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ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

DEPARTAMENTO DE COMISSÕES
DIVISÃO DE PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS

Excelentíssimo Senhor Deputado,

Em atenção ao requerimento encaminhado por essa Comissão a este setor,


pelo qual era solicitada a elaboração de proposição legislativa a ser apresentada por esse
Colegiado, com o fito de introduzir na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) do
Estado de São Paulo novo tratamento para a Doença de Crohn, temos a expor o
seguinte:
1. A “assistência terapêutica integral” proporcionada pelo Sistema Único de Saúde
a todos os brasileiros deve conformar-se aos termos dos protocolos clínicos e diretrizes
terapêuticas adotadas pelo Ministério da Saúde, com assessoramento da Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias – CONITEC. A Doença de Crohn já conta
com protocolo próprio, veiculado pela Portaria Conjunta n. 14, de 28 de novembro de
2017, da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde.
2. Como a Lei 8.070, de 1990, Lei Orgânica da Saúde, confia a elaboração dos
protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas exclusivamente à União, é impossível ao
legislador estadual dispor sobre a matéria por meio de norma legal.
3. O fato do transplante de células-tronco para tratamento da Doença de Crohn
estar ainda sob a fase de ensaio clínico, ou seja, de experimentação e validação
científica, não permite que o procedimento seja admitido no rol de serviços prestados
pelo SUS. Só quando a equipe responsável pelo ensaio concluir seu protocolo de estudo
e publicar os resultados nos periódicos especializados, o procedimento estará adquirirá
legitimidade científica para ser proposto como padrão aos gestores do Sistema.
4. Desse modo, até mesmo a apresentação de Moção às autoridades competentes
da União seria prematuro neste momento, razão pela qual não pudemos atender o
pedido da Comissão, salvo pela conclusão do estudo anexo.
Estamos ao seu dispor para eventuais esclarecimentos.

DPL/DC, 19 de abril de 2018.

Atenciosamente,

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HERNANDEZ PIRAS BATISTA


Analista Legislativo

GLÁUCIO MARQUES DA SILVA


Gestor de Divisão

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Sobre a possibilidade de norma estadual introduzir novo tratamento da


Doença de Crohn no Sistema Único de Saúde (SUS)

Este estudo tem o propósito de examinar a possibilidade de ser elaborada pela


Comissão de Saúde deste Parlamento proposição legislativa com o fito de introduzir na
rede do Sistema Único de Saúde (SUS) do Estado de São Paulo novo tratamento para a
Doença de Crohn. O estudo responde, assim, ao Memorando CS 01/18, recebido nesta
Divisão no último dia 21 de março.
1. A Doença de Crohn: definição, sintomas, tratamento.
Conforme a página da Sociedade Brasileira de Coloproctologia na Rede Mundial de
Computadores (Web), a Doença de Crohn (DC)
é uma enfermidade inflamatória que pode se manifestar em qualquer parte do tubo
digestivo (desde a cavidade oral até a região anal) sendo mais comum na final do
intestino delgado (íleo) e o intestino grosso (cólons). Sua causa ainda não está
esclarecida. Não é uma doença contagiosa e pode afetar tanto adultos como crianças, não
havendo predominância de sexo. É uma doença muito comum entre os Judeus, mas sua
incidência tem crescido entre outros grupos étnicos, especialmente nos grandes centros
urbanos. Alguns fatores estão associados ao surgimento da doença e uma maior
incidência dentro de núcleos familiares (10 a 25%) indica importância dos fatores
genéticos. Outros fatores tais como o contato com antígenos (vírus e bactérias), fatores
ambientais (estilo de vida, tabagismo, hábitos alimentares) e emocionais podem
representar algum nível de importância em sua apresentação, caracterizando esta doença
como multifatorial. Portanto, não há uma explicação definitiva para a causa da doença. É
doença crônica e não há cura descrita. Pode se manifestar ao longo da vida com crises
agudas recorrentes, assim como períodos longos de acalmia e ausência dos sintomas,

