
que narra a história e os ensinamentos de Rāma e Sītā, é
muito apreciado e permanece popular até os dias de hoje,
estando disponível na maioria dos principais idiomas. Rāma
e Sītā são adorados ao redor do mundo, e, mesmo em nosso
país, Suas imagens são comuns em camisetas e pôsteres.
Portanto, estes tyāgīs priorizam a prática central de bhakti,
o canto dos santos nomes, e a meta final de meditar na
forma pessoal de Deus, mas usam as técnicas de haṭha-
yoga, as austeridades e a renúncia como suporte para isso.
Podemos, assim, traçar um paralelo entre a prática dos
tyāgīs com aquelas do yoga moderno original.
Outro paralelo é a influência do tantra. A haṭha-yoga tem
sua origem em práticas tântricas śivaístas, nas quais os
elementos externos do uso de carnes, bebidas e mulheres é
interiorizado na forma de diferentes tipos de meditação e
direcionamentos da energia vital. O yoga moderno não foi
criado com qualquer elemento tântrico, mas, ao ser
transplantado para o ocidente, vários ditos ensinamentos
tântricos foram então introduzidos. O fato é que não há uma
origem ou corpo doutrinal definido sobre aquilo que hoje é
ensinado sob o título de tantra. O que poucos sabem é que
a única referência encontrada nos textos védicos para o
termo tantra é a prática ritualística de adoração de
Deidades por praticantes de bhakti-yoga. Este é o
verdadeiro e original tantra. As demais práticas ensinadas
no ocidente, especialmente a ênfase no aspecto sexual, são,
em geral, de origem incerta, sem qualquer menção nos
textos védicos, sem qualquer ligação com o yoga e sem
qualquer base científica. Alguns acadêmicos acreditam que
tais práticas surgiram por influência de grupos aborígines da
Índia, sendo então assimiladas por certos praticantes do
hinduísmo, que adotaram a terminologia da cultura védica
(cakras etc.) e atribuíram os ensinamentos a Śiva. Deste
tipo de tantra, os rāmānandīs mantêm apenas o uso de
alguns rituais de purificação do corpo, permanecendo, no
entanto, estritos vegetarianos e celibatários.
Resumindo, o maior grupo dos ascetas renunciantes (tyāgīs)
também enfatiza os elementos internos do yoga (meditação
e devoção). Para atingir este estado desejado, eles
priorizam a prática do canto dos santos nomes de Deus e a
visualização (meditação) da forma transcendental do Casal
Divino, Sītā e Rāma. Apesar de praticarem elementos da
haṭha-yoga, o principal suporte para suas práticas internas
de yoga é a austeridade corporal e a renúncia. Neste
sentido, suas práticas se assemelham àquilo que é
encontrado no Yoga-sūtra e em outros textos védicos.

