Você está na página 1de 363

 

 y
[ t   Alexandre
Cheptulin
Categorias e leis
da dialética

 A DIALÉTICA
MATERIALISTA
É com o

A DIALÉTICA MA-
TERIALISTA — Categorias e leis da

' e lei s, adverte o

e de
J?

A DIALÉTICA MATERIALISTA — Categorias e leis da dia-


lética  é seu primeiro trabalho a aparecer em língua portu-
e foi especialmente traduzido para a Editora Alfa

m
 

 Alexandre Cheptulin

 A DIALÉTICA
MATERIALISTA
Categorias e leis da dialética

 j
 

A DIALÉTICA MATERIALISTA
Categorias e Leis da Dialética
 

BIBLIOTECA ALFA-OMEGA DE CIÊNCIAS SOCIAIS


Série l.   — Volume 2
a

Coleção
FILOSOFIA
 

ALEXANDRE CHEPTULIN

A DIALÉTICA MATERIALISTA
Categorias e Leis da Dialética
Tradução
 Leda Rita Cintra Ferraz

EDITORA ALFA-OMEGA
São Paulo
1982
 

Planejamento Gráfico e Produção


Anselmo da Silva Filho

Título do original francês


Categories et lois de la dialectique
Éditions du Progrès — Moscou
© VAAP — Moscou — URSS

Capa

Jayme Leão

Revisão
Eunice Aparecida de Jesus

Composto/Impresso
Gráfica A Tribuna - Santos/SP.

Direitos Reservados
EDITO RA ALFA -OMEGA, LTD A.
05413 — Rua Lisboa, 500 — Tel.: 280-
01000 — São Paulo — SP

Impresso no Brasil
 Printed in Brazil
 

SOBRE O AUTOR

Alexandre Cheptulin é doutor em Filosofia, professor e autor


de várias monografias dedicadas ao materialismo dialético,
dentre as quais podemos citar   Sistema das categorias dialéticas,
 Leis da dialética materialista, Filosofia do marxismo-leninismo.
Este é um estudo dos problemas fundamentais da filosofia
marxista , uma análise das categorias e das leis dialéticas. Neste
estudo, o autor procura apresentá-las sob a forma de um sistema
de conceitos interdependentes, um determinando o outro e um
decorr endo do outro. Ele consider a essas categorias e leis
como reflexos das propriedades e relações reais, como graus
e formas de desenvolvimento do conhecimento da sociedade e
como princípios do conhecimento dialético e de uma transfor-
mação orientada pela realidade.

V
 

INTRODUÇÃO

Este livro dedica-se à análise das principais categorias e


leis da dialética materia lista. Colocand o em evidência o con-
teúdo das categorias e das leis da dialética, exporemos a
essência do materialismo dialético, enquanto teoria filosófica
 particular.
O materialismo dialético estuda as formas gerais do ser, os
aspectos e os laços gerais da realidade, as leis do reflexo desta
última na consciê ncia dos homens. As for mas essenciais da
interpretação filosófica, do reflexo das propriedades e das cone-
xões universais da realidade e das leis do funcionamento e do
desenvolvimento do conhecimento são as categorias e as leis da
dialética. Como elementos necessários da teoria filos ófica, elas
têm uma função ideológica, gnoseológica e metodológica.
Quando estas categorias e leis são usadas pelo homem, para
elaborar um sistema de concepções do mundo e uma concepção
única dos fenômenos que aqui são produzidos, elas cumprem a
fun ção de conce pção do mund o ideológico. O conhec imento
das propriedades e das conexões universais da realidade, que
se exprimem nas categorias filosóficas, é absolutamente indis-
 pensável ao ho me m pa ra sua orienta ção, para que possa deter-
minar as vias que lhe permitirão resolver as tarefas práticas
que surgem no proces so de desenvolvimento da sociedade. For -
necendo um sistema global de idéias sobre a realidade ambiente,
a filosofia ajuda o homem a elaborar uma atitude em relação à
vida social, ao regime social, a compreender a essência da polí-
tica adotada por um Estado e, por isso mesmo, permite-lhe
 participar de fo rm a consciente da vid a políti ca da socied ade, da
luta pelo progresso social e da realização dos grandes ideais da
humanidade.

1
 

Representando o conhecimento das formas universais do


ser, das propriedades e das relações universais das coisas,
e ocupando, dessa maneira, a função ideológica, as categorias
e leis da dialética refletem as leis do desenvolvimento do
conhecimento, além de constituírem os pontos centrais, os graus
e as formas do funcionamento e do desenvolvimento do pro-
cesso de cognição. Por tudo isso elas pod em ser usadas para
apreender a essência da atividade cognitiva e das leis de sua
obra. No presente caso, as leis e as categorias da dialética
desem penham uma funç ão gnoseológica. Sua assimilação per-
mite um desenvolvimento da faculdade cognitiva, da capacidade
de pensar com exatidão.
Sendo o reflexo das formas universais do ser e das relações
que se manifestam no mundo material e no conhecimento, as
categorias e as leis da dialética permitem a formulação dos im-
 per ati vos , aos qua is devem-se submeter a atividade do pensa-
ment o e a atividade prática . Esses imperativos constituem os
 princípios do pensamento dialético , do méto do dialético do
conhecimento e da transf ormaçã o criativa da realidade. O
conhecimento desses princípios eleva o nível do pensamento,
alarga suas possibilidades criativas.
. A aptidão das leis e das categorias da dialética, para de-,
sempenhar uma função gnoseológica e metodológica, coloca
em evidência a necessidade de seu estudo e de sua utilização
consciente na atividade do pensamento. Em suma: o homem,
diferentemente do animal, cuja conduta repousa nos instintos
e nos reflexos, é dotado de uma consciência. Tod os os seus
atos têm um caráter consciente. Ant es de praticá -los, ele
analisa a situação, fixa objetivos adequados, define os modos
e os meios par a sua realizaçã o. No decorrer desse processo, ele
 pensa de maneir a con tínua. Se ele pens ar de fo rm a corre ta,
 poderá facilmente ter um a idéia clara da situação que se cria,
orientar-se, fixar um objetivo exato, utilizar os meios mais
racionai s par a atingir esse objeti vo. Se seu nível de pensa mento
é baixo, ele tem tendência a se confundir mesmo diante das
situações mais simples; não consegue orientar-se corretamente.
É importante lembrar o quanto é importante para cada homem
o saber pensar corretamente e com certo espírito criativo, nota-
damente no século da revolução científica e técnica e das gran-
diosas transformações sociais, onde os homens têm de resolver
 problemas particularmente complex os, ta nt o técnicos como

2
 

tecnológicos, além de determinar as vias e as formas do pro-


gresso social. Mas, um pens amen to criativo correto, corres-
 pond en te ao nível atu al de desenvolvimento da ciência e da
 prática social, faz supor que os ho me ns conheçam as leis do
funcionamento e do desenvolvimento do conhecimento, as leis
da atividade do pensamento, e que aprendam a usá-las racio-
nalm ente para resolver as tar efa s prátic as. O especialista
contemporâneo deve dominar perfeitamente o método dialético
do conhecimento, deve conhecer e aplicar conscientemente os
 pri ncí pio s da dialética, as fo rm as e os procedimentos lógicos da
 pes qui sa científica e da cri ação. Tud o isso mostra a necessi-
dade de um estudo profundo da teoria da dialética, de suas
categorias e de suas leis.
O estudo das leis e das categorias da dialética tem um
 papel import ante na ele vação do nível cultural do homem. E
isso porque os resultados do desenvolvimento do conhecimento
científico e da prática social concentram-se nas leis e categorias
filosóficas. As categorias e leis são graus do desenvolvimen to
do conhecimento e da prática sociais, conclusões tiradas da
história do desenvolvimento da ciência e da atividade prática.
Familiarizar os homens com as categorias e as leis da dialética,
fazê-los assimilar sua essência, nada .mais é do que os iniciar
na cultura humana e alargar seus horizontes.
Em sua exposição das principais categorias e leis, o autor
 procura mostrar as funçõe s gnoseológicas, metodo lógicas e
ideológicas que elas desempenham; ele as considera como
for mas do reflex o de propr ieda des e r elações universais da
realidade, como graus e formas do desenvolvimento do conhe-
cimento social, como princípios do método dialético do conhe-
cimento e da transformação orientada pela realidade.
Segundo o autor, essa análise permite que se evidencie o
 papel importante desempenhado pel as categorias e leis da dialé-
tica na atividade teórica e prática dos homens.

3
 

I. NATUREZA DAS CATEGORIAS

A definição da natureza das categorias, de seu lugar e de


seu papel, no desenvolvimento do conhecimento está direta-
mente ligada à resolução do problema da correlação entre o
 par ticul ar e o geral na realidade obj etiva e na consciência, assim
como à colocação em evidência da origem das essências ideais
e da relação destas últimas com as formações materiais, com os
fenômenos da realidade objetiva.
Esse prob lema nasceu com a Filos ofia e sempre foi o
centro de atenção durante toda a sua história. Estreitament e
ligado à questão fundamental da Filosofia (isto é, à questão
que decide o que vem primeiro: a matéria ou a consciência),
ele foi objeto de discussões intermináveis entre as diferentes
escolas filosóficas, entre os representantes das tendências mate-
rialistas e idealistas. Ludwig Feue rbac h tinha razão quand o
afirmava que "esta questão é uma das mais importantes e, ao
mesmo tempo, uma das mais difíceis do conhecimento humano
e da Filosofia. .., toda a história da Filosofia está, no fundo,
centralizada nesta questão" .1

 Na Filosofia da antiga Gré cia , esse problema fo i colocado


de forma muito precisa e uma solução para ele foi apresentada
 pelos pitagóricos que , dep ois de est uda r o aspecto quantitativo
das coisas e descobrir sua semelhança com o número, con-
cluíram que o número representa uma essência universal
independente das coisas individuais e singulares e determina
sua nature za e sua existência. A propósi to dessa questão ,
Aristóteles indica que os pitagóricos observaram que os núme-

L. Feuerbach,  Vorlesungen über das Wesen der Religion, Leipzig,


1

1851, p. 153.

5
 

ros tinham muitos traços de semelhança, e que é por essa


razão que eles decidiram que os princípios dos números deve-
riam ser os princípios de todas as coisas e que os números deve-
riam ocupar o primeiro lugar na natureza, medir e reger as
coisas singulares, constituindo sua essência.
Os pitagóricos colocaram em evidência um dos aspectos
(propriedades) universais dos objetos e dos fenômenos da rea-
lidad e: as relações quantitati vas. Mas, abstraindo todas as
outras relações e propriedades (singulares e gerais) das coisas,
eles erigiram a categoria da quantidade, transformando-a em
essência ideal autônoma.
Platão desenvolveu essa doutrina pitagórica das categorias.
Segundo Platão, o ser verdadeiro e real é formado pelas idéias
 — as essências ideais que são autônomas, independentes das
coisas singulares e que criam estas últimas, unindo-se à matéria.
Essa matéria existe nelas durante um determinado tempo e
depois elas retornam novamente para o mundo ideal, provocan-
do com isso o desaparecimento das coisas. As essências ideais,
segundo Platão , são eternas e imutáveis. As coisas sensíveis
são transitórias, elas aparecem e desaparecem.
Aristóteles critica o ponto de vista pitagórico e platônico
relativo à nat urez a das categorias. Segundo ele, as categorias,
que são noções gerais, não existem antes das coisas singulares,
mas são, pelo contrário, o resultado do conhecimento destas,
assim como o reflexo das propriedades e das relações que lhes
são própri as. Ain da segundo Aristóteles, perc eben do as coisas
singulares, nós conhecemos não apenas o singular, mas também
o geral, que se reproduz em numerosos objetos ou mesmo em
todos eles. No proces so da perce pção reiterada das coisas, o
geral, que lhes é próprio, cristaliza-se na consciência dos
homens e exprime-se sob a forma de um conceito geral que
existe ao lado das imagens singulares. Qua ndo o geral inicial
 já foi fixa do no espírito, conceitos ainda mai s gerais são
formados a partir dele refletindo as propriedades e as ligações
de um grupo maior de coisas, e depois os conceitos mais gerais
de todos — que são chamados categorias, que refletem as
formas universais do ser — são formados.
A teoria de Aristóte les sobre a natu reza das categorias,
embor a sendo justa na sua essência, não é conseq üente. De-
clarando que, na realidade objetiva, o elemento análogo do
conteúdo dos conceitos gerais são a matéria e a forma, Aris-

6
 

tóteles acreditava que a forma era ideal, que ela podia ter uma
existência autô noma , indepen dente das coisas mater iais. Isso
não significa que todo o geral, próprio ao mundo objetivo,
seja material e que exista apenas por meio das coisas indivi-
duais, singulares. Uma part e do geral possui uma nature za
ideal e existe independentemente e fora das coisas sensíveis.
Isso é uma concessão séria feita a Platão e ao mesmo tempo
à visão idealista do problema.
 Na Id ade Médi a, a concepção da na tu re za das cat egorias,
assim como a solução encontrada para outros problemas filo-
sóficos, adquiriu uma coloração teológica. Os filósofos que
representavam a tendência realista retomavam, sob uma forma
ou outra, o ponto de vista platônico sobre as categorias, que
eles consi derav am como essências ideais autô noma s, existindo
independ entemente dos homens e das coisas. Os nominalistas
repudiavam essa concepção das categorias, negando-lhes uma
existência independente não apenas na realidade objetiva, mas
também na consciência.
Johannes Scotus Erigena, por exemplo, filósofo realista
da Idade Média, afirmava que os conceitos gerais eram criados
 po r De us e constituíam a natureza pr im ei ra . Deus, inter vindo
no princípio enquanto universal indeterminado, criou um mundo
ideai que constitui o princípio primeiro e a essência das coisas.
Esse mundo ideal divide-se em noções de gênero e espécie que,
reun idas uma s às outras , for mam as coisas singulares. Assim,
 pa ra Erigen a, as cat egorias sendo eleme ntos do mu nd o ideal,
não podiam ser reflexos de formações materiais e de coisas
sensíveis, e sim suas criadoras, existindo anterior e indepen-
dentemente das últimas. O nominalista Roscelin, pelo contrá-
rio, partiu essencialmente da solução aristotélica do problema,
mas, estabelecendo como absoluta sua negação da existência
independente do geral na realidade, ele terminou por negar
completamente a existência do geral, isto é, negou sua exis-
tência na realidade, não apenas sob a forma de uma existência
ideal independente, mas também sob a forma de qualidades,
de prop ried ades das coisas singulares. Esse filó sofo considerou
que os gêneros e as espécies (as noções de gênero e de espécie)
não existiam realmente, eram apenas nomes dados pelos homens
 para coisas par ticul ares, coisas que eram absoluta mente singu-
lares e que não tinham nada de geral.

7
 

A tentativa de conciliar a visão realista e a nominalista


sobre as noções e categorias gerais foi feita por Tomás de
Aqui no. Da mesma maneira que Aristóteles, ele achava que
as coisas singulares apareciam em decorrência da união da
matér ia com a for ma, que constitui a essência. O fat o de que
existiam, na realidade, várias coisas possuindo uma mesma
matéria e uma mesma forma mostrava, segundo ele, que a
essência se manifestava enquanto geral nas coisas singulares.
 No pro cesso de conhecime nto, o ho me m po de distinguir o que
é geral e concebê-lo como tal. Em decor rênc ia disso, aparece
na razão o geral em seu estado puro, isto é, ao lado do singular.
Mas, a partir do fato de que, segundo esse filósofo, existem
duas razões — a humana e a divina — a existência ideal do
geral é dupla . Por um lado, o geral existe na razão divina
sob a forma de modelo das coisas singulares e, por outro, ele
existe na razão humana sob a forma de noções surgidas em
conseqüência do desligamento do geral das coisas singulares.
As essências ideais gerais, que se encontram na razão divina,
manifestam-se sempre, segundo Tomás de Aquino, em seu
estado pur o, fora de qualque r ligaçã o com o singular. Elas
enge ndra m e determinam as coisas singulares. Essa s mesmas
essências ideais que existem sob a forma de conceitos, de
categorias, na consciência dos homens, não são autônomas,
nem indepe ndente s das coisas parti cular es, são o resul tado
do conhecimento dessas últimas. Pelo fat o de que a essência
de uma coisa particular qualquer é determinada pela essência
ideal, que se encontra no pensamento divino, os conceitos e
as categorias, criados pelos homens, devem ser o reflexo dessa
essência ideal, isto é, do geral, existindo de forma autônoma,
e não das propriedades reais das coisas.
Assim, a tentativa de Tomás de Aquino de conciliar as
soluções nominalista e realista, apresentadas para a questão
da natureza dos conceitos gerais e das categorias, terminou
em fraca sso. Essa tentat iva limitou-se ao pla no das posições
do realismo do reconhecimento do ser autônomo, independente
das coisas materiais singulares, e das essências ideais que cons-
tituem o conteúdo dos conceitos e das categorias.
Os materialistas dos tempos modern os (Francis Bacon,
Thomas Hobbes, John Locke etc.) negaram a concepção
realista da natureza das essências ideais (dos conceitos gerais
e das categorias) e procuraram desenvolver o ponto de vista

8
 

aristotélico sobre o conceito, considerado como uma forma do


reflexo do geral na realidade (da natureza geral, das proprie-
dades gerais, das qualidades das coisas singulares).
Hobbes, por exemplo, considerava que, na realidade, exis-
tiam apenas coisas singulares que se caracterizavam por pro-
 pri eda des determi nad as ou acide nte s. Algumas dessas proprie-
dades ou acidentes pertenciam a todas as coisas e outras a
apenas algumas dentr e elas. Refletind o o processo do conhe-
cimento das propriedades das coisas, o homem criou os con-
ceitos corresp ondent es. A part ir do fat o de que os objetos
 possuem propriedades universai s, os concei tos que ref letiam
essas propri edade s eram aplicáveis a toda s as coisas. São
nomes universais .2

Assim, segundo Hobbes, as categorias não representam as


essências ideais gerais autônomas, que determinam a natureza
das coisas, mas são apenas o reflexo das propriedades gerais,
dos acidentes própr ios das coisas. Locke desenvolveu esse
mesmo ponto de vista, mas de forma mais conseqüente . 3

George Berkeley opôs-se a essa concep ção da nature za


de conceitos gerais e de categorias . Partindo do fato de que
o geral, na realidade objetiva, existe somente nas coisas sin-
gulares, ele pr ocur ou prov ar a impossibili dade da existência _de
conceitos e de categorias. Segundo Berkeley, todos os conceitos
s|õ Zji ngu lar es, representam as idéias das coisas particulares
que podem os perceb er. Ningu ém jamais percebeu idéias gerais,
ele afirma.
O posterior desenvolvimento filosófico das idéias sobre
a natureza das categorias e dos conceitos gerais ultrapassa a
concepção fundamentalmente nominalista de Berkeley e passa
 pel a rea bil ita ção do pont o de vista de Locke. Essa ati tude
foi desenvolvida particularmente pelos materialistas franceses
do século XVIII (Denis Diderot, Paul-Henri Holbach, Claude-
Adrien Helvétius etc.).
Emanuel Kant expôs um outro ponto de vista sobre a
natur eza das categorias. Segund o ele, as categorias não são
o reflexo de aspectos ou de conexões da realidade objetiva,

2
T. Hobbes,  Leviathan or the Matter, Form and Power of a Com-
monwealth Ecclesiasticall and Civil,  Londres, 1928, p. 19-20.
3
J. Locke,  Essai philosophique concernant I'entendement humain,
Paris, 1975, t. 1, p. 290-8; t. 2, p. 257-61; t. 3, p. 58-71 e 176-80.

9
 

mas representam as formas da atividade do pensamento, con-


cedi das~ ãconsciê ncia peiã natureza. Seu conteúdo" è determi-
nã3õ~pèla__consciência, representa uma ou outra forma de suas
características e é introduzido no mundo dos fenômenos pelo
sujeito no decorrer do processo da atividade cognitiva que se
 produz porque o sujeito dispõe  a priori  das categorias corres-
 pondentes.
Os pensamentos de Kant encerram uma boa parte racional
se tomarmos um homem isolado, o indivíduo, como sujeito do
conhecim ento. Co m rel ação a cada indiví duo, as categorias são
as formas da atividade do pensamento próprias da consciência
social anterior a qualquer, experiência de conhecimento, anterior
a toda ação cognitiva,  a priori.  É apenas assimilando-as que
um indivíduo pode pensar'dé acordo com sua época e assim
conhecer a rea lida de que o rodeia. Mas o sujeito real do
conhecimen to não é um indiví duo, é a sociedade. Com relaç ão
à sociedade, as categor ias n ão são absolu tamente nada que
 preceda o conhecimento, e ta mbém nã o são fo rm as da atividade
do pensamento que  a priori  lhes são própr ias. Sob essa relaç ão,
elas são formas do reflexo da realidade, que se formaram no
decorrer do processo da atividade prática e do desenvolvimento,
a partir dela, do conhe cimen to. Seu conte údo é dete rmina do
não pela consciência, mas pela atividade objetiva, e se mani-
festa como um reflexo das características das formas universais
do ser. Ele não é subjet ivo, nem é introd uzido no mundo dos
fenômenos pelo sujeito, que o tira da realidade objetiva e o
expressa sob uma forma ideal.
O subjetivismo da concepção kantiana da natureza das
categorias e a tese, segundo a qual o caráter universal de seu
conteúdo é condicionado pela consciência dos homens, foram
criticados por Hegel: "O material sensível é, segundo a filosofia
crítica, profundamente individual . . . e apenas o entendimento
que o examina lhe traz unidade e o erige, por meio da abstração,
como universal" . Contin uando, ele diz ainda: "A afirmativa
4

de Kant consiste no fato de que as determinações do pensa-


mento têm sua origem no "eu", e é então o "eu" que determina
o universal e o necessáráio. Assim, o "eu" seria uma espécie

G. W. F. Hegel,  Werke. Vollständige Ausgabe,  Berlim, 1843, v. 6,


4

 p. 85-9 1.