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chamado remissão. O tratamento medicamentoso e/ou cirúrgico pode influenciar


positivamente no controle da doença, permitindo longos períodos sem sintomas 1.
Estomatites (inflamações na boca), diarréia, dor no abdômen, perda de peso e febre
são os sintomas mais comuns. A inflamação do intestino delgado (principalmente do
íleo terminal, em 80% dos casos) e do intestino grosso (colite) provoca diarréia com ou
sem muco (secreção) ou sangue nas fezes. Apenas a terça parte dos casos apresenta
doença restrita ao íleo terminal. Pode ocorrer estreitamento (estenose), em especial no
intestino delgado. São comuns as distensões do abdome e a dor do tipo cólica, com
dificuldade para a eliminação de gases intestinais. É freqüente ocorrer uma obstrução
parcial ao esvaziamento do conteúdo intestinal, com necessidade de internações com
hidratação venosa, uso de antibióticos venosos e de corticosteróides, além de restrição
temporária à ingestão de alimentos, para ajudar na recuperação. É possível também a
ocorrência de fístulas. Um terço dos doentes com Crohn tem manifestações no ânus e
região perianal. Esses trajetos fistulosos podem ser múltiplos e com grande destruição
tecidual extensa, pela reação inflamatória própria da doença de Crohn e pela infecção
secundária que ocorre na área afetada, prejudicando significativamente a qualidade de
vida do enfermo. Outros problemas podem surgir fora do tubo digestivo afetando a pele,
articulações, olhos, fígado e vasos (manifestações extraintestinais).
A colonoscopia com biópsia e avaliação do íleo terminal tem se mostrado o melhor
recurso para o diagnóstico da doença, mas a tomografia computadorizada do abdome
pode ser igualmente útil na identificação de fístulas entre as alças intestinais e outras
alterações. Os exames laboratoriais também são importantes no diagnóstico e controle
da enfermidade.
O curso da doença pode variar de acordo com as manifestações intestinais ou
extraintestinais. Manifestação relativamente comum entre adultos e crianças é a
desnutrição, que pode provocar atraso no crescimento quando a doença surge na
infância. O tratamento depende da forma de apresentação da doença e do grau de
gravidade e é iniciado quase sempre com medicamentos. O corticosteróide é a
medicação mais usada. Várias outras medicações podem ser associadas com o objetivo
de fazer regredir a inflamação dos tecidos, como os aminosalicilatos, os
imunossupressores e a terapia biológica. Alguns casos exigem intervenção cirúrgica: a
indicação mais comum é para o tratamento de complicações como as estenoses
(estreitamento) intestinais. A investigação, tratamento e acompanhamento desses
enfermos, de acordo com a forma de apresentação, localização e extensão da doença,
estão quase sempre a cargo de um médico clínico (gastroenterologista) e um cirurgião
(coloproctologista ou do aparelho digestivo).

1
Folheto informativo sobre a Doença de Crohn da Sociedade Brasileira de Coloproctologia. Disponível
no seguinte endereço: https://www.sbcp.org.br/pdfs/publico/crohn.pdf. Consultado a 04/04/18.

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Os pacientes que evoluem com doença por mais de 10 anos precisam ser controlados
através de colonoscopia periódica, pois estão mais sujeitos a maiores riscos de displasia
e neoplasia intestinal2.
O Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas – Doença de Crohn, aprovado pela
Portaria Conjunta n. 14, de 28 de novembro de 2017, da Secretaria de Atenção à Saúde
do Ministério da Saúde, define esta enfermidade do seguinte modo:
A doença de Crohn (DC) é uma doença inflamatória intestinal de origem
desconhecida, caracterizada pelo acometimento segmentar, assimétrico e transmural de
qualquer porção do tubo digestivo, da boca ao ânus. Apresenta-se sob três formas
principais: inflamatória, fistulosa e fibroestenosante. Os segmentos do tubo digestivo
mais acometidos são íleo, cólon e região perianal. Além das manifestações no sistema
digestório, a DC pode ter manifestações extraintestinais, sendo as mais frequentes as
oftalmológicas, dermatológicas e reumatológicas (...). Em países desenvolvidos, a
prevalência e a incidência situam-se em torno de 50:100.000 e 5:100.000,
respectivamente. Uma estimativa da prevalência na cidade de São Paulo encontrou 14,8
casos por 100.000 habitantes (...). A DC tem início mais frequentemente na segunda e
terceira décadas de vida, mas pode afetar indivíduos de qualquer faixa etária.
A menção ao Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas não é redundante, nem
gratuita. Tem o propósito de introduzir no exame da questão de que tratamos um
documento cuja relevância é essencial ao seu esclarecimento, como veremos a seguir.
2. O Sistema Único de Saúde: alguns aspectos essenciais à compreensão do presente
problema – Sobre a impossibilidade de legislar sobre a matéria no âmbito dos Estados
Federados.
O art. 6º da Constituição Federal preceitua que
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso)
O art. 6º consta do Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”, que, por sua vez, integra o
Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, da Constituição Federal.
Comumente mencionados como liberdades fundamentais, os direitos e garantias
fundamentais são reconhecidos como atributos intangíveis da pessoa humana e, em
decorrência disto, os preceitos que os veiculam gozam de um estatuto privilegiado entre
as normas constitucionais, compondo o que o Prof. José Afonso da Silva chama de
“núcleo imutável” do Texto Magno, o que equivale a dizer cláusula pétrea.

