Você está na página 1de 18

eo

S ir Gawain
S ir Gawain
eo
Cavaleiro Verde
Cavaleiro Verde
SIR GAWAIN E O CAVALEIRO VERDE é uma obra anônima copiada da lite-
ratura oral por volta de 1400. Seus manuscritos encontram-se na Cotton Anônimo
Collection, hoje no Museu Britânico, e foram editados, em 1925, pelo pai
Tradução, apresentação e notas
da moderna literatura fantástica, J.R.R. Tolkien (1892-1973). O autor de de Marta de Senna

Sir Gawain e o Cavaleiro Verde


O Hobbit e O Senhor dos Anéis parece ter-se valido habilmente de algumas técni-
cas desta fantástica aventura medieval.
O autor anônimo de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde revela espantoso
conhecimento dos costumes da corte do seu tempo, dos luxos do vestuário, da
decoração e da arquitetura, das práticas de caça e da perícia no tratamento dos
animais abatidos, da heráldica e sua simbologia e, sobretudo, conhece profun-
damente o ser humano, sua fragilidade e grandeza.
Acerca desse autor, afirma Marta de Senna: “Hábil narrador, é um ardi-
loso artífice do enredo e da técnica de narrar, como demonstra nos segmen-
tos em que alterna cenas de caçada, ao ar livre, e as que se passam no quarto de
Gawain, assediado pela dama tentadora. Quer transmitir ao leitor a simultanei-
dade e o paralelismo dos conteúdos narrados e o faz com um domínio de foco
narrativo que hoje chamaríamos de cinematográfico.”
Em Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, com impecável tradução de Marta de
Senna, o leitor encontrará um texto lírico e sofisticado que colaborou enorme-
mente para a formação do romance moderno.

ISBN 978-85-64502-05-5

www.mobileditorial.com.br

capa Cavaleiro Verde v7.indd 1 19/07/12 13:41


eo
S ir Gawain

Cavaleiro Verde Anônimo

Tradução, apresentação e notas de Marta de Senna

2012

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 3 19/07/12 13:33


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
em vigor no Brasil desde 2009.

Editor
Eduardo Coelho

Projeto gráfico, editoração e capa


Leandro Collares/Móbile Editorial

Ilustração de capa
Andrés Sandoval

CIP BRASIL — DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO


CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO — SP

Sir Gawain e o Cavaleiro Verde / Anônimo ; tradução, apresentação e


notas de Marta de Senna. — Rio de Janeiro : Móbile, 2011.

Título original: Sir Gawain and the Green knight.

ISBN 9-78-85-64502-05-5

1. Artur, Rei — Lendas 2. Romances arturianos.

11-11159 CDD-398.22

Índices para catálogo sistemático:

1. Artur : Rei : Cavaleiros : Literatura folclórica 398.22

Todos os direitos desta edição reservados à


Móbile Editorial
R. Senador Dantas, 80 sl. 1305
Rio de Janeiro — RJ — 20031-922
Tel.: (21) 2210-1787
www.mobileeditorial.com.br

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 4 19/07/12 13:33


Apresentação
Sir Gawain e o Cavaleiro Verde: três tradições culturais
Marta de Senna

Na lenda arturiana, Gawain ocupa um lugar de destaque.


Filho do rei Loth de Orkney e de uma irmã de Artur, aparece como
uma das principais personagens dos romances de Chrétien de Troyes
(século XII), em que é o padrão segundo o qual se medem todos
os bons cavaleiros. Nos romances franceses do século XII, Gawain
decai de sua posição de cavaleiro impecável, principalmente por-
que, nesses textos, é alguém que valoriza exclusivamente as proe-
zas humanas, recusando-se a buscar a ajuda divina através dos sacra-
mentos e permanecendo insensível à significação espiritual do Santo
Graal: sua conduta cavaleiresca se resume, aí, ao universo temporal,
em contraste com a espiritualidade de Galahad. Em vários episódios
de Tristan, surge como um homem brutal e traiçoeiro e em alguns
pontos de Morte d’Arthur, de Thomas Malory (século XV), também
são ressaltados aspectos sombrios de sua personalidade.
Entretanto, seu papel no conjunto dos romances em torno de
Artur é o de modelo da ética cavaleiresca, a ser seguido por todo
jovem aspirante à cavalaria. É nessa perspectiva que aparece como o
herói de Sir Gawain and the Green Knight, um poema anônimo do
século XIV (cerca de 1370).
Criado como produção de literatura oral, o poema foi
copiado por volta de 1400, juntamente com três outros: Pearl,
Purity e Patience. Escritos em letra miúda e nítida, os quatro com-
põem um mesmo manuscrito, da chamada Cotton Collection, hoje
no Museu Britânico.