10
 

de cadinho onde o fogo devora a multiplicidade indiferente e a


reconduz à unidade" . 5

Embora criticando Kant por seu subjetivismo na concepção


da natureza das categorias, Hegel não adotou o ponto de vista
materiali sta. Ele criticou Kant não por seu idealismo, nã o por
deduzir do pensamento o universal, a necessidade e as leis da
consciência, mas porque ele não podia seguir logicamente esse
 ponto de vista, po rq ue paro u no meio do caminho e ta mbém
 porque entendia a ativida de das leis da consciência e do pen-
samento como relacionada unicamente com os fenômenos e
não com o mundo todo, isto é, com a "coisa em si"; ele o
criticava porque Kant deduzia da consciência apenas o neces-
sário, o universal e as leis, mas não tudo o que existia, isto é,
não as coisas particulares; criticava-o porque Kant deduzia o
universal e o necessário da consciência humana e do pensa-
mento e não da consciência e do pensamento como tais; criti-
cava-o ainda porque Kant construía um muro intransponível
entre o subjetivo e o objetivo, entre o conceito e a coisa, entre
a idéia e a realidade e depois não os fundia em um todo
único, não fazia da realidade um momento da idéia, do con-
ceito.
Hegel interpretava a natureza das categorias no plano do
idealismo objet ivo. Segundo ele, essas categorias apare ciam
não no decorrer do processo do reflexo da realidade na cons-
ciência dos homens, mas em decorrência do desenvolvimento
da idéia, que existe anterior e independentemente da existência
do mundo material, das coisas sensíveis.
A idéia absoluta desenvolve seu conteúdo por meio das
categorias que aparecem sucessivamente, e ela se transforma
em natureza, em mundo material, se encarna nas formações
materiai s e nas coisas. Entã o, sem ter consciência de si mesm a,
ela sofr e um certo desenvolvi mento. Em seguida, depois de
rejeitar a forma do ser físico que lhe é estranha, a idéia absoluta
volta novamente para seu elemento espiritual adequado; depois,
 po r meio da to ma da de consci ência do camin ho perc or rido no
decorrer do processo de desenvolvimento do conhecimento,
regressa definitivamente para si mesma, para existir, em seguida,
eternamente sob a forma de espírito absoluto.

5
Hegel, op. cit., p. 91.

11
 

Assim, par a Hegel, as categorias repr ese ntam essências^


ideais^ que exprimem os momentos correspondentes da ideia
absoluta, assim como os graus de seu desenvolvimento dialético  _ L

Sendo as formas da atividade criadora da idéia, as categorias


determinam a essência das coisas materiais, essência que se
manifesta nelas e que se reproduz no estado puro, em decor-
rência do conhecimento.
Após ter apresentado sob uma forma universal a dialética
do autodesenvolvimento das categorias, e de haver pressentido
a multiplicidade das leis gerais reais do desenvolvimento da
realidade objetiva e do conhecimento, Hegel transforma a dia-
lética das categorias em uma dialética determinante que submete
a si mesma a dialética das coisas, transformando esta última em
um caso particular da lógica.
Embora sem deixar de reconhecer o mérito considerável de
Hegel na elab oraç ão da dialética, Mar x e Engel s criticaram
severamente sua concepção idealista da natureza das categorias.
Eles assinalaram que, para Hegel, as coisas que existem obje-
tivamente são apenas motivos, cujas categorias lógicas são o
esboço. Sendo tirad as das coisas pela abst raçã o do particul ar
e do singular, as categorias são, segundo Hegel, essências autô-
nomas, que existem independentemente das coisas e antes delas,
fazendo o papel de substância dessas últimas. "Qu ando , traba-
lhando sobre realidades, maçãs, peras, morangos, amêndoas, eu
formo a idéia geral de "fruto"; quando, indo ainda mais longe,
eu  imagino  que minha idéia abstrata do "fruto", deduzida de
fatos reais, é um ser que existe fora de mim e, ainda mais, que
constitui a essência  verdadeira  da pera, da maçã etc., eu de-
claro — em linguagem  especulativa  — que o "fr uto " é a
"substância"   da pera, da maçã, da amêndoa etc. ". 6

"Ora, tanto é fácil, escrevem Marx e Engels ainda, par-


tindo de frutos reais, engendrar a representação abstrata do
"fruto", como é difícil, partindo da idéia abstrata do "fruto",
engendrar frutos reais"?.
A razão especulativa procura sair desse embaraço expli-
cando o conceito geral não por uma essência morta, desprovida
de diferenças, mas por uma essência viva, que distingue, no seu

K. Marx, F. Engels,  La Sainte-famille,  Paris, Editions Sociales, 1969,


6

 p. 73- 4.
K. Marx, F. Hengels, op. cit.   p, 74,
7
;

12
 

interior, as coisas concretas e as faz nascer no curso de seu


desenvol vimento . O result ado é qu e fru tos reais pod em ser
manifestações diversas do fruto como tal, isto é, de uma
essência ideal.
"Pode-se ver por isso, concluem Marx e Engels, que
enquanto a religião cristã conhece apenas   uma  encarnação de
Deus, a filosofia especulativa tem tantas encarnações quantas
são as coisas; é assim que ela possui, neste caso, em cada fruto,
uma encarnação da substância do fruto absoluto"8.
 Na filosofia burguesa contemporânea, a concepção rea lista,
que supõe o reconhecimento da existência autônoma das cate-
gorias sob a forma de essências ideais particulares — as uni-
versais —, foi desenvolvida pelo filósofo inglês G. E. Moore.
Segundo ele, o mundo é composto por três espécies de coisas:
os objetos sensíveis, as verdades ou os fatos e os universais . 9

Moore critica particularmente o ponto de vista segundo


o qual existem apenas as coisas sensíveis singulares, enquanto
que as universais são consideradas como produtos do pensa-
ment o. Ele acredita que tal pon to de vista nasceu do emprego
das palavras "idéia", "conceito", "pensamento" e "abstração"
com duplo sentido. "Nós empregamos, diz Moor e, a mesma
 palavra "i déia ", "c on ceit o" e "a bs tr aç ão " tant o pa ra o ato do
 pens amen to como pa ra os objetos. Sab emos que todos os
universais são, em um certo sentido, abstrações, isto é, coisas
ideais po r sua próp ria natur eza. É por isso que vários filósofos
 pensam que qu an do chamamos uma coisa de abstração, suben-
tendemos que ela é um produto do cérebro. Entre tanto, esse
é um erro grave. Há, é verdad e, um process o físico chama do
abstr ação. Mas, no decorrer desse processo, os universais não
são criados, apenas tomamos consciência deles. E é exata-
mente a consciência que nós temos deles que é o produto do
 processo, e nã o os universais em si" 0. 1

Apresentando a existência objetiva das categorias (deno-


minadas universais), fora da consciência humana e das dife-
rentes coisas, Moore segue o raciocínio: "A última vez eu

K. Marx, F. Hengels, op. cit., p. 75.


8

G. E. Moore,  Some main problems of philosophy,   Londres-New


9

York, 1953, p. 372.


G. E. Moore, op. cit., p. 371.
10

13
 

tomei o exemplo de coisas diferentes, que estão todas a uma


certa distância de uma mesma coisa" . 11

Designando as coisas que se encontram à distância de


uma única e mesma coisa pelas letras B, C, e D e a coisa que
serve de referência pela letra A, ele prossegue: " . . . a pro-
 priedade de encontrar-se a um a cer ta distância de A é uma
 prop riedade que é comum às três coisas B, C, D e é um "uni-
versal", uma "idéia geral", apesar do fato de que esta proprie-
dade consiste em ter uma relação com A, isto é, com alguma
coisa que é não-universal" . 12

Examinemos a propriedade que Moore chama de universal.


Ela é apenas um momento geral, um aspecto em várias relações
 particulares: B/ A, C/A, D / A . Essa pr op ri edade existe ao lado
das relações partic ulares estuda das? Nã o. Ela existe apenas
mediante essas relações particulares, no interior dessas relações.
Se é assim, quais os fundamentos de Moore para classificá-la
de universal? Será por que ela pertence a todas essas coisas —
B, C e D? Isso apenas pro va que essa prop ried ade pertence
da mesma maneir a às três coisas em ques tão. Mas, não prova
que ela existe independentemente das coisas e ao lado delas.
Assim, a prova apresentada por Moore da existência real, fora
da consciência, de idéias e de universais, não resiste à crítica.
A concepção das categorias apresentada por K. Popper
é bastante próxima da de Moore. Par a Poppe r, há três mun-
dos : o mundo físico, o mundo espiritual de um homem concreto,
mundo__das„essências ininteligíveis ou das idéias. O "terceiro
mundo encerra não apenas os conceitos universais, mas tam-
 bém todas as afirmações e as teorias. Criando ._.a_existênçia_
aut ônr aia „da s_ categorias —- conceitos universais — P°PP!i r

agiu exatame nte da mesma forma que Moo re. Segundo ele, os
objetos do terceiro mundo — as idéias objetivas — são fre-
qüentemente tomados por idéias subjèfivãs7 p"õr objetos perten-
centes ao segundo mundo, embora isso seja totalmente falso.
As_essênçias ideais universais, são ..objetivas,..elas existem for a
e independentemente do espírito humano e formam um mundo
à parte.
Essas reflexões de Popper são uma transposição da con-
cep ção pla tôn ica da natureza das categorias. O autor, aliás,

"G. E. Moore, op. cit., p. 371.


12
G. E. Moore, op. cit., p. 312.

14
 

não esconde o laço que existe entre sua própria concepção e


a teoria das idéias de Platão.
A concepção realista da natureza das categorias inclui a
 pos sib ili dad e de con clusões idealistas. Efetivamente, se o geral,
como declaram os realistas, existe de maneira autônoma, inde-
 pendentemente do singular, a única fo rm a possível de sua
existência é a ideal porque, entre as coisas materiais, ninguém
 jamais obs ervou o que quer que seja de geral existindo de
modo independente, mas todo o mundo pode observá-lo nos
 pensamentos sob a fo rm a de idéias e de conceitos gerais. E se o
geral, como pode-se deduzir das reflexões dos realistas, precede
as coisas materiais e as engendra, o ideal, o pensamento, vem
em primeiro lugar, determinante, enquanto o material, as coisas
sensíveis, é secundário do ideal, dos conceitos, das idéias.
Opostamente ao ponto de vista realista sobre a natureza
das categorias, desenvolve-se na filosofia burguesa atual a con-
cepção nominalista. Essa concepção nominalista é encontrada
nos trabalhos de vários positivistas e particularmente nos tra-
 balhos dos semântico s. Como exemplo de interpretação extre-
mamente nominalistas da natureza das categorias, podemos
citar as reflexões de Stuart Chase e de Walpole Hugh.
Chase, como Moor e e Pop per , analisa esse problema
começando por colocar em evidência as razões que determinam
a confusão de idéias surgidas na consciência do homem com
relaç ão às coisas que existem objet ivame nte. E como Moor e
e Popper, ele também considera que essas razões vêm do
empreg o abusivo das abstra ções e das noções gerais. Entr e-
tanto, Chase tira disso uma conclusão diametralmente oposta
à dos dois primeiros . Se, par tind o do fat o de que os homens
têm o hábito de confundir os produtos de seus cérebros e os
modelos ideais, surgidos em sua consciência, com o que visa a
consciência, Moore e Popper concluem que os homens negam
abusiva mente a existência dos universais. Chase, por sua vez,
 partin do do mesmo ponto, chega à conclusão de que os homens
consideram de modo errôneo como existindo objetivamente o
que não passa de um símbolo, uma palavra. "Nós confundi-
mos constantemente, escreve Chase, a etiqueta com os objetos
não-verbais e damos assim uma falsa validez à palavra, como
se fosse algo vivo"i3. £ precis ament e, segundo Chase, esta

13
S. Chase,  The Tyranny of Words,  New York, 1938, p. 9.

15
 

concepção que faz com que as pessoas considerem noções tão


abstratas — as de "liberdade", de "justiça" e de "eternidade"
 — com o essências existindo realmente, enquanto que na rea li-
dade objetiva existem apenas objetos e fenômenos singulares
e não há nem pod e haver na da que se assemelhe a essas
essências gerais .
14

Assim, segundo Chase, existem, na realidade objetiva,


apenas coisas singulares e fenômenos particulares, enquanto
que os conceitos gerais e as categorias são somente palavras
vazias que não exprim em nem significam nad a, já que no
mundo objetivo não há coisas (pontos de referência) às quais
eles possam corresponder.
 No mundo, efetivamente, não há cgisas existindo de modo
autônomo que representem essa ou aquela categoria ouconceito
geral. Mas isso não quer absolut ament e dizer que os conceitos
gerais não exprimem nada e que não possamos pensar neles
como tais sem relacioná-los com um ponto de referência con-
creto (objeto part icul ar). Os conceitos gerais relacionam-se
com os objetos particulares não como tais, mas somente na
medida em que eles possuam essa ou aquela propriedade e
aspecto gerais. Essas proprie dad es e aspectos gerais, que se
repetem em cada objeto particular desse ou daquele grupo, são
os pontos de referência que se refletem nesse ou naquele con-
ceito geral ou categoria.
Walpole Hugh defende uma posição análoga sobre a na-
tureza dos conceitos gerais e das categorias. Como Chase, ele
nega o conteúdo real dos conceitos e das categorias, conside-
rando-os como ficções, pelo fato de que o que eles definem não
existe na reali dade objetiv a. "Um home m da rua que diz 'que
não existe justiça' diz coisas mais precisas do que ele próprio
 po de imaginar. Esse ti po de coisa nu nc a existiu. A justiça
é uma ficção, assim como suas compan heir as: a amizade, a
disciplina, a democracia, a liberdade, o socialismo, o isolacio-
nismo e o apaziguamento . Nã o se pode indicar seus ponto s
de referência"iõ. Como Chase, Walpole Hugh não compreende
ou não quer compreender que os homens, em conseqüência da
atividade da abstração e do pensamento, separam o geral do

"S. Chase, op. cit., p. 9.


W. Hugh,  Semantics.
15
The nature of Words and their Meaning,
 Ne w Yo rk , 1941, p. 159.

16
 

 par ticul ar e o fixam em conceitos gerais. Que é precisamente


esse geral refletido e fixado no conceito geral e na categoria
que constitui o conteúdo, e que é exatamente dele que se trata
quando os conceitos gerais ou as categorias são utilizados para
exprimir o pens ament o. Eles realm ente não dispõem de pon tos
de referência individuais, mas possuem, em compensação, uma
grande quan tida de de pont os de referê ncia, já que existem
objetos concretos encerrados nos limites desse ou daquele
conceito geral. E isso test emunh a não sua ficção, mas sua
realidade.
A concepção nominalista da natureza das categorias pro-
voca toda uma série de conclusões anticientíficas. Se, como
afirmam os nominalistas, o geral não existe realmente, se é
apenas uma denominação, uma palavra vazia, e na realidade
existem somente coisas sensíveis e singulares, não há matéria,
ninguém jamais a percebeu, ninguém jamais a viu, ela é apenas
uma palavra sem significado, equivalente ao termo "nada".
Mas se é assim, também o materialismo é falso, já que ele
 parte da concepção da matéria com o alguma coisa qu e real-
mente existe. Fo i preci samen te essa a maneir a que Berkeley
escolheu para refut ar o materi alism o. Mas, se os conceitos gerais
não significam nada, se na realidade não existe nada a que
eles possam corresponder, então, sua utilização não pode per-
mitir aos homens que se orientem em sua atividade, na resolução
das tarefas práticas e, ainda mais, esses conceitos gerais indu-
zem os homens ao erro, engendram todas as ilusões possíveis e
imagináveis.
Assim,história_,do-,desenvolvimento do pensamento fi-
losófico, quatro tendências (sem contar a tendência marxista)
aparecem -na"conc epção das categorias: alguns filósofos consi-
deram que as categorias existem fora e independentemente da
consciência humana, so'n a forma de essências ideais particula-
res (tendência real ista ); outros declaram que essas mesmas
categorias são ficções,, palavras, vazias que não exprimem nem
designam nada (tendência nominalista); outros, ainda consi-
deram as categorias como formas da atividade do pensamento,
a priori  próprias à consciência do homem e constituindo suas
características e suas propriedades inerentes (tendência kantia-
na ); e finalmente os últimos, que consideram as categorias
como imagens ideais que se formam no decorrer do desenvol-
vimento da consciência da realidade objetiva c que refletem

17
 

os aspectos e os laços correspondentes das coisas materiais_


(Aristóteles, Locke, os materialistas franceses do séc. XVIII).
A teoria jn §t oi al is ta dialét ica das categorias representa o
desenvolvimento da quarta concepção que foi elaborada na
historia da Filosofia, em geral, pelos representantes do mate-
rialismo.
Como os materialistas pré-marxistas, também os fundado-
res do materialismo dialético consideravam que as categoriss
repres entam as imagens ideais que refletem os aspectos e os
laços correspondentes das coisas materiais. Entret anto, à di-
ferença dos materialistas pré-marxistas, que afirmam que o
conteúdo dessas imagens coincide diretamente com as proprie-
dades e os laços correspondentes das coisas, o marxismo con-
sidera que essas imagens são o resultado da atividade criadora
do_suje ito no - decor rer da qu al este últim o distingue o gera!
do.singular . Esse geral exprime as proprieda des e as correla-
ções internas necessárias. É por isso que a imagem ideal que
representa o conteúdo dessa ou daquela categoria, sendo a uni-
dade do subjetivo e do objetivo, não coincide imediatamente
com os fenômenos, com os quais se encontra na superfície das
coisas. Pelo contr ário , ela se distingue sensivelmente dos
fenômenos e chega mesmo a contradizê-los, já que eles não
coincidem com sua essência. O cont eúdo das categorias deve
coincidir e coincide até determinado ponto, não com o fenô-
meno, mas com sua essência, com esse ou aquele de seus
aspectos.

18
 

II. O PROBLEMA
DA CORRELACÃO
DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA

As formações materiais do mundo objetivo simplesmente


existem e nad a mais. Ela s encontram-se em contínua intera-
ção. Nesse proces so de inte ração manifes tam-se suas propri e-
dades, que as caracterizam como corpos isolados, determinados,
fenôme nos que, em certas circunstâncias, passam uns pelos
outros. O resu ltad o disso é que todos os fenôm enos da reali-
dade se encontram em um estado de correlação e de interde-
 pen dên cia uni versai s. Mas, nesse caso, os concei tos, pelos
quais o homem reflete, em sua consciência, a realidade am-
 biente, devem ser igualmente interdepend entes, ligados uns aos
outros, móveis e, em determinadas circunstâncias, passar uns
 pelos out ros e tr ansf orma r- se em seus contrári os, po rq ue é
somente dessa maneira que eles podem refletir a situação real
das coisas. "Os conceitos humanos, escreveu Lenin , não são
inamovíveis, mas, pelo contrário, eles movem-se perpetuamente,
mudam-se uns nos outros, escoam-se um no outro, porque,
sem isso, eles não refletem a vida existente" . É por isso que
1

o estudo dos conceitos faz supor que se evidencie sua correlação


e suas mudanças recíprocas de um no outro, assim como a
criação de um sistema que reproduza as relações necessárias
dos diferentes aspectos do objeto estudado.
O que caracteriza o estudo dos conceitos, em geral, rela-
ciona-se igualmente, é claro, ao estudo das categorias — dos
conceitos que refletem as formas universais do ser, os aspectos
e os laços universais da real idad e objetiva. Desvend ar a riqueza
das leis dialéticas só é possível se analisarmos as categorias que

Lenin,  Oeuvres,  t. 38, p. 238.

19
 

as refletem em sua correlação e em sua interdependência, se


fizermos um sistema no qual cada uma delas ocupará um lugar
rigorosamente definido e no qual terá o relacionamento neces-
sário com todas as outras.

