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A atuação do MP na tutela dos direitos das pessoas em situação de rua à luz da CF/88 – Thimotie
Aragon Heemann

1. INTRODUÇÃO

CF/88 ampliou a atuação do MP para além da persecução penal e da tutela do patrimônio público, incluindo
a defesa dos interesses de grupos vulneráveis.

As pessoas que se encontram em situação de rua no Estado brasileiro vivem em constante situação de
violação de direitos por parte do Estado ou até mesmo de outros particulares, cabendo ao MP atuar como
uma espécie de “pedagogo” [*] de direitos humanos dos membros deste grupo vulnerável na esfera judicial
e extrajudicial.

[*obs. pessoal] - não entendi o significado de “pedagogo” nessa frase e optei por mantê-la como está no livro. Se alguém tiver contato
com o Thim, pode perguntar?

[*obs. de um pedagogo] – talvez a intenção tenha sido mencionar o MP como aquele que “organiza os assuntos relativos à” tutela das
pessoas em situação de rua.

2. QUEM SÃO AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA?

Decreto nº 7.053/09 institui a Política Nacional das Pessoas em Situação de Rua, e traz o conceito e os 4
traços característicos no art. 1º, parágrafo único:

“[...] considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza
extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza
os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente,
bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

2.1 GRUPO POPULACIONAL HETEROGÊNEO

Heterogeneidade em razão dos múltiplos motivos que levam as pessoas a viver em situação de rua. Há
elementos variáveis no perfil das pessoas e na causa pela qual passam a estar em situação de tamanha
vulnerabilidade.

A heterogeneidade não deve ser encarada como algo negativo, vez que a pluralidade de ideias, opiniões,
experiências de vida e características pessoais enriquece os estudos, debates e o desenvolvimento de
políticas públicas.

2.2 EXTREMA POBREZA

Um dos principais fatores que levam indivíduos, e até famílias a viver na rua.

CorteIDH reconhece a extrema pobreza como traço característico da pessoa em situação de rua: “estar em
situação de rua é estar vulnerável, indefeso e em uma situação humilhante de miséria e em um estado de
padecimento equivalente a uma morte espiritual”.

O estado de pobreza vivenciado acaba por atingir, de maneira direta, o mínimo existencial de cada um dos
indivíduos.

Além disso, a reinserção no mercado de trabalho é tarefa de extrema dificuldade, dado o modelo de
combate à situação de rua adotado pelo Estado e o alto número de desempregados no Brasil.

2.3 FRAGILIDADE E/OU INTERRUPÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES

A condição de pessoa em situação de rua deve ser encarada como algo temporário. O ideal é que a pessoa
consiga superar esta situação e volte a viver em uma moradia digna e adequada.

Evidente que as pessoas em situação de rua possuem vínculos familiares fragilizados ou interrompidos,
afinal, dificilmente alguém com fortes vínculos familiares chegaria ao ponto de passar a viver na rua.
2.4 A UTILIZAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS E ÁREAS DEGRADADAS COMO ESPAÇO DE
MORADIA E DE SUSTENTO DE FORMA TEMPORÁRIA OU PERMANENTE, BEM COMO AS UNIDADES
DE ACOLHIMENTO PARA PERNOITE TEMPORÁRIO OU COMO MORADIA PROVISÓRIA

(Incluem-se também a parcela da população que utiliza como moradia as ruínas de edifícios abandonados)

Traço mais perceptível e evidente deste grupo vulnerável e que dá origem ao nome do grupo.

Logradouros públicos não devem ser encarados como algo totalmente negativo, afinal, em muitos casos o
Estado não consegue fazer com que o indivíduo consiga superar a situação de rua.

“Ressignificação da rua”: encarar a rua não apenas como um local de passagem, mas passar a percebê-la
como um locus de construção de identidades, atuando como palco de encontros para diálogos e
deliberações.

O modelo ideal de combate à situação de rua propõe a retirada das pessoas da rua. Não sendo essa a
realidade do Estado brasileiro neste momento, a “ressignificação da rua” atua como catalisador de direitos,
possibilitando releitura de formas de proteção de direitos.