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 5 19/07/12 13:33


Sua origem é obscura, não havendo evidência segura sobre o
lugar em que foi composto e escrito, embora estudos filológicos e
linguísticos o situem como proveniente da região centro-norte da
Inglaterra, mais precisamente as North-West Midlands, aproxima-
damente onde é hoje o condado de Lancashire. Os mesmos estu-
dos sustentam que não há discrepâncias substanciais entre a língua
do copista e a do autor anônimo do texto.
O poema se destaca entre todos os romances medie-
vais ingleses sobretudo por força de seu enredo. À diferença
de outros romances do ciclo arturiano, quer na Inglaterra, quer
na França, cujas aventuras se justapõem sem nexo cronológico-
-temático rigoroso, Sir Gawain e o Cavaleiro Verde tem uma
única estória: o desafio do Cavaleiro Verde a Gawain e o cum-
primento do pacto que firmam na corte de Artur, entre os quais
medeia a tentação que sofre o bom cavaleiro no castelo de Ber-
tilak de Hautdesert.
O texto é constituído de 101 estrofes de número variável
de versos brancos aliterativos (versos sem rima, construídos com
recurso à repetição de um mesmo fonema consonantal), sepa-
rados em 4 cantos, ou fits, separação esta sugerida pelos floreios
com que o copista interrompe, de espaço a espaço, a sequência das
linhas no manuscrito. A poesia aliterativa é frequente na tradição
literária inglesa desde antes da conquista normanda (século XI) e
sobrevive nos autores do oeste e do noroeste da Inglaterra ainda no
século XIV, quando os poetas do sul, como Chaucer, já começavam
a absorver a influência românica do Continente.
Na introdução de sua versão do poema para o inglês moderno,
Brian Stone encontra, além da forma aliterativa, outras caracte-
rísticas peculiares ao ethos do norte das ilhas britânicas, presentes
de modo marcante no texto: o realismo cru da literatura nórdica
e anglo-saxônica, a violência de alguns episódios, o laconismo de

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 6 19/07/12 13:33


certos comentários, o humor impiedoso, a seriedade moral.1 Mas
o poema revela a incorporação de elementos românicos, como é o
caso dos quartetos rimados ao fim de cada estrofe longa, que são
como um corte imposto ao fluxo dos versos aliterativos desprovi-
dos de rima.
Para esta tradução, utilizei como fonte principal a edição que
E.V. Gordon e J.R.R. Tolkien publicaram pela primeira vez em
1925, a partir do fac-símile de 1922, o qual trazia uma introdu-
ção de sir Israel Gollancz. Contando com um glossário minucioso
e com notas de esclarecimento quanto a questões linguísticas, his-
tóricas e literárias, essa edição me foi de valor inestimável não só
no trabalho de tradução propriamente dita, mas também na prepa-
ração das notas com que procurei contribuir para a melhor com-
preensão do texto pelo leitor contemporâneo de língua portuguesa.
A cada passo, servi-me também de duas versões do poema para
o inglês moderno: a primeira, de J.R.R. Tolkien, preparada no início
dos anos de 1950 e publicada por seu filho em 1975; a segunda, de
Brian Stone, editada pela primeira vez em 1959 e depois, com algu-
mas modificações, em edições sucessivas, a partir de 1964.
A opção de traduzir em prosa se fez a partir da constatação
de que seria virtualmente impossível transpor para nossa língua o
ritmo e a metrificação originais, dadas as diferenças irresgatáveis
entre o inglês medieval e o português moderno, sobretudo em ter-
mos prosódicos. No entanto, procurei, sempre que possível, preser-
var no texto em prosa a aliteração e a assonância, recursos a meu ver
mais significativos do que a estrutura métrica em si mesma. Como,
porém, cada estrofe em verso longo é concluída por uma sequên-

1 Cf. Brian Stone. “Introduction”. IN: Sir Gawain and the Green Knight [poema
anônimo]. 2a edição. New York: Penguin Books, 1974. Nesse livro, ver tam-
bém os ensaios “The common enemy of man” (p. 116-128), “Gawain’s ‘eter-
nal jewel’” (p. 129-137) e “The pentangle and its significance” (p. 150-155).