Bhakti-yoga

Uma análise mais cuidadosa do Yoga-sūtra mostra que


Patañjali apresenta quatro categorias de práticas. Na
primeira seção, ele apresenta o aspecto meramente interno,
relativo ao conhecimento psicológico, passando para a
meditação e culminando no estágio final do yoga, o transe
(samādhi). Na segunda seção, Patañjali inicia com a
descrição de kriyā-yoga, que contém apenas três
componentes (austeridade, estudo das escrituras e
devoção). Mais tarde, ainda na segunda seção (sūtras 2.29-
3.7), ele descreve aṣṭāṅga-yoga, que contém oito
componentes. Na última seção, ele enfatiza a importância
do discernimento (viveka) baseado em conhecimento sobre
o funcionamento da consciência e da realidade à nossa
volta como meio de obter a liberação.
Comete-se um engano, portanto, ao considerar que é
necessário seguir os detalhes do yoga de oito componentes
(aṣṭāṅga-yoga) para se obter sucesso em yoga. Patañjali
não faz esta afirmação. Ao longo de todo o texto, ele
enfatiza questões internas, como a meditação, a correta
visão da realidade e o transe (ou liberação). Ele, inclusive,
distingue os cinco primeiros itens da prática de aṣṭāṅga-
yoga dos três últimos (sūtra 3.7) colocando-os em seções
distintas do livro (os cinco primeiros na segunda parte e os
três últimos no início da terceira). Ao final da descrição de
aṣṭāṅga-yoga, no sūtra 3.8, ele declara que todo esse
processo é externo ao objetivo final do yoga: o transe sem
semente (nirbīja-samādhi). Demonstra-se, assim, que o
yoga de oito componentes é uma forma de ajudar o
praticante a se estabelecer no aspecto essencial do yoga:
focar a consciência puramente na transcendência.
Das quatro categorias acima citadas, em três delas apenas
uma recomendação se destaca como ponto em comum: a
devoção ao Senhor. Mais do que um ponto em comum, a
devoção ao Senhor é enfatizada como sendo da maior
importância. Na descrição da primeira categoria de prática,
encontramos o sūtra 1.23, no qual Patañjali explica que a
perfeição do yoga é atingida pela devoção ao Senhor. E,
logo após, ele enfatiza este ponto ao dedicar os nove sūtras
subsequentes a descrever o Senhor (īśvara). A definição da
segunda categoria de prática (kriyā-yoga) é “austeridade,
estudo dos Vedas e devoção a Deus” (sūtra 2.1). E, no
segundo dos oito componentes (observância, ou niyama) de
aṣṭāṅga-yoga, encontramos o item “devoção ao Senhor”
(sūtra 2.32). Não podendo ser mais claro e enfático, ele diz
no sūtra 2.45: “Da devoção ao Senhor vem a perfeição do
transe”. Ou seja, a perfeição da perfeição do yoga
(samādhi-siddhi) é obtida pela devoção ao Senhor.
Alguém poderia argumentar que, na quarta seção, é
descrita uma prática superior ou objetivo superior ao mero
transe, e lá não é citada a devoção ao Senhor. Uma
comparação com outros textos védicos sobre yoga, em
especial o Bhagavad-gītā, mostra que este argumento não é
válido. Os conhecimentos e recomendações apresentados
na quarta seção do Yoga-sūtra são comuns em todos os
textos de espiritualidade védica, e seu propósito é prover
conhecimento transcendental para que o praticante de yoga
compreenda melhor a realidade onde se encontra e, assim,
possa enxergar as coisas como elas são. Este tipo de
discernimento é essencial para que a pessoa não mais seja
confundida pela ilusão, sendo tão necessário como obter um
mapa e direções claras antes de iniciar uma viagem a
algum lugar desconhecido. Os métodos de compreensão e
aplicação do conhecimento transcendental no dia-a-dia são
descritos no Bhagavad-gītā como buddhi-yoga. O termo
buddhi é traduzido normalmente como “inteligência”, mas
seu sentido mais apropriado é o de “discernimento”. Buddhi
é, então, aquele aspecto de nossa consciência que analisa e
interpreta a realidade sendo captada pelos nossos sentidos
sensoriais, determinando como “enxergamos” o mundo. Na
Bíblia, o equivalente mais próximo de buddhi é a injunção
“vigiai e orai”, no sentido de estar atentamente enxergando
o mundo (buddhi) com a consciência fixa no divino (yoga).
O Bhagavad-gītā explica que buddhi-yoga é a base
essencial do caminho do yoga, começando suas explicações
com este assunto, logo no segundo capítulo. E, deixando
claro que buddhi-yoga não é uma prática que se descarta
depois de certo avanço, o tema é mencionado até o último
capítulo. Mais relevante ao nosso tema, é explicado na
conclusão do Bhagavad-gītā que buddhi-yoga forma a base
para a prática da devoção ao Senhor. Kṛṣṇa diz:
“Conscientemente renunciando todas as atividades em Mim,
sempre devotado a Mim, apoiando-se em buddhi-yoga, sê
sempre consciente de Mim”[9] (Bhagavad-gītā 18.57).
Inclusive, pode-se argumentar que o elemento central que
distingue as diferentes formas de devoção ao Senhor
encontradas nas religiões populares e o caminho do yoga
devocional (bhakti-yoga) é justamente o elemento de
buddhi-yoga, ou seja, a compreensão científica do aspecto
metafísico da realidade e de como a energia material afeta
a consciência espiritual. Portanto, a última categoria de
prática enunciada por Patañjali é um aspecto necessário
para se estabelecer livre da ilusão e condicionamentos
mundanos (kaivalya) para melhor se fixar em devoção ao
Senhor.
Esta conclusão do Yoga-sūtra está em linha com o
Bhagavad- gītā, no qual Kṛṣṇa, que é descrito nos textos
védicos como sendo o Senhor e o yogeśvareśvara, que
significa “o mestre de todos os mestres de yoga”, declara
enfaticamente a supremacia da prática de bhakti-yoga:
“Verdadeiramente, entre todos os yogīs cujo ‘eu’ veio a
Mim, aquele que é dotado de fé e que me oferece amor é o
que considero como o mais profundamente absorto em
yoga”[10] (Bhagavad-gītā 6.47).
A maior instituição a divulgar a prática de bhakti-yoga no
mundo hoje é a ISKCON (Sociedade Internacional para a
Consciência de Krishna), popularmente conhecida como o
Movimento Hare Kṛṣṇa. Seu fundador, Śrī Śrīmad A.C.
Bhaktivedanta Swami Prabhupāda (1896-1977),
transplantou esta antiga prática ao ocidente em meados da
década de 60, sem se desviar da tradição milenar em geral
e muito fiel ao modelo ensinado por Śrī Kṛṣṇa Caitanya
Mahāprabhu (1486-1533). Este modelo enfatiza o canto dos
santos nomes (em especial o mantra Hare Kṛṣṇa), o estudo
dos textos védicos, a divulgação da cultura de bhakti e do
conhecimento transcendental (como supremo ato de
caridade e serviço ao Senhor) e o transe meditativo na
forma e nas atividades do Senhor, especificamente aquelas
do Casal Divino Rādhā e Kṛṣṇa e Seus associados.

