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Como citar esse artigo: Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da Covid-19: algo de novo no
trabalho da enfermeira? Rev baiana enferm. 2021;35:e337479.
Objetivo: refletir sobre o trabalho da enfermeira e do enfermeiro hoje, ano 2020, cujo registro na história será
marcado pela pandemia da Covid-19. Método: reflexão teórico-filosófica. Resultados: a Covid-19 expõe para a socie-
dade brasileira os múltiplos desafios do trabalho da(o) enfermeira(o). O sofrimento no trabalho, se existente antes
da pandemia, agora é potencializado pela singularidade do novo contexto, na presença do agente desconhecido,
invisível, que ameaça e pode ser mortal. A pandemia do novo coronavírus demonstra que os desafios para que o
trabalho da enfermeira(o) seja valorizado social e economicamente são maiores do que se imaginava. Conclusão:
a história e o contexto do trabalho na pandemia demonstra que é a solidariedade entre a “classe-que-vive-do-tra-
balho” que pode ser o amálgama imprescindível para o enfrentamento da Covid-19 e do desmonte dos direitos
daquelas(es) que trabalham.
Objective: to reflect on nurses’ work today, 2020, whose record in history will be marked by the Covid-19 pandemic.
Method: theoretical-philosophical reflection. Results: Covid-19 exposes to Brazilian society the multiple challenges
of the nurse’s work. Suffering at work, if present before the pandemic, is now intensified by the uniqueness of the
new context, in the presence of the unknown, threatening, invisible agent that can be mortal. The pandemic of the
new coronavirus demonstrates that the challenges for the nurse’s work to be valued socially and economically are
greater than previously thought. Conclusion: the work history and context in the pandemic demonstrate that the
solidarity between the “work-dependent class” might be the indispensable amalgam for coping with Covid-19 and
the dismantling of the rights of those who work.
1
Enfermeira. Doutora em Saúde Pública. Professora Titular da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. cmmelo@uol.com.br.
http://orcid.org/0000-0002-8956-582X.
2
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Titular da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. http://orcid.org/0000-
0003-0692-5912.
3
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. http://orcid.org/0000-
0003-0747-0649.
4
Enfermeira. Mestra em Enfermagem. Professora Assistente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. http://orcid.org/0000-
0002-5449-1795.
Objetivo: reflexionar sobre el trabajo de las enfermeras hoy, 2020, cuyo historial estará marcado por la pandemia
Covid-19. Método: reflexión teórico-filosófica. Resultados: Covid-19 expone a la sociedad brasileña los múltiples
desafíos del trabajo de la enfermera. El sufrimiento en el trabajo, si presente antes de la pandemia, se ve ahora
realzado por la singularidad del nuevo contexto, en presencia del agente desconocido e invisible que amenaza y
puede ser mortal. La pandemia del nuevo coronavirus demuestra que los desafíos para que el trabajo de la enfermera
sea valorado social y económicamente son mayores de lo que se pensaba anteriormente. Conclusión: la historia y el
contexto del trabajo en la pandemia demuestran que es la solidaridad entre la “clase-que-vive-del-trabajo” la que
puede ser la amalgama indispensable para el enfrentamiento de la Covid-19 y el desmantelamiento de los derechos
de quienes trabajan.
Introdução
Para além da pandemia, o ano de 2020 aprovar jornada de trabalho e piso salarial, o que
também é marcado para o campo da enfer- sustenta o desejo que durante a pandemia ou
magem como um Ano Internacional, no qual pós-pandemia as perspectivas serão diferentes?
se comemora o bicentenário de Florence Em países como o Brasil, “[...] com menos
Nightingale, considerada a precursora na for- capacidade soberana e econômica a pandemia
mação da enfermeira moderna. multiplica as dificuldades de maneira exponen-
(5:174)
Ao celebrar o legado de Florence Nightingale, cial” , com as formas neoliberais, inclusive no
celebração permeada da ideologia da “enfermeira- mundo do trabalho, cada vez mais desmorali-
-mulher-devotada” e não da “enfermeira-mu- zadas, mas não ainda mortas.