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 7 19/07/12 13:33


cia de versos curtos organizados em rima alternada, mais próxi-
mos à tradição da poesia de língua portuguesa, pareceu-me justifi-
cável traduzir em decassílabos rimados alternadamente esses versos
finais, as chamadas bob lines.
Embora o decassílabo seja mais longo do que os curtos versos
originais, o fato não me pareceu invalidar a tentativa de transmi-
tir ao leitor contemporâneo um pouco da estrutura versificada. O
alongamento do verso é uma entre muitas evidências de que, como
me consola George Steiner, “as traduções são inflacionárias. Não
pode haver razoável pretensão de coextensão entre o texto fonte e
sua tradução. Em sua forma natural, a tradução excede o original”.2
Procurei ser breve nas notas explicativas, reduzindo-as ao que
considerei essencial para uma satisfatória inteligência do texto. Ao
fim deste volume, uma pequena bibliografia poderá auxiliar o leitor
interessado em alargar conhecimentos sobre o poema, sua época,
sua cultura.
Quem quer que tenha sido o autor anônimo de Sir Gawain e
o Cavaleiro Verde, o fato é que é espantoso o seu conhecimento dos
costumes da corte de seu tempo, dos luxos do vestuário, da decora-
ção e da arquitetura, das práticas de caça e da perícia no tratamento
dos animais abatidos, da heráldica e sua simbologia e, sobretudo, a
sua compreensão do ser humano, sua fragilidade e grandeza.
Hábil narrador, é um ardiloso artífice do enredo e da técnica
de narrar, como demonstra nos segmentos em que alterna cenas de
caçada, ao ar livre, e as que se passam no quarto de Gawain, asse-
diado pela dama tentadora. Quer transmitir ao leitor a simultanei-
dade e o paralelismo dos conteúdos narrados e o faz com um domí-

2 STEINER, George. After Babel: aspects of language and translation. Oxford:


Oxford University Press, 1977. p. 277. A primeira edição é de 1975. Tradu-
ção minha.

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 8 19/07/12 13:33


nio de foco narrativo que hoje chamaríamos de cinematográfico.
Mais que isto, é um grande poeta, capaz de criar imagens de inven-
tividade surpreendente, ou de pronunciar-se com a sabedoria dos
iniciados sobre questões ontológico-morais.
Provável contemporâneo de Petrarca ou de Boccaccio, que viven-
ciam na Europa continental o que se convencionou rotular de pré-
-Renascimento, o autor produziu um texto onde se intermesclam três
tradições culturais. A primeira é a tradição greco-romana. O texto não
apenas se abre com uma referência a Troia (e assim também se fecha,
em estrutura cíclica), como a própria tradição clássica do poema épico
oral se faz visível ao longo das estrofes em que o autor vai narrando as
aventuras/desventuras de Gawain, aqui e ali lembrando Heitor (o mais
valoroso dos príncipes troianos) ou mencionando textualmente a Gré-
cia como um ponto de referência em relação ao qual tudo pode ser
medido (conforme segmento 80). E no segmento 32, em que o herói
“lamenta o seu pecado”, não haveria uma sobrevivência do conceito
inalienavelmente grego de hybris? É importante notar que a perma-
nência da cultura clássica, pelo menos nos círculos intelectuais da Idade
Média, é aí mais do que comprovada, contradizendo a tese habitual-
mente aceita de que ela era desconhecida no período medieval.
A segunda tradição cultural é a que se poderia chamar de
céltico-pagã, em que avulta o poder da natureza ferozmente hostil
(basta notar que todos os eventos do enredo acontecem no inverno),
figurada como algo provido de uma força contra a qual todo esforço
humanon é virtualmente inútil. Nessa mesma tradição se insere,
igualmente, a presença de monstros não claramente nomeados,
mas cuja ameaça à integridade física do herói é uma constante; e,
sobretudo, a feitiçaria demoníaca de Morgana, mentora perversa de
todas as provações morais por que passa o cavaleiro Gawain.
A terceira é a tradição judaico-cristã, que vem domesticar
a ferocidade cósmica do paganismo ainda fortemente sensível na