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As informações contidas neste e nos parágrafos anteriores constam do mesmo folheto informativo da
SPCP citado anteriormente.

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Reiterando os termos do art. 6º, o art. 196 da Constituição da República preceitua que
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Desenvolvendo tal princípio, o Texto Magno organiza os serviços públicos de saúde
sob a forma de “uma rede regionalizada e hierarquizada”, constituída como “sistema
único” e organizada segundo as seguintes diretrizes:
(a) “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”;
(b) “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais”, e
(c) “participação da comunidade” (CF, art. 198).
No campo infraconstitucional, a principal norma a organizar o Sistema Único de
Saúde (SUS) é a Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”.
No art. 6º, I, “d”, do mencionado diploma, o legislador enuncia pela primeira vez o
conceito de “assistência terapêutica integral”, que, posteriormente, será elaborado de
modo mais extenso e profundo no Capítulo VIII, “Da Assistência Terapêutica e da
Incorporação de Tecnologia em Saúde.
Efetivamente, ao elucidar do que se trata esta “assistência terapêutica integral”, o art.
19-M esclarece que ela consistirá da:
(a) dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja
prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em
protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do
protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P, e da
(b) oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e
hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de
Saúde - SUS, realizados no território nacional por serviço próprio, conveniado ou
contratado.
E o que seriam estas diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico? É o que
esclarece, por seu turno, o art. 19-N, II, nos seguintes termos:
“Art. 19-N – (...)

II – protocolo clínico e diretriz terapêutica: documento que estabelece critérios para o


diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os

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medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias


recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação
dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS.”   
O art. 19-O preceitua, ainda a respeito da mesma matéria que, os “protocolos clínicos
e as diretrizes terapêuticas deverão estabelecer os medicamentos ou produtos
necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que
tratam, bem como aqueles indicados em casos de perda de eficácia e de surgimento de
intolerância ou reação adversa relevante, provocadas pelo medicamento, produto ou
procedimento de primeira escolha”. 
E, por fim, o art. 19-Q estipula que
A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos
e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de
diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (grifo nosso). 
O Decreto Federal n. 7.646, de 21 de dezembro de 2011, define a Comissão Nacional
de Incorporação de Tecnologias – CONITEC como o “órgão colegiado de caráter
permanente, integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde”, que “tem por
objetivo” assessorar esta Pasta “nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou
alteração pelo SUS de tecnologias em saúde, bem como na constituição ou alteração de
protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas” (art. 2º, “caput”). Conforme o art. 7º, “o
Plenário da CONITEC é composto de treze membros, com direito a voto”,
representantes dos seguintes órgãos e entidades, indicados pelos seus  dirigentes:
(1) do Ministério da Saúde:
(a) Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde,
a qual incumbe a presidência da Comissão;
(b) Secretaria-Executiva;
(c) Secretaria Especial de Saúde Indígena;
(d) Secretaria de Atenção à Saúde;
(e) Secretaria de Vigilância em Saúde;
(f) Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa; e
(g) Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde;
(2) da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS;
(3) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
(4) do Conselho Nacional de Saúde - CNS;
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(5) do Conselho Nacional de Secretários de Saúde - CONASS;