lher-trabalhadora”, se pode referir a mais um E parece que o autor tem razão. Os fatos re-
desafio, o que demanda a constituição de um centes indicam que a pandemia sequer deve ser
domínio próprio de conhecimento, cujo referen- considerada nas relações de trabalho no Brasil.
cial não continue a ser, no século XXI, Florence Considerar o adoecimento por Covid-19 como
Nightingale. doença não ocupacional foi uma das tentativas
Esse ano comemorativo foi antecedido pela em medida provisória do governo federal brasi-
campanha chamada Nursing Now, apoiada por leiro. Outra tentativa foi precarizar ainda mais o
diferentes instituições, organizações e entidades. trabalho da(o) enfermeira(o) com programas de
O nome da campanha, que reafirma a existência voluntariado em um país com oferta excedente
do campo da enfermagem, confirma, mais uma de mão de obra. Temos enfermeiras(os) sufi-
vez, a invisibilidade mundial de um trabalho cientes para atuação na pandemia, desde que
executado majoritariamente por mulheres, por sejam garantidos os direitos trabalhistas básicos,
mulheres trabalhadoras assalariadas, por mu- como salários e jornada compatíveis com o tra-
lheres exploradas. E no caso brasileiro, por balho a ser feito, e desde que assegurada quali-
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mulheres que se reconhecem pretas e pardas . ficação para o trabalho de assistência a pessoas
Assim, o nosso objetivo é refletir sobre o tra- com uma nova doença.
balho da enfermeira e do enfermeiro hoje, ano Mesmo no contexto da pandemia, não se
2020, cujo registro na história será marcado pela identifica medidas para a valorização econômica
pandemia da Covid-19. e social do trabalho da(o) enfermeira(o). Ainda
durante a pandemia (e até por causa dela), ar-
Resultados rasta-se no Congresso Nacional o projeto de lei
que estabelece o piso salarial e a jornada de tra-
Os resultados da reflexão proposta são apre- balho em enfermagem. Se as(os) enfermeiras(os)
sentados considerando dois focos principais: são tão importantes, “heróis e heroínas” – nova
as características do trabalho da enfermeira e do forma de apagamento dos homens e mulheres
enfermeiro durante a fase inicial da pandemia que executam o trabalho – , por que não se ga-
da Covid-19 e os aspectos do sofrimento das(os) rante tais direitos trabalhistas básicos? Porque a
trabalhadoras(es). valorização social ou é individualizada ou é puro
marketing em dias de comemoração. Porque per-
O trabalho da enfermeira na pandemia da manece a ideologia de que as mulheres podem
Covid-19 fazer qualquer trabalho (desde que considerado
economicamente pouco importante), por qual-
A pandemia da Covid-19 expõe para a socie- quer preço e com qualquer jornada.
dade brasileira os múltiplos desafios do trabalho Isto se revela também nos inúmeros pro-
da(o) enfermeira(o). Se no mundo de antes, tal cessos seletivos durante a pandemia, em que o
qual se conhecia, não há mais direitos trabalhistas, salário ofertado é menor que R$ 2.000,00 (dois
se as(os) enfermeiras(os), junto com auxiliares mil reais) para uma jornada exigida de, no mí-
e técnicos em enfermagem, nunca conseguiram nimo, 36 horas semanais. Ocorre ainda no Brasil
a suspensão de contrato, autorizada pela Medida A APS é relegada a serviço de segundo plano,
Provisória n. 936, em que enfermeiras(os) que como se a pandemia pudesse ser contida apenas
executam tarefas de cunho gerencial (auditoria, pela ação da recuperação dos doentes no hos-
controle de leitos, educação permanente, entre pital, esquecendo-se as autoridades sanitárias e
outras) têm reduzido o salário e a jornada de os comitês científicos que os assessoram que as
trabalho. O que isso significa? Que este trabalho já existentes “brigadas” da saúde, compostas por
não é necessário para a contenção de uma pan- enfermeiros, médicos, odontólogos e agentes
demia, e assim, pode ser dispensado, ainda que comunitários de saúde, podem fazer o trabalho
parcialmente. O que nenhum empregador ex- que é rotineiro no Sistema Único de Saúde (SUS):
plica é como uma pandemia pode ser contida o da promoção da saúde, da educação em saúde
sem rígido controle de leitos, sem auditoria in- da população e da prevenção, principalmente
terna sobre os processos de trabalho, e sem edu- com a Estratégia Saúde da Família (ESF).