3. A IMPORTÂNCIA DA INTERSECCIONALIDADE NA ANÁLISE DA SITUAÇÃO DE


VULNERABILIDADE DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

Interseccionalidade: compreender como as categorias sociais se encontram inter-relacionadas e atuam


como fator determinante na estruturação da vida dos indivíduos que circulam nos segmentos e camadas
mais vulneráveis da sociedade, gerando desigualdade e injustiça.

Origem: estudos do movimento feminista; levantou dados e chegou à conclusão de que a grande maioria
das mulheres em situação de vulnerabilidade possui, além da questão de gênero, outros eixos de
subordinação (classe social, idade, etnia/raça, orientação sexual, situação migratória, entre outros).

O caráter universal dos direitos humanos é insuficiente para salvaguardar direitos dos indivíduos em um
caso concreto, já que fatores de discriminação e opressão acabam por se entrelaçar, ocasionando
discriminação interseccional.

Essa discriminação é vista com facilidade no caso das pessoas em situação de rua. Em sua maioria não se
trata apenas de miserabilidade financeira, mas também por outros fatores, tais como:

a) etnia/raça (geralmente, negros e idosos);

b) cultura (significativa parcela é composta por índios, quilombolas ou pessoas das comunidades
tradicionais).

Há ainda questões de gênero, situação migratória e questões de saúde mental.

Na maioria dos casos, não incide apenas questões relativas à classe social, mas sim um entrelaçamento de
fatores determinantes.

4. FASES DO DIREITO DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

1ª fase: INVISIBILIDADE. Em razão do descaso do Estado. Durou até 1940. Grupo totalmente ignorado pelo
Estado; inexistiam políticas públicas ou diplomas normativos que tratassem do assunto.

2ª fase: ESTIGMATIZAÇÃO. O Estado deixa de ignorar e passa a punir, agravando a situação de


vulnerabilidade e miserabilidade. De 1940 (Código Penal) até 1988 (CF/88). Crime de abandono intelectual
(art. 247, IV – permitir que menor de 18 anos mendigue ou sirva a mendigo – ver detalhes no tipo legal) e a
contravenção penal da mendicância.

3ª fase: ESPERANÇA. Marcos: CF/88 e CC/02. Esperança no avanço do reconhecimento dos direitos das
pessoas em situação de rua. Constituição como norma jurídica. Mudança de paradigma no direito civil,
“despatrimonialização” e dignidade da pessoa humana. Pessoas em situação de rua passam a ter alguns
direitos reconhecidos e resguardados com base apenas na CF/88.

4ª fase: HUMANISTA. Inaugurada em 2009 com as seguintes normas:

- Lei 11.983/09 – revogou a contravenção da mendicância.

- Decreto nº 7.503/09 – instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR),
reconhecendo de forma definitiva as pessoas em situação de rua como grupo vulnerável que merece
proteção e atenção por parte do Estado.

- Lei 12.435/11 – alterou a LOAS para incluir obrigatoriedade de programas de amparo às pessoas em
situação de rua.

5. GRAMÁTICA DE DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

Expressões que devem ser excluídas como referência às pessoas em situação de rua, pela carga
estigmatizadora e preconceituosa:

- “morador de rua”: transmite ideia de definitividade, quando a PNPSR dá a dimensão de que deve ser algo
temporário.

- “mendigo”. Por duas razões: 1. Conceito de mendigo como aquele que pede esmolas e nem toda pessoa
em situação de rua o faz; 2. Carga preconceituosa em razão dos mais de 40 anos em que era tratado como
contravenção penal.

- “pedinte”: pela razão 1 acima.

- “maloqueiro”: especialmente para se referir a adolescentes. Porque significa menor que vagueia pelas
ruas, geralmente em grupo, pedindo dinheiro e praticando pequenos furtos – conceito vexatório e
degradante.

- “espólios urbanos”. 1º porque também há pessoas em situação de rua no meio rural; 2º porque espólio
pode significar “produto de um crime, de uma pilhagem, de uma espoliação”.