(6) do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – CONASEMS, e
(7) do Conselho Federal de Medicina - CFM, “especialista na área nos termos
do § 1o do art. 19-Q da Lei no 8.080, de 1990”.
Recapitulando, a assistência terapêutica integral que o Estado, através dos três níveis
de governo, articulados no Sistema Único de Saúde, oferece aos brasileiros, a fim de
assegurar o direito constitucional à saúde, compõe-se da (a) dispensação de
medicamentos e produtos de interesse para a saúde e da (b) oferta de procedimentos
terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, ambos efetuados de
acordo com os protocolos clínico e diretrizes terapêuticas, documentos nos quais são
estabelecidos critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde, o tratamento
preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, os mecanismos de
controle clínico e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos.
Evidentemente, as tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde -
SUS, a fim de remunerar os serviços médicos e hospitalares de caráter privado, mas
conveniados ou contratados pelo Poder Público, só poderão conter os procedimentos
previstos nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
Se a lei que disciplina o SUS confere aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios uma competência suplementar no campo da “dispensação de
medicamentos”, naquele da definição dos procedimentos terapêuticos, pelo contrário,
preferiu-se resguardar o caráter privativo das normas federais. De que resulta a
conclusão de que a incorporação de novas terapias médicas por parte do Sistema
Único de Saúde é matéria de competência privativa da União, sendo vedado ao
legislador estadual imiscuir-se na matéria3.
Vimos também que a Doença de Crohn já conta com seu próprio Protocolo Clínico e
Diretrizes Terapêuticas, aprovado pela Portaria Conjunta n. 14, de 28 de novembro de
2017, da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. E deste Protocolo não
consta ainda a prescrição do transplante de células-tronco, procedimento que motivou o
presente estudo. Logo, na presente situação, excetuando-se no caso dos procedimentos
realizados no interesse da pesquisa médica, observadas as normas pertinentes, o
transplante por células-tronco da Doença de Crohn é prática não admitida pelo SUS. Por
3
Cumpre ressaltar que, a priori, só a Constituição, “matriz de todas as competências”, poderia estipular
quais seriam as atribuições de cada nível de governo da Federação. Ocorre, contudo, que, em se tratando
da saúde pública, o que temos é um serviço de competência comum, prestado por intermédio do Sistema
Único de Saúde – SUS, que por seu turno, é organizado por normas infraconstitucionais. Eis porque, neste
caso específico, a reserva de competência da União encontra seu fundamento direto na lei e não na Lei
Fundamental, como seria de esperar. Lembre-se ainda, que a Lei Federal n. 8080/1990 é conhecida, ao
lado da Lei Federal n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que dispõe sobre a participação da comunidade
na gestão do SUS, como Lei Orgânica da Saúde.

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não constar no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas, não consta igualmente da


Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Esp eciais do
Sistema Único de Saúde4. Não pode ser efetuada, portanto, não só pela ausência do
permissivo legal indispensável à prestação de qualquer serviço público – ou, posto de
outro modo, ao exercício de qualquer atividade administrativa – mas também pela
impossibilidade que teria o estabelecimento privado de ressarcir-se junto ao erário dos
custos de realização do procedimento.
Lei estadual não poderia suprir esta lacuna, pois tanto o Protocolo Clínico e
Diretrizes Terapêuticas quanto a Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses,
Próteses e Materiais Especiais do Sistema Único de Saúde são definidos exclusivamente
no plano federal, no âmbito daquelas faculdades de coordenação e orientação do SUS
que a Constituição e as normas infraconstitucionais conferem à União.
Desse modo, impõe-se concluir não ser possível à Comissão de Saúde da Assembleia
Legislativa elaborar e apresentar projeto de lei incluindo o transplante de células-tronco
entre os procedimentos terapêuticos adotados pelo SUS Paulista para tratamento da
Doença de Crohn.
3. Sobre a possibilidade de apelar às autoridades federais mediante Moção – A
validação científica dos procedimentos médicos.
Ao considerar alternativas legislativas à elaboração e apresentação de Projeto de lei,
concluímos que a Moção seria a forma mais efetiva, ao menos no plano de jurídico, de
manifestação da vontade da Comissão de Saúde na matéria em questão. Por quê?
Porque tendo concluído anteriormente que só o Ministério da Saúde, como órgão
coordenador e orientador do Sistema Único de Saúde, com a assessoria da Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias – CONITEC, poderia incorporar o transplante
de células-tronco ao rol de terapias admitidas pelo Sistema para o tratamento da Doença
de Crohn, só poderíamos concluir, igualmente, ser impossível ao legislador estadual
dispor sobre a matéria por meio de norma legal. Assim, não lhe sendo possível decidir
sobre a matéria, o único meio que restaria ao legislador estadual para influir sobre esta
seria manifestar-se junto a quem cabe decidir, isto é, junto ao Ministério da Saúde. E o
veículo apropriado para fazê-lo, conforme as normas regimentais, seria exatamente a
Moção.
Mas a escolha da forma jurídica adequada à manifestação da Comissão de Saúde não
encerra o assunto. Na verdade, apenas permite que se encerre uma das questões
jurídicas que o mesmo suscita.