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 9 19/07/12 13:33


época a que o texto se reporta (o início da cristianização das ilhas
britânicas) e que certamente persiste no próprio tempo do autor.
Assim, as festas célticas de fim de ano — o solstício de inverno
dos rituais druídicos — são envoltas na atmosfera mais palatável de
comemoração ao nascimento de Cristo. As alusões bíblicas, quer ao
Antigo quer ao Novo Testamento, são também imposições dessa
tradição cultural a que o autor paga tributo, já que vive num século
oficialmente purgado dos resquícios do paganismo bárbaro. As
referências à devoção de Gawain a Maria e a vários santos da Igreja,
a contrição com que se confessa, penitencia e comunga o corpo e
o sangue de Cristo parecem indicar um deliberado propósito cris-
tianizador. É como se o poeta, que cria seu texto numa sociedade
quase estritamente oral, precisasse redundantemente informar seus
ouvintes, num estratégia didática, sobre os bons costumes cristãos,
sobre a vitória da virtude embasada na ideologia da Igreja contra
as forças incontroláveis do mal, facilmente identificável nas remi-
niscências pagãs que afloram todo o tempo no poema, como certa-
mente deviam aflorar, ainda no século XIV, no dia a dia do processo
cultural vivenciado pelo autor.
A sociedade na qual e para a qual produz sua narrativa é mar-
cadamente oral e, por via de consequência, os usos e costumes da
sociedade que descreve são também pontuados pelos ritos não
escritos da linguagem gestual simbólica, em que um beijo pode sig-
nificar esta ou aquela intenção, em que uma troca de presentes pode
ser um ardil para encobrir uma significação insuspeitada.
O poema é pródigo em simbolismos. Stone assinala que a caça
às corças, animais notoriamente velozes (e como tais amplamente
descritos no texto), funciona como contraponto simbólico do cará-
ter repentino e inesperado da primeira visita da castelã ao quarto
de Gawain; a luta contra o javali, a mais difícil das caçadas, reflete a
dificuldade de Gawain em se livrar do assédio da dama na segunda

10

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 10 19/07/12 13:33


noite, sem ferir os ditames do amor cortês e sem ofender os brios
femininos de sua anfitriã; a perseguição à raposa, relatada como
feita de idas e vindas, astuciosas e labirínticas mudanças de rota, é o
paralelo das últimas conversas no leito de Gawain, que, hábil esgri-
mista verbal, avança e recua para defender-se da sedução da castelã.
Intermescladas que sejam as três tradições culturais a que
aludi, o que emerge do poema — et pour cause — é o triunfo das
virtudes morais da cavalaria, personificadas na nobreza e na boa fé
de Gawain, o (quase) impecável cavaleiro, que se submete, por seu
livre-arbítrio, às provas mais duras, de que sai praticamente ileso
porque, se falhou à lealdade, o fez movido por um desejo, instintivo
em qualquer espécie animal, que a ética cristã legitimou na cultura
ocidental: o de preservar a própria vida.
O próprio Cavaleiro Verde, misto de antagonista e confessor,
embora em sua aparência horrenda seja um elemento notadamente
“céltico”, simboliza no poema a possibilidade da misericórdia e
do perdão, virtudes essencialmente cristãs. Ele é capaz de perdoar
Gawain exatamente porque compreende que, se o rapaz pecou ao
mentir-lhe, o fez movido pelo desejo legítimo de sobreviver.
Decerto, muito se perde em qualquer tradução. Mais ainda,
numa tradução que ousa transpor seis séculos. Que esta ousadia não
seja avaliada como démesure de quem a cometeu, mas como tributo
reverente ao poeta anônimo de Sir Gawain and the Green Knight.

Esta edição é a segunda que se faz desta tradução, a primeira


tendo sido publicada em 1997 e estando há muitos anos esgotada.
Naquela altura não tive a oportunidade de registrar o meu agrade-
cimento a várias pessoas, o que faço aqui: a Ligia Vassallo, pela con-
fiança com que me atribuiu a tarefa de traduzir este livro e, sobre-
tudo, pela firmeza com que não me deixou desistir; a Monica Allen,
ex-funcionária do Setor de Informação do Conselho Britânico em