Dada a fase humanista, essas expressões devem ser evitadas, pois apenas contribuem para uma maior
violação de direitos e estigmatização.

6. SITUAÇÃO DE RUA PRIMÁRIA, SECUNDÁRIA E TERCIÁRIA.

Primária e secundária são propostas da ONU.

PRIMÁRIA – pessoas que vivem sem um abrigo ou lugar habitável (maior vulnerabilidade).

SECUNDÁRIA – pessoas que não têm lugar de residência habitual (mas eventualmente encontram abrigo
ou local abrigável para passar a noite).

A próxima é proposta do Thim, com base na PNPSR:

TERCIÁRIA – indivíduo que apesar de se encontrar em situação de rua, já está inserido no modelo de
atendimento proposto pela PNPSR, frequentando Centros POPs, recebendo orientação e atendimento
jurídico da Defensoria ou do MP, realizando consultas em “consultórios de rua”, pernoitando em albergues,
casas de trânsito ou de passagem e buscando alternativas para deixar a rua.

7. DEFINIÇÃO TRIDIMENSIONAL [*] DE SITUAÇÃO DE RUA PROPOSTA PELA ONU

[*] – fala tridimensional, mas só apresenta 2 dimensões


ONU propõe enfoque maleável e flexível da definição de situação de rua. Propõe que o conceito seja
construído pelas próprias pessoas, que definam as situações mais urgentes, as suas necessidades e sejam
reconhecidas como agentes da mudança.

Primeira dimensão: ausência do aspecto material de uma habitação minimamente adequada e do aspecto
social, um lugar seguro para estabelecer família, relações sociais e participara da vida em comunidade.

Segunda dimensão: situação de rua como forma de discriminação sistêmica e de exclusão social, a
privação de um lar dá lugar a uma identidade social = grupo sujeito à discriminação e estigmatização.

A ONU busca eliminar explicações de cunho moral acerca do fenômeno da situação de rua, como fracassos
e derrotas pessoais.

8. MODELOS DE COMBATE À SITUAÇÃO DE RUA

Premissa: considerar a situação de rua como transitória.

Objetivo: retirar a pessoa da rua, reinseri-la na família ou em uma moradia adequada e proporcionar
dignidade.

A depender do modelo, a política pública de cada país pode ser mais ou menos efetiva no cumprimento do
objetivo.

Dois modelos:

- modelo do atendimento (Brasil)

- modelo do housing first (EUA e Europa)

8.1 Modelo de atendimento

Objetivo inicial: garantir autonomia do indivíduo, para em momento posterior conferir moradia adequada.

Três estágios de atendimento pela rede de proteção do Estado.

Primeiro estágio – institucionalização da pessoa. Abrigar em albergues, casas de passagem ou de trânsito


durante a noite.

Problemas: a procura por esses locais é maior que o número de vagas, o que faz com que a pessoa fique
impossibilitada de trabalhar, porque tem que entrar cedo na fila do albergue e também não podem se
candidatar a vagas de emprego noturnas, já que abrigos possuem horários restritos de funcionamento.

Segundo estágio – viabilizar a empregabilidade (paradoxal com relação ao anterior). Busca uma moradia
impessoal, em condomínios sociais, repúblicas e congêneres. Não perfectibilizam a autonomia, a
privacidade e a intimidade da pessoa (incompatível com a perspectiva humanista).

No 2º estágio também há a atuação de modo mais enfático nos serviços de saúde. Serviços prestados
pelos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de cada município; Centros POP (Centros de Referência para
a População em Situação de Rua – unidade pública de assistência social); Consultórios POP (consultórios
médicos e odontológicos móveis).

Terceiro estágio – o Estado passa a se preocupar em garantir moradia individualizada.

São raros os casos em que um indivíduo consegue superar todos os estágios do modelo de atendimento e
deixar a situação de rua.

8.2 Modelo do housing first

Garantir moradia adequada para o indivíduo já na primeira etapa. Pressuposto para viabilização de outros
direitos, como a autonomia, a privacidade e o planejamento familiar.
Alta taxa de sucesso nos EUA.