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Este é o nome oficial da famosa “tabela SUS”, que remunera os procedimentos médicos efetuados a
expensas do sistema.

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É ao imaginarmos o teor da Moção que uma questão logo se impõe: No que se apoia
a Comissão de Saúde ao recomendar o transplante de células-tronco?
Antes de tudo, os Membros da Comissão devem se apoiar nos seus próprios
conhecimentos e na sua compreensão da matéria. Não cabe a nós colocar em questão
nenhum destes aspectos, dada, inclusive, a sua subjetividade.
Entretanto, quando lembramos que a prescrição de qualquer medicamento ou
procedimento médico deve ter um fundamento científico, devemos ter em mente que a
existência de tal fundamento só pode ser constatada por meio de um processo de
validação científica, que, logicamente, não terá lugar nas Casas Legislativas ou mesmo
na Administração e, sim, onde a ciência é produzida.
Em outros termos, não é a própria Administração que, no âmbito dos serviços de
saúde, deve constatar a validade científica de uma nova intervenção terapêutica. É à
pesquisa médica, realizada segundo os princípios e normas do ambiente acadêmico, que
cabe realizar tal demonstração. E, ao fazê-lo, ela oferece às instâncias administrativas da
Saúde Pública um fundamento legítimo para adoção daquele mesmo procedimento
como uma de suas práticas correntes.
A pesquisa médica de que tratamos é, geralmente, desenvolvida por meio de ensaios
clínicos. Os ensaios clínicos
São utilizados para investigar novos procedimentos clínicos ou novos medicamentos
destinados a identificar, prevenir ou tratar doenças. Os ensaios clínicos que envolvem
medicamentos podem ser realizados em consultórios médicos, clínicas ou centros de
estudo.5
Todo o processo é delineado por um documento escrito, a que se dá o nome de
“protocolo de estudo”. Segundo a Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa
Clínica (SBPPC), o protocolo de estudo “define todo o planejamento do projeto” e deve
descrever, dentre outros aspectos, os seguintes:
(1) Países que participarão do estudo e o número de pacientes que serão incluídos no
estudo;
(2) Critérios de inclusão e exclusão para a seleção dos participantes (Por exemplo:
mulheres, de idade superior a 18 anos, portadoras de câncer de mama, que não estejam
grávidas nem amamentando, etc.);
(3) Número de consultas que serão realizadas (Por exemplo: uma consulta a cada 15
dias durante 6 meses);
5
O que são ensaios clínicos? Texto disponível na seguinte página da MSD na Rede Mundial de
Computadores (Internet): http://msd.pt/ensaios-clinicos/o-que-sao-ensaios-clinicos/ Consultado no dia
16/04/2018.

