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Artigo – Mistanásia hoje: pensando as desigualdades sociais e a pandemia Covid-19 (https://www.abrasco.org.br/site/noticias/mistanasia-
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A primeira pandemia deste século foi decretada para a gripe provocada pelo vírus H1N1 e os temores que
ela provocou referiam-se ao fato de ser o mesmo tipo de vírus que havia causado a grande pandemia da
“gripe espanhola”, em 1918-9 (que não teve início na Espanha). Entretanto, a taxa de mortalidade desta
primeira pandemia do século XXI foi baixa, menor inclusive do que a das gripes sazonais, o que
provavelmente estimulou a campanha negacionista que hoje se pode observar em muitos países,
também entre nós, com relação à Covid-19.
No Brasil, investimos menos de 4% do PIB em saúde pública nos últimos anos, o que ocasionou
importantes de ciências no sistema de saúde e aumento de desigualdades sociais. O sonho sanitarista
de um modelo de atenção à saúde público, universal e gratuito, consagrado na Constituição Federal de
1988, sempre foi minado por entes interessados em favorecer o sistema privado, ainda que deixando
descobertos os segmentos populacionais abaixo da classe média. A pandemia provocada pelo SARS-
CoV-2 trouxe um aumento da demanda por leitos hospitalares de enfermaria e de UTI, o que tem levado o
Sistema Único de Saúde (SUS) – na maioria das capitais brasileiras – ao limite de sua capacidade,
evidenciando assim, a ausência de instalações de assistência apropriadas para o nível de complexidade
que está sendo demandada.
A inexistência de um tratamento conhecido para a infecção por SARS-CoV-2, ou de uma vacina tornou o
distanciamento físico (social) a principal estratégia para proteger a população, na tentativa de se evitar
um colapso do sistema de atenção à saúde. Entretanto, seja por seu impacto sobre a saúde mental, o
aprofundamento de violências ou impossibilidade de um efetivo distanciamento, alguns seguimentos
sociais sofrem as consequências do isolamento de uma forma ainda mais problemática. É o caso de
população de rua, pessoas em situação de cárcere, indígenas, mulheres, negros, moradores de favelas,
pessoas com de ciências diversas, pessoas em situação de extrema pobreza.
Quem morre vira um número, que não possui história, ou vínculos, ou uma identidade. Aos seus familiares
é negado – corretamente aliás – até mesmo o direito de velar seus mortos, já que a doença pode ser
transmitida durante os rituais fúnebres. A face real de uma estrutura necropolítica, herança de uma
sociedade escravagista onde não podemos parar toda uma cadeia de produção porque um ou dois
“escravos” morrerão por uma “gripezinha”, surge aqui sem disfarce. Essa população mais vulnerável tem
sido vítima da omissão do poder público em vários aspectos, de uma maneira sistemática e calculada,
gerando profundas disparidades sociais e raciais que impedem o acesso à saúde, acesso à água potável
ou saneamento básico. Desigualdade tamanha, que, ao longo de nossa história, vem levando à morte as
cidadãs e os cidadãos do nosso país. O distanciamento social ou o isolamento dos infectados não é uma
medida possível para todos, como ocorre em muitas de nossas periferias, em que as moradias contêm
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uma única saída de ar e abrigam 4 ou mais pessoas, em pouco mais de 12m². Nesta realidade, o home
o ce que vem sendo implementado por muitas empresas é inexistente pois, para tal parcela da
população, não há emprego compatível com o trabalho remoto.
Há um efeito imediato da pandemia nas comunidades e populações vulneradas, e tais indivíduos estão à
mercê de uma opressão dos mais fortes (econômica e socialmente). Este critério está diretamente ligado
à desigualdade. Para Neves (2006), “(…) o princípio do respeito pela vulnerabilidade humana e pela
integridade individual articula-se com o da dignidade humana, cujo valor incondicional da pessoa é
reforçado com a exigência da sua inviolabilidade” (p. 168).
O acesso limitado à saúde somado a uma maior exposição de fatores de risco resulta em situações que
atingem diretamente a dignidade dos mais pobres. Isto provoca tristes cenas, como a divulgada por
vários meios de comunicação, quando um idoso de 70 anos, com suspeita de Covid-19, morreu após uma
espera de longos sete dias, numa cadeira de recepção de um hospital do Rio de Janeiro. Esse relato
expressa uma realidade que não é rara, lamentavelmente, em decorrência da escassez de leitos
disponíveis e até mesmo de medicamentos, como aqueles necessários para viabilizar a instalação de
ventilação assistida de um paciente.
Histórias como essa se repetem todos os dias, enquanto o Brasil contabiliza seus mortos. Seja com
pacientes que conseguem internação num hospital e cam à espera de tratamento adequado numa
cadeira de recepção, ou com usuários que recebem atendimentos num posto de saúde sem estruturas
para receber pacientes graves. A escassez de leitos em Unidades de Terapia Intensiva não é uma
novidade no Brasil. Todos nós somos capazes de lembrar inúmeros episódios passados onde a Justiça Privacidade - Termos
era acionada para obrigar o Estado a dar acesso a leitos de terapia intensiva para pacientes que
receberam essa indicação médica. É fato que o desmonte do SUS foi incentivado com a aprovação da
Emenda Constitucional 95 (em dezembro de 2016) que limita por 20 anos os gastos públicos. O
progressivo fechamento de leitos públicos, em inúmeros hospitais, as ausências de concursos públicos e
uma carreira de Estado para os trabalhadores de saúde contribuíram para o caos progressivo que
observamos.