1. RESOLUÇÃO DO PROBLEMA
DA CORRELAÇÃO DAS CATEGORIAS
 NA FIL OS OF IA PR É- MA RX IS TA

Foi Aristóteles quem, primeiramente, procedeu a uma


 pesquisa sistemá tica das rel ações das categorias e fez destas
últimas um sistema determina do. Mas a classificação aristo-
télica não reproduzia a correlação real das categorias porque
 baseava-s e to ta l e unicamente nos princí pios da lógica fo rm al .
O defeito da classificação aristotélica reside igualmente no fato
de que ela não englobava todas as categorias já estudadas na
época do próprio Aristóteles.
Depo is de Ari stóteles , Kant d edicou-se muito temp o à
análise da corr elaç ão das categorias. Ent reta nto , sua classifi-
cação ainda contém todos os defeitos próprios à classificação
de Aristót eles. El a baseou- se igualmente nos princípio s da
lógica formal, na qual as categorias eram divididas em grupos,
não segundo o lugar histórico que ocupavam no processo do
conhecimento, mas a partir desse ou daquele traço comum;
além disso elas não eram apresentadas por seus laços naturais
e necessários, mas sim p or sua associação continge nte. O
sistema kantiano, assim como o sistema aristotélico, estava
longe de incluir todas as categorias existentes.
Embora tenha reagrupado as categorias como já o fazia
Aristóteles , Ka nt colocou-a s em uma certa depen dênci a das
etapas do desenvolvimento do conhecimento e esforçou-se em
mostrar que a cada grau de conhecimento correspondem de-
termi nadas categorias. Assim, por exemplo, o estágio da per-
cepção sensível dos fenômenos, segundo Kant, corresponde às
categorias de espaç o e de temp o; o estágio do pens ament o
discursivo, às categorias de quantidade, de qualidade, de relação
e de moda lid ade. Ao mesmo tempo, na resoluçã o do probl ema
das categorias, Kant deu um passo atrás em relação a Aristóteles.
Ao contrário de Aristóteles, que considerava que as categorias
representavam uma forma particular do reflexo das coisas e das

20
 

relações reais, Kant declarou que as categorias são formas


subjetivas da atividade do pensamento, próprias à consciência
antes de qualquer experiência.
Foi apenas com a filosofia de Hegel que houve uma apre-
sentaç ão global do probl ema. Hegel criticou vivamente a
concepção kantiana das categorias e, em particular, sua ten-
dência subjetivista. É verdade que Hegel criticava Kant a
 partir das bas es do idealismo, e fo i sobre essas mesmas bases
que ele deu sua própria resolução para o problema da corre-
lação das categorias da dialética. Most ran do a corr elaçã o das
categorias a partir do quadro da solução idealista dada para a
questão conce rnen te ao relaci onamen to e ntre a mat éria e a
consciência, Hegel colocou, ao mesmo tempo, os princípios
dialéticos como base para seu sistema de categori as. Ele
 procurou apresentar as categorias em seu desenvol vimen to,
em suas passage ns de uma s às outras. Par a Hegel, as catego-
rias são momentos ou graus do desenvolvimento da idéia exis-
tindo fora e independentemente do mundo material e do homem.
A categoria da qual parte seu sistema é a do ser puro, que
representa uma vacuidade pura, desprovida de qualquer con-
teúdo preciso . Sob essa forma o ser puro é idêntico ao
2

"nada"3.
Sendo idêntico ao "nada", o "ser puro" de Hegel não é
fixo, não se encontra eternamente no mesmo estado e, agindo
com o "nada", transforma-se em um "vir-a-ser" que, sendo o
resultado da unidade do ser puro com o "nada", chega à abstra-
ção absoluta, ao vazio, e adquire um certo conteúdo, trazendo
à luz uma nova categoria — o "ser-aqui".
É evidente que nem na realidade objetiva nem no conhe-
cimento é possível que algum vir-a-ser possa transformar o
"nada" em um ser concreto determinado, e a correlação das
categorias do ser puro, do vir-a-ser e do ser-aqui, que nos é
apres entad a por Hegel, é absolut amente artificial. Mas há algo
racional, e isso se dá quando Hegel coloca na qualidade de
 pri ncípi o de pa rt ida da passagem de uma catego ria pa ra a outra
o movimento condicionado pela unidade dos contrários — o

2
G. W. F. Hegel,  Wissenschaft der Logik,  in  Sämtliche Werke,
Stuttgart, 1928, v. 4, p. 87-8.
3
Hegel,  Werke. Vollständige Ausgabe,  v. 6, p. 169.

21
 

"ser puro" e o "nada" —, sua luta e a passagem de um para


o outro.
O "ser-aqui" que apareceu em Hegel representa o ponto
de partida do movimento ulterior do pensamento, de sua pas-
sagem par a outr as categorias. A partir do fat o de que, segundo
Hegel, o "ser-aqui" à diferença do "ser puxo" possui uma certa
determinação, ele manifesta-se como qualidade. Analisad o sob
o ponto de vista interior, a qualidade manifesta-se como "algu-
ma coisa".
 No movi ment o das categorias, Hegel capt ou os laços e
as relações reais, próprios ao processo de conhe cimento. Tod o
"ser-aqui", toda forma determinada de existência da matéria
é percebida pelo sujeito, antes de tudo pelo ângulo da quali-
dade, e o sujeito chega à conclusão de que a qualidade dada
 possui sua próp ri a esp ecific ida de; ela é dife rente das outras
qualidades, ela não é nem uma nem a outra.
Depois de ter colocado em evidência a categoria de "algu-
ma coisa", que reflete o momento real do processo de conhe-
cimento da qualidade, Hegel, seguindo o método dialético e
sua profunda intuição histórica, esclareceu passo a passo outros
moment os do desenvo lvimento desse processo. Ele concent ra
sua atenção sobre o fato de que no decorrer de uma análise
rigorosa o "alguma coisa" deixa aparecer sua natureza contra-
ditória e revela ser a uni dad e dos contrários. Por um lado, ele
encerra um momento positivo, por outro, um momento negativo.
Enquanto momento positivo, ele representa a realidade, isto é.
o ser real (ou, segundo a expressão de Hegel, o ser-em-si),
enquanto momento negativo, ele é o ser-outro (ou o "ser-para-
um-outro").
De tudo isso depreende-se nitidamente o pensamento de
Hegel, segundo o qual, mesmo que esse ou aquele ser determina-
do exista por si mesmo, possua seu próprio ser, sua natureza
original, ainda assim ele não está isolado, desligado de outras
formas determinadas do ser, mas sim estreitamente ligado a elas,
existindo apenas graças a elas, às outras formas do ser, porque
estas últimas lhe estão tão estreitamente ligadas que se integram
a ele enquanto momentos determinados de sua natureza interna.
Sendo um aspecto interno do "ser-aqui" ou de "alguma
coisa", a negação do ser-outro (ou "ser-para-um-outro"), en-
contrando-se em interação com a realidade, com o ser-em-si,

22
 

determina seu limite que, por sua vez, não lhe é exterior (ao
"alguma coisa"), mas "penetra todo ser-aqui" . 4

"Alguma coisa", segundo Hegel, modificando-se, transfor-


ma-se em "outra coisa", mas esta outra é em si mesma uma
certa "alg uma coisa ". É por isso que, modi fica ndo-s e por sua
vez, esta outra coisa transforma-se mais cedo ou mais tarde
em uma outra alguma coisa, e esta última, por sua vez, em
outra alguma coisa etc., até o infinito . É assim qu e surge a
5

categoria do infinito.
Apresentando a categoria do infinito enquanto progresso,
Hegel nã o pá ra aí. E ainda mais, ele não consid era o conceito
do infinito verdadeiro, porque, como ele mesmo declara: "aqui
nós não temos nada mais do que uma mudança superficial que
não sai jamais do domínio do finito"®. o verd adeir o infinito,
segundo Hegel, não é um movimento eterno e uniforme indo
de alguma coisa para outra sempre nova, mas um movimento
graças ao qual alguma coisa original, no decorrer do processo
da passagem de uma para a outra, não se perde, não desaparece
na série infinita de outras coisas, mas, pelo contrário, volta
 para si mesma, "em sua outra, regressa pa ra si mesma'" . 7

Em outros termos, se, no momento do exame dessa ou


daquela coisa, nós fazemos a abstração daquilo a que ela está
ligada, e se dessa relação ela se revela e se distingue como
 possuindo um a na ture za específica, uma qualidade, tran sf orma -
se inevitavelmente em "um" que não se distingue de nada.
O aparecimento e a explicação da categoria do um, em
Hegel, corresponde plenamente ao processo real da formação do
conceito. A história do conhecimento mostra que o "um", en-
quanto categoria, foi elaborado e utilizado para designar o que
foi reconhecido como o único existente, não se distinguindo
de nada e incluindo, em si mesmo, tudo (a agua de Thales, o
ar de Anaxímenes, o fogo de Heráclito, o "um" dos Eleatas
etc.).
Mas o um, uma vez aparecido, não permanece, segundo
Hegel, em repouso, ele relaciona-se imediatamente consigo
mesmo e diferen cia-se de si mesmo. Esta relaç ão do um con-

"Hegel,  Werke  cit., p. 182.


5
Hegel,  Werke  cit., p. 184.
«Hegel,  Werke  cit., p. 185.
'Hegel,  Werke  cit., p. 184.

23
 

sigo mesmo nada mais é do que a repulsa de si por si mesmo.


Em conseqüê ncia de tal repulsa aparece o múltiplo. Assim,
Hegel deduz a categoria do múltiplo da categoria do um.
 No processo de repulsão do um com re lação a ele mesmo,
e da posição de si mesmo como múltiplo, o um intervém não
apenas como "repelente" e os múltiplos não apenas como "re-
 pelidos", "c ad a um dos múl tip los, diz Hegel, é ele próprio
um" , e como tal repele igualmente o outro. Mas essa repulsa
8

universal transforma-se necessariamente em seu contrário, em


atra ção univer sal e, no lugar de uma repu lsa unilateral, nós
observamos a unidade da repulsa e da atração.
A despeito do caráter artificial da dedução da repulsa
e da atração, Hegel captou de maneira genial a lei da correlação
desses processos e, em particular, suas passagens de umas para
as outra s e de sua unida de. Efet iva ment e, no processo do
conhecimento desse ou daquele grupo de fenômenos, o sujeito
conhecedor, analisando os fenômenos um depois do outro, age
como se ele se afastasse de um obieto (do um) para dirigir-se
a outros (como se se dirigisse para os múltiplos), mas, ao
mesmo tempo, evidenciando os aspectos e características gerais
dos objetos estudados, unindo-os em um conceito geral, ele
2iga-os em um todo, evidenciando e conservando sua unidade
(como se ele os obrigasse a unirem-se novamente um ao outro).
Hegel termina seu estudo da categoria da qualidade pela
análise das categorias do um e do múltiplo e passa ao estudo
da catego ria da quantidad e. A passage m da qual idade para a
quantidade, a despeito de seu caráter artificial, reflete e exprime,
em Hegel, em traços gerais, o processo real do desenvolvimento
do conh ecime nto. No decorre r da assimil ação, pelo homem , da
realidade objetiva, tanto na prática como no conhecimento,
dever-se-ia efetuar necessariamente, como já o dissemos acima,
a passa gem de um objet o pelos outros, e, no momento da
evidenciação da identidade desses (múltiplos) objetos, a deter-
minação qualitativa de cada um deles (pelo menos no plano
de um grupo comparado e comparável) daria a impressão de
ter sido anulada em cada um dos outros (e ela permaneceria a
mesma, indistint a). Ao mesmo tempo, a base real se criaria,
 primeiro, pela evidenciaçã o das diferenças qua ntita tivas de

8
Hegel,  Werke  cit., p. 192.

24
 

objetos de uma mesma ordem, sob um ponto de vista qualitativo,


e, depois, por sua quantidade.
Em sua análise da categoria da quantidade, Hegel, sempre
fiel à dialética, prende-se primeiramente aos momentos contrá-
rios que existem na quantidade e a representa como a unidade
dos contrários, e mais precisamente como a unidade da conti-
nuid ade e da desconti nuidade. . A essência contradi tória da
quant idade , segundo Hegel, é o desenvolv imento ulteri or da
essência contrad itória da quali dade. Como já vimos acima,
Hegel caracteriza a qualidade pelo fato de que ela encerra os
momentos contraditórios do um e do múltiplo, condicionados
 pel os pro ces sos de repulsa e de atraçã o próprios à qua lidade.
Com a passagem evolutiva da quali dade para a qu antidade,
em decorrê ncia desses dois processos direta mente contrári os
(repulsão e atração), a unidade transforma-se em continuidade
e a multiplicidade em descontinuidade.
A categoria de quantidade, assim como as categorias pre-
cedentes, é apresentada por Hegel não sob uma forma fixa,
mas em movime nto. Surgindo a um certo estágio do desenvol-
vimento da categoria de qualidade, ela própria transpõe vários
estágios de evolução. No parti cular , ela manifes ta-se primeira-
mente sob a forma de quantidade abstrata, pura, de quantidade
como tal. Depois ela transform a-se em uma dada quantidade.
Transpondo, no decorrer de seu desenvolvimento, os está-
gios de quantidade pura e determinada, a quantidade em seu
estágio supremo transforma-se, segundo Hegel, em qualidade,
isto é, age como se ela retornasse a seu ponto de partida, repete
a etapa já transp osta, mas repet e-a sobre uma outra base. A
qualidade à qual retorna a quantidade, no estágio supremo de
seu desenvolvimento, já não é mais indiferente frente a frente
com a qualidade, não se manifesta mais como alguma coisa de
independente em relação a ela, mas sim como alguma coisa
que lhe é organi cament e ligada. Com a colocaç ão em evidência
da correlação e da interdependência da qualidade e da quanti-
dade, surge uma nova categoria — a categoria de medida que
inclui sob uma forma anulada a quantidade e a qualidade . 9

O desenvolvimento ulterior da quantidade e da qualidade,


assim como sua passagem de uma para a outra, no decorrer do

"Hegel, Wissenschaft cit., in  Sümtlicha Werke,  p. 409-10

25
 

 proce sso desse desenvolvimento, conduzem neces saria mente ,


em Hegel, à colocação em evidência e, ao mesmo tempo, ao
aparecimento de uma nova categoria, a categoria da essência.
"Apenas com a migração de uma qualidade para a outra, apenas
com a passagem da qualidade para a quantidade e vice-versa,
declara Hegel, nós não chegamos ao fim; há ainda nas coisas
uma permanência e essa é primeiramente a essência"* . 0

A passagem à essência marca o fim da primeira e o co-


meço da segunda etapa do desenvolvimento da idéia hegeliana.
Até aqui o desenvolvimento realizava-se completamente apenas
no plano do ser; as categorias de quantidade, de qualidade e
de medida eram momentos do ser, graus de seu desenvolvimento.
Com o aparecimento da essência, o ser como tal se apaga, ele
 parece re to rn ar pa ra dentro de si mesmo, transf ormar-se em
um momento da essência, em sua aparência.
A essência relaciona-se antes de mais nada com ela mesma,
e Hegel indica que "ela se identifica com ela mesma"* -. Então,1

aparec e a categoria de identidade. Na análise da categoria de


identidade, Hegel destaca particularmente a noção de identi-
dade como igualdade formal, desprovida de toda diferenciação,
abst raída dela próp ria, e a critica ao mesm o tem po em que
acentua a insuficiência da lei de identidade da lógica formal.
À identidade formal, Hegel opõe a verdadeira identidade que
não apenas não é despro vida de diferenç as, mas ainda as
encerra nela mesm a. E efetivamen te, em Hegel, a identidade
surgiu em decorrência da relação da essência com ela mesma.
A essência aparece em decorrência da anulação e da negação
do ser e de suas determinações que, como conseqüência, não
desapareceram, mas conservaram-se, transferidos para a essên-
cia e continuando a existir nela sob uma forma anulada cons-
tituindo seu ser-outro e ao mesmo tem po sua diferença em
rela ção a ela mesm a. "Aq ui — escreve Hegel — o ser-outro
 — do qua l nós vim os a essência — nã o é mais um ser -outr o
qualitativo,  uma determinação, um limite, ma s . . . uma diferen-
ça, um formulado, uma mediação que se encontra na essência" . 12

Entretanto, sendo identidade, a essência "comporta essencial-

Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 225.


10

»Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 229.


Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 233.
l2

26
 

mente em si a determinação da di fer en ça" . A diferença


13

transformou-se em seu contrário.


A tese de Hegel, segundo a qual toda identidade está
necessariamente ligada à diferença, supõe a diferença e que a
diferença supõe a identidade, corresponde ao estado real das
coisas. Na reali dade objetiva não há iden tida de abstr ata, pura,
nem diferença abstrata e pura. Toda identidade é a identidade
do difere nte, assim como tod a diferenç a é a diferenç a do
idêntic o. A idéia, segundo a qual, no processo do movimen to,
a identidade transforma-se em diferença e a diferença em seu
contrário, e segundo a qual a contradição manifesta-se não sob
uma forma acabada, mas se desenvolve a partir da diferença
que aparece primeiramente como exterior, não essencial, depois
transforma-se em essencial e em seguida em seu contrário, é
igualmente justa.
Entretanto, o aparecimento das categorias de identidade e
de diferença no estágio do movimento do conhecimento, indo
da medida à essência, e sua representação como momentos ou
graus preci sament e dessa etapa do desenvolvimento do saber
cont radi zem a história do conhecimento. Essas categorias ma-
nifestam-se muito antes e, mais exatamente, desde os primeiros
estágios do conhecimento da natureza pelo homem, no estágio
de seu movimento, indo de um ser-aqui ao outro, no estágio
da evidenci ação de "alguma coisa". No proce sso do movimen -
to do pensamento de um ser-aqui ao outro, há necessariamente
comparação e ao mesmo tempo evidenciação da identidade e
da diferença. O aparecimento das primeiras representações e
conceitos gerais é o resultado da tomada de consciência, pelos
homens, da identidade do diferente que se manifesta na prática.
A distinção dos aspectos quantit ativos, das características e,
logo, a formação do conceito de quantidade só podem produzir-
se a partir da descoberta da diferença do idêntico, de um e do
semelhante no múltiplo, isto é, sobre a base de uma certa
tomada de consciência da identidade e da diferença.
As categorias de identidade e de diferença são consideradas
 por Heg el, aqui, e nã o anteriormente (n ão na seção da qualida-
de e da quantidade onde seu exame impõe-se e onde elas apare-
cem sob uma forma ou outra), sem dúvida, porque elas tornam

"Hegel,  Werke  cit.,  p. 232.

27
 

 particularmente fác il a passagem aos con trários e depois à


contradição.
Analisando a contradição, Hegel mostra que ela é geral,
que entra no conteúdo de cada coisa, de cada ser. "Tudo o
que existe, escreve Hegel, é alguma coisa de concreto e, logo,
alguma coisa de diferente e opos ta em si. O caráter finito das
coisas, continua Hegel, consiste em que seu ser imediato não
corresponde a sua essência"!*, por isso, elas esforçam-se sempre
 pa ra resolver esta contradição e realizar o que elas têm nelas
mesmas e, em decorrência, elas modificam-se constantemente.
A modificação das coisas é, pois, a conseqüência de seu caráter
contraditório. Em outros termos, a contradição é a fonte do
movimento e da vitalidade; ". . .é apenas na medida em que
alguma coisa comporta em si uma contradição que ela se move;
que ela possui um impulso, uma atividade"!5. Opondo -se aos
autores que consideravam que não se pode pensar a contradição,
Hegel exclama: "É a contradiç ão que, na realidade, põe o
mundo em movimento, logo, é ridículo dizer que é impossível
 pensar a co nt ra di çã o" ! .
6

O pensamento de Hegel, segundo o qual tudo o que existe


encerra em si uma contradição e de que a contradição é a
origem do movimento, o impulso da vida, é na realidade um
 pensamento genial, que en tr ou na história da ciência para
tornar-se o centro da dialética.
 Na nossa opinião, Hegel ta mb ém conseguiu determinar
corretamente o lugar das categorias de "contrário" e de "con-
tra diç ão" . Os aspectos e os laços que elas refletem só são
efetivamente assimilados no estágio do movimento do conheci-
mento, dirigido para a essência, quando aparece a necessidade
de apresentar o objeto em seu movimento, em seu aparecimento
e em seu desenvolvimn to, qua ndo , a propó sito disso, surge a
questão da origem do movimento, da força motora que con-
diciona seu vir-a-ser, sua vitalidade e a passagem de um estágio
de desenvolvimento para outro.
 Nascida da diferen ça, a contradição, seg undo Hegel, nã o
é eterna; a um determinado estágio de seu desenvolvimento ela

Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werkt,  p. 242.


14

Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 562.


15

»Hegel,  Werke cit,,  p. 242.

