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Temas de Psicologia Existencial

Kierkegaard – Noxas Mortais


3. O DESESPERO
1. O Tédio – Nada no Tempo
— Doença para a Morte
2. O Ressentimento – Nivelamento

3. O Desespero – Doença para a Morte


Ensaio de
Raul Guimarães Lopes 4. O Demoníaco – Ansiedade/Angú stia
perante o Bem

— O Desespero

Há pessoas em desespero e nem nã o sabem do perigo mortal em que estã o. Necessitam a nossa
atenta e imediata solicitude.

Há três formas de desespero. Uma delas nã o é o verdadeiro desespero, pois acontece no mundo sensível e
inteligível, imediato. Dito de outro modo, nã o se relaciona com o eu-profundo, mas tã o-só com o eu-sujeito
ou pronominal1.

– Exemplificação
O ditado popular diz “quem espera desespera”.
Espero alguém. Preciso concluir importante acordo. O Outro tarda a chegar. O meu fundo pá tico 2 começa a
perturbar-se com a situaçã o de prolongada espera. Modifico a disposiçã o e o humor, afetando o íntimo
conjeturar arrastando novos sentimentos e emoçõ es. O tempo vivido decorre lentamente até nele parar.
Nã o há devir. Fico tenso e impaciente.
A paciência e a impaciência têm a ver com o decurso do tempo vivido. A paciência permite poder-
esperar (modo passivo) ou a atuar para vir a acontecer o esperado (modo ativo). A impaciência
reside na incapacidade situacional de não poder mudar a realidade.
A tensã o, pelo movimento emocional, afeta cada vez mais a motricidade. O seu campo de açã o aumenta e a
inicial inquietaçã o passa a desassossego. Afundo-me, grau a grau, na irritaçã o. Entã o, exaspero3, torno-me
á spero, rude, agastado.

Desespero-fraqueza do imediato. Ou impessoalidade.


É a forma mais comum na vida do mundo sensível4, temporal. O desespero-fraqueza é o pseudodesespero
do imediato. Além da espera sem êxito, também surge em muitas outras situaçõ es em que tenha havido
frustraçã o. No empresá rio que perdeu a sua fortuna ou no trabalhador que perdeu o seu emprego. Ficam
desolados e esta solidã o tem prognó stico reservado. No cidadã o acusado de fraude que nã o cometeu. Fica
devastado, sem horizontes. Na jovem que perdeu o seu amado por morte ou traiçã o. Fica inconsolá vel.
Quem tenha levado uma vida de trabalho como paliativo, para nã o refletir no sério da absurdidade a
acontecer na interioridade. Fica na incongruência de si.

1
Kierkegaard também os designava como “Eu-pró prio” e “Eu-primeiro”, respetivamente. (Em francês: moi e je).
2
V. a funçã o pá tica (afetividade) na pá g. 87 da Psicologia da Pessoa e Elucidaçã o Psicopatoló gica (de Raul Guimarã es
Lopes, Higiomed Ediçõ es, Porto, 2006).
3
Poderíamos antes dizer “quem espera exaspera”. Ainda nã o se pode falar de desespero.
4
Já falamos de sensibilidades anó malas ao abordarmos o 2.º Ensaio, o Ressentimento.
1
“Fiz para mim obras magníficas; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas… hortas,
jardins… tanques de água para regar… adquiri servos e servas… amontoei prata e ouro… era tudo
vaidade e aflição de espírito e que proveito nenhum havia debaixo do sol… Desprezei a vida e
entreguei meu coração ao desespero, tudo devido ao trabalho em que tanto me esforcei debaixo do
sol, para concluir que foi nulo. Ora, tudo é um absurdo! 5”.

É este o sentido do pseudodesespero.


Procurar a consolaçã o ou a compreensã o numa quimera. Em vez de retomar o sentido da vida e ir em
frente, custe o que custar. Encarar o absurdo, ou seja, a incongruência de Si. Mas, apoiar-se no destino, na
má-sorte, na sua sina é desatino. Ignorar a gravidade situaçã o é nã o ter consciência de Si, do seu Eu-
pró prio, do seu espírito6 que o une. Isto é, afundar-se na insensibilidade espiritual. O resultado é o banal, a
frivolidade da vida vegetativa/animal, na pura imediatidade. Só a reflexão em Si, dá conta do erro e reverte
a situaçã o. Cura7.
Por isso, Kierkegaard entendeu o desespero-fraqueza como impessoalidade.