cação permanente das(os) trabalhadoras(es). Cabe lembrar que os países que tiveram su-
No trabalho real da(o) enfermeira(o), o que cesso no combate ao novo coronavírus, segundo
se observa é a intensificação da precarização: matérias na mídia virtual, adotaram estratégias
mais trabalho, menos salário, mais exploração. territoriais: na Nova Zelândia e Coreia do Sul, tes-
O engodo da heroína e do herói logo se des- tagem em massa; em Cuba, os médicos atuam no
vanece na pós-pandemia, como ensina a ex- território-domicílio identificando e monitorando
periência na Itália. Agora, sob o argumento de precocemente os casos e as situações de risco.
emergência sanitária, avança a destruição dos Assim, o contexto da pandemia tem contri-
parcos direitos trabalhistas que sobreviveram à buído para acentuar o apagamento do trabalho
Reforma Trabalhista, de 2019. da(o) enfermeira(o) na APS. Uma evidência?
A emergência sanitária também produz um O SUS, antes sempre combatido e difamado
novo fenômeno no trabalho de enfrentamento na grande mídia brasileira, agora não só existe,
da Covid-19, o da flexibilização de regras e como é valorizado. Mas não é o SUS em sua
normas sanitárias que prezam pela saúde e segu- totalidade. É apenas o SUS hospitalar. Para o
rança no trabalho. Isso acontece no âmbito na- SUS/APS resta o silêncio.
cional, quando a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), sob o discurso de uso racional O sofrimento do trabalho na pandemia
de equipamentos de proteção individual (EPI),
flexibiliza cada vez mais as normas de segurança Os aplausos ecoam pelo país, os agrade-
e o uso destes, levando em consideração apenas cimentos multiplicam-se, enfermeiros e en-
o aspecto econômico; ou quando os emprega- fermeiras são chamados de heróis e heroínas.
dores submetem as(os) trabalhadoras(es) a não Os aclamados heróis e heroínas que atuam in-
seguir normas técnicas durante a jornada de tra- cansavelmente para salvar vidas, os protago-
balho por razões econômicas-financeiras. nistas de um capítulo dramático na história da
Tal atitude provoca a interpretação indivi- humanidade são trabalhadores e trabalhadoras,
dual da norma por cada gestor intermediário, homens e mulheres, seres humanos que en-
expondo as(os) trabalhadoras(es) a maior risco frentam um duro cotidiano que também os
de infecção e adoecimento no trabalho. ameaça e os mantêm reféns.
Outro fenômeno acentuado durante a pan- O sofrimento no trabalho, se existente antes
demia da Covid-19 é o esquecimento do trabalho da pandemia, agora é potencializado pela sin-
da(o) enfermeira(o) na Atenção Primária à Saúde gularidade do novo contexto, na presença do
(APS), trabalho que inclui atividades de vigi- agente desconhecido, invisível, que ameaça e
lância epidemiológica para monitoramento dos pode ser mortal.