28
 

se resolve e se transforma ou, segundo os próprios termos de


Hegel, mergulha até a sua base (f und ame nto ). "A contradição
resolvida é, em conseqüência, o fundamento" . 17

"É por isso que no fundamento, escreve Hegel, o contrário


e sua contradição são igulamente destruídos ou conservados" . 18

Eles são destruídos enquanto existentes de forma autônoma


e são conservados enqu anto momentos de identidad e e de
diferença, característica do fundamento" .19

A passagem da contradição para seu fundamento, como


a apresenta Hegel, a despeito de seu caráter artificial, encerra
muitos elementos racion ais. Hegel exprimiu aqui certas leis
reais da correlação dos aspectos refletidos pelas categorias que
examinam os. A resol ução da contra dição própria a essa ou
àquela formação material conduz necessariamente a sua trans-
formação e, em certas circunstâncias, ao aparecimento de uma
nova formaçã o material. O aparecimento do novo é, portanto ,
a conseqüência da resolução de uma contradição e a resolução
da contradição é a base que trouxe à vida essa conseqüência.
O fundamento foi representado inicialmente por Hegel sob
a forma de fundamento absoluto, que em seguida se determina
como forma e matéria.
A for ma, segundo Hegel, está organicamente ligada à
essência. Ela encerra a essência da mesma forma que a es-
sência encerra em sua natureza a forma.
Emb ora sendo no fun do idêntica à forma, a essência
distingue-se e manifesta-se, com relação à forma, como alguma
outra coisa, como um indeterminado, como uma "identidade
info rme ". Sob esse aspecto, a essência, segundo Hegel, é a
matéria.
Para Hegel, a matéria apresenta-se como alguma coisa
 pas siv a, enquanto que a fo rma é ativa. Pelo fa to de que a
forma tem uma contradição própria, ela afasta-se de si mesma
e determina- se na matéria. A maté ria, por sua nature za, é algo
que só pode relacionar-se consigo mesmo e por isso ela é indi-
fere nte a qualq uer coisa além dela. Mas, ao mesmo temp o,
ela encerra, sob um aspecto velado, a forma, e esta inclui nela

"Hegel,  Werke cit,,  p. 242.


"Hegel,  Werke  cit., p. 242.
"Hegel,  Werke  cit,, p, 242.

29
 

mesma o princípio da matéria . Tud o isso faz com que a


20

matéria ganhe, então, forma e a forma tem de se materializar  . 21

A matéria transformada em forma representa a categoria do


conteúdo.
O conteúdo, segundo Hegel, possui primeiramente uma
certa forma e uma certa matéria e é de fato sua unidade . 22

O conteúdo é o que é idêntico ao mesmo tempo à forma e à


matéria. Essas últimas são, de certa for ma, suas determ inante s
exteriores. Mas esta identidade é a identidade do fundamen to
que, desta maneira, adquire um conteúdo e uma forma e con-
verte-se em um fundamento determinado.
O fundamento determinado relaciona-se negativamente
com ele mesmo e tran sfor ma-s e em um estabelecido. E é ape-
nas no decorrer de seu estabelecimento que ele torna-se o
fundamento de um ser estabelecido.
A idéia de Hegel concernente à correlação orgânica, ao
estabelecer mútuo, às passagens recíprocas do fundamento e
do estabelecido é verd adei ra. El a refle te a dialética real do
fundamento e do estabelecido que observamos no mundo ex-
terior e no conhe cimen to. Na realidade, um aspecto dado de
uma formação material torna-se um fundamento unicamente
na medida em que ele começa a influir de maneira sensível
sobre seus outros aspectos, a determinar a orientação de suas
transformações e a condicionar, dessa maneira, a formação de
uma nova quali dade. Alé m disso, um aspecto dado torna- se
determinado ou condicionado unicamente na medida em que
sua existência, seu funcionamento e sua transformação come-
cem a depender de um outro aspecto ou relação que se revelem
nas condições dadas determinantes, isto é, o fun dam ent o. E,
ainda mais, o que, em certas condições, em certo estágio do
desenvolvimento da formação material torna-se determinante,
em outras condições, em outros estágios do desenvolvimento
da formação material torna-se determinado, isto é, estabelecido,
e o determinado torna-se um fundamento determinante do fun-
cionamento e da orientação das transformações de todos os
outros aspectos do todo dado.

2
°Cf. Hegel,  Werke cit.,  p. 258.
21
Ver Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 562.
22
Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 566.

30
 

Uma lei análoga é observa da no conhecim ento. Uma


suposição dada torna-se fundamento apenas quando outras
suposições forem deduzidas dela e desde que outras suposições
sejam assim funda menta das. E estas últimas serão funda men-
tadas unicam ente graças a seu laço com o fund amen to. Sendo
fundamentadas, elas podem servir de fundamento para outras
idéias, outras suposições e, em certas condições, fundamentar
seu próprio fundamento.
Tendo sido determinado por meio do estabelecimento de
si mesmo e do fundamentado, o fundamento, segundo Hegel,
não permanece em repouso, imutável, mas continua a se trans-
forma r e a se desenvo lver. Ele começa como fun da men to
formal, depois torna-se fundamento real e, finalmente, trans-
forma-se em fundamento completo.
Hegel passa da categoria de fundamento para a categoria
de condição.
O laço da condição e do fundamento não se esgota, em
Hegel, pelo fato de que a condição é a premissa do fundamento,
a mediadora; a condição depende, ela própria, do fundamento
e ela mesma é deter minad a por ele. E, efetivamente, o fato de
que um ser dado seja ou não condição de um fundamento dado
depende da natureza desse fundamento que, por seu funciona-
mento, exige condições rigorosamente determinadas.
Supondo-se mutuamente e passando de um para o outro,
 po r meio deles me sm os , a co ndição e o fu nda me nto fo rm am
um todo, uma certa unidade de conteúdo e de forma e manifes-
tam-se como um incond icionad o "verd adeiro ", como "uma
coisa pensada a partir dela mesma" . Dessa form a, para
23

Hegel, a coisa pensada representa a unidade ou a identidade


do fundamento com a sua condição.
Hegel escreve que: "Quando todas as condições de uma
coisa pensável estão reunidas, ela entra na existência"24.
A dialética da correlação do fundamento e da condição é
apresentada aqui por Hegel de maneira bastante completa e
em sua essência justa. O fund ame nto não pode efetivament e
dar nascimento a esse ou àquele ser imediato, a não ser em
condições rigorosamente determinadas que, sendo o ser-aqui,

23
Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 590.
24
Hegel, Wissenschaft cit., in  Sämtliche Werke,  p. 594.

31
 

não estejam ligadas imediatamente com o fundamento dado,


não dependam dele no seu aparecimento e na sua existência,
mas, pelo contrário, possuam seu próprio fundamento em um
outro. Sendo autônom o e independente, com relação a um
fundamento dado, o ser-aqui é a condição do fundamento, mas
não está menos ligado a ele (ao fun dam ent o). O fato de que
seja a condição do fundamento dado depende não apenas dele
mesmo, mas igualmente do fundamento, de sua natureza, e é
 preci samente o fu nd am en to que dita suas con diç ões , determi na
qual ser-aq ui é necessári o par a sua realiza ção. A idéia de
Hegel de que a condição, ainda que necessária para a realização
do fundamento, não é a força motora que obriga o fundamento
a dar nascimento ao fundamentado, que esta força motora está
contida no próprio fundamento e que este se desenvolve sob a
 pressão de contradições internas que lhe são próprias, nos
 parece justa.
Igualmente justa é a tese de Hegel segundo a qual as
condições não permanecem indiferentes ao processo do esta-
 belec imento do fu nd am en to , mas, pel o contrário, são atr aíd as
 por esse processo, contribuem pa ra a fo rm ação do fu nd amen-
tado e, em uma determinada medida, transformam-se neste
último, tornando-se um momento de seu conteúdo.
 No que concerne às afirm ações de Hegel, de que o con-
teúdo do fundamento com suas condições conduz primeiro ao
aparecimento da coisa pensada e depois ao aparecimento de sua
existência, essas idéias não correspondem à realidade; isso é
apenas uma conseqü ência do idealismo de Hegel, em cujo
quadro ele era obrigado a construir seu sistema de categorias.
Da categoria de coisa, Hegel passa ao fenômeno que se
apresenta como a existência da coisa anulando a si própria do
interior dela mesma . Po r meio do fenô meno , a essência re-
25

flete-se na outra e relaciona-se com ele de maneira determinada.


A existência de um fenômeno não é assim nada além de
outr a relaç ão. Hegel consid era esta última como a verd ade de
tod a a existência, como o mod o geral de ma nife staç ão das
coisas . 26

A unidade da essência e da existência constitui em Hegel

25
Hegel,  Werke cit.,  p. 260.
28
Hegel,  Werke cit.,  p. 260.

32
 

a realidade . A reali dade manifesta-se primeir o sob a for ma


27

de possibilidade que representa o que é essencial para a reali-


dade, mas que ainda é abstrata e que se opõe à unidade concreta
do real . Sendo abstrata, a possibilidade apare ce como con-
28

tingente em uma realidade concreta dada. Hegel considera


como contingente o que "tem o fundamento de seu ser não em
si mesmo, mas em um outro" . A unidade da possibilid ade e
29

da real idad e constitui a necessidade. Consi derada do interior ,


a necessidade manifesta-se como uma relação absoluta em si;
sob sua forma imediata há a relação de substancialidade e de
acidentalidadeSO, a qual, em decorrência, manifesta-se como
relação causal desenvolvendo-se em interação . À base da
31

interação encontra-se o conceito que constitui a verdade do ser


e da essência.
Por meio desses esquemas artificiais da correlação das
categoria s de essência e de fenômeno, de possibilid ade, de
realidade, de necessidade e de causalidade transparece, em Hegel,
a dialética real, e, sob uma forma mistificada, exprime-se uma
série de teses importantes que constituem um passo considerável
no conhecimento das leis de relacionamento das formas gerais
do ser, refle tida s nas categorias em questão. É verd ade que a
ordem — aqui apresentada por Hegel — do movimento do
 pensamento de um a categoria a outra nã o ref lete, na nossa
opinião , o proces so real do conhecimento humano. No co-
nhecimento, o homem não vai do possível ao real, como diz
Hegel, mas, pelo contrário, ele vai da realidade para a possi-
 bilidad e, e nã o vai da necessidade à causalidade e à interação,
mas sim da interação (correlação) à causalidade e à necessi-
dade.
Analisemos o movimento ulterior das categorias na lógica
de Hegel.
Segundo Hegel, com a passagem ao conceito, o pensa-
men to sai da essência. Est a última é negad a pelo conceito,
o qual, em conseqüência, parece voltar sobre o ser e repetir o
que já se pass ou sobre uma nova base. O ser e a essência

27
Hegel,  Werke  cit., p. 281.
28
Hegel,  Werke cit.,  p. 284.
29
Hegel,  Werke cit.,  p. 288.
30
Hegel,  Werke cit.,  p. 299-300.
31
Hegel,  Werke cit.,  p. 307.

33
 

entram, sob uma forma anulada, no conteúdo do conceito e


nele consti tuem todos os momen tos necessários. O conceito é,
 portanto, a "ver dade do ser e da   e s s ê n c i a " 3 2 .  Ou, então, em
outros termos, ele é a "essência que volta sobre o ser como
sobre uma simples imediação"33.
O conceito, segundo He gel, enc erra três mome nto s: a
universalidade, a particularidade e a singularidade . No con-
34

ceito, esses momentos encontram-se em estado de interdepen-


dência e de correl ações orgânicas. Eles perd em-s e um no outro,
dissolvem-se um no outro e manifestam-se como momentos
conf undi dos do conceito . Hegel considera que no conceito é
impossível reter todos esses momentos, um fora do outro, sob
uma forma isolada.
 No decorrer do movimento ult eri or do pensamento, diz
Hegel, o conceito atinge a objetividade, prosseguindo assim o
desenvolvimento de seus novos aspectos e fazendo-se sempre
de modo mais concreto.
Hegel recorreu às construções mais complexas e mais
fantasiosas. Entre tant o, o que torna válidas todas essas ma-
nobras astuciosas é que elas refletem algumas relações reais
(captadas ou adivinhadas) entre as coisas ou no interior das
coisas que, em virtude de sua repetição ocorrida alguns milha-
res de vezes, foram fixadas na consciência humana sob a forma
de figuras lógicas determinadas.
Da objet ivida de, Hegel passa à idéia. A idéia é a unid ade
do subjetiv o e do objetiv o, do conceito e da reali dade. A
categoria de idéia é uma categoria mais concreta do que as
categorias precedentes; ela as inclui sob uma forma anulada e,
toda s junta s, elas aprese ntam-s e como o vir-a-s er da idéia. "Os
graus do ser e da essência objetiva examinados até o presente,
assim como os graus do conceito e da objetividade, escreve
Hegel, não são, nessa diferença que lhes é própria, alguma
coisa imóvel, existindo de for ma autô noma . Não , eles mos-
traram-se como dialéticos e sua verdade consiste em ser mo-
mentos da idéia . 35

32
Hegel,  Werke  cit., p. 311.
33
Hegel,  Werke  cit., p. 312.
34
Hegel,  Werke  cit., p. 320.
35
Hegel,  Werke  cit., p. 387-8

34
 

Segundo Hegel, no decorrer de seu desenvolvimento, a


idéia transpõe três graus. Ela manifesta-se primeira mente sob
forma de vida, depois sob forma de conhecimento e, finalmente,
sob forma de idéia absoluta.
Transformando a realidade objetiva, o conceito realiza-se
nela e a tor na idêntica a ele mesmo. É dessa mane ira que se
compl eta a passagem à idéia absoluta . Essa categoria é a mais
conc reta de tod as as que já examinam os até agora . Seu con-
teúdo é formado por todo o sistema do qual, em traços gerais,
aco mpa nha mos o desenvolvimento. "Pode-s e dizer, escreve
Hegel, que a idéia absoluta é o universal, mas não apenas
enquanto forma abstrata à qual todo conteúdo particular opõe-
se como alguma outra coisa, e sim enquanto forma absoluta
à qual todas as determinações, toda a plenitude do conteúdo
estabelecido por elas estão voltadas"36.
É pela idéia absoluta que termina o processo do desen-
volvime nto lógico. Impre gnada de toda a diversidade do
conteúdo do movimento dialético das categorias, a idéia abso-
luta, a partir da forma ideal, transforma-se em seu contrário,
"aliena-se", toma corpo e manifesta-se na qualidade de natu-
reza, onde, sem ter consciência dela mesma, sofre um certo
desenvolvimento e, depois de ter rejeitado a forma de ser físico
que a t orn ou estran ha, ela volta a seu elemento espiritual
adequado e, no decorrer do processo de seu desenvolvimento
ulterior, volta-se sobre ela mesma.
Como podemos ver, Hegel, ao contrário de Aristóteles e
de Kant, estabeleceu as categorias sobre uma base histórica e as
apresentou em movimento e em desenvolvimento, em seu apare-
cimento e em sua formaç ão. Entret anto, ele realizou tudo isso
no plano da idéia pura, do pensamento puro, o que faz com que
as categorias manifestem-se em sua obra não como graus do
desenvolvimento do processo do conhecimento, pelo homem,
do mundo exterior, mas como graus do desenvolvimento do
 pens amen to pu ro e da idéia, em sua existência anterior à na-
tureza . É por isso, se não foi por acaso, que, a despeito de
seu gênio e de sua aptidão para prever a situação real das
coisas, Hegel foi obrigado, para seguir os seus princípios idea-
listas e aplicá-los, a contradizer a todo instante a realidade e

36
Hegel,  Werke  cit., p. 409.

35
 

dela afastar- se. Mas, apesar disso, Hege l conseguiu em seu


sistema incrivelmente artificial e contraditório das categorias,
reproduzir uma série de ligações e de leis profundas e universais.
Depois de Hegel, numerosos filósofos burgueses tentaram
criar sistemas de categorias, mas as soluções que eles propu-
seram não acrescentavam nada ao estudo do problema e cons-
tituíam um passo para trás em relação a Hegel.
Examinemos algumas dessas teorias relativas à correlação
dessas categorias. Wilhelm Windelband37, filóso fo alemão,
apresenta um sistema de categorias que é o seguinte: ele consi-
dera as categorias como funções sintéticas elementares do
 pensamento. Sendo diferentes tipos de síntese, elas são, se-
gundo ele, diferentes formas de ligação ou de relação e existem
sob o aspecto de noções e julgame ntos correspon dentes. Win-
delband divide primeiramente todas as categorias em dois
grupos. Em um ele inclui as categori as que têm um "valor
objetivo", que existem fora e independentemente do pensamento
e que só por este último podem ser cons tata das. No outro ele
inclui as categorias que existem no pensamento e têm por isso
mesmo apenas "um valor repre senta tivo" . As categorias do
 primeiro grupo são chamadas de const ituti vas e as do segundo,
reflexi vas. As categorias constitutivas, po r sua vez, subdivi-
dem-se em categorias principais e categorias secundárias.
Entre as categorias reflexivas, Windelband considera que
a "difer ença" é uma categoria determinante. Ele destaca que,
sem a diferença, não se pode pensar nenhuma relação, nenhum
sistema, e, portanto, nenhuma categoria, pelo fato de que essas
categorias não representam nada mais do que diferentes formas
de relaç ão ou de síntese. A categoria de "di fer ença " está,
segundo ele, ligada à repre senta ção. Sua fun ção é o desmem-
 br amen to da div ersidade dada na re presen tação, em elementos
correspondentes, e sua síntese em novas associações que marcam
a passagem da representação ao conceito.
A diferença, no decorrer de seu desenvolvimento, trans-
forma-se em "identidade", que Windelband define como um
caso particular (limite) da diferença. A funç ão da categoria
de "identidade" é a comparação, a confrontação mútua dos
diferentes elementos e o estabelecimento da identidade no seu

37
W. Windelband,  Vom System der Kategorien,  Tübingen, 1924.

36
 

conteú do. As categorias de identi dade e de diferença , segundo


Windelband, estão indissoluvelmente ligadas e não podem fun-
cionar um a sem a outr a. "A comp araç ão, ele sublinha, é
impossível sem a diferença e, reciprocamente, a diferença é
impossível sem a comparação" . 38

A categoria de "identidade", em Windelband, nas condi-


ções correspondentes (quando o "grau do idêntico é relativa-
mente pouco importante em relação ao diferente"), transforma-
se em categoria de "conf ormida de". A categoria de "difer ença"
transforma-se em categoria de cálculo (quantidade), que repre-
senta a soma do diferente sobre a base de uma identidade dada.
A categoria de cálculo, ocupando a função de medida, desen-
volve-se em categorias de "graus", de "medida" e de "grandeza".
Sobre a base da categoria de "diferença" e de "identidade",
apare ce tod a uma série de categorias ditas lógicas. Trat a-se
antes de tudo da "abstração" da "determinação", da "subordi-
nação", da "coordenação", da "divisão" e da "separação", que
constituem o primeiro grupo; depois vêm as categorias da silo-
gística, às quais Windelband relaciona as diferentes formas da
dependência lógica.
Ao número das principais categorias constitutivas, Windel-
 band acrescenta as catego rias de "r eali dade" e de "causalidade".
Segundo elej elas são formas essenciais pelas quais deve ser
 pensada "a dependência recíproca re al dos co nt eú do s" . 39

Windelband deduz igualmente essas categorias, da função sin-


tética do pensamento, de nossa faculdade de pensar um certo
conteúdo como uma coisa ou como um processo necessário.
Às categorias constitutivas secundárias, submissas à cate-
goria de "realidade", Windelband acrescenta: a "propriedade
inalienável", a "qualidade", o "atributo", o "modo", o "estado",
a "substância", a "coisa em si"; às categorias secundárias,
submissas à categoria de "causalidade", ele acrescenta: o "de-
saparecimento", o "aparecimento", o "desenvolvimento", a
"ação", a "força", a "possibilidade", a "dependência teleoló-
gica", a "lei".
 No pensamento real, as cat egorias constitutivas e reflexivas,
segundo ele, agem junta s. Isso se deve ao fato de que elas

E. Lysinski,  Die Kategoriensysteme der Philosophie der Gegenwart,


38

Weida, 1913, p. 21.