– Pessoa
Tudo o que é humano é constituído por três qualidades: a corporal (soma), a anímica (psique) e a noética
(espírito). Esta reú ne as outras duas e forma com elas uma ú nica unidade — a pessoa. O espírito é
liberdade, o eu-profundo da pessoa, o seu “Eu-pró prio”. Este tem a faculdade de se relacionar consigo
mesmo e com as outras duas qualidades. O que nã o acontece no mundo animal, pois na ausência de
espírito o instintivo domina a açã o (tudo é necessidade). Nã o havendo espírito (liberdade) nã o há reflexã o
em Si-pró prio e nem sequer se põ e a questã o de valores éticos e, logo, de deveres de si e para consigo.

– O verdadeiro Desespero
O étimo de desespero é “spes”8. O termo “sperare” com o prefixo “de” significa falta. Desesperar é
falha ética, perder a esperança.

Pessoa como Síntese


Continuemos a aprofundar o desespero.
Na pessoa há a síntese de finito e infinito, de temporal e de perene, de necessidade e de liberdade. Síntese
é relacionamento entre dois atributos. Mas, para se complementar, espera ser referida ao Eu-pró prio —
caso nã o, sã o simples abstraçõ es ou utopias. Torna-se necessá rio ao relacionamento entre os termos da
síntese ser exposto à relação9 consigo próprio, dada pelo poder do espírito. Esse é o terceiro positivo, ou
seja, o Eu-próprio10.
Há “pessoas” que nã o podem ser consideradas existentes, pois nã o se conseguem escolher a partir
de valores (nã o materiais), tornando-os para si deveres éticos.
“A pessoa não tem a ética11 fora dela, mas em si e surge da sua profundidade. Para o ético o dever não
é, portanto, exterior, mas interior; é o que aparece no momento do desespero… Quem se escolhe 12
segundo a ética tem por tarefa a sua pessoa.” (Kierkegaard, 1843, OC IV  ̶ Vol. 2, p. 230/23113).

5
Ecl. 4-11;20. Traduçã o de Almeida, atualizada.
6
Os sentimentos espirituais (ou nooló gicos) sã o a apropriação do vivenciado (como o tédio, o ressentimento, o
desespero, o demoníaco e outros como o remorso, o pudor, …).
7
Cura é o cuidado de si — no presente contexto nã o se fala, especificamente, de cura médica.
8
Esperança, em latim
9
Diz Kierkegaard: “O Eu-próprio não é a relação, mas o facto da relação se referir a si-próprio.” (OC XVI, p.171).
10
No imediato só há referência a aspetos somá ticos e psíquicos nã o atendendo à Relaçã o com o Eu-pró prio. Daí se
falar, em psicossomá tica, de sintomas inexplicá veis. Muitas outras categorias patoló gicas têm este problema. Por nã o
se considerarem os perenes valores do espírito no imanente, no dia-a-dia.
11
É costume confundir ética com moral. A ética é estritamente pessoal, a moral é social.
12
Kierkegaard criticava Descartes por entender a existência a partir do pensar (“penso, logo existo”).Mas o pensar é
do mundo imediato (noutro registo: do imanente), Mas, pensar (o que já bom) nã o chega para a formaçã o da
existência. Esta baseia-se nas escolhas éticas que fazemos: “Escolho, logo existo”.
13
As referências a Kierkegaard sã o das suas Obras Completas (OC) seguidas do Livro (em algarismos á rabes) e da
pá gina. Ou seja, no exemplo citado: Kierkegaard, Søren (1843). L’Alternative – L’É quilibre de l’esthétique et de
l’éthique dans la formation de la personalité. Oeuvres Complètes, vol. IV, p. 230, É ditions de L’Orante, Paris, 1979.
2
Iniciamos o entendimento da essência do verdadeiro desespero, contendo a falta do dever a si-pró prio,
desconhecido do pseudo-desesperado pela sua impessoalidade.

Atributos da Síntese da Pessoa


O Eu-pró prio ao relacionar-se consigo mesmo também se relaciona com atributos gerados quando da
síntese da pessoa14. Vamos apontar as suas características triunas.

Atributo Finito—Infinito.
 Nesta síntese a tarefa é tornar-se si-mesmo, ou seja, consistente consigo no devir, escolher-se nas
situaçõ es. Se rigidamente se fixa e nã o devém, se nã o aceita transformar-se, desespera. O finito limita,
ancora15, o infinito alarga as possibilidades de reflexã o de Si, através da imaginaçã o16. Há tensã o entre
ambos. Ao ser disso consciente, existe ao escolher.

Atributo Necessidade—Possibilidade.
 Quando nã o estã o presentes há desespero. O facto de estar-em-situaçã o é exemplo da dialética
liberdade-necessidade. Parte do atual locus17 (onde me instalei) para a possibilidade de devir —
movimento gerado dentro da necessidade das condiçõ es situacionais. O determinista e o fatalista
acreditam no destino e perderam o seu eu-pró prio pois, para eles, tudo é necessá rio. Tudo está pré-
estabelecido18. Nã o há devir. Nã o há lugar para a possibilidade. A possibilidade, além do estar-
presente19, é crer e ter esperança.