A Prática de Bhakti-yoga

Utilizando a mesma terminologia encontrada no Yoga-sūtra,


passarei a descrever a prática de bhakti-yoga como é
realizada nos dias de hoje, com ênfase nas práticas
recomendadas pela escola de Śrī Kṛṣṇa Caitanya
(vaiṣṇavismo gaudīya), que é, de longe, a mais popular em
todo o mundo.
O primeiro passo, comum a todos os caminhos de yoga que
visam à expansão da consciência, é promover as
adaptações necessárias à vida pessoal de forma a
enquadrar-se no comportamento descrito nos dois primeiros
itens de aṣṭāṅga-yoga, ou seja, yama e niyama (vide sūtras
2.30-45). Como Patañjali enfatizou, estes princípios de
comportamento, retidão moral, limpeza, castidade etc. são
universais e primordiais, criando as condições básicas para
o avanço espiritual.
Tendo tornado fértil o solo da consciência para o avanço
espiritual, o bhakti-yogī então pratica a meditação valendo-
se do mantra: Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare
Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare, que
é composto por diferentes nomes do Senhor (Kṛṣṇa, “O
Todo-atraente”, e Rāma, “A Fonte do Prazer”) e uma
invocação ao aspecto feminino do divino (Hare). O mantra é
entoado muito suavemente (japa) usando contas de
meditação (mālā). No sūtra 1.28, Patañjali recomenda esta
prática de japa usando o mantra “oṁ”. Os bhaktas
(praticantes de bhakti-yoga) entoam os santos nomes do
Senhor como forma de conectar-se diretamente com o
aspecto pessoal do Senhor, e não apenas com a
transcendência em geral (Sua luz), representada pelo
mantra “oṁ”.
Paralelamente a isto, o bhakta deve se dedicar seriamente
ao estudo dos textos védicos (svādhyāya), descrito por
Patañjali no sūtra 2.1 como prática essencial do yoga. No
sūtra 2.44, é explicado que, ao estudarmos tais textos,
entramos em comunhão direta com a Deidade descrita no
texto. Assim, se o texto estiver descrevendo diretamente o
Senhor, entramos em comunhão com Ele ao estudar o
texto. O estudo dos textos védicos de conhecimento
transcendental e yoga, como o Bhagavad-gītā, tem o efeito
de treinar a inteligência e o discernimento (viveka) do
praticante de yoga para que ele saiba enxergar a realidade
de forma correta, livre da ilusão. Como explicado
anteriormente, toda a quarta parte do Yoga-sūtra foi
dedicada a valorizar este ponto, que é, de fato, crucial para
o avanço em yoga.
Fixo em sua prática (realizada sempre em devoção, e não
de forma mecânica) de yama, niyama, japa e svādhyāya, o
bhakta se torna forte e bem estabelecido no caminho da
autorrealização. Com isso, ele se qualifica para
experimentar o estágio final de yoga: o transe (samādhi).
Afinal, a vida não acaba com a autorrealização – ela
começa! Tão logo a prática esteja “segura”, como foi
descrito no sūtra 1.14, há possibilidade de se situar em
transe, ou seja, em consciência espiritual, experimentando,
assim, a vida em autorrealização.
Para o bhakta, há duas formas de experimentar a
transcendência: 1) ocupando-se de forma prática na missão
de difundir e ensinar o caminho de bhakti-yoga e 2)
absorvendo-se meditativamente nas formas, atividades,
associados etc. do Casal Divino, Rādhā e Kṛṣṇa, que existem
continuamente além da manifestação cósmica. A primeira é
mais fácil e também superior, pois nela predomina a
sobreexcelente qualidade divina da compaixão. Usando
seus dons naturais, seu corpo e sua energia (prāṇā) com o
intuito de servir o Senhor, o bhakta naturalmente se situa
(āsana) em yoga e assim, internamente situado em
meditação e devoção ao Senhor (dhyāna e īśvara-
praṇidhānā), experimenta a transcendência. A segunda é
realizada apenas após muito avanço e requer uma situação
externa compatível, composta do afastamento de toda
atividade e companhia mundana, da companhia de outros
realizando igual prática e o intenso estudo (ao ponto de
memorizar quase que integralmente os textos confidenciais
que descrevem as atividades do Casal Divino[11]), tendo
como base as revelações contidas no Śrīmad- Bhāgavatam.
Nesta prática, há riscos de imaturidade (almejando a visão
divina antes de ter avanço para tal) e, mais grave, de
egocentrismo (colocando novamente os interesses pessoais
em primeiro lugar, ao invés dos interesses do Senhor, que é
justamente a principal diferença entre consciência mundana
ilusória e consciência transcendental devocional). Por estas
e outras razões, estimula-se hoje a primeira forma de
experimentar o transe, sendo que milhares de pessoas ao
redor do mundo têm comprovado a eficácia desta técnica.