E. Lysinski,  Die Kategoriensysteme  cit., p. 23.
38

37
 

 provêm de um a mesma font e — a atividad e sintética do


 pensamento.
Pode-se facilmente perceber que os princípios que guia-
ram Windelband na elaboração de seu sistema de categorias são
 bastante pró ximos dos de Kant, embora, no conj unto, seu sis-
tema não seja semelhante ao sistema kantiano de categorias.
Assim, como Kant, é da consciência, de certas funções da ati-
vidade do pensa mento que ele deduz as categorias. E também
como em Kant, elas são formas   a priori  determinadas e puras
da consciência, por meio das quais o homem toma consciência
e ordena o conteúdo daquilo que é percebido no processo de
conhecimento do ser.
A atividade sintética do pensamento, a partir da qual Win-
delband deduz as categorias e as suas relações, não é uma cate-
goria primária e determinante, mas representa o reflexo dos
 proces sos sintéticos que se des env olvem na realidade objetiva
e na atividade prática, reproduzindo esses processos em condi-
ções especiais, criadas artificialmente pelo homem. Mas, sendo
assim, ela não pode servir de ponto de partida para a elabora-
ção de um sistema de categorias, para a dedução de certas cate-
gorias de outr as categorias. Par ece que é preciso procurá-la
nos fatores objetivos, que condicionam o desenvolvimento do
conhecimento humano e a formação das categorias correspon-
dentes, para exprimir os aspectos e as conexões refletidas da
realidade.
O sistema de Günther é um exemplo da teoria subjetivista
de categorias. Günt her critica, a part ir de uma posição idea-
lista, as análises aristotélicas e kantianas do problema das cate-
gorias, que ele não considera satisfatórias. Em particul ar, ele
não fica satisfeito com o fato de que Kant proíba a aplicação
das categorias à "coisa em si" e a dedução desta última da
consciência. Günther tem por objet ivo "reduzir a for ma cris-
talina de cada categoria a seu estado primeiro, maleável e
informe... e compreender o 'corpo morto' das categorias,
dadas  a priori  por Kant, a partir da vida empírica do espírito" . 40

As categorias, segundo Günther, representam a forma dos pen-


samentos nos quais o espírito, no curso de sua autoconsciência,
exprime-se a si mesmo e exprime sua própria vida.

M. Klein,  Die Genesis der Kategorien in Processe des Selbstbewusst


40

Werdens, Breslau, 1881, p. 9-10.

38
 

 Na qualidade de cat egoria determinante, que é a "m ãe de


todas as outras categorias", Günther apresenta a categoria de
"relação", a qual, para ele, se revela idêntica ao pensamento.
O pens amen to, ou a relação (o que é a mesma coi sa), seg undo
Günther, encerra em si mesmo dois momentos contrários liga-
dos necessariamente entre si: o fenômeno e o número; um
constituindo a categoria de "acidente" e o outro a categoria
de "substância ". Por intermédio da categoria de substância,
a idéia de relação manifesta-se com idéia de substancialidade.
Sendo único, o pensamento tem por correlato necessário o
momen to de dualidade. Graças à interação do um e do duplo,
no processo da atividade do pensamento, são obtidas as seguin-
tes categorias: o "único" e o "múltiplo", o "único" e o "uni-
versal". Relacionando- se com os contrários que se encontram
em si mesmos como o "único" e o "múltiplo", o EU pensante
estabelece a relação do todo e da parte. Analisando o "único "
e o "múltiplo", do ponto de vista da unidade numérica que se
encontra neles, o EU pensante estabelece relações quantitati-
vas e, ao mesmo tempo , a categori a de "quanti dade ". A cate-
goria de qualidade é estabelecida a partir da análise do ponto
de vista de sua diferença.
As categorias de qualidade e de quantidade manifestam-se
como momentos da autoconservação e da auto-afirmação da
substância e de sua objetivação. Encont rando- se em estado de
repouso, o EU pensante é a relação da substância com os
acidentes, a relação de si mesmo com seus diferentes estados,
que mudam constantemente, passando de um par a outro. Nesse
caso, segundo Günther, o espírito pensante não está inerte,
ele está vivo, é um princípio ativo que engendra os acidentes
na quali dade de fenômenos deter mina dos. É por isso que a
relação da substância com os acidentes deve ser considerada
como a relaçã o da causa e da ação. Pa ra Günth er, as idéias
de possibilidade, de realidade e de necessidade, que são os
momentos do pens ament o causal, estão, ligadas à idéia de
causalidade.
Dessa maneira, Günther, passo a passo, reproduz todas as
categorias apresentando-as sob a forma de momentos da cons-
ciência que se desenvolve sobre sua própria base, de momentos
do espírito pensante, sob as formas de objetivação e de auto-
afirmação deste último.

39
 

Opondo-se a Kant, Günther não encontrou nada melhor


do que retomar certas idéias hegelianas do desenvolvimento das
categorias. É verd ade que, ao contrário de Hegel, que em seu
sistema de categorias conseguira reproduzir a grande quanti-
dade de leis reais da correlação das categorias, o sistema das
categorias de Günther não reflete em nenhum lugar a situação
exata das coisas, e esse sistema revela ser, além disso, o fruto
da criação do seu autor, livre de qualquer objetividade parali-
sando o pensamento.
Charles Renouvier, filósofo francês do século XIX, de-
senvolve um ponto de vista próximo ao de Günther, no que
concerne à corre lação das categorias. Par a ele, as categorias
são igualmente funções do processo psicológico, notadamente
do pensa mento e da perc epçã o sensível. Em seu conj unto ,
segundo Renouvier, elas constituem a consciência, da qual são
as leis, assim como os fenô meno s, que Renou vier considera
como o conteúdo das representações.
Renouvier considera que a categoria de "relação" é a
categoria prime ira. Ela representa, em seu pens ament o, a
função mais simples da consciência, é uma lei universal, base
de todas as outras categorias, que ele considera como diferentes
form as de relações. Da massa geral das categorias, Renou vier
distingue as categori as ligadas à relaç ão de causa e ef eito e
denomina- as dinâmica s. Tod as as outras categorias são reun i-
das por ele no grupo das categorias estatísticas.
Às categorias estatísticas ele acrescenta as categorias de
"qualidade" (relação qualitativa), exprimindo a relação de
coordenação do gênero, da espécie e do indivíduo; de "quanti-
dade", cuja função é a de designar uma maioria indeterminada
e de negá-la, e essa categoria transforma-se em categoria de
númer o quan do a síntese de duas quantidades determi nadas
encontra-se realizada: de "duração", de "espaço" ou de "situa-
ção" . A fun ção dessas categorias, segundo Renouv ier, encon-
tra-se na expressão de uma duração indeterminada, na negação
desta última e no estabelecimento de uma fronteira espacial
sob forma de ponto, de linha, de superfície, de figura.
Renouvier considera como categorias dinâmicas a categoria
de "efeito", que exprime uma relação temporal; a categoria de
"vir-a-ser" (aparecimento), que exprime a modificação no
tempo; a categoria de "finalidade", que é concernente à relação
do estado presente do ser vivo com seu estado futuro; a

40
 

categoria de "causalidade", que representa a síntese da ação


e da força e a categoria de "individualidade", que é a síntese
de todas as funções da consciência e portanto de todas as
outras categorias.
Todas as categorias consideradas, segundo a teoria de
Renouvier, são aplicáveis apenas ao domínio dos fenômenos,
que constituem o conteúdo das representações; esse domínio,
segundo ele, representa a única realidade.
O sistema de categorias de Renouvier é uma modernização
original da teoria kan tia na das categorias. Mas, a pior part e
dessa teoria é, precisamente, a concepção subjetivista e idealista
das categorias e de sua correlação que aí é incluíd a. A ten-
dência materialista própria da filosofia crítica é, aqui, comple-
tamente rejeitada. Tud o o que existe realmente reduz-se aqui
a um conjunto de fenômenos que estão submetidos às relações
das categorias representando as funções da consciência e as
diferentes formas de sua atividade.
Edua rd von Hartm ann^l dedicou um grande espaço à
elabora ção de um sistema de categorias. Assim como Ren ou-
vier, Hartmann também entende por categoria as funções sinté-
ticas elementares da consciência. É verdade que Har tma nn, à
diferença de Renouvier, que acha que essas funções são cons-
cientes, consider a que elas são inconscientes, que são uma
"determinação lógica inconsciente", que estabelece uma "certa
relação" . 42

E Hartmann construiu seu sistema de categorias mediante


o desmembramento do conteúdo da consciência em partes de-
terminadas, para disso deduzir as relações das categorias cor-
respondentes. Segundo Hartm ann, no ponto onde acaba a
relação as categorias deixam de existir.
Apoiando-se na categoria de relação, E. Hartmann esforça-
se por colocar em evidência o conteú do de todas as outras
categorias. Cad a uma delas é apresentada sob a for ma de uma
relação.
Embora E. Hartmann esforce-se para mostrar a aplicação
da maior parte das categorias na esfera real objetiva do ser,
ele deduz, contudo, seu conteúdo e sua correlação da esfera
ideal subjetiva, do princípio espiritual que é, para ele, a função

41
E. Hartmann,  Kategorienlehre,  Leipzig, 1923, t. 1-3.
4 2
0. Spann,  Kategorienlehre,  Jena, 1939, p. 45.

41
 

fundamental, o atributo da substância, e existe nesta última sob


a for ma do lógico e da vont ade. Idealist a desde a raiz, a
teoria filosófica de E. Hartmann não reproduz a correlação
necessária que existe entre as categorias. Em seu sistema, as
categorias são colocadas uma ao lado das outras segundo as
funções desempenhadas pela percepção sensível e o pensamento.
Ele procura evidenciar as leis que determinam a interdependên-
cia das categorias; as categorias classificam-se, segundo ele, em
grupos de acordo com o princípio da lógica formal e não se-
gundo o lugar que cada uma delas ocupa no desenvolvimento
histórico do conhecimento e da prática, nem na relação das
formas gerais do ser refletidas no processo desse desenvol-
vimento.
O ponto de partida no sistema de categorias de Wilhelm
Wundt é igualm ente o conceito de relaç ão. Wund t considera,
assim como os outros filósofos que analisamos, as categorias
como noções puramente  a priori,  que exprimem as relações do
 pensamento lógico. Wu nd t cita a "fo rm a" e a "m atér ia" como
as principais categorias, para a formação das quais se faz
necessário, antes de tudo, o exame de todo objeto da expe-
riência. Segundo ele, elas encon tram -se no pon to mais alto
dos conceitos puros de relação e são ainda a base da classifi-
cação de todas as outras . 43

A categoria de matéria, analisada ao mesmo tempo que


a forma, resulta, segundo Wundt, na categoria de conteúdo.
A relação do conteúdo e da forma, faz aparecer as categorias
de "real" e de "formal", de "real" e de "possível", que são as
categorias paralelas do conteúdo e da forma.
Em seguida, depois de dar sua relação das categorias de
conteúdo e de forma, todas as outras categorias dividem-se em
conceitos puros de forma e em conceitos puros de conteúdo e
de realidade.
Wundt considera como conceitos gerais de forma as cate-
gorias do um e do múltiplo; os conceitos obtidos pela seqüência
da diferenciação do conceito de múltiplo são os conceitos
especiais de forma: a quali dade e a quan tida de como dois
aspectos a partir dos quais podemos analisar todo múltiplo, o

43
E. Lysinski,  Die Kategoriensysteme  cit., p. 75.

42
 

simples e o compl exo, e segundo os quais desmem bra-se a


qualidade; o singular e o múltiplo que são obtidos em decor-
rência da diferenciação da categoria de quantidade.
Aos conceitos gerais de realidade (de conteúdo), Wundt
acrescenta as categorias de "ser" e de "vir-a-ser" que, trans-
formando-se, tornam-se as categorias de "substância" e de
"cau salid ade". Wun dt considera a substância como a base do
ser e a causal idade como a corre lação do ser. Relac ionando-se
uma à outra, a substância diferencia-se nela mesma (substância
no sentido próp rio do ter mo) e em acidente, e nqua nto que a
causalida de difere ncia-se em causa e efeito. Esses dois pares
de categorias reúnem-se em seguida para formar o conceito de
força que se divide em força potencial (inclusive na substância)
e em força atual (manifes tando-s e na açã o); a causalidade
divide-se em causalidade substancial e em causalidade atual
que, em seu desenvolvimento ulterior, transformam-se em causa
e fim.
Segundo Wundt, a categoria de fim é aplicável não apenas
aos atos conscientes do homem, mas igualmente aos processos
da natureza; a relação de finalidade está contida no próprio
fun dam ent o do ser, na substância em si. O idealismo mani-
festa-se aqui de forma particularmente clara.
O sistema de categorias proposto por Wundt, apesar d"e
um certo rigor lógico e da reprodução de algumas relações de
categorias que existem na realidade (quantidade-um-múltiplo;
conteúdo-substância-acidente; substância-causalidade-causa-efei-
to), é artificial, reúne de forma arbitrária as categorias, que não
encontram entre elas uma correlação e uma interdependência
necessárias. Por exemplo, nem na realid ade, nem na consciên -
cia, a forma desmembra-se em um e em múltiplo, as categorias
de "um" e de "múltiplo" não aparecem sobre a base da cate-
goria de forma , como as apresenta Wundt. As categorias de
"qualidade" e de "quantidade" não se manifestam em decor-
rência da diferencia ção da categoria de "múlt iplo". O apare-
cimento das categorias de simples e de complexo não nos
 parece estar lig ado à qualid ade etc. Logo, o sistema de cate-
gorias de Wundt não reflete, no final das contas, as leis reais
de relaç ão das categori as. E isso é normal porque o autor
coloca-se em posições idealistas e por essa razão não pod e
voltar-se para a esfera da realidade na qual encontram-se os
fatores que condicionam o movimento do pensamento de uma

43
 

categoria a outra, fatores que determinam sua correlação e sua


interdependência.
Hermann  C o h e n 4 4 ,  filósofo alemão do fim do século XIX
e começo do século XX construiu um sistema de categorias um
 pouc o diferente daquele de Wundt e dos out ros sistemas que ana-
lisamos anteriormente. Em sua teoria das categorias, Cohen
 parte de Ka nt . Ma s ele o corrige sensivelmente. Em particular,
ele suprime todas as tendências materialistas da teoria kantiana
e nega a existência da "coisa em si", independentemente da cons-
ciência. Segundo ele, tu do o que existe no mund o depende da
consciência, do "pensam ento puro" . Cohen deduz do pensa-
mento puro não apenas as formas  a priori  da percepção sensível
e do entendimento, mas também a "coisa em si", que se transfor-
ma em princí pio lógico do conhecimento. De acordo com isso,
o "pensamento puro", que engendra não apenas os conceitos,
mas também o próprio objeto do   c o n h e c i m e n t o ^ ,  constitui o
 princípio primeiro das categorias e de suas relações.
Cohen considera as categorias como elementos do pensa-
mento puro, conceitos elementares  a priori.  Ao mesm o temp o,
as categorias são para ele formas fundamentais do julgamento ®. 4

É por isso que, construindo seu sistema, Cohen esforçou-se


 pa ra deduzir as categorias a partir dos juízos correspondentes.
Ele divide os juízos segundo^ as quatro formas abaixo:
1) Juízos das leis do pensa mento,
2) Juízos da matemática,
3) Juízos da ciência da natur eza matem ática,
4) Juízos do método .
Cohen acrescenta as categorias de "origem", de "continui-
dade", de "identidade" e de "contradição" aos julgamentos das
leis dos pens amen tos. As duas primeiras categorias , segundo
ele, são convocadas a produzir os elementos do pensamento
 puro , a terceira, a conserva r sua identidade e a qu arta, a re-
forçar a identidade pela negação de tudo o que não é idêntico.
Dos julgamentos da matemática, Cohen deduz as cate-
gorias de "cálculo", "tempo", "número", "espaço" e "todo".
A categoria de cálculo cria, segundo ele, a realidade do objeto

44
H. Cohen,  Logik der reinen Erkenntnis,  Berlin, 1902.
43
Lysinski,  Die Kategoriensysteme  cit.. p. 83.
46
Lysinski,  Die Kategoriensysteme  cit.. p. 84.

44
 

da matem ática . As categorias de tempo e de núm ero produzem


o conteúdo desse objeto sob a forma de diferença numérica ou
de maioria indeterminada. A categoria de "t odo " é convocada
 para refletir a un idad e ideal da mul tiplici dade infinita do
singular. Aplicad o às ciências do espírito, o juízo geral, assim
como o juízo de maioria, manifesta-se sob a forma de categoria
de "sociedade", e o juízo de realidade sob a forma de categoria
do indivíduo que, segundo Cohen, cria a realidade da mora-
lidade.
Os juízos da ciência da natureza matemática condicionam
as categorias de movimento, de repo uso da substância, de
inércia, de lei, de função, de causalidade, de energia, de con-
ceito, de objeto, de sistema, de natureza, de fim, de sujeito
e de ação moral, assim como certas categorias especiais da
ciência da natu reza matemá tica. Ao contr ário das categorias
 precedentes, que são um meio met afí sic o de pr od ução dos
objetos do conhecimento em seu isolamento, as categorias aqui
apresentadas por Cohen desempenham um papel de meio de
 pr od uç ão dos objetos do con hec ime nto em sua correlação, e é
 por isso que ele as considera como categorias de relação.
Os juízos do método supõem as categorias de possibilidade,
de consciência, de hipótese, de medida, de realidade, de singular,
de grande, de cronologia, de necessidade, de geral e de par-
ticular. A necessidade da categoria de possibil idade não é
fundamentada por Cohen, já que, segundo ele, ela explica-se
sozinha. A categori a de consciência, par a Cohen, é a premissa
de toda possibilidade e graças a ela realizam-se todas as de-
termin ações impo rtan tes. A categoria de hipóte se está colocada
à base de todas as formas de possibilidade e com a categoria
de medida está o meio de produção de objetos novos.
A categoria de grandeza é destinada, por Cohen, à pro-
dução, a partir do pensamento puro, da realidade do singular
e manif esta- se sob a for ma de espaço e de temp o. Na s.
ciências do espírito, a grandeza exprime-se sob a forma de
cronologia e constitui igualmente um meio de definição da
realidade. As categorias de "geral" e de "particula r" têm por
função estabelecer a ligação entre os objetos isolados.
Para Cohen, a dedução das categorias a partir das dife-
rentes formas de juízos reduz-se à determinação das funções
que elas desempenham no processo do pensamento puro que
cria a reali dade. O sistema obtido não tem nenh um valor

45
 

científico, porque não reflete a correlação e a interdependência


necessárias reais entre as categorias, mas apenas representa a
aliança arbitrária de conceitos existindo no conhecimento social.
 No sistema de Cohen, as categorias são mais freqüent emente
fixas e descritas do que deduzidas uma da outra, e é por isso
que, se não for por acaso, nesse sistema, elas não se relacionam
umas com as outras, mas simplesmente existem, umas ao lado
das outras. Pelo fa to de que o seu princípi o de par tid a é
idealista, Cohen concentra sua atenção não sobre a colocação
em evidência das leis da correlação das categorias, mas sobre
o estabelecimento de seu papel imaginário na produção do ser
real a partir do pensamento puro.
Paul Natorp desenvolveu o ponto de vista de Cohen sobre
a correlaçã o das categorias. Assim como Cohen, também
 Na to rp esf orça- se po r criar seu sistema de categorias a partir
da análise do ato do pensamento elementar que, para ele, é
constituído pelo juízo. A essência do juízo e, port ant o, do
 pensamento representa, segundo Na to rp , uma fo rm a de un ião
da multiplicidade na unidade e, ao mesmo tempo, um certo
desmembramento dessa unidade em multiplicidade.
Analisando a atividade analítica e sintética do pensamento
sob o aspecto exterior e interior, descobrimos, segundo Natorp,
que há nela a quantidad e e a qualidade. Nato rp considera
que o primeiro grau desta atividade elementar do pensamento
é o estabelecimento da unidade quantitativa e a distinção do
singular do um na qualidade de base da síntese quantitativa.
O segundo grau é a repetição do ato de estabelecimento dessa
unidade e da formação da multiplicidade, a qual, nesse grau,
é indeterminada pelo fato de que a repetição pode realizar-se
até o infinit o. No terceiro grau, a repeti ção dessa mesma
unidade quantitativa limita-se à form ação de um todo. Em
decorrência, a multiplicidade indeterminada transforma-se em
multipli cidade determin ada, isto é, em núm ero. Em seguida,
tudo se repete igualmente e forma uma nova multiplicidade
indeterminada, depois um todo (um número novo etc., até o
infinito).
A corre lação da unid ade e da multi plicidad e, segundo
 Nato rp, const itui a qua lidade. No primeiro grau do conheci-
mento, a qualidade aparece sob a forma de unidade qualitativa
(identidade), no segundo grau, à unidade qualitativa acrescen-
tam-se outras, e assim fica estabelecida a diferença que aqui

