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Não adiantava tentar o elevador.

Mesmo quando tudo ia bem, era raro que funcionasse, e


agora a eletricidade permanecia cortada enquanto houvesse luz natural. Era parte do esforço
de economia durante os preparativos para a Semana do Ódio.

embora o sol brilhasse e o céu fosse de um azul áspero, a impressão que se tinha era de que
não havia cor em coisa alguma a não ser nos pôsteres colados por toda parte.

Não que isso fosse ilegal (nada era ilegal, visto que já não existiam leis), mas se o fato fosse
descoberto era praticamente certo que o punissem com a morte ou com pelo menos vinte e
cinco anos de prisão em algum campo de trabalhos forçados.

Os consertos que os moradores não conseguiam fazer sozinhos precisavam ser autorizados por
comitês inacessíveis, capazes de retardar por dois anos uma singela troca de vidraça.

Havia uma espécie de ferocidade calculista nos olhos do garoto, um desejo bastante óbvio de
bater ou dar chutes em Winston, e a consciência de que não faltava muito para alcançar o
tamanho suficiente para fazer isso.

“Estão desapontados porque não puderam ver o enforcamento. Estou ocupada demais para
levá-los e o Tom não vai chegar a tempo do trabalho.”

“Por que a gente não pode ir ver o enforcamento?”, rugiu o garoto com seu vozeirão.

“A gente quer ir no enforcamento! A gente quer ir no enforcamento!”, cantarolou a garotinha,


que continuava pulando ao redor de Winston.

Não havia censura nem no rosto nem no coração delas, simplesmente a consciência de que
teriam de morrer para que ele pudesse continuar vivo, e que isso era parte da ordem
inevitável das coisas.

Com sua graça e displicência, era um gesto que parecia aniquilar toda uma cultura, todo um
sistema de pensamento, como se o Grande Irmão, o Partido e a Polícia das Ideias pudessem
ser todos jogados no nada com um único e glorioso movimento de braço.

Winston não conseguia se lembrar de jeito nenhum de uma época em que seu país não
estivesse em guerra, mas era evidente que existira um intervalo bastante prolongado de paz
durante sua infância, porque uma de suas memórias mais antigas era de um ataque aéreo que
aparentemente pegara todo mundo de surpresa.
Assim, era necessário reescrever um parágrafo do discurso do Grande Irmão, de forma a
garantir que a previsão que ele havia feito estivesse de acordo com aquilo que realmente
acontecera.

Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. Desse modo era possível
comprovar com evidências documentais que todas as previsões feitas pelo Partido haviam sido
acertadas;

O que se sabia sem sombra de dúvida era que todos os trimestres uma quantidade
astronômica de botas era produzida no papel, enquanto possivelmente metade da população
da Oceânia andava descalça pelas ruas. E assim acontecia com todos os tipos de fatos
documentados, importantes ou não.

“Foi um belo enforcamento”, disse Syme, pensativo.

Li alguns daqueles artigos que você publica no Times de vez em quando. São muito bons, mas
são traduções. No fundo você preferiria continuar usando a Velhafala, com todas as suas
inexatidões e nuances inúteis de significado.

Na mesa à esquerda o homem de voz estridente continuava falando sem dar trégua aos
companheiros.

Ir para a cama com prostitutas era proibido, claro, mas essa era uma daquelas normas que a
pessoa por vezes se animava a desrespeitar.

O Partido tinha uma tendência, inclusive, a estimular tacitamente a prostituição, vendo nessa
prática uma forma de dar vazão a impulsos que não podiam ser de todo suprimidos.

Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por uma comissão
especialmente nomeada para esse fim.

Impossível derrubar o Partido de dentro para fora. Seus inimigos, se é que o Partido possuía
algum, não tinham como agrupar-se ou mesmo como identificar-se uns aos outros.
o Partido ensinava que os proletas eram inferiores naturais que deviam ser mantidos
dominados, como os animais, mediante a aplicação de umas poucas regras simples.

Não era desejável que os proletas tivessem ideias políticas sólidas. Deles só se exigia um
patriotismo primitivo, que podia ser invocado sempre que fosse necessário fazê-los aceitar
horários de trabalho mais longos ou rações mais reduzidas.

“Se é que há esperança”, escrevera no diário, “a esperança está nos proletas.”

Em três ou quatro minutos estava fora da área atingida pelo míssil e a vida sórdida e
tumultuosa das ruas seguia seu curso como se nada tivesse acontecido.

Como de hábito, não havia nenhuma norma expressa que proibisse a pessoa de conversar com
os proletas e frequentar seus pubs, mas aquela era uma atitude inusitada demais para passar
despercebida.

Part 2

Pior ainda do que ser obrigado a direcionar a mente para uma série de tarefas minuciosas e
insignificantes era a necessidade de disfarçar seu estado de agitação diante da teletela.