11

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 11 19/07/12 13:33


Brasília, que, sem me conhecer, me franqueou seu exemplar do
manuscrito impresso; a Glória Syndenstricker, por me ter animado
a enfrentar o desafio; a Danielle Corpas, que fez acontecer a pri-
meira edição; e, principalmente, a minha mãe, Ida Ribeiro e Silva,
que não viveu o suficiente para ver o livro publicado, pela paciên-
cia incansável com que reviu toda a tradução comigo, contribuindo
para resolver problemas linguísticos e de versificação que, sem a sua
ajuda, seguramente estariam até agora sem solução.
Neste ano de 2011, o meu agradecimento vai todo para o edi-
tor Eduardo Coelho, que sempre acredita nos meus sonhos.

fevereiro de 2011

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 12 19/07/12 13:33


eo
S ir Gawain

Cavaleiro Verde
Anônimo

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 13 19/07/12 13:33


1
Quando cessaram o cerco e o assalto a Troia, e a fortaleza
tombou em chamas, transformando-se em tochas ardentes e cinzas,
o traidor1 que ali tinha tramado a traição foi julgado por sua perfí-
dia, a mais bem urdida do mundo.
Foram, então, Enéas e seus parentes renomados que domi-
naram aquelas províncias, tornando-se senhores de quase toda a
riqueza das terras do oeste.
Quando o régio Rômulo tomou o rumo de Roma, povoou-a,
a princípio, com grande pompa e lhe deu seu próprio nome, pelo
qual a cidade é até hoje conhecida. Tirius2 foi para a Toscana e
lá fundou cidades; Langaberde3 ergueu edificações na Lombardia;
e, muito além do mar francês, Félix Brutus46 fundou, em grande
estilo, a Bretanha,5

Onde guerras, desgraças e espanto,


Desde então, por seu turno sucederam.
Depois, eras de bênçãos e de pranto
Também nesse país aconteceram.

1 Possivelmente Antenor, que, segundo a tradição medieval, foi quem tomou a


iniciativa de atraiçoar a pátria, Troia, em favor dos gregos. Há quem acredite
ser Enéas, a quem remontaria a genealogia dos britânicos. O fato de ser ele
um traidor não seria um constrangimento para o autor.
2 No original impresso e em Tolkien, o nome é Tirius, embora Stone registre Ticius.
3 Em Tolkien e no original impresso, lê-se Langaberde; em Stone, Longbe-
ard. Preferi, sempre que não exista, em português, correspondente exato aos
nomes próprios, ser fiel ao original.
4 Neto ou bisneto de Enéas e, segundo Nennius, o fundador da Bretanha. Félix
seria o epíteto comumente utilizado para fundadores de cidades e nações.
5 Apesar de o topônimo “Bretanha”, em português, designar uma região da França,
optei por utilizá-lo relativamente ao que seria hoje a Inglaterra ou, talvez, Gales.

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 15 19/07/12 13:33


2
E quando a bela Bretanha foi fundada por esse nobre
bravo, ali cresceram guerreiros corajosos, que se alegravam na bata-
lha e que criaram tumultos em tempos turbulentos. Nessas terras
aconteceram mais maravilhas do que em quaisquer outras, desde o
início dos tempos.
Porém, de todos os que na Bretanha reinaram, Artur foi o
mais reverenciado. Assim ouvi relatar e por isso quero vos nar-
rar68 uma verdadeira maravilha, que o povo conta como um mila-
gre manifesto, um dos mais extraordinários acontecimentos entre
as aventuras de Artur. Se derdes ouvidos por um pouco de tempo a
esta canção,7 eu vou contá-la já, como na cidade ouvi contar.

Escribas escreveram fielmente,


Entre as lendas antigas desta terra,
Uma estória que contam, tão candente,
De lutas, de batalhas e de guerra.

6 O narrador intercede e se dirige ao ouvinte, o que implica um envolvimento


direto com o público, característica da oralidade, própria das histórias con-
temporâneas ao poema.
7 Laye, no original, e lay nas versões de inglês moderno. O lay é um poema
lírico ou narrativo inicialmente concebido para ser cantado.