46
 

é inde term inada . No terceiro estágio do conhecimento, as


identidades diferentes são generalizadas e uma nova unidade
qualitativa aparece, considerada por Natorp como gênero, como
unidade qualitativa dessa ou daquela multiplicidade.
As sínteses qualitativa e quantitativa no desenvolvimento
do pensamento, segundo Natorp, reúnem-se ulteriormente em
uma nova síntese (síntese das sínteses) e formam a "relação".
A síntese das relações conduz ao aparecimento de um sistema,
depois de uma ord em geral. No primeiro grau da síntese das
relações, estabelece-se uma série fundamental que existe de
maneira imutável em todas as ordens e que representa a substân-
cia, alguma coisa de geral, determinando todas as mudanças
que se prod uzem . O geral aparece primeiro sob a fo rma de
tempo, comum a todas as transformações, e, em seguida, sob
a forma de espaço, que engloba em um todo unido todas as
relações (or de ns ). No segundo grau da síntese das relações
(do conhecimento, da criação, o que é, segundo Natorp, a
mesma coisa) estabelece-se a sucessão dos mome ntos no tempo,
o que constitui a causalidade. No terceiro grau da síntese
das relações estabelece-se a correlação das séries paralelas que
representam a interação.
Tudo o .que foi exposto na obra de Natorp concerne ao
conhecimento, à síntese (e ao mesmo tempo à criação), e não
a um ser concr eto qualquer, mas ao ser em geral. Mas, ao lado
desse grau de desenvolvimento do pensamento, Natorp distingue
o grau do conhecimento, da síntese (da criação) do ser con-
creto, do obje to. No estágio do conhecimento (da síntese, da
criação) do objeto, aparecem as categorias de modalidade,
 Na to rp considera como prime ira açã o do pensamento, visando
a síntese do objeto, o estabelecimento da possibilidade de uma
tal síntese, depois a verificação dessa possibilidade pela expe-
riência, isto é, na realidade, verificação que se manifesta sob
a forma de determinação progressiva indeterminada e infinita e,
enfim, pela dedução e indução completas, estabelece-se a ne-
cessidade, que Natorp identifica com a dependência lógica . 47

Apesar do idealismo manifesto de Natorp, que considera


o movimento do conhecimento de uma categoria para a outra,
como o.processo da síntese (da criação), a partir do "pensà-

47
E. Lysinski,  Die Kategoriensysteme  cit., p. 109.

47
 

mento puro", aspectos e laços gerais refletidos nas categorias,


ele soube exprimir em seu sistema certas relações reais exis-
tentes entre as categorias. Sua apre sent ação do movimen to
do conhecimento indo do um ao múltiplo e depois voltando
ao um, assim como a apresentação do estudo separado da
qualidade e da quantidade com sua correlação, e, por meio
dela, as relações fundamentais de causalidade e de necessidade,
 parece-nos correto.
O filósofo alemão Alóis Riehl , desenvolveu um ponto
48

de vista sobre a correlação das categorias que é essencialmente


kant iano . Par a ele, assim como par a Kan t, as categorias
representam as funções do pensamento que se resumem ao
estabelecimento da identidade. Esta última representará a única
categor ia. As outr as categorias, segundo Rieh l, são form as
especiais de identidade. Assim, as categorias de espaço e de
temp o apar ecem, segundo ele, em decor rência da ação da
função de identidade do pensamento sobre a sensação e a per-
cepção; a categoria de substância aparece no decorrer da
aplicação desta função do pensamento à grandeza do ser real,
a "causalidade" manifesta-se em decorrência de sua aplicação
às transformações temporais etc.
 Não é sem fu nd am en to real que as cat egoria s são decla-
radas como constituindo diversas formas de identidade. Sendo
o reflexo de aspectos e de laços gerais da realidade, as catego-
rias refle tem incontes tavelmen te essa ou aquela ident idade. Mas
esta particularidade das categorias não permite estabelecer entre
elas a correlação e a interdependência necessárias, nem repre-
sentá-las em movimento, nem mesmo exprimir suas passagens
recí proca s etc. A única solução à qual nós pode mos chegar
apoiando-nos sobre este índice das categorias, no decorrer da
elaboração de seu sistema, é dividi-las em grupos de acordo
com as formas particulares de identidade e dispor esses grupos
uns ao lado dos outros, isto é, dar uma classificação lógica e
for mal . E foi precisa mente isso o que fez Rieh l.
 Na filosofia de Nicolai Hartmann , uma grande atenção
49

foi dedicada à elaboração do sistema de categorias.

48
A. Riehl,  Der philosophische Kriticismus und seine Bedeutung
 für dis positive Wissenschaft,  Leipzig, 1876/1877, p. 1-2.
49
 N , Hart mann ,  Der Aufbau der realen Welt. Grundriss der allge-
meinen Kategorienlehre,  Berlin, 1940.

48
 

Hartmann apresenta o mundo sob a forma de um ser es-


tratificado, portanto, uma das camadas da consciência. Assim,
 N. Ha rt ma nn sup rime a questão fu nd am en ta l da filosof ia,
transformando-a em uma questão particular da relação de uma
camada do ser com a outra. O objetivo fundam ental da filo-
sofia, segundo ele, é o estudo do sistema (da estrutura) do
mundo e a construção de um sistema de categorias que expri-
mam essa estru tura. As categorias, segundo Har tma nn, são
as diferenças e os traços fundamentais das camadas e dos graus
do ser que é evidenciado. "To das as diferenças fund amen tais
de domínio do existente — graus ou camadas, traços gerais,
que dominem no interior das camadas e relações que os reúnem
 — to ma m a fo rm a de ca te go ri as " . É por isso que a teoria
50

das categorias, para Hartmann, "é a ontologia fundamental, isto


é, o estudo das bases gerais do ser que se diferenciam segundo
as esferas do ser e constituem um domínio especial que se
encontra sob o ser" *.5

Ignorar a questão fundamental da filosofia leva Hartmann


à negação da unidade do mundo, tal como é compreendida
 pel os mat erial istas e os idealistas. Seg und o ele, a unid ade do
mundo consiste em seu caráter estruturado e no fato de que
tod as essas camadas encon tram-se em relação e em ligação
determinadas que constituem um sistema definido. "Com-
 preender a unidade do mund o real significa compreender esse
mun do em sua constru ção e em seu de smembramento. A
unidade que ele possui não é a unidade da uniformidade, mas
a unidade da disposição e da elevação das variedades formadas
de maneira tal que, dispostas de certa forma, as que são infe-
riores e grosseiras encontram-se na base e as que são superiores,
que repousam sobre as primeiras, elevam-se acima   d e l a s " 5 2 .
Falando da relação das categorias com as camadas reais,
 N. Ha rt ma nn desta ca que as pri meiras est ão contidas nas se-
gundas e desempenham nelas um papel permanente, geral e
dominante. Encontran do-se nas camadas reais concretas do
ser, as categorias, segundo ele, podem entrar em uma camada,
em várias ou em todas.

 N . Ha rt ma nn ,  Der Aufbau der realen Welt,  cit., p. 1.


S0

 N . Ha rt mann ,  Der Aufbau der realen Welt,  cit., p. 42.


51

 N . Ha rt ma nn ,  Der Aufbau der realen Welt,  cit., p. 197.


52

49
 

Como conseqüência, elas dividem-se em categorias espe-


cíficas de camadas e em categorias fundamentais que, indo de
alto a baixo (do intemporal mais complexo, do ideal eterno,
até às camadas físicas mais simples), penetram todas as ca-
madas e, exatamente por isso, unem-nas. Essas categorias
que constituem a parte "baixa" (no fundamento) do ser, uma
camada particular, são os princípios gerais da relação das
categorias no interior das camadas particulares e entre as ca-
madas . 53

Formando uma camada especial, as categorias fundamen-


tais dividem-se em três grupos: categorias modais, categorias
elementar es e leis categoriais. Ele acrescent a às categorias mo-
dais, as categorias de possibilidade, de realidade, de necessi-
dade; às categorias elementares, as categorias que têm um ca-
ráter estrutural e que se manifestam sob a forma de termos
opostos, como, por exemplo, o um e o múltiplo, a forma e a
matéria, a qualidade e a quantidade, a continuidade e a des-
continuidade etc.; às leis categoriais, acrescenta as categorias
que definem o princípio de união das categorias no interior de
uma camada, a disposição das camadas de categorias e a de-
 pendência que reina ent re elas. N. Ha rtm an n chama estas
últimas de as leis da constr ução do mund o real. Essas leis, se-
gundo ele, são a lei da implicação e as leis da unidade e da
integr idade das camadas . Essas três leis exprim em, segundo
ele, a correlação e a dependência mútuas das categorias de uma
camada, a prioridade da integridade do sistema das categorias
sobre as categorias particulares e também o fato de que a essên-
cia de cada categoria encerra-se tanto nela mesma, como nas
outras categorias que lhe estão ligadas.
Hartmann analisa detalhadamente os princípios do co-
nhecimento da relação das categorias no plano de uma camada,
assim como entre as camadas, notadamente indicando que toda
categoria particular é cognoscível unicamente na medida em que
são cognoscíveis todas as outras categorias da camada; ele
indica também que no conhecimento da correlação (coesã o)
das categorias de uma camada dada pode-se partir de qualquer
categoria, que as categorias das camadas inferiores devem ser
conhecidas partindo das categorias das camadas superiores e

 N . Har tma nn ,  Der Aufbau der realen Welt,  cit., p. 198-9.


53

50
 

que, apoiando-se sobre as categorias da camada inferior, po-


de-se representar a particularidade das categorias da camada
superior etc.
Em seus raciocínios sobre o caráter estratificado do ser,
sobre a especificidade da estrutura de cada camada, sobre a
 pre sença , sob uma fo rm a tr an sf orma da , da estrutura da camad a
inferior na camada superior etc., Hartmann exprime de maneira
confusa teses do materialismo dialético sobre as formas fun-
damentais do movimento da matéria e sua correlação no pro-
cesso do desenvolvimen to progressi vo desta última. Ao lado
de certos pensamentos justos que concernem às relações do
geral e do particular, do inferior e do superior, Hartmann apre-
senta um grande número de teses errôneas, que visam a conci-
liar o materialismo e o idealismo, a operar a "ontologização"
da consciência, a transformá-la do ideal em uma forma univer-
sal do ser fora do tempo e do espaço e, por isso mesmo, a
criar a resposta idealista para a questão fundamental da Filoso-
fia. Ao mesm o tempo, o sistema de categorias proposto por
Hartmann ainda é uma construção idealista, que faz da Filo-
sofia a ciência das ciências, determinando o lugar e a ligação
recíprocas de todas as outras ciências, nas quais a fantasia su-
 pl an ta a ausência de conheci mentos necessários. Em uma úni ca
 pala vra: Ha rt ma nn nã o apena s não con segui u ir além de Hegel,
mas ainda ficou atrás dele.
Oskar Fechner    construiu seu sistema de categorias a
54

 par tir dos pri ncípios idealistas e metafísicos. Ele rej eit a todas
as teorias tradicionais sobre as categorias, considerando-as fal-
sas, e propõe sua solução, dita ontológica sobre o problema:
"Nós não reproduzimos nada, escreve ele, nem as filosofias tra-
dicionais, nem os conceitos estruturais e categoriais científicos,
mas, sim, mediante uma análise profunda, procuramos compre-
ender as categorias apresentadas e autenticamente ontoló-
gicas"^.
Fechner, além da existência das coisas e da consciência
dos indivíduos, reconhece a existência objetiva das ditas "obje-
ções", idéias, e das "formações gerais", que não dependem do
homem nem de sua consciência, residem em diferentes esferas,

0. Fechner,  Das System der ontischen Kategorien, Dammtor-Verlag,


3 4

Hildesheim, 1961.
0. Fechner,  Das Syistem  cit., p. 5.
5 3

51
 

situadas fora da razão humana e são captadas pelo homem no


 pro ces so de seu pensamento ind ivi dual. As "objeções" (idéias
gerais), segundo Fechner, são universais, eternas e imutáveis,
transmitem-se de um sujeito empírico a outro e criam a apa-
rência da modificação dos pensamentos . Cada "objeçã o",
56

segundo Fechner, possui uma estrutura mental (formal) e obje-


tiva (materi al). A primeira manifesta-se nos pensamentos (for -
mações ger ais ); a segunda, nos objetos singulares. Cada objeto
singular, segundo ele, representa uma certa associação de "ob-
 jeções ", e é por isso, segundo Fech ne r, que, conhecer um
objeto particular é apontar sobre ele "objeções captadas" pelo
 pensamento empírico e compreendê-lo po r meio destas.
Partindo do fato de que os objetos singulares que consti-
tuem o mundo material são formados de "objeções" imutáveis,
segundo a teoria de Fechner, o mundo é imutável em sua base,
ele não possui desenvolvimento, existe eternamente em seu es-
tado uniforme e não contraditório. Apoiando -se nessas teses
metafísicas, Fechner critica Hegel, que apresenta o mundo em
um estado de contradição, condicionando suas mudanças e seu
desenvolvimento permane ntes. Ele escreve que a "afirmação
de Hegel, segundo a qual o processo mundial pode ser represen-
tado por meio do desenvolvimento dialético dos conceitos, flu-
tuantes e contraditórios, é errônea. Na verdade, as "objeções"
são sempre universais, constantes e formalmente livres de todas
as contradições" 7. 5

Esses princípios metafísicos e idealistas, em sua essência,


são colocados por Fechner à base de seu sistema de categorias.
Por categorias, Fechner compreende os "elementos estru-
turais ou as estruturas elementares de uma ou de várias esferas
de objetivos" . 58

A divisão das categorias em grupos particulares e, no


interior dos grupos, em subgrupos, é efetuada por Fechner se-
gundo os princípios da lógica formal; é por isso que todos esses
grupos, subgrupos e categorias particulares, no sistema que ele
 propõe, nã o se en co nt ra nd o em um a relação necessária, nã o
são deduzidos uns dos outros, mas simplesmente coexistem.
Fechner limita-se a fixá-los e a descrevê-los.

5 6
0. Fechner,  Das System  cit., p. S.
5 7
0. Fechner,  Das System  cit., p. 20.
5 8
0. Fechner,  Das System  cit., p. 37.

52
 

Archie J. Bahm dá uma classificação de categorias que


repousa igualmente sobre a lógica formal . Embo ra o princípio
fundamental da construção de seu sistema das categorias seja
a relação de contradição, ele não mostra sua interdependência
necessária, nem as passagens de uma a outra ou seu contrário.
As diferentes formas das contradições desempenham, para ele,
o papel de fundamento lógico e formal da divisão das catego-
rias em diferentes grupos. Em particular, Archie J. Bahm dis-
tingue nove tipos de relações contrárias, das quais examinamos
cinco:  one-pole-ism, other-pole-ism,  dualismo,  aspectism  que
se manifestam sob duas formas (extremas e modificadas) e o
organismo, como tipo centra l. No todo , ele distingue 26 pares
diferentes de contrários polares^.
Wolfgang Cramer construiu seu sistema de categorias no
espírito hegeliano. Ele faz seu sistema repous ar sobre o con-
ceito do absolut o. O absoluto é o pont o de parti da do movi-
mento do pensamento, indo de uma categoria a outra, que se
realiza por meio da autodetermi nação do absoluto. Como
unidade do imediato e do princípio de partida, o absoluto, se-
gundo Cramer, tende à mediatização e à determinação e mani-
festa-se como sujeito de todas essas determinações e mediatiza-
ções. No processo de auto dete rmin ação e de mediatiz ação, o
absoluto, para Cramer, descobre, um após o outro, os momen-
tos de seu conteúdo e engendra as categorias correspondentes.
 Na passagem de um a categ oria à outra, ele esforça-se para imi-
tar Hegel: entretanto, a riqueza das idéias incluídas no sistema
hegeliano de categorias não é encontrada nos esquemas que
ele propõeBO.
Bela von Brandenstein6l parte igualmente de Hegel para
construir seu sistema de categorias. Entretanto, à diferença de
Hegel, que toma o "ser puro" — nada idêntico — contraditó-
rio, por sua natureza e, portanto, sua mudança, como ponto de
 partida do movimento do pensamento pu ro de uma categoria a

59
Lewis E. Hahn,  Of shoes and ships and sealing-wax, and cabbages
and kings, The Journal of Philosophy , Lancaster, 55(2): 55-6, 1958.
60
Cf. W. Cramer, Aufgaben und Methoden einer Kategorienlehre.
Kant-Studien, in  Philosophische Zeitschrift,  1960/1961, t. 3, v. 52, p.
351-68.
"Bela von Brandestein,  Der Aufbau des Seins. System der Philo-
 sophie,  Tübingen, 1950.

53
 

outra, Brandenstein parte, por sua vez, da "realidade imutá-


vel" que, sendo eterna, impõe, por sua ação sobre alguma coisa,
as modificações correspondentes e, no decorrer dessas modifi-
cações, engendra as categorias correspondentes.
Fazendo um balanço do exame dos sistemas de categorias
apresentados pelos filósofos burgueses posteriores a Hegel, é
conveniente salientar que todos esses sistemas não constituem,
em relação a Hegel, uma contribuição nova à pesquisa e ao
estudo do problema da correlação das categorias, mas, na rea-
lidade, eles ficam aqué m do sistema de Hegel. E não é por
acaso que isso acontec e. Um desenvolvimento ulterior fru tíf e-
ro da teoria das categorias só seria possível no plano do mate-
rialismo, a partir dos princípios da dialética formulados por
Hegel. Em regra geral, os filósofos, dos quais nós já fala mos,
ignoravam, na elaboração de seus sistemas de categorias, tanto
o materialismo como a dialética e, exatamente por isso, eram
obrigados a repetir o que antes disseram Hegel, Kant e até
mesmo Aristótel es. No prese nte caso, Othm ar Spann tem tod a
razão quando escreve a respeito dos sistemas de categorias sur-
gidos depois de Hege l: "E m relaç ão a Hegel, todas as teorias
modernas sobre as categorias são um passo atrás, já que, em
vez de seguirem em profundidade os grandes pensamentos do
idealismo alemão, caem na barbárie do gênero empírico e me-
cânico . . . "62.
Os princípios da construção de um sistema de categorias
da dialética, apresentados por Hegel, foram objeto de uma
interpretação materialista, de um fundamento científico e de um
desenvolvimento unicamen te da filosofia marxista. A filosofia
marxista apresenta, pela primeira vez, uma solução científica
 pa ra o pr oblema da correlação das catego ria s. Aplicado à ciên-
cia econômica, esse problema foi analisado, sob todos os ân-
gulos, por Marx em seu  Le capital   e, aplicado à lógica dialé-
tica, ele foi analisado em  Cahiers philosophiques  de Lenin.

6 2
0. Spann, op. cit., p. 42.

54
 

2. DO PRIN CIPI O DE PART IDA


E DOS PRINCÍPIOS DE EDIFICAÇÃO
DO SISTEMA DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA

Uma boa solução para o problema da correlação das ca-


tegorias supõe, antes de tudo, uma escolha correta do princípio
de partida, das categorias das quais se parte para que permitam,
no processo de sua análise, que se efetue a passagem de uma
categoria a outra e por ela mesma, a colocação em evidência
das leis de sua relação recíproca e, por meio delas, as leis da
relação recíproca das ligações e das formas universais do ser
que elas refletem.
À primeira vista, pode parecer que a definição das catego-
rias de partida não é uma coisa muito difícil, já que o marxis-
mo determina que, no estudo de todo objeto, se comece pelo
aspecto ou pela relação fundamen tal e determinante. Entr e-
tanto , na realid ade, tudo isso não é assim tão simples. Por
exemplo, como fazer quando se tem a impressão de que os
aspectos ou as relações fundamentais e determinantes não são
apenas um, mas vários, e que eles são concernentes a diferentes
domínios? Com o estudo das categorias, podemos nos encon-
trar precisamente nessa situação.
Efetivamente, em toda filosofia, incluindo o materialismo
dialético, há uma questão fundamental — a questão da relação
do pensamento com o ser, cuja solução deixa sua impressão na
resolução de todos os outros problemas filosóficos e, em última
análise, determina o cará ter da Filosofia, sua essência. É por
isso que as categorias ligadas a essa questão e, em particular,
as categorias de matéria e consciência devem necessariamente
ser relacionadas com as categorias fundamentais e determinantes
e a análise deve começar por elas.
Mas, ao mesmo tempo, o materialismo dialético estuda os
aspectos e as relações universais da realidade objetiva. E esses
não são todos semelhantes. Há entre eles alguns que desempe-
nham um papel fundamental e determinante e outros que são
subord inado s e deter minad os. Os clássicos do materi alismo
dialético, e em particular Lenin, consideravam como relações
fundamentais e determinantes, na realidade objetiva, as rela-
ções recíprocas entre os aspectos opostos, isto é, a lei da unida-
de e da luta dos contr ários. Em conseqüência, as categorias

.55
 

que estão ligadas à lei da unidade e da luta dos contrários


devem igualmente ser relacionadas às categorias de partida,
 pelas quais é preciso começar a análise.
Sendo o reflexo dos aspectos, das ligações e das relações
universais reais, as categorias são, ao mesmo tempo, os produ-
tos da consciên cia, da atividade cognitiva dos home ns. No co-
nhecimento, há fatores fundamentais e determinantes que mar-
cam toda atividade cognitiva e, em particular, seus resultados:
são as categorias e sua correlação. Os funda dore s do marxismo
consideravam que a prática social é esse fator determinante do
conhecimento. Engels escreveu: "É precisamente a   transfor-
mação da natureza pelo homem, e não a própria natureza como
tal, que é o fundamento mais essencial e mais direto do pensa-
mento humano, e a inteligência do homem aumentou na medida
em que ele aprendeu a transformar a natureza" . Se é assim,
63

as categorias que refletem esse fator fundamental, determinante


do conhecimento, devem igualmente ser consideradas como ca-
tegorias de partida.
Assim, no exame das categorias chocamo-nos com três
fatores diferentes que são, cada um a sua maneira, fundamen-
tais e determinantes e que podem desempenhar o papel de prin-
cípios de par tid a. Como resolver a questã o de saber qual desses
é um fator de partida, determinante, no momento do exame das
categorias e quais categorias devem ser analisadas em primeiro
lugar?
Vejamos o que se produz se, na qualidade de ponto de
 partida, to ma mo s a questão fu nd amen ta l da Filosofia, começan-
do pela análise das categorias de "matéria" e de "consciência".
Partindo da solução do problema da relação do pensa-
mento com o ser, da consciência com a matéria, estabelecemos
que as categorias são os produtos da consciência, que elas se
formaram no processo de desenvolvimento do conhecimento,
que seu conteúdo é emprestado da realidade objetiva, que elas
são cópias, fotografias de certos aspectos e ligações do mundo
exterior. Incont estavelmen te, todos esses mome ntos colocados
em evidência são muito impor tantes. Sem eles, não pode mos
compreender a essência das categorias e, sem termos com-

F. Engels,  La Dialectique de la nature,  Paris, Editions Sociales,


63

1952, p. 233.