Atributo Temporal—Perene (Eterno).


 Ao ignorar o facto de ter a eternidade do espírito (e nã o somente os perecíveis soma e psique) há queda
no desespero. É a insensibilidade espiritual, conceito do imediato, comum ao viver mundano. Recorre a
distraçõ es e a paliativos (como o trabalho, o deleite, as compras, os jogos — para viver na sombra do
mortal desespero). Muitas vezes, no limite, resta o suicídio a pô r fim a este estado.

A Consciência de Si
Há duas formas de consciência.
A consciência psicológica, como o todo da vida psíquica momentâ nea, imediata, baseada na
vigilidade neuroló gica e na psicoestesia20.
E a consciência de si como dupla-reflexã o21. É a íntima relaçã o com o Eu-pró prio ou profundo,
reflexiva, capaz de se abstrair do imediato para se concentrar no proprium, no genuíno22.
“Mas o que é este eu-próprio (ou o proprium), a minha pessoa? É a coisa mais arbitrária e, em
simultâneo, a mais concreta de todas — é a liberdade.”23

É na consciência de Si, reino da liberdade, onde o verdadeiro desespero se vem a formar. Como?

— Duas Formas do Verdadeiro Desespero


Como já dissemos, a maioria das vezes, passa desapercebido e as suas expressõ es emocionais sã o distintas da
exasperaçã o. É vivido no silêncio, contraído em si.

Usemos uma figura de retó rica para introduzir o verdadeiro desespero.

14
Se nã o fosse assim seria mera tautologia. Um teclado duma nota só .
15
O corpo, o conhecimento, o mundano… Tudo o que é imanente.
16
O espírito, a esperança, o crer (fé), o paradoxo.
17
Em Psicoterapia Existencial estuda-se a estrutura situativa da pessoa: locus ou instalaçã o; positus ou postura
(atitude); topus ou relaçã o; habitus ou normatividade; situs e açã o apropriada (situ-açã o).
18
Maktub, em á rabe, “está escrito”.
19
Tornar-se pró ximo e amar. V. Mat. 12:33.
20
No mundo animal regem as valências, no estritamente humano regem os valores.
21
Conceito a estudar em pró ximos Ensaios. É a reflexã o sobre o sentido para si sobre o que já se pensou (primeira
reflexã o) no momento de acontecer.
22
Podemos aqui empregar a séria “autenticidade”.
23
Kierkegaard, OC IV  ̶ Vol. 2, p.193.
3
(1) Passei a vida a estudar mú sica. Mas, ao ouvir outras composiçõ es deixei de gostar das que escrevi. Tomava as
outras, entã o, como minhas. Mas também nã o me satisfaziam. Repetia plá gios, sem nunca encontrar satisfaçã o.
A infelicidade era contínua.
(2) Passei a vida a estudar mú sica. Mas, sempre considerei merecer e poder mais e melhor. Queria compor uma
mú sica angélica, divina. Ia para o piano e, ouvia em vez do “lá ” natural, um “sol” sustenido (G#). A diferença de
meio-tom nã o estava na minha pauta e isso desagradava-me. Esta situaçã o repetia-se noutras notas. E se
passasse a compor numa escala maior? Nã o. Vou averiguar o que está a acontecer. Quem andará a mudar a
afinaçã o do piano para eu nã o tocar o que quero? Basta!
A pessoa, insatisfeita consigo, quer ser diferente do que é ou sê-lo de maneira idealizada, ou seja, perfeita.
Daí podermos conceber duas formas do inerente desespero. A mistificaçã o de si, ou nã o-aceitaçã o de si24. E
a “divinizaçã o” de Si, ou o desafio de só assim querer ser.

1. Desespero de não se aceitar, de não querer ser Si-próprio.


Ou a “mistificação de si”

Há, aqui, procura de outros modelos de comportamento.


Encontra-os nos feitos da pretérita juventude, na nostalgia da perdida beleza, na pretendida cultura
artística, na afetada cultura física, na vaidade de suposta linhagem, na vangló ria da militâ ncia política, na
ostentaçã o de riqueza material, na procura de fá tuas honrarias, na inconstâ ncia do amor sensual – é
inabarcá vel a concupiscência humana! Por estes exemplos, inferimos quã o estranha vai ser a conduta
acionada pelo modelo ambicionado.
Todos nó s já tivemos ocasiã o de encontrar tais pessoas. Pela sua postura descrevem-se como
simuladoras, fictícias, teatrais, manipuladoras. Querem parecer o que nã o sã o. Até as conhecemos.
Vamos deixar de as criticar e, antes, ajudar a desenvolver a pró pria identidade.