16

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 16 19/07/12 13:33


3
Pela época do Natal, Artur se instalou em Camelot, com
muitos senhores poderosos, seus mais nobres súditos, todos eles,
reconhecidamente e por direito, membros da Távola Redonda.
Despreocupados, em celebração esplêndida, ali combatiam
em torneios e justas os valorosos cavaleiros. Depois, vinham à corte
para cantar e dançar. A festa durou quinze dias sem parar, com
refeições faustosas e todo o regozijo imagináveis. Tal era a alegria e
o contentamento, que era um prazer ouvir o alarido de vozes de dia,
e dança à noite! Tudo era felicidade nos salões e aposentos, tudo era
fonte de alegria para os senhores e suas damas.
Com todas as delícias deste mundo, ali se reuniam, louvando
o nome de Cristo, os mais celebrados cavaleiros e as mais belas
damas de todos os tempos, além do rei mais garboso de todos os
que jamais reinaram. E toda essa gente famosa vivia seu esplendor.

Com as graças do céu favorecida,


Ao seu amado rei muito aclamava
Essa gente viril e destemida,
Que outra qualquer em fama apequenava.

17

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 17 19/07/12 13:33


4
Quando o novo ano era ainda tão jovem que assistia ao
nascer de seu primeiro dia, foi servido no palanque um grande ban-
quete.
Terminados os cantos na capela, o rei e seu séquito vieram
para a sala. Clérigos e leigos saudavam a chegada de Noel8 com gri-
tos e alegria. Logo os nobres começaram a distribuir presentes de
Ano Novo. Ofereciam-nos em voz alta, fingindo, em brincadeira,
competir por eles uns com os outros. As damas riam alto, mesmo
que perdessem a disputa, e quem a vencia não ficava nada triste,
como bem se pode imaginar.
Assim entretendo-se ficaram, até a hora da refeição. Então,
tomaram seus lugares à mesa, obedecendo à hierarquia. A alegre
rainha Guinevere9 sentava-se no centro do palanque principesco,
preciosamente ornamentado de seda, toldado por tapeçaria de Tou-
louse e da Társia,10 bordada com as melhores pedras que o dinheiro
poderia comprar.

8 Nowel, no original impresso; Noel em Tolkien; e Nöel em Stone. O subs-


tantivo parece designar a festa de Ano Novo e não o Natal, como se poderia
supor a partir do uso da palavra em francês moderno usada por Stone.
9 No original impresso, Guenore, às vezes Gaynor. Preferi a forma das versões
de inglês moderno, Guinevere, por me parecer mais correntemente usada,
mesmo em português, como o nome da mulher de Artur.
10 Stone usa, aqui, Turquestão, o que lhe serve à métrica e à tendência aliterativa
do poema. No original impresso, a palavra aparece como substantivo comum
em função adjetiva: “of tryed tolouse and tars tapites innoghe”. Tolkien usa
Tharsia, que, segundo The voyages & Travels of sir John Mandeville, Kni-
ght (c. 1371), seria uma região situada a oeste da China, de onde teriam par-
tido os reis magos para levar a Belém os seus presentes para Jesus. A única
região à qual, modernamente, poderia corresponder Tharsia ou Tharse seria a
do deserto de Tars, no noroeste da Índia. Importa considerar que, à época do
autor, tars era um tecido usado (até no século XV) para roupas e tapeçarias.

18

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 18 19/07/12 13:33


Aquela era a rainha mais bonita,
Com seus olhos de um cinza cintilante.
Vã mentira estaria sendo dita,
Fosse outra declarada mais brilhante.

É curioso notar o anacronismo do autor, que incorpora um dado de seu


tempo histórico, pós-Cruzadas, à época provável de Artur, quando o comér-
cio com o Oriente era virtualmente impossível.

19

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 19 19/07/12 13:33


5
Mas Artur tinha por praxe não começar a comer antes de
todos serem servidos. Sua jovialidade o fazia tão alegre como um
menino que apreciasse a vida agitada. Por isso, não gostava de estar
deitado ou sentado. Assim agiam sobre ele seu sangue robusto e
cérebro inquieto.
Tinha, o rei, ainda, outro costume: não lhe aprazia iniciar
a refeição sem que antes fosse entretido com alguma história de
algum feito fabuloso, sobre ancestrais, ou armas, ou outras façanhas;
ou sem que antes algum desafiante concitasse um de seus cavalei-
ros a com ele lutar, arriscando um e outro suas vidas, à mercê da
fortuna.
Este era o costume do rei, toda vez que reunia sua corte em
cada grande festa no castelo.

Assim entre os amigos florescia


Aquele cujo sangue era real,
Tão jovem quanto o ano que nascia,
Tão forte e firme quanto era leal.

20

Cavaleiro Verde V2 footnotes.indd 20 19/07/12 13:33

Você também pode gostar