.56
 

 preendido sua essência, nã o podemos colocar em evidência sua


rela ção real, sua ligação recíproca necessária. Mas, mesmo
sendo importantes, os momentos discutidos não são suficientes,
não encerram os princípios, partindo dos quais poderíamos
estabelecer entre eles semelhante correlação.
O que aconteceria se, no momento do estudo da correlação
das categorias, apoiássemo-nos no fator essencial determinante
que se relaciona com a realidade objetiva, na lei da unidade
e da luta dos contrários? Como essa lei constitu i o centro da
dialética, ela permite-nos explicar a lei de sua correlação com
as outras leis fundamentais e categorias da dialética, assim como
a lei da ligação recíproca dos pares categoriais, pelo fato de
que sua relação representa a manifestação concreta da unidade
e da luta dos contrá rios. Mas essa lei, assim como a questão
fundamental da Filosofia, não permite que se determine plena-
ment e a corre lação e a interde pendên cia das categorias. Apli-
cand o essa lei, não podemos estabelecer a orde m a que as
categorias devem seguir.
Dirij amo-nos agora ao terceiro fator fundam ental deter-
minante que se encontra no domínio do conhecimento: a
 pr ática.
O conhecimento começa precisamente com a prática, que
funciona e se desenvolve com base na prática e se realiza pela
 prática. É precisamente com base na prática que se fo rm am
as categorias nas quais são refletidas e são fixadas as ligações
e as formas universais do ser.
Desenvolvendo-se com base na prática, o conhecimento
representa um processo histórico, no decorrer do qual o homem
 pene tra cada vez mais pr ofun da me nt e no mund o dos fenômenos.
 Nesse processo, as categorias aparecem em um a ordem det er-
minada cada uma delas em um estágio rigorosamente deter-
minado do desenvolvimento do conhecimento. Fixan do os
aspectos e as ligações universais colocadas em evidência pelo
conhecimento em um estágio dado do desenvolvimento, as ca-
tegorias refl etem as particul aridades desse estágio e são, de
certa maneira, graus e pontos de apoio para a elevação do
hom em acima da natureza, para o conhecim ento desta. Em
outros termos, as categorias, refletindo as ligações e os aspectos
universais do mundo exterior, são, ao mesmo tempo, graus do
desenvolvimento do conhecimento, momentos que fixam a pas-

.57
 

sagem do conhecimento de certos estágios do desenvolvimento


a outros.
A idéia, segundo a qual as categorias são graus, momentos
determinados ou pontos centrais do processo do conhecimento,
foi apresentada pela primeira vez, e com bastante precisão, por
Lenin. Ana lis and o a lógica de Hegel, na qual as categorias
são representadas sob a forma de graus, de momentos do de-
senvolvimento da idéia que existe eternamente fora da natureza
e antes da natureza, Lenin, em seus   Cahiers philosophiques,
salientou várias vezes que as categorias são graus, momentos
do conhe cimento. Exp ond o o conte údo da categori a de lei,
Lenin nota por exemplo, que "O conceito de lei é um dos graus
do conhecimen to, pelo homem, da  unidade  e da  ligação,  da
interdependência e da totalidade do processo   u n i v e r s a l " 6 4 .  So-
 bre as categ ori as de essência e de fenômeno, ele escreve que:
"O fundamental aqui é que o mundo dos fenômenos e o mundo
em si são  momentos  do conhecimento da natureza pelo homem,
graus,  modificações  ou aprofundamentos (do conhecimento)" . 65

A categoria de substância, escreve ele, ainda, é "um grau


essencial no processo de desenvolvimento do   conhecimento
humano  da natureza e da  matéria"66. E, par a concluir, ele
diz que: "Mome ntos do con hec ime nto ... da natureza para o
homem, eis o que são as categorias   l ó g i c a s ' ^ .
O aparecimento de toda nova categoria é necessariamente
condicionado pelo curso do desenvolvimento do conhecimento.
Ela aparece porque o conhecimento, penetrando sempre mais
 pr of un da me nt e o mu nd o dos fenômenos, colocou em evidência
novos aspectos e laços universais que não voltam mais para as
categorias existentes e que exigem, para exprimir-se, ser fixados
em novas categori as. Surgindo, toda nova categoria entra nas
relações e ligações necessárias, determinadas com as categorias
 já existentes e, assim, ocupa um lug ar particular, determinado
 pelo processo do con hecimento no conj unto do saber , no sistema
geral das categorias . E se nós dispomos as categorias, na
ordem em que elas apareceram no processo de desenvolvimento
do conhecimento, será fácil encontrar o lugar, o papel e a

64
V. Lenin, op. cit., p. 142.
M
Lenin, op. cit., p. 144.
G6
Lenin, op. cit., p. 149.
67
V. Lenin, op. cit., p. 188.

.58
 

importância de cada categoria, de sua relação e de sua corre-


lação . Da í a necessid ade do trat amen to dialético da história
do pensamento, da ciência e da técnica, assim como a do estudo
da história do pensamento, do ponto de vista do desenvolvi-
mento do sistema de categorias.
É conveniente destacar que é desse modo que Lenin for-
mulava a missão ulterior do estudo da dialética de Hegel e de
Marx. "Cont inuar a obra de Hegel e de Marx , deve consistir
no tratamento  dialético  da história do pensamento humano, da
ciência e das técnicas"68.
"Une histoire de la pensée du point de vue du dévelop-
 pement e de 1'aplication des concepts et catégories générau x
de la logique — voilà ce qu'il faut!" *.
69

Indicando que as categorias formaram-se em uma deter-


minada ordem, não devemos, entretanto, pensar que elas segui-
ram-se historicamente. Algumas dentre elas aparecera m ao
mesmo tempo, a um mesmo grau do conhecimen to. E ainda
mais, depois de seu aparecimento, elas não conservaram sua
forma original, mas transformaram-se, desenvolvendo-se em
decorrê ncia do desenvolv imento e da prát ica. Mas se for assim,
como classificar as categorias para que elas exprimam o movi-
mento do conhecimento de seus graus inferiores a seus graus
superiores?
De acordo com o método dialético, devemos considerar
cada momento do todo estudado "no ponto de desenvolvimento
de sua plen a mat urid ade, na sua purez a clássica'"70. Levand o
isso em conta, devemos ligar cada categoria ao grau de desen-
volvim ento do conhec imento no qual seu cont eúdo está mais
desenvolvido, no qual ela adquire uma forma clássica.
Considerando as categorias como graus do conhecimento,
isto é, na ordem em que elas apareceram com base no desen-
volvimento da prática social e do conhecimento do qual ela
depende, poderemos não apenas reproduzir na consciência,

68
Lenm, op. cit., p. 138-
69
Lenin, op. cit., p. 167.
* Texto em francês no original russo — "Uma história do pensa-
ment o, do ponto de vista do desenvolviment o e da aplicação dos
conceitos e categorias gerais da lógica, se faz necessária!".
70
K. Marx e F. Engels,  Oeuvres choisies en trois volumes,  Moscou,
Editions du Progrès, 1976, t. 1, p. 535.

.59
 

numa certa ordem, as leis e aspectos universais da natureza, da


sociedade e do pensamento humano, refletidos e fixados nas
categorias, mas igualmente reproduzir o desenvolvimento do
conhecimento, de seus estágios inferiores a seus graus superio-
res, isto é, apresentar sua história e sua teoria, assim como um
método de conhecimento — uma lógica que será aqui efetiva-
mente "uma teoria não das formas exteriores do pensamento,
mas das leis do desenvolvimento de 'todas as coisas materiais,
naturais e espirituais' ou seja, das leis de desenvolvimento de
todo o conteúdo concreto do mundo e do conhecimento deste,
isto é, apresentar o balanço, a soma, a conclusão da   história
do conhecimento do mundo"? . Nesse caso, par a designar a
1

lógica, a dialética e a teoria do conhecimento do materialismo,


é preciso apenas três palavras: "são a mesma   c o i s a " 7 2 .
Tomando como ponto de partida a prática e a tese sobrs
as categorias consideradas como graus do desenvolvimento do
conhecimento, realizamos aqui, fora da elaboração do sistema
de categorias e de leis do materialismo dialético, o princípio
de identidade da dialética, da lógica e da teoria do conheci-
mento.
Assim, as categorias de partida, na análise das categorias,
devem ser aquelas que refletem o fator fundamental e deter-
minante do desenvolvimento do conhecimento, isto é, as cate-
gorias da prática. Seguindo o desenvol vimento desse fat or
determinante (prática social), reproduzimos as categorias na
ordem em que elas apareceram no processo da evolução do
conhecimento e, assim, nós os apresentamos em sua correlação
e em sua interdependência naturais e necessárias.
Mas, tomando como ponto de partida, nesse estudo das
categorias, os fatores que se referem ao domínio do conheci-
mento, não podemos e também não devemos ignorar a impor-
tância primordia l da questão fundame ntal da Filosofia. Pelo
contrário, o estudo das categorias deve começar pela análise da
questão fundamental da Filosofia e, depois de haver determinado
a ordem da análise das categorias a partir da ordem de seu
aparecimento no processo de desenvolvimento do conhecimento,
devemos analisar cada uma delas à luz dessa questão, no plano

"V. Lenin, op. cit., p.  90.


"Lenin, op. cit., p. 304.

.60
 

de relação da matéri a e da consciência. Depois, seguindo as


categorias na ordem em que elas apareceram, em que elas se
formaram no decorrer do processo de desenvolvimento do co-
nhecimento, e colocando em evidência sua correlação e sua inter-
dependência que apareceram sobre essa base, não podemos
deixar de lado os laços (l igações ) que existem entre os aspectos
universais da realidade objetiva e que são refletidos nas cate-
gorias em sua interdependência. Pelo contrário, apresentando
o conteúdo dessa ou daquela categoria, devemos sempre ter
em vista esses aspectos e essas ligações reais, e devemos levá-los
em consideração e apoiar-nos sobre eles.
A decorrência do que acaba de ser dito é que o ponto de
 partida, no estudo das leis e das cat ego rias do mat eri alismo
dialético, devem ser as categorias de matéria, de consciência e
de práti ca. Os princípios diretivos da constr ução do sistema
devem ser: primeiramente, a concepção das categorias como
graus do desenvolvimento do conhecimento exprimindo a uni-
dade do histórico e do lógico e, em segundo lugar, o princípio
de identidade da dialética, da lógica e da teoria do conheci-
mento.

.61
 

III. MATÉRIA E CONSCIÊNCIA

Determinando o princípio de partida da construção do


sistema de categorias da dialética, dissemos que era preciso
empreender a análise a partir da revelação das leis de relacio-
namento entre a matéria e a consciência, visto que a descoberta
da natureza das categorias, de sua correlação e de sua interde-
 pendência só é possível levando em consideração essas leis. É
 po r isso que as pri meiras categorias do sistema serão, obrigato-
riamente, as categorias de matéria e de consciência.

1. A MAT ÉRI A

O conceito de matéria encontra-se em todos os sistemas


filosófico s, com as mais diversas acepções. Apes ar da varie-
dade de definições da matéria, dada pelos diferentes filósofos,
os idealistas têm em comum tanto a negação da existência da
matéria, como a negação de sua objetividade.
Berkeley, por exemplo, representante do idealismo subje-
tivo, declara claramente que não há matéria, que nós nunca
a vimos e que, se rejeitarmos o conceito de matéria, seu desa-
 parecimen to passará desap ercebido, porq ue nã o designa nada.
"Os senhores podem, escreveu ele dirigindo-se aos materialis-
tas, se fizerem muita questão, usar a palavra 'matéria', onde
outros empregam a palavra 'nada ' "1. A rejeição da matéria
não corre spond e apenas aó sistema filosóf ico de Berkeley,
que reduz o mundo a um conjunto de sensações, mas decorre

1
V. Lenin,  Oeuvres,  t. 14, p. 24.

.62
 

da maneira usada para defender o idealismo e a religião que


ele escolheu.
Outros representantes do idealismo subjetivo, embora não
cheguem a negar abertamente a existência da matéria, reduzem-
na, contudo, ou a um con jun to de sensações (Ma ch) ou à
 possibili dade permanente de sensações (Mill, Po in caré ) ou,
ainda, a uma concepção racional da experiência original dos
homens (Merleau-Ponty) etc.
Diferentemente dos idealistas subjetivos, os representantes
do idealismo objetivo, considerando que a matéria existe fora
e independentemente da consciência humana e de suas sensa-
ções, colocam, em última análise, sua existência sob a depen-
dência da consciência, do espírito. Na obra de Hegel, por
exemplo, a matéri a apar ece em decorrê ncia da atividad e da
"idéia absoluta" que, a um certo estágio de seu desenvolvimento,
engend ra a matéri a (seu "ser ou tr o") e começa a existir sob
a for ma de coisas materiai s. No sistema filosófico de Leibniz,
a matéri a ocupa uma posição simila r: à base do mundo en-
contram-se as mônadas, espécie de átomos espirituais que, para
defen der sua essência original, tom am a for ma de matér ia
inerte e grosseira e, por isso mesmo, isolam-se umas das outras.
É verdade que há idealistas que não colocam a existência
da matéria na dependência do espírito, considerando que ela
existe por si mesma. Mas, faze ndo isso, eles confer em-lhe uma
forma de existência (de ser), que é equivalente ao não-ser, isto
é, ela repres enta não o ser real, mas apenas o ser possível. A
transformação do ser possível em ser real depende da consciência
(da "idéia", de Deu s). No sistema idealista do filósofo Platão,
 por exemplo, a matéria ocupa exatamente esse lugar: ela existe
independentemente da consciência, do espírito, da idéia, mas sua
existência é apenas potencial; sob essa forma ela ainda é apenas
nada . E para que ela se torne realidade, uma idéia e uma
definição matemática devem ser-lhe acrescentadas, isto é, a
realidade da matéria é dada precisamente pelo espírito, pela
idéia.
Diferentemente dessas teorias idealistas conseqüentes da
matéria que acabamos de enumerar, e que não reconhecem sua
existência objetiva, os idealistas não conseqüentes, como Kant,
 por exempl o, admitem a existência real, obj etiva da matéria,
mas negam que ela possa ser conhecida, consideram-na como

.63
 

"uma coisa em si", transformando-a assim em uma "abstração


vazia, sem vida".
Entre os materialistas existem igualmente as concepções
mais diversas da maté ria. Mas todos concordam em reconhecer
a existência objetiva da matéria, uma existência independente
da consciência ou do espírito, sejam o que eles forem.
É sabido que os filósofos chineses, indus e babilónicos da
Antigüidade e os primeiros filósofos materialistas gregos con-
sideravam como matéria esse ou aquele corpo concreto sensível,
notadamente a substância mais expandida, que eles considera-
vam como o princ ípio primeiro de tudo o que existe. Par a
Thales, por exemplo, o papel da matéria era desempenhado
 pela água, pa ra Anáximenes, pel o ar, e pa ra Heráclito, pel o
fogo.
Tomando por matéria uma certa substância, esses filósofos
esforçavam-se para explicar, a partir dela, a diversidade das
coisas e dos fenômeno s observ ados no mund o. Mas nenhum
desses filósofos conseguiu mostrar de maneira mais ou menos
convincente como toda essa diversidade aparecia a partir de
uma única substâ ncia concre ta. Er a difícil de acredita r que
a quantidade de coisas diversas são a água, o ar ou o fogo em
seus aspectos cambiantes; é por isso que, em decorrência, os
filósofos tomaram como matéria não mais uma substância, mas
várias. Empédocles , por exemplo, já apresenta quatro substân-
cias: a água, o ar, o fogo e a terra. Ulter iormen te, essa quan -
tidade foi acrescentada ao infinito. Anaxágoras, por exemplo,
considera que há uma quantidade inumerável de "sementes de
coisas" (que desempenham o papel de matéria primitiva) como
 princ ípio primeiro. De mócrit o afirma a mesma coisa e apresenta
como matéria (princípio primeiro) a quantidade inumerável
dos átomos.
Os átomos e o conjunto de substâncias que eles formam
foram considerados como matéria até o fim do século XIX e
começo do XX . É precisamente essa a concepção da matér ia
que tinham os materialistas ingleses e franceses, assim como
Feuerbach.
A identificação da matéria com a substância desempenhou
um pape l impo rtan te no nascime nto da crise da ciência da
natureza, na junção dos séculos XIX e XX, quando foram
descobertos o elétron e a radioa tivid ade. Com a descoberta

.64
 

do elétron, percebeu-se que o átomo não é absolutamente o


último elemento do universo, mas que ele próprio é constituído
 por par tículas menore s — os elétrons. E ainda mais, fi cou
estabelecido qu e a massa do elétron varia, não per man ece
imutável como acreditava-se antes em relação à massa do átomo.
Viu-se, então, que essa massa aumenta ou diminui de acordo
com a aceler ação ou o reta rdam ento do movime nto. No co-
meço, pensou-se mesmo que o elétron não possuísse absoluta-
mente massa própria, que toda a sua massa fosse de origem
eletromagnét ica. Dess a maneira, a matéri a dava a impressão
de reduzir-se à eletricidade, logo, ao movimento. Fo i nesse
mesmo espírito que foi interpretada a radioatividade. A fissão
do urâni o (des cobe rto em 1894 por Becquerel) e depois, a
do  radium,  foram consideradas como a transformação da subs-
tância em energia pur a. De tudo isso, os idealistas tiraram
imediatamente conclusões contrárias ao materialismo. Eles
começaram a afirmar que a matéria havia desaparecido, que
ela fora substituída pela energia, pelo movimento, e que o ma-
terialismo era refutado por todas as últimas descobertas das
ciências etc.
"A eletricidade, escreveu Lenin, torna-se um auxiliar do
idealismo, já que ela destrói a antiga teoria da estrutura da
matéria, decompõe o átomo e descobre novas formas de mo-
vimento material, tão diferentes das antigas, tão inexploradas,
 pouco estudad as, po uco habit uais e tão 'maravilhosas' que
torna possível a introdução fraudulenta de uma interpretação
da natureza considerada como movimento  imaterial   (ou seja,
espiritual, ment al, psíquic o). O que, era ontem o limite de
nosso conhecimento das partículas infinitamente pequenas da
matéria desapareceu, logo, conclui o filósofo idealista, a matéria
desapareceu (mas o pensament o perman ece). Todo físico e
todo engenheiro sabe que a eletricidade é um movimento (ma-
terial), mas ninguém sabe exatamente   o que  se move; assim,
conclui o filósofo idealista, podemos enganar as pessoas des-
 providas de instrução fil osófica, fazendo-lhes esta pr op osta de
sedutora 'economia':  Imaginemos  o movimento  sem matéria"2.
Torna-se necessário generalizar as últimas descobertas
científicas, do ponto de vista do materialismo dialético, assim