Cinco princípios reitores:

1º) Acesso imediato à habitação permanente sem qualquer pré-requisito (não necessariamente o estado
concede uma propriedade ao indivíduo). Dogma básico: a pessoa não precisa demonstrar de maneira
prévia que está pronta para ser contemplada com uma moradia adequada.

2º) Garantia de participação da pessoa no modelo – considera que as pessoas estão aptas a escolherem,
na medida do possível, a localização da sua moradia e o tipo de moradia, dentre as opções disponíveis e
ofertadas pela política pública (compatível com a PNPSR, pois a participação da pessoa no modelo de
atendimento é de forma pessoalizada).

3º) Busca pela recuperação do indivíduo a partir de uma orientação que respeite a autonomia da vontade
(diferença para o modelo de atendimento). No housing first é resguardada a autonomia desde o ingresso na
rede de proteção e a orientação serve para minimizar os efeitos colaterais e secundários.

4º) Suporte individualizado da rede de proteção. Atenção pormenorizada a cada indivíduo. Considera a
heterogeneidade do grupo.

5º) Integração social dos indivíduos que ingressam no programa. Integração dele ao modelo,
proporcionando a convivência com outros usuários e supporters da rede de proteção. Vedada a concessão
de moradias que estigmatizam ou isolam determinado indivíduo do resto dos usuários do programa.

9. DISCRIMINAÇÃO TUTELAR E O COMBATE À INFANTILIZAÇÃO DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE


RUA

Discriminação aferida a partir de um ato público ou privado. Pode ser compreendida como “uma forma
encoberta de ações autoritárias que subordinam as pessoas em situação de rua, negando-as a
possibilidade que expressem a sua vontade e desenvolvam a sua personalidade jurídica, encontrando no
espaço público um terreno propício para a sua reprodução sistêmica”.

Se diferencia da discriminação tradicional usando o falso discurso de que ações afirmativas facilitam o
exercício de direitos humanos por grupos minoritários e que são tidos por incapazes pela sociedade.

Reduzem as pessoas em situação de rua a objetos de direitos.

Exemplos:

Ex.1 deslocamento forçado das pessoas para instalações e locais fechados.

Ex.2 separar menores de 18 anos em situação de rua da sua família sob o argumento do melhor interesse
da criança.

Ex.3 pessoas em situação de rua são transferidas para instituições psiquiátricas e lá permanecem por longo
período de tempo sem qualquer diagnóstico ou possibilidade de sair.

Medidas violam o princípio da igualdade e estigmatizam ainda mais, gerando o fenômeno da infantilização
das pessoas em situação de rua. Combater a discriminação tutelar.

10. A ATUAÇÃO DO MP NA TUTELA DOS DIREITOS DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA À LUZ
DA CF/88.

Art. 127, CF/88 – tutela de interesses sociais e individuais indisponíveis.

Direitos humanos básicos violados de forma constante e intermitente (direito à saúde, educação, moradia).
CNMP editou, em 2015, um guia de atuação ministerial para defesa das pessoas em situação de rua.
Orienta os membros a atuarem como agentes de transformação social, fomentado a implementação e
fiscalização das políticas públicas já previstas em lei.

Valério Mazzuoli adverte que o guia, embora não tenha caráter vinculante, deve ser compreendido como
uma obrigação Ministerial.

11. CONCLUSÃO

O grupo vulnerável das pessoas em situação de rua ainda carece de um tratado ou documento internacional
específico (ao contrário de outros grupos vulneráveis).

O modelo de atendimento brasileiro é insuficiente e inefetivo se comparado com o housing first dos EUA.

É compreensível que o Brasil não possua condições estruturais e financeiras de implementar o modelo
norte americano na sua plenitude.

Surgem formas de reduzir os danos e efetivar direitos com soluções alternativas como o condomínio social,
aluguel social e programas habitacionais.

É de especial importância a articulação entre a rede de proteção, MP, Judiciário, Defensoria e Executivo,
para que as pessoas em situação de rua possam, parafraseando Hannah Arendt, ter “direito a ter direitos”.

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