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(4) Os exames que serão realizados e com que frequência (Por exemplo: o paciente
realizará exame de sangue – hemograma – a cada 15 dias; radiografia de tórax a cada 2
meses, etc.);
(5) A medicação que será estudada, a dose, forma de administrar (Por exemplo: a
paciente receberá o medicamento “x” por uma infusão intravenosa a cada mês, durante
1 ano);
(6) Os possíveis efeitos colaterais do medicamento e o que o investigador deve fazer
para contornar (tratar) estes efeitos e até mesmo quando ele deve interromper o
tratamento com o medicamento do estudo, e
(7) A duração do estudo, ou seja, por quanto tempo o projeto acontecerá.6
Conforme o Prof. Álvaro Oscar Campana 7, o ensaio clínico controlado randomizado
é, a investigação preferida quando o objetivo é testar a eficiência do tratamento por
drogas, por um procedimento cirúrgico ou por outro tipo de intervenção8.
Em essência, dois grupos idênticos de pacientes são estudados, num delineamento
prospectivo, isto é, em que os dados são coletados depois que se deu início ao estudo. De
preferência, uma única variável é avaliada - por exemplo, o efeito de uma droga contra o
efeito placebo. Ambos os grupos são acompanhados durante tempo especificado, após o
que é analisado o comportamento da variável, tal como definido no início do estudo – na
realidade, isto corresponde ao resultado final (“end point”) do ensaio; pode ser, por
exemplo, a concentração do colesterol no soro ou, mesmo, algum evento clínico.

(...)
O tamanho da amostra é fator importante quanto à credibilidade dos resultados
fornecidos pelo ensaio. A partir de um número pequeno de casos analisados, existe o
risco de se chegar a uma conclusão que não corresponde à realidade. Esse problema pode
ser superado pelo delineamento em que se preveja a participação colaborativa de mais de
um ou de vários centros de pesquisa.
Outra modalidade de ensaio clínico muito utilizado na pesquisa de novos trtamentos
é o “ensaio clínico cruzado” (crossover), que o Prof. Campana explica do seguinte
modo:
Delineamento em que metade de um grupo de indivíduos recebe um tratamento (por
exemplo, uma droga) e a outra metade, o tratamento alternativo (placebo); a seguir, após
6
Conforme o portal da SBPPC na Internet: http://www.sbppc.org.br/portal/index.php?
option=com_content&task=view&id=18&Itemid=41 Consultado no dia 16/04/2018.
7
Professor Titular do Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP.
8
In Metodologia da investigação científica aplicada à área biomédica : 2. Investigações na área médica. Texto
disponível na Internet, no seguinte endereço: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
35861999000200005 Consultado a 17/04/2018.

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período de repouso (“washout period”), há inversão, a primeira metade recebendo o


placebo e a segunda, a droga em estudo. Este procedimento permite analisar os resultados
em conjunto (todos os que receberam o tratamento contra todos os que receberam
placebo), desde que a análise estatística mostre que não houve efeito do período de
administração sobre os resultados das variáveis estudadas. 9
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a qual incumbe, dentre
outras atribuições, autorizar a produção e comercialização de medicamentos, não
prescinde da realização de ensaios clínicos quando se trata de permitir o ingresso de
novos produtos no mercado brasileiro. É igualmente incogitável a adoção de novos
procedimentos terapêuticos no âmbito do SUS sem que estes tenham fundamento em
ensaios clínicos que demonstrem sua eficácia.
Durante a Reunião do último dia 20 de março, quando o Prof. Roberto Luiz Kaiser
Junior, insigne Doutor em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina de São José
do Rio Preto, explicava à Comissão de Saúde deste Parlamento o transplante de células-
tronco para o tratamento da Doença de Crohn, objeto deste trabalho, o Nobre Deputado
André do Prado indagou se este procedimento era contemplado pelo Sistema Único de
Saúde. O Dr. Kaiser respondeu então que a apresentação do procedimento perante o
SUS seria um “projeto futuro”, para 2019 ou 2020, já que antes seria preciso “terminar
este protocolo, este estudo”, publicá-lo de novo (durante sua exposição o médico fizera
referência a publicação de vários resultados preliminares em periódicos especializados,
como a célebre revista Lancet) e, então, fazer uso desta publicação para pleitear o
acesso ao SUS10.
O que podemos deduzir de tais esclarecimentos? Que o “protocolo”, o “estudo”, a
que fez menção o Dr. Kaiser é nada mais que o “protocolo de estudo” que explicamos
anteriormente, isto é, o plano no qual é delineado o ensaio clínico necessário à validação
científica de novos medicamentos ou intervenções terapêuticas.
Outro dado importante, revelado durante a mesma exposição, é que, até aquela data,
20 de março deste ano, apenas 36 pacientes haviam sido submetidos ao transplante de
células-tronco e que muitas destas intervenções eram recentes. É difícil imaginar que
uma mostra tão restrita seja considerada suficiente para fundamentar uma assertiva
confiável a respeito da eficácia do tratamento em questão. Eis a razão, ao nosso juízo,
para que o próprio Dr. Kaiser considere adequado concluir o protocolo de estudo, antes
de pleitear a incorporação do transplante de células-tronco no Protocolo Clínico e

9
Idem.
10
As informações relativas à Reunião da Comissão de Saúde de 20/03/2018 foram obtidas por esta
Divisão junto ao Serviço de Audiofonia desta Casa, que as forneceu por meio do arquivo contendo o
registro sonoro pertinente.