2
V. Lenin, op. cit., p. 295.

.65
 

como defender o fun dame nto teórico do marxism o. E esse foi


o traba lho de Leni n. Em  Matérialisme et empiriocriticisme,
Lenin apres entou um a análise das últimas descober tas das
ciências e não apenas provou que elas não desmentiam o ma-
terialismo dialético, mas que, pelo contrário, elas confirmavam
a sua veracidade (sua exatid ão). Ele mostrou que o materia-
lismo dialético não reduz e jamais reduziu a matéria aos átomos,
nem a alguns outros elementos imutáveis, a nenhuma essência
imutável, mas sim que o materialis mo consider a o mun do
infinito em sua diversidade.
O reconhecimento de elementos imutáveis e absolutos do
mund o caracteriza apena s o materialism o metafís ico. É por
isso que a descoberta dos elétrons não desmente o materialismo
em geral e,  a fortiori,  o materialismo dialético, mas apenas o
materialismo metafí sico. "A física, escreve Lenin, desviou-se
 para o idealismo principalmente po rq ue os físicos ignoravam a
dialética. Eles combatera m o materialismo metafísico . . . com
sua 'mecanicidade' unilateral e fizeram isso de maneira pouco
apropriada. Negand o a imutabilidad e das propriedades e dos
elementos da matéria até então conhecidos, eles esbarraram na
negação da matéria, isto é, da realidade objetiva do mundo
físico" . 3

Religando o conceito da matéria ao da substância e ao


conj unto dos átomo s, os filó sofos e os físicos de tendê ncia
metafísica consideravam os estados e as propriedades especí-
ficas da substância como propriedades gerais e necessárias da
matéria. E é por isso que a evidenci ação, com a descober ta
do elétron e da radioatividade, da relatividade desses estados
foi percebida por eles como a da falência da teoria da matéria,
como a do desaparecime nto da matér ia. De fato , o que desa-
 par ecia nã o era a ma téria, ma s o limite de nosso s con hecim ent os
sobre a matér ia. "A maté ria desaparece, escreve Lenin, isso
quer dizer que desaparece o limite até o qual vai nosso conhe-
cimento da matéria, conhecime nto que agora se aprof unda;
 propriedades da ma té ri a qu e antes nos pareciam abs olu tas,
imutáveis, primordiais (impenetrabilidade, inércia, massa etc.)
desaparecem, reconhecidas agora como relativas, inerentes
apenas a certos estados da matéria" . 4

3
Lenin, op. cit., p. 272.
4
Lenin, op. cit., p. 363.

.66
 

Tudo isso, é óbvio, teste munha o caráter relati vo de


nossos conhecimentos sobre a estrutura da matéria, mas, em
nenhum caso, anula a concepção marxista da matéria como
realidade objetiva, existente fora e independentemente da
consciência humana, que engloba todas as formações materiais:
as que já são conhecidas e as que ainda são desconhecidas pe'a
ciência.
Os pesquisadores que se ocupam do desaparecimento da
matéria a partir das descobertas da Física, das quais já falamos,
e os seguidores de Mac h qu e f alam do envelhecimento do
conceito de matéria, especulando sobre essas descobertas, ma-
nifestadamente confundiram a categoria da matéria com a teoria
sobre a estrutura da matéria.
Lenin, mostrando que é errado identificar a matéria com
suas formas ou aspectos concretos, prova que o materialismo
dialético reúne novamente o conceito de matéria à realidade
objetiva e ao mun do exterior, que existe independenteme nte
da consciência humana e que, segundo o materialismo dialético,
tudo o que é realidade objetiva, tudo o que tem relação com
o mun do exterior refer e-se à matéri a. É por isso que, para
resolver a questão de saber se o elétron ou qualquer outro
fenômeno recentemente descoberto relacionam-se à matéria, é
 precis o estabe lecer se se tr ata ou nã o de um a realidade objetiva.
A dependência de um fenômeno dado à realidade objetiva é a
 prov a de sua depend ência à matéria.
Criticando os físicos e os filósofos que não negam a exis-
tência da matéria, mas estão inclinados a concluir a impossi-
 bilidade de conhecê-la, visto o car áter rel ativo de nossos
conhecimentos, Lenin salientou que a matéria não é incognos-
cível não é uma "coisa em si", como diziam os agnósticos, mas
que podemos conhecê-la, que ela é dada ao homem em suas
sensações, que ela é copi ada, fotogr afa da pelos sentidos. Est a
última tese, embora tenha sido reconhecida pelos materialistas
 pré -marx istas , nã o fo i apresentada como fa tor nec ess ári o para
desvendar o conteúdo do conceito de matéria e é por isso que
ela não figurava nas definições da matéria dadas pelos ma-
terialistas.
Generalizando as descobertas indicadas e desenvolvendo a
teoria marxista da matéria, Lenin deu uma definição clássica
da matéria: "A matéria é uma categoria filosófica que serve
 pa ra designar a realidade obj etiva dada ao homem po r meio

.67
 

de suas sensações, que a copiam, a fotografam, a refletem e


que existe independentemente das sensações" . 5

É conveniente considerar esta definição como clássica,


 porq ue ela opõe a concepção marxi sta da matéria às concepções
exprimidas pelos representantes das diferentes correntes e esco-
las idealista s e metafísicas. Na realidade, a tese segundo a
qual a matéria representa uma realidade, distingue a concspção
marxista da matéria da concepção de Platão e da de Aristó-
teles, entre outras que consideravam que a matéria não possui
existência real, mas apenas uma existência possível, qus ela
não repr esen ta um ser real, mas apenas um não- ser. O relevo
dado ao fato de que a matéria é uma realidade objetiva, exis-
tente fora e independentemente da consciência, distingue a idéia
marxis ta da maté ria das concepções idealistas. Em seguida,
a tese segundo a qual a matéria não é uma realidade objetiva
concreta qualquer, mas uma realidade objetiva em geral, distin-
gue a concepção marxista da matéria, da concepção que tinham
sobre ela os materialistas da Grécia antiga que identifica-
vam a matéria com qualquer fenômeno qualitativamente de-
terminado (a água, o ar, o fogo), ou ainda com um grupo de
fenômenos (p. ex., a terra, a água, o ar e o fogo); esta tese
distingue-a ainda da tese que tinha o materialismo mecânico
 pré-marxista qu e ident ificava a matéria com a subst ância.
Enfim, a idéia segundo a qual a matéria é uma realidade
objetiva, dada ao homem por suas sensações, diferencia a
concepção marxista da matéria da concepção que têm sobre
isso alguns agnósticos e, em particular, Kant, que reconhecia
a existência da matéria, mas considerava que ela é inacessível
aos nossos órgãos sensitivos, que é uma "coisa em si" incognos-
cível.
 Não é difícil perceber que a def inição len ini sta da matéria
é dirigida contra os idealistas, os metafísicos e os agnósticos, e
ainda que ela visa exprimir o que distingue fundamentalmente
a concepção materialista dialética desta questão em relação à
concepção que têm sobre ela os representantes das outras ten-
dências filosóficas.
Ent ret ant o, alguns autores não levam isso em conta e,
interpretando livremente a definição leninista da matéria, des-
virtu am seu significado. Segundo eles, "o relevo dado ao fato

5
V. Lenin, op. cit., p. 169

.68
 

de que a única propriedade da matéria é a propriedade de ser


uma realidade objetiva, que nos é dada em nossas sensações,
ocupou o primeiro plano na obra de Lenin,   Materialisme et em-
 piriocriticisme,  em razão da luta contra um adversário concreto
 — o idealism o subjeti vo". "A limit açã o da def ini ção da ma-
téria por essa tese, declaram eles, desarma-nos na luta contra
um outro adversário e, em particular, contra as diferentes formas
do idealismo objeti vo". È por isso que eles consi deram a
definição mencionada acima insuficiente . 6

Em nossa opinião, esses raciocíni os são falsos. Eles


 part em do fa to de que, ao lado da consciência hu ma na, existe
ainda uma consciência não humana, uma consciência em geral.
E, por isso, indica r que a matéri a repre senta uma reali dade
objetiva, existente fora e independentemente da consciência
humana, não nos separa, segundo eles, do idealismo objetivo
que pode igualmente considerar a matéria como uma realidade
objetiva existente fora e independentemente da nossa consciên-
cia, mas que se encontra em uma certa dependência da consciên-
cia não humana, da consciência em geral (da idéia absoluta,
da razão suprema, da vontade universal, de Deus etc.).
Mas não há outras consciências além da consciência hu-
man a. A consciência universal apresen tada pelos idealistas
objetivos representa a mesma consciência humana, mas sepa-
rada do homem e erigida em absoluta.
Uma outra tendência errônea, em nossa opinião, nasceu
da tentativa de certos autores considerar como matéria não o
mundo objetivo sensível exterior existente independentemente
da consciência humana, não a realidade objetiva, mas certas
 propri edades desse mund o, dessa realidade , como, po r exe mplo,
o espaço, o tempo , o movimen to. Est e último ponto de vista
é compartilhado por Hanz Klotz, Giinther Hõpfner e outros.
"A energia, por exemplo, escreve Klotz, é, no sentido
filosófico, a matéria" . "A matéria, declara Jantsch, é tudo
7

o que existe fora da consciência, e deste tudo fazem parte


também todas as relações, propriedades, aspectos e mudanças
(en erg ia) , assim como a substância, o campo etc.". "Seria

6
C f.  Mysl Filozoficzna,  (1 6) 1955, 2.
"H. Klotz,  "Ist die Energie Materie? Bemerkungen zu einem alten
 Problem'   in  Deutsche Zeitschrift für Philosophie,  1959, v. 2, p. 307.

.69
 

 possível, no mais alto grau, po demos ler em Hõ pf ne r, dizer


sobre o sujeito do material que, em relação à consciência, ele
é a matéria" . "O espaço e o temp o, nos quais se movem
8

as formas e os fenômenos quantitativa e qualitativamente di-


versificados da matéria, representam a matéria" . 9

Esses autores justificam seu ponto de vista, mediante o


seguinte raciocínio: a matéria representa uma realidade objetiva.
Todas as propriedades da matéria, com exceção da consciência,
existem objetivamente, isto é, em relação à consciência elas
representam a matéria.
A tese segundo a qual a existência objetiva, independente
da consciência humana, e suficiente para definir a matéria é
correta . Mas os autores em questã o utili zam-na em um plano
em que ela não é aplicável, e disso eles tiram falsas conclusões.
De fato, o marxismo concebe por matéria, enquanto reali-
dade objetiva existente independentemente da consciência e re-
fletindo-se nela, o mundo exterior, a realidade objetiva, na qua-
lidade do todo, como o conjunto de todas as formas do ser
objetivo, com todas suas propriedades características, com todas
as relações que lhe são própr ias. O obj eto a partir do qual
é abstraído o conceito de matéria é toda a realidade objetiva,
todo o mundo exterior, toda a realidade que rodeia o homem,
isto é, o mundo em sua total idade. Mas, a tese aplicada ao
objeto considerado como um todo, não é, em regra geral, apli-
cável aos diferentes aspectos, propriedades e relações desse
objeto. Por exemplo, o conceito de "átom o" só pode ser-lhe
aplicado como a um todo, mas ele é inaplicável às propriedades
 particulare s, às partes e às relações que constituem o átomo.
 Nã o po demos, por exe mplo, chamar de át omo o peso que
caracteriza um átomo dado, os elétrons que entram em seu
invólucro, o núcleo, a carga do núcleo e tc. . . Todos esses
momentos do átomo têm sua própria designaç ão e outros
conceitos correspondentes, elaborados especialmente para eles.
Sua ligação com o átomo, sua dependência do átomo exprimem-
se pelo conceito "atômico", que é utilizado em sua característica.
Usamos freqüentemente expressões como "peso atômico"

G. Höpfner,  Uber den Materiebegriff des dialektischen Materia-


8

lismus,  in  Deutsche Zeitschrift für Philosophie,  1958, v, 3, p. 455.


G. Höpfner, op. cit., p. 457.
9

.70
 

"núcleo atômico", "carga atômica", "invólucro eletrônico do


átomo" etc.
E o mesmo acontece com a categoria de "mat éria ". Ela
é aplicável à realidade objetiva enquanto tudo, mas ela é ina-
 plicáv el às sua s diversas propriedades e relações. To da s essas
 propriedades e todas essas rel açõ es, pelo fa to de que são pro-
 priedades e relações da reali dad e objet iva, refletem-se no con-
ceito de matér ia, mas não o constituem. Nós as chamamos de
materiais, e isso é amplamente suficiente para salientar sua
existência objetiva independente da consciência humana.
Esforçando-se para demonstrar, por todos os meios, que
o movimento, o espaço, o tempo e outras propriedades da
matéria constituem a matéria, certos autores chegam a afirmar
a existência de duas matérias. E são, entã o, obrigados a dis-
tinguir, por um lado, a matéria concebida no plano da questão
fundamental da Filosofia e, por outro lado, a matéria que não
está ligada a essa questão. A prime ira é, par a eles, toda
 pr op ried ad e obj etiva e rea l da matéria — o espaço, o tempo,
a energia etc.; a segunda distingue-se dessas propri edades.
"Fora da ligação com a questão fundamental (na qual a ma-
téria é tudo o que possui a propriedade de existência objetiva
real — A. Ch.), quando do estudo da estrutura da realidade
objetiva, escreve Hans Klotz, a matéria não é idêntica às suas
 propriedades, o que é ób vi o" ". 1

O resultado disso, no plano da questão fundamental da


Filosofia, é que devemos utilizar um conceito dado da matéria
nesse pla no e, fo ra dele, um outro conceito. Uma tal afirma-
ção não pode ser reconhecida como justa, porque ela vai de
encontro ao princípio da unidade da gnoseologia e da ontologia
no materialismo dialético, e, ainda mais, ela contradiz as regras
elementares da lógica formal e, em particular, a lei de identidade
que exige uma definição unívoca e uma deter minaç ão dos
conceitos.
Alguns autores, que estão de acordo com o pensamento de
que não podemos identificar as diferentes propriedades da ma-
téria à matéria enquanto todo, opõem-se a que, na definição
da matéria, seja indicada sua diferença com relação às suas
 propriedades. Eles con sid era m que dessa maneira é possível

10
H. Klotz, op. cit, p. 308.

.71
 

confundir a questão de saber, que representa a matéria, com


a questão de sua estrutura e de seus modos de existência.
A definição do que representa a matéria, segundo eles, supõe
unicamente a indicação relativa à sua existência, fora da cons-
ciência .
11

A referência ao fato de que a matéria existe fora da


consciência do homem mostra incontestavelmente o que repre-
senta a matéria, mas apenas o que ela representa com relação
à consciência. Mas sua rel açã o com a consciência só pode
existir quando a consciência existe e esta não é eterna, ela
aparece somente em condições muito precisas e existe apenas
enqu anto são reunid as essas condições favoráveis. A matéria*
 po r sua vez, existe eternamente. El a existe antes do aparec i-
mento da consciência, existe em sua presença e existirá depois
de seu desaparecimento, se isto acontecer.
É por isso que, quando definimos a matéria, não temos o
direito de limitar-nos ao estabelecimento de sua relação com a
consciência. Indi cando sua relaç ão com a consciência, devemos
igualmente salientar os traços que a caracterizam enquanto tal,
for a da consciência. A dife renci ação da matéria dessa ou
daquela de suas propriedades é precisamente a característica
que permite o esclarecimento do que representa a matéria, fora
da consciência, nela mesma.
As discussões relativas ao fato de que. a referência a esta
característica leva a uma confusão entre a definição da matéria
com a definição dos modos de sua existência, ou de sua estru-
tura, são artificiais. Da ndo relevo à difer ença entre a matéria
e suas propriedades, chegamos não ao conceito de estrutura,
nem ao conceito de modo ou de forma de existência da ma-
téria, mas ao conceito de matéria, ao que ela representa.
Aqui é igualmente conveniente notar que, a divisão das
características da matéria em três grupos (características da
matéria, características dos modos de sua existência, caracterís-
ticas de sua estru tura), é absolutamente relativa. O que ca-
racteriza os modos da existência e da estrutura da matéria
caracteriza, igualmente, de uma maneira ou de outra, a própria
matéria. E, exatamente por isso, não seria natural colocar

"Cf. R. Rochhausen,  Gegen eine Erweiterung oder Einengung des


 Leninischen Materiebegriffts,  in  Deutsche Zeitschrift für Philosophie,
1959,  v. 2, p. 298.

.72
 

obstáculos a que, na definição do conceito de matéria, recorra-se


a certas características gerais concernentes às estruturas ou aos
modos de existência da matér ia. E, ainda mais, se levarmos
em conta, nesse plan o, a princi pal pro prie dad e da matér ia (ser
uma realidad e objetiva , existir for a e indep enden temen te da
consciência humana), que os autores desse ponto de vista con-
sideram como sua única propriedade, opondo-a a todas as
outras propriedades, que eles relacionam com os modos de
existência ou de estrutura da matéria, não é difícil notar que
ela não é nada mais do que um modo de existência da matéria.
Isso testemunha mais uma vez o caráter artificial da divisão
das propriedades da matéria em seus modos de existência e em
sua estrutura, que a caracterizam.
Se falamos das propriedades da realidade objetiva que
temos o direito de utilizar para descobrir o conteúdo do conceito
da matéria, e daquelas que não podemos utilizar, então será
necessário, antes de tudo, dividir todas as propri edade s da
matéri a em universais e parti culare s. As propr iedad es univer-
sais entram no conteúdo do conceito de matéria, queiramos ou
não. No que concerne às propriedade s particulares, caracte-
rísticas de um aspecto dado ou de uma forma concreta da
existência da matéria ou de seus diferentes estados, elas não
entram necessariamente no conteúdo do conceito de matéria e
é por isso que elas não devem ser utilizadas em sua definição.

2. MATÉRIA
E FORMAÇÃO MATERIAL.
ASPECTOS DA MATÉRIA

Sendo uma realidade objetiva, a matéria existe não sob


o aspecto de uma massa homogênea, mas representa um todo
desmembrado, do qual todas as partes, encontrando-se em
correlação universal, estão em um certo isolamento e, em
decorrência disso, manifestam-se como formações materiais
autôno mas. Às formaçõe s materiai s estão ligados conceitos
como o "corpo", a "coisa", o "fenômeno" (no sentido de coisa).
Cada formação material representa, assim, uma parte da
matéri a, um de seus elos. Juntas, elas constituem a matéria.
Sendo os elos de uma mesma matéria, as diferentes for-
mações materiais (coisas, corpos, fen ômen os) possuem toda

.73
 

uma série de propriedades comuns que entram no conteúdo


do conceito de matéria e é preciso notar que elas existem obje-
tivamente, fora e independentemente da consciência humana,
 possue m caracterí sticas espaciais e temporais ,es tão em movi-
mento, têm seus próprios aspectos e ligações necessárias e
contingentes, singulares e gerais, possíveis e reais, incluem a
causalidade, a contradição e possuem todas uin conteúdo e uma
forma, uma essência e um fenômeno etc.
Mas, ao lado das propriedades e ligações universais pró-
 prias de cada fo rm aç ão mat erial particular, o conce ito de
matéria inclui em si propriedades e ligações, que são caracterís-
ticas não de cada formação material particular, mas apenas de
todo seu conjun to, isto é, do mun do em sua tota lida de. Esses
traços são, por exemplo, a eternidade da existência, a infinidade
espacial.
Cada for maçã o material particular não é eterna. Sua
existência tem um começo e um fim. Ela aparece , existe um
certo tempo e depois desaparece, transforma-se em uma outra
formação material. Nenhu ma forma ção material é ilimitada,
mas, pelo contrário, ocupa um lugar determinado e limitado
no espaço. É apenas o mun do em sua totalid ade que é eterno
e infinito.
A decorrência disso é que o conceito de matéria, no sentido
estrito do termo, é inaplicável às formações materiais parti-
culares (corpos, coisas, fen ômen os). Seu objeto é apenas o
mundo em seu todo , o con jun to das form açõe s materiai s. (O
 ponto de vis ta segundo o qual o conceito de matéri a é aplicável
a cada formação material, corpo, fenômeno e coisas é, entre-
tanto, amplamente difundido.).
Isso decor re necess ariame nte das leis da corre lação do
todo e da parte. De fato, cada formaç ão material particular
é uma par te da mat éria. Mas nem tudo o que é própr io ao
todo é próp rio a cada uma de suas parte s. Por isso, o conceito
de todo não pode ser idêntico ao conceito de uma parte dada
desse todo.
As formações materiais por meio das quais, a cada mo-
mento dado, existe e manifes ta-se a matéria estão organica -
mente ligadas entre elas e formam toda uma "série de grandes
grupos bem delimitados" , que representam certos pontos
12

12
F. Engels,  La dialectique de la nature,  p. 276.

.74
 

centrais, graus do movimento da matéria do inferior ao superior


e constituem formas particulares desta.
Logo, o aspecto da matéria é apenas o conjunto das for-
mações materiais representando, cada uma delas, um certo grau
de seu desenvolvimento.
A questão dos aspectos da matéria continua sendo até
agora uma que stã o contr overt ida. Alguns opõem-s e à divisão
da matéria em diferentes aspectos; outros consideram que esta
divisão é necessária e discutem entre si sobre o número de
seus aspectos e sobre as formas de existência da matéria que
devem ser cons ider ados como seus aspectos. A divisão da
matéria em dois aspectos — substância e campo — é bastante
difundida. Entr etan to, esse ponto de vista não nos parece
fund ament ado. Não se pode reduzir a matéria somente à
substância, mas igