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— O Desespero
Há pessoas em desespero e nem nã o sabem do perigo mortal em que estã o. Necessitam a nossa
atenta e imediata solicitude.
Há três formas de desespero. Uma delas nã o é o verdadeiro desespero, pois acontece no mundo sensível e
inteligível, imediato. Dito de outro modo, nã o se relaciona com o eu-profundo, mas tã o-só com o eu-sujeito
ou pronominal1.
– Exemplificação
O ditado popular diz “quem espera desespera”.
Espero alguém. Preciso concluir importante acordo. O Outro tarda a chegar. O meu fundo pá tico 2 começa a
perturbar-se com a situaçã o de prolongada espera. Modifico a disposiçã o e o humor, afetando o íntimo
conjeturar arrastando novos sentimentos e emoçõ es. O tempo vivido decorre lentamente até nele parar.
Nã o há devir. Fico tenso e impaciente.
A paciência e a impaciência têm a ver com o decurso do tempo vivido. A paciência permite poder-
esperar (modo passivo) ou a atuar para vir a acontecer o esperado (modo ativo). A impaciência
reside na incapacidade situacional de não poder mudar a realidade.
A tensã o, pelo movimento emocional, afeta cada vez mais a motricidade. O seu campo de açã o aumenta e a
inicial inquietaçã o passa a desassossego. Afundo-me, grau a grau, na irritaçã o. Entã o, exaspero3, torno-me
á spero, rude, agastado.
1
Kierkegaard também os designava como “Eu-pró prio” e “Eu-primeiro”, respetivamente. (Em francês: moi e je).
2
V. a funçã o pá tica (afetividade) na pá g. 87 da Psicologia da Pessoa e Elucidaçã o Psicopatoló gica (de Raul Guimarã es
Lopes, Higiomed Ediçõ es, Porto, 2006).
3
Poderíamos antes dizer “quem espera exaspera”. Ainda nã o se pode falar de desespero.
4
Já falamos de sensibilidades anó malas ao abordarmos o 2.º Ensaio, o Ressentimento.
1
“Fiz para mim obras magníficas; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas… hortas,
jardins… tanques de água para regar… adquiri servos e servas… amontoei prata e ouro… era tudo
vaidade e aflição de espírito e que proveito nenhum havia debaixo do sol… Desprezei a vida e
entreguei meu coração ao desespero, tudo devido ao trabalho em que tanto me esforcei debaixo do
sol, para concluir que foi nulo. Ora, tudo é um absurdo! 5”.
– Pessoa
Tudo o que é humano é constituído por três qualidades: a corporal (soma), a anímica (psique) e a noética
(espírito). Esta reú ne as outras duas e forma com elas uma ú nica unidade — a pessoa. O espírito é
liberdade, o eu-profundo da pessoa, o seu “Eu-pró prio”. Este tem a faculdade de se relacionar consigo
mesmo e com as outras duas qualidades. O que nã o acontece no mundo animal, pois na ausência de
espírito o instintivo domina a açã o (tudo é necessidade). Nã o havendo espírito (liberdade) nã o há reflexã o
em Si-pró prio e nem sequer se põ e a questã o de valores éticos e, logo, de deveres de si e para consigo.
– O verdadeiro Desespero
O étimo de desespero é “spes”8. O termo “sperare” com o prefixo “de” significa falta. Desesperar é
falha ética, perder a esperança.
5
Ecl. 4-11;20. Traduçã o de Almeida, atualizada.
6
Os sentimentos espirituais (ou nooló gicos) sã o a apropriação do vivenciado (como o tédio, o ressentimento, o
desespero, o demoníaco e outros como o remorso, o pudor, …).
7
Cura é o cuidado de si — no presente contexto nã o se fala, especificamente, de cura médica.
8
Esperança, em latim
9
Diz Kierkegaard: “O Eu-próprio não é a relação, mas o facto da relação se referir a si-próprio.” (OC XVI, p.171).
10
No imediato só há referência a aspetos somá ticos e psíquicos nã o atendendo à Relaçã o com o Eu-pró prio. Daí se
falar, em psicossomá tica, de sintomas inexplicá veis. Muitas outras categorias patoló gicas têm este problema. Por nã o
se considerarem os perenes valores do espírito no imanente, no dia-a-dia.
11
É costume confundir ética com moral. A ética é estritamente pessoal, a moral é social.
12
Kierkegaard criticava Descartes por entender a existência a partir do pensar (“penso, logo existo”).Mas o pensar é
do mundo imediato (noutro registo: do imanente), Mas, pensar (o que já bom) nã o chega para a formaçã o da
existência. Esta baseia-se nas escolhas éticas que fazemos: “Escolho, logo existo”.
13
As referências a Kierkegaard sã o das suas Obras Completas (OC) seguidas do Livro (em algarismos á rabes) e da
pá gina. Ou seja, no exemplo citado: Kierkegaard, Søren (1843). L’Alternative – L’É quilibre de l’esthétique et de
l’éthique dans la formation de la personalité. Oeuvres Complètes, vol. IV, p. 230, É ditions de L’Orante, Paris, 1979.
2
Iniciamos o entendimento da essência do verdadeiro desespero, contendo a falta do dever a si-pró prio,
desconhecido do pseudo-desesperado pela sua impessoalidade.
Atributo Finito—Infinito.
Nesta síntese a tarefa é tornar-se si-mesmo, ou seja, consistente consigo no devir, escolher-se nas
situaçõ es. Se rigidamente se fixa e nã o devém, se nã o aceita transformar-se, desespera. O finito limita,
ancora15, o infinito alarga as possibilidades de reflexã o de Si, através da imaginaçã o16. Há tensã o entre
ambos. Ao ser disso consciente, existe ao escolher.
Atributo Necessidade—Possibilidade.
Quando nã o estã o presentes há desespero. O facto de estar-em-situaçã o é exemplo da dialética
liberdade-necessidade. Parte do atual locus17 (onde me instalei) para a possibilidade de devir —
movimento gerado dentro da necessidade das condiçõ es situacionais. O determinista e o fatalista
acreditam no destino e perderam o seu eu-pró prio pois, para eles, tudo é necessá rio. Tudo está pré-
estabelecido18. Nã o há devir. Nã o há lugar para a possibilidade. A possibilidade, além do estar-
presente19, é crer e ter esperança.
A Consciência de Si
Há duas formas de consciência.
A consciência psicológica, como o todo da vida psíquica momentâ nea, imediata, baseada na
vigilidade neuroló gica e na psicoestesia20.
E a consciência de si como dupla-reflexã o21. É a íntima relaçã o com o Eu-pró prio ou profundo,
reflexiva, capaz de se abstrair do imediato para se concentrar no proprium, no genuíno22.
“Mas o que é este eu-próprio (ou o proprium), a minha pessoa? É a coisa mais arbitrária e, em
simultâneo, a mais concreta de todas — é a liberdade.”23
É na consciência de Si, reino da liberdade, onde o verdadeiro desespero se vem a formar. Como?
14
Se nã o fosse assim seria mera tautologia. Um teclado duma nota só .
15
O corpo, o conhecimento, o mundano… Tudo o que é imanente.
16
O espírito, a esperança, o crer (fé), o paradoxo.
17
Em Psicoterapia Existencial estuda-se a estrutura situativa da pessoa: locus ou instalaçã o; positus ou postura
(atitude); topus ou relaçã o; habitus ou normatividade; situs e açã o apropriada (situ-açã o).
18
Maktub, em á rabe, “está escrito”.
19
Tornar-se pró ximo e amar. V. Mat. 12:33.
20
No mundo animal regem as valências, no estritamente humano regem os valores.
21
Conceito a estudar em pró ximos Ensaios. É a reflexã o sobre o sentido para si sobre o que já se pensou (primeira
reflexã o) no momento de acontecer.
22
Podemos aqui empregar a séria “autenticidade”.
23
Kierkegaard, OC IV ̶ Vol. 2, p.193.
3
(1) Passei a vida a estudar mú sica. Mas, ao ouvir outras composiçõ es deixei de gostar das que escrevi. Tomava as
outras, entã o, como minhas. Mas também nã o me satisfaziam. Repetia plá gios, sem nunca encontrar satisfaçã o.
A infelicidade era contínua.
(2) Passei a vida a estudar mú sica. Mas, sempre considerei merecer e poder mais e melhor. Queria compor uma
mú sica angélica, divina. Ia para o piano e, ouvia em vez do “lá ” natural, um “sol” sustenido (G#). A diferença de
meio-tom nã o estava na minha pauta e isso desagradava-me. Esta situaçã o repetia-se noutras notas. E se
passasse a compor numa escala maior? Nã o. Vou averiguar o que está a acontecer. Quem andará a mudar a
afinaçã o do piano para eu nã o tocar o que quero? Basta!
A pessoa, insatisfeita consigo, quer ser diferente do que é ou sê-lo de maneira idealizada, ou seja, perfeita.
Daí podermos conceber duas formas do inerente desespero. A mistificaçã o de si, ou nã o-aceitaçã o de si24. E
a “divinizaçã o” de Si, ou o desafio de só assim querer ser.
Esta pessoa desesperada, mesmo nã o sabendo que o é, escolhe ser o sósia de si, pela negaçã o de parecer
ele-mesmo.
É o sem-sentido, em pessoa.
Evita a comunicaçã o, dobra-se sobre si mesmo. A personalidade é francamente introtensiva. Nã o é prá tica,
nã o solucionando o que lhe diz respeito. O pensamento é pretensioso, daí o modelo escolhido. Há clara
tendência à misantropia pois o distanciamento social fá-lo viver num nú cleo fechado. Desconfia dos outros
desenvolvendo antipatia. Convive pelo intuito de se exibir. Com o tempo torna-se entediante 25.
Além disso ofende-se pelo estado que criou, isto é, fica ressentido 26, mas consigo mesmo. Nã o acredita na
possibilidade de se modificar. Nem sequer põ e a questã o da esperança. Já morreu ainda vivendo.
24
Continuamos a seguir Kierkegaard no seu livro (OC IV p.171ss) “Doença para a Morte”.
25
V. o significado do Tédio no 1.º Ensaio.
26
V. o significado do Ressentimento no 2.º Ensaio.
27
Divinizaçã o do homem, segundo os estó icos – aspeto demoníaco.
28
No pró ximo Ensaio vamos estudar o demoníaco que nã o é sinó nimo de diabó lico como é habitual pensar-se.
4
É como o escritor ao encontrar uma falha que se revoltasse contra si e lhe impedisse de a corrigir — “quero
ficar assim para testemunhar o escritor medíocre que és”29.
Tem a íntima noçã o de nã o querer vencer. Se se vencesse a si-pró prio ganhava. Todavia, quer continuar a
dizer a quem o ouve: “Basta! Nã o vou tolerar mais isto.”
29
No texto de OC IV p. 229.
30
Kierkegaard, OC XVI, p.176, 177.
31
Apocalipse 9:6.
32
Ao modo do hermeneuta Gadamer: em paridade (Gadamer, H.G., 1996. Vérité et Méthode, É ditions du Seuil, Paris).
33
Carta de S. Paulo aos Hebreus 11:1.
34
Kierkegaard, OC XV, p.100, 104.
35
Carta de S. Paulo aos Romanos 8:25.
36
Este é o conceito da “repetição” existencial (renovaçã o) —a desenvolver noutra série de Temas.
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