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Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Doença Crohn, o que possibilitaria a adoção deste


procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
De qualquer maneira, o fato de o processo de validação científica do tratamento em
questão não ter sido concluído não permite ainda que o mesmo seja submetido às
autoridades federais para avaliação e, se aprovado, incorporação ao rol de serviços do
SUS. Assim, qualquer manifestação desta Casa perante o Governo Federal a respeito da
matéria seria prematura e, portanto, ineficaz, razão pela qual, não nos parece ser o caso,
por enquanto, de apresentar a moção ora cogitada.

Conclus ões

Do presente estudo concluímos que, nos termos da Lei n. 8080, de 19 de setembro


de 1990 (Lei Orgânica da Saúde), só a União, no uso dos seus poderes de coordenação
e orientação do Sistema Único de Saúde, poderia incorporar um novo tratamento ao rol
de intervenções terapêuticas admitidas pelo Sistema, o que exigiria a revisão do
Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Doença de Crohn, que foi
veiculado pela Portaria Conjunta n. 14, de 28 de novembro de 2017, da Secretaria de
Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. Desse modo, é impossível ao legislador
estadual dispor sobre a matéria por meio de norma legal.
Concluímos também que, estando o transplante de células-tronco para tratamento
da Doença de Crohn na fase do ensaio clínico, processo de validação científica que se
conclui com a publicação dos resultados nos periódicos especializados, hoje as
autoridades competentes da União não teriam condições de homologar o procedimento
com vistas a sua incorporação pelo SUS, razão pela qual, mesmo a manifestação por
meio de moção, não conviria no momento.
Sendo assim, é impossível a esta Divisão atender ao pedido da Comissão e
elaborar a minuta solicitada.

HERNANDEZ PIRAS BATISTA


Analista Legislativo

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ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

DEPARTAMENTO DE COMISSÕES
DIVISÃO DE PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS

CDD

Memorando recebido em 21/03/2018

Hpb - AL

Arquivo: Hernandez Piras Batista\Documentos\Estudos\Estudo- CS_Novo_Tratamento_Doença_de_Crohn

Referências

Legislação:
Constituição da República Federativa do Brasil.
Constituição do Estado de São Paulo.
Lei Federal n. 8.080, de 19 de setembro de 1990.
Lei Federal n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
Decreto Federal n. 7.646, de 21 de dezembro de 2011.
Portaria Conjunta n. 14, de 28 de novembro de 2017, da Secretaria de Atenção à
Saúde do Ministério da Saúde, que aprovou o Protocolo Clínico e Diretrizes
Terapêuticas – Doença de Crohn.

Fontes:
Campana, Álvaro Oscar. Metodologia da investigação científica aplicada à área
biomédica : 2. Investigações na área médica. Texto disponível no seguinte endereço:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-35861999000200005
Consultado a 17/04/2018.
Folheto informativo sobre a Doença de Crohn. Portal da Sociedade Brasileira de
Coloproctologia (SBCP). https://www.sbcp.org.br/pdfs/publico/crohn.pdf. Consultado a
04/04/18.

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ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

DEPARTAMENTO DE COMISSÕES
DIVISÃO DE PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS

O que são ensaios clínicos? Portal da MSD: http://msd.pt/ensaios-clinicos/o-que-sao-


ensaios-clinicos/ Consultado no dia 16/04/2018.

Protocolo de Estudo. Portal da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa


Clínica (SBPPC) na Rede Mundial de Computadores (Internet):
http://www.sbppc.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=18&Itemid=41
Consultado no dia 16/04/2018.
Registro sonoro da Reunião da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo, realizada no dia 20/03/2018. Fornecido pelo Serviço de
Audiofonia.

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