Casos como esses culminam numa morte por abandono, desinteresse e negligência do Estado, a
despeito de constar na Constituição que a saúde é dever do Estado e direito de todos, no Brasil. Mortes
como as citadas nesses casos, as quais temos assistido diariamente nos noticiários, são mortes
precoces e que podem ser denominadas de mistanásia. As diferenças, injustas, nos dados de saúde
durante a pandemia (calculada a partir dos dados de 24 de maio 2020, da Faculdade de Medicina da USP
de Ribeirão Preto e Voz das Comunidades) estão evidentes ao analisarmos a letalidade da Covid-19 na
população residente em favelas no município do Rio de Janeiro (24%) e a letalidade para a cidade do Rio
de Janeiro, incluídos os residentes em favelas, que foi de 12% e no Brasil 6%.
Mas, para além da luta política que é indispensável para possibilitar um incremento na proteção social, é
indispensável também, que prestemos atenção a situações como a já mencionada e a que foidivulgada
pelo sítio UOL. Tratava-se do enfermeiro Evandro da Silva Costa, de 42 anos, que relatou em mensagens
enviadas a seus colegas, seus últimos momentos vivos: “Me mandaram pra morrer, estou sem
assistência alguma. Só no oxigênio. Vou morrer, colegas”. Logo depois, disse: “Vou morrer sentado
agonizando aqui. Minhas mãos estão cianóticas, saturando 60 agora e sem assistência alguma”. O
pro ssional morreu após enviar as mensagens.
Entendemos como inaceitável que se permita que indivíduos morram, em agonia, sem que nada seja feito
para minorar seu sofrimento. Caso se chegue a inaceitável situação em que não se disponha da
terapêutica adequada para que se possa tentar evitar o desfecho letal, que não se deixe de ao menos
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utilizar os recursos disponíveis para aliviar os sintomas, inclusive, se pertinente, oferecendo sedação
paliativa1 no sentido de diminuir o sofrimento do paciente. É mister não haver confusão desse
procedimento com o que antes foi nominado como sedação terminal.
A morte miserável põe em xeque a dignidade do indivíduo em seu direito de viver e de morrer sem
sofrimentos adicionais. Não nos resta dúvida que esta situação da pandemia acentuará as desigualdades
que já eram evidentes no nosso país. Por isso, os direcionamentos tomados pela iniciativa pública devem
buscar, além de soluções individuais para resolução do problema, fortalecer políticas públicas que
enfrentem as desigualdades, atendendo às necessidades da população de uma forma mais justa no
sentido de assegurar a atenção ao direito básico da saúde efetivamente para todos. Assim, quem sabe,
teremos algum dia o orgulho de vermos o nosso SUS homenageado publicamente por nossa sociedade
por atender a todos e todas sem privilégios, como foi o National Health Service nas Olimpíadas de
Londres em 2012. Mas isso requer que a equidade seja efetivamente uma meta e uma realidade a ser
procurada por todos e não apenas um conceito inserido em nossa Constituição Federal por sonhadores.
Referências:
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BERLINGUER, Giovanni. Bioética cotidiana. Trad. Lavínia Bozzo Aguilar Porciúncula. Brasília: UnB, 2004.
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em: https://www.vozdascomunidades.com.br/2020/05/24/
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http://petdocs.ufc.br/index_artigo_id_419_desc_Anestesiologia_pagina__subtopico_10_busca
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em 25 de maio de 2020.
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ISTO É. Horas antes de morrer, enfermeiro pede socorro a colegas: “Estou agonizando”. Disponível em:
https://istoe.com.br/horas-antes-de-morrer-enfermeiro-pede-socorro-a-colegas-estouagonizando/
(https://istoe.com.br/horas-antes-de-morrer-enfermeiro-pede-socorro-a-colegas-estouagonizando/)
Acesso em: 03 de junho de 2020.
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http://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/download/7969/6541
(http://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/download/7969/6541) Acesso em: 02 de junho de 2020.
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(https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=361533257016) Acesso em: 02 de junho de 2020.
STEPS CENTRE. Steps Brie ng 51. Swine u: what went wrong? Disponível em:
https://stepscentre.org/wp-content/uploads/Pandemics_brie ng_web.pdf (https://stepscentre.org/wp-
content/uploads/Pandemics_brie ng_web.pdf) Acesso em: 25 de Maio de 2020
1 Aqui entendida como “a administração deliberada de fármacos em doses e combinações necessárias para
reduzir o nível de consciência, com o consentimento do paciente ou de seu responsável, e possui o objetivo de
aliviar adequadamente um ou mais sintomas refratários ao tratamento especí co em pacientes com doença
avançada terminal. Considera-se também como uma forma de sedação primária, que pode ser contínua ou
intermitente, super cial ou profunda.” (Costa, 2015)
Autores:
Roberta Lemos dos Santos –. Doutoranda PPGBIOS/Fiocruz, Sociedade de Bioética do Estado do Rio de
Janeiro – regional da SBB (SBRio). Contato: roberta_o_lemos@hotmail.com
Luciana Brito – UnB, ANIS, GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa.
Marisa Palácios – Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of
Bioethics at Haifa, Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro – regional da SBB (SBRio)
Rodrigo Siqueira-Batista – UFV, FADIP, PPGBIOS, PQ CNPq, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics
at Haifa.
Sergio Rego – ENSP/Fiocruz, PPGBIOS, PQ CNPq, GT Bioética Abrasco, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair
of Bioethics at Haifa
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Comments
1 comments
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Graciele Borges
Excelente texto. Obrigada por compartilharem conhecimento e informação.
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