casos suspeitos ou confirmados pela Covid-19 O medo marca o trabalho no enfrentamento
nos territórios. da Covid-19. O medo permanece na casa e no
reverencia o valor do trabalho e a importância Estes vivenciam o trabalho que se torna ainda
desses trabalhadores na “salvação” de vidas, mais polivalente e flexível para poder atender
também é verdade que estes vivenciam a pró- às demandas devido ao quantitativo insuficiente
pria fragilidade e a coisificação do humano na de trabalhadoras(es) e são também os mais
vivência de condições precárias de trabalho. atingidos pela infecção da Covid-19; conse-
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Os trabalhadores também sofrem ao viven- quentemente, os que mais morrem . A expli-
ciar a morte de várias pessoas. Na pandemia, cação fundamental para isto é que o trabalho
esse sofrimento é aumentado ao verem tantas executado por esses trabalhadores “auxiliares”
outras morrerem, especialmente porque a morte é sempre junto ao leito do paciente, o que os
é solitária, é proibida a presença de familiares expõem ainda mais ao risco de adoecer e morrer.
e amigos nas unidades de cuidados intensivos Além disso, são a maioria dos que trabalham no
como forma de conter a contaminação. É também campo da enfermagem.
doloroso ser porta-voz de recados e despedidas. Assim, o contexto da pandemia reitera o
O sofrimento dos trabalhadores em en- óbvio sobre o trabalho em enfermagem: os mais
fermagem decorre também da privação das frágeis na hierarquia da divisão social e técnica
relações interpessoais a que estão expostos os do trabalho são os mais afetados e atingidos pela
pacientes em isolamento. O sentimento de com- própria Covid-19. E revela que o mundo do tra-
paixão é tanto pela privação de encontros com balho não é melhor que antes da pandemia.
aqueles que dão alegria e sentido à vida dos Dessa forma, reafirma-se que a necessidade
pacientes, como pela impossibilidade de poder mínima é de apoio e solidariedade aos trabalha-
apoiá-los, de ter que deixá-los dentro de um dores em enfermagem e estes terem assegurado,
quarto sozinhos. pelos seus empregadores, condições dignas
A incapacidade do sistema de saúde acolher de trabalho.
os novos e crescentes casos da Covid-19, devido
a leitos e equipamentos insuficientes, à super- Conclusão
lotação de hospitais com camas espalhadas por
todo lugar, à inexistência de tratamentos efetivos A pandemia do novo coronavírus demonstra
para a Covid-19 também angustiam esses profis- que os desafios para que o trabalho da(o) en-
sionais, que se sentem impotentes. O que muda fermeira(o) seja valorizado social e economica-
é que esta é uma doença sem tratamento especí- mente são maiores do que se imaginava.
fico, sem conhecimento acumulado. O contexto da pandemia pode ser visto
A vivência da pandemia no trabalho tem como janela de oportunidade para transformar
outro preço alto para os profissionais da saúde, a o modo como a sociedade percebe o trabalho
culpa de levar o vírus para casa e contaminar os da(o) enfermeira(o) e para ampliar a cons-
familiares. Saem de casa com medo e o medo os ciência destes sobre o valor do seu trabalho.
acompanha na volta para casa, comprometendo Contudo, na pandemia se revela, paradoxal-
a possibilidade de descanso. Nas redes sociais mente, a precarização e a relevância social
há registro de uma enfermeira italiana que foi desse trabalho.
contaminada e passou os últimos dias de vida Nesse contexto, ou se empreende estratégias
preocupada com a possibilidade de ter infec- de ação coletiva para a superação das contra-
tado outras pessoas. E, em um gesto extremo, dições e situações de vulnerabilidade no tra-
suicidou-se. balho ou se continua, submissamente, a aceitar
É preciso também registrar que dentre as(os) o lugar de heroína e herói abnegados. Como
trabalhadoras(es) de enfermagem, os mais tais, os enfermeiros sinalizam para a sociedade
atingidos pelos fatos contidos nesta reflexão, que não precisam de salários dignos, não pre-
e mesmo por fatos que não foram abordados, cisam de reconhecimento social. Apenas de
são os técnicos e os auxiliares em enfermagem. aplausos ocasionais.
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