Conclusão

O caminho do yoga é sempre bom. Mesmo em suas


aplicações mais simples e mundanas, ele nos traz
resultados de boa saúde e redução do estresse. Praticando
seu aspecto intermediário (comportamento, estilo de vida,
dieta etc.), o yoga nos proporciona uma vida feliz e
tranquila. Vivendo seu aspecto avançado (estudo dos textos
védicos e meditação), experimentamos crescente bem-
aventurança e visão transcendental. E, por último, situando-
nos em transe (completa dedicação ao Senhor, interna e
externa, meditativa e prática), gradualmente nos livramos
de todo o sofrimento mundano e nos absorvemos em puro
amor divino.
O processo do yoga é científico e claro. Basta ter um bom
professor e seguir suas instruções para, em pouco tempo,
experimentar o resultado. Como Patañjali explicou nos
sūtras 1.21-22; assim como em qualquer tipo de
treinamento, quanto maior a intensidade da prática, maior o
resultado. Além disso, o processo é acessível a todos que
tenham dedicação e o sincero desejo de avançar,
independente de raça, sexo, religião, idade, grau de
escolaridade, situação econômica ou nacionalidade.
Encerro esta pequena explanação do “Yoga nos Dias de
Hoje” agradecendo a todos que me guiam e apoiam, em
especial meus professores Dr. Howard J. Resnick e Śrī
Śrīmad A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda, e desejando
ao leitor sucesso em suas práticas e estudos no caminho do
yoga.
Notas

1.
Klas Nevrin, “Krishnamacharya’s Viniyoga: On Modern Yoga and Sri
Vaishnavism”, Journal of Vaishnava Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 66.
[voltar]

2.
Eddie Stern, “Nathamuni’s Secret of Devotion and The Yoga of
Krishnamacharya”, Journal of Vaishnava Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp.
98[voltar]

3.
Eddie Stern, “Nathamuni’s Secret of Devotion and The Yoga of
Krishnamacharya”, Journal of Vaishnava Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp.
104[voltar]

4.
Klas Nevrin, “Krishnamacharya’s Viniyoga: On Modern Yoga and Sri
Vaishnavism”, Journal of Vaishnava Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 70.
[voltar]

5.
Klas Nevrin, “Krishnamacharya’s Viniyoga: On Modern Yoga and Sri
Vaishnavism”, Journal of Vaishnava Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 87.
[voltar]
6.
James Mallinson, “Ramanandi Tyagis and Hatha-yoga”, Journal of Vaishnava
Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 107.[voltar]

7.
James Mallinson, “Ramanandi Tyagis and Hatha-yoga”, Journal of Vaishnava
Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 116.[voltar]

8.
James Mallinson, “Ramanandi Tyagis and Hatha-yoga”, Journal of Vaishnava
Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 112.[voltar]

9.
Tradução do verso original em sânscrito ao inglês por Matthew Dasti.[voltar]

10.
Tradução do verso original em sânscrito ao inglês por Graham M. Schweig,
Ph.D. (Garuda Das).[voltar]

11.
Tony K. Stewart, “Reading for Kṛṣṇa’s Pleasure: Gaudiya Vaishnava
Meditation, Literary Interiority, and the Phenomenology of Repetition”,
Journal of Vaishnava Studies, Vol. 14, No.1 (2005): pp. 243-80.[voltar]

Você também pode gostar