Era um problema físico que precisava ser solucionado: como entrar em contato com a garota e
combinar um encontro. Já não acreditava na possibilidade de que ela pudesse estar
preparando algum tipo de armadilha para ele.

No último caminhão, viu um homem idoso, rosto coberto por um emaranhado de pelos
grisalhos, em pé, punhos cruzados à frente, como alguém habituado a andar com os braços
amarrados.

“É, sim. Veja as árvores.” Eram pequenos freixos que haviam sido cortados e que depois
tinham brotado de novo, formando uma floresta de postes, nenhum deles mais grosso que o
pulso de uma pessoa. “Não há nada suficientemente grande para ocultar um microfone. Além
do mais, já estive aqui antes.” Pag 122

“Eu sentia ódio só de olhar para você”, disse. “Queria estuprá-la e depois matá-la. Duas
semanas atrás, pensei seriamente em arrebentar a sua cabeça com um paralelepípedo. Se
quer mesmo saber, eu achava que você tinha alguma ligação coma Polícia das Ideias.”
“Ouça. Quanto maior o número de homens que você teve, maior é o meu amor. Compreende
isso?”

Era “ininteligente”, mas gostava de trabalhar com as mãos e ficava à vontade lidando com as
máquinas.

“Quando você faz amor, está consumindo energia; depois se sente feliz e não dá a mínima
para coisa nenhuma. E eles não toleram que você se sinta assim. Querem que você esteja
estourando de energia o tempo todo.

Com efeito, a família se transformara numa extensão da Polícia das Ideias.

Por alguns instantes, Winston ficou profundamente encolerizado.

Winston se virou e levou quase um segundo para reconhecê-la. Imaginava que a veria nua.
Mas ela não estava nua. A transformação ocorrida era muito mais surpreendente que isso.
Julia se maquiara.

Tinha quase exatamente o mesmo aspecto de antes — nada estava riscado —, mas faltava um
nome. Era o que bastava. Syme deixara de existir; aliás, nunca existira.

Onde quer que você se posicionasse com relação ao pôster, o cano da metralhadora, ampliado
pela perspectiva, parecia estar sempre apontando para você.

Sujo ou limpo, aquele quarto era o paraíso.

Mas Syme não apenas estava morto como fora abolido, era uma despessoa. Fazer qualquer
referência que o identificasse era mortalmente perigoso.

Tinha a sensação de estar pisando na terra úmida de um túmulo, e o fato de sempre ter sabido
que o túmulo estava ali à sua espera não melhorava muito as coisas.

Depois que devorou o chocolate, ficou um pouco envergonhado e perambulou pelas ruas
durante várias horas, até que a fome o fez voltar para casa.

Quando você ama alguém, ama essa pessoa e mesmo não tendo mais nada a oferecer,
continua oferecendo- lhe o seu amor.
Com toda a sua inteligência, eles jamais haviam dominado o segredo de descobrir o que outro
ser humano está pensando.

Contudo, o simples ato de pôr os pés num lugar como aquele já demonstrava uma enorme
ousadia.

De repente, o pavor que Winston já sentia foi atingido por um fio de embaraço perfeitamente
comum. Pareceu- lhe bem possível ter cometido um equívoco estúpido.

“Vocês podem desligar!”, exclamou.

“É”, disse O’Brien, “podemos. Temos esse privilégio.”

Em cinco dias, trabalhara mais de noventa horas — ele e todo o pessoal do Ministério. Agora
estava tudo acabado e ele não tinha nada a fazer, literalmente.

Winston pegara a pasta distraído, sem dizer nada. Sabia que seria preciso esperar alguns dias
para ter a oportunidade de dar uma olhada em seu conteúdo.

No Departamento de Registros, todos trabalhavam dezoito horas por dia com dois intervalos
de três horas para dormir.

A mulher lá embaixo não tinha cérebro, tinha apenas dois braços fortes, um coração afetuoso
e um ventre fértil.

O futuro pertencia aos proletas.

Winston não ousava virar a cabeça nem um milímetro, porém às vezes o rosto lívido e
ofegante da jovem entrava em seu campo de visão.

PART 3

Pelo que Winston entendeu, os campos “não eram problema” desde que você tivesse bons
contatos e conhecesse as manhas. Havia suborno, favoritismo e extorsão de todo tipo, havia
homossexualidade e prostituição, havia até álcool clandestino, destilado de batatas.

Ele pensava apenas em seis coisas. Na dor de estômago, num pedaço de pão, no sangue e nos
gritos, em O’Brien, em Julia, na gilete.
Um rugido furioso, ensurdecedor, saiu da teletela. O homem sem queixo recuou num salto. O
da cara de caveira escondera depressa as mãos atrás das costas, como se quisesse demonstrar
a todos que recusava o presente.

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