Esta pessoa desesperada, mesmo nã o sabendo que o é, escolhe ser o sósia de si, pela negaçã o de parecer
ele-mesmo.

É o sem-sentido, em pessoa.
Evita a comunicaçã o, dobra-se sobre si mesmo. A personalidade é francamente introtensiva. Nã o é prá tica,
nã o solucionando o que lhe diz respeito. O pensamento é pretensioso, daí o modelo escolhido. Há clara
tendência à misantropia pois o distanciamento social fá-lo viver num nú cleo fechado. Desconfia dos outros
desenvolvendo antipatia. Convive pelo intuito de se exibir. Com o tempo torna-se entediante 25.
Além disso ofende-se pelo estado que criou, isto é, fica ressentido 26, mas consigo mesmo. Nã o acredita na
possibilidade de se modificar. Nem sequer põ e a questã o da esperança. Já morreu ainda vivendo.

2. Desespero de querer, de modo arrogante, ser o próprio, divinizando-


se27. Ou o desespero-desafio

Estamos perante a noxa mais grave, o desespero demoníaco28, constante atormentador.


Paradoxalmente ao querer ser o pró prio, luta contra isso, ou seja, luta contra si-pró prio. Quer ser ele-
mesmo segundo a escolha na sua adversidade. Por desafio quer-se impor ao poder estrutural do
espírito. Confrontando-o. Ou seja, confrontando-se a si mesmo. É o ultraje mais severo a si. Na sua
revolta contra a vida crê ter encontrado uma prova. A prova é ele-mesmo e, por isso, quer levar a sua
cruz até ao fim, como forma de protestar contra a vida.

24
Continuamos a seguir Kierkegaard no seu livro (OC IV p.171ss) “Doença para a Morte”.
25
V. o significado do Tédio no 1.º Ensaio.
26
V. o significado do Ressentimento no 2.º Ensaio.
27
Divinizaçã o do homem, segundo os estó icos – aspeto demoníaco.
28
No pró ximo Ensaio vamos estudar o demoníaco que nã o é sinó nimo de diabó lico como é habitual pensar-se.
4
É como o escritor ao encontrar uma falha que se revoltasse contra si e lhe impedisse de a corrigir — “quero
ficar assim para testemunhar o escritor medíocre que és”29.
Tem a íntima noçã o de nã o querer vencer. Se se vencesse a si-pró prio ganhava. Todavia, quer continuar a
dizer a quem o ouve: “Basta! Nã o vou tolerar mais isto.”

Esta forma de desespero é autodestruiçã o:


“O desespero não pode consumir o eterno, o proprium (o espírito) que está no fundo do desespero. O
desespero é justamente a autodestruição, mas impotente e incapaz de querer desfazer-se de si,
aniquilar-se.”30
Por isso, em dias de intenso desespero é pedida a morte, mas esta nã o vem.
“E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá
deles”31.

Ajuda à Pessoa em Desespero

1. Diá logo identificador do que o atormenta. (A desesperança de ser ele-mesmo).


2. Conversaçã o32 sobre o sofrimento sentido. (Catarse).
3. Conversaçã o sobre a escolha das possibilidades (como pessoa) em sair da situaçã o.
a. O desespero da mistificaçã o e o demoníaco sã o superados pela fé, crendo.
”A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem” 33.
b. Crendo com esperança.
“A adversidade não evita estar abatido, mas procura a esperança. A pressão da adversidade
permite à esperança germinar.”34 E, “…se esperamos o que não vemos, com paciência o
esperamos”35.
4. Estar presente durante todo a deliberaçã o sobre os propó sitos e no cumprimento da decisã o (ser a
sua testemunha).
5. Promover o gosto por Si-pró prio (filáucia) – valorizar-se.

É esta a atenta e imediata solicitude, renovadora ao concretizar a ajuda: vir-a-ser novamente o


pró prio36.

Raul Guimarães Lopes


Março, 2021

29
No texto de OC IV p. 229.
30
Kierkegaard, OC XVI, p.176, 177.
31
Apocalipse 9:6.
32
Ao modo do hermeneuta Gadamer: em paridade (Gadamer, H.G., 1996. Vérité et Méthode, É ditions du Seuil, Paris).
33
Carta de S. Paulo aos Hebreus 11:1.
34
Kierkegaard, OC XV, p.100, 104.
35
Carta de S. Paulo aos Romanos 8:25.
36
Este é o conceito da “repetição” existencial (renovaçã o) —a desenvolver noutra série de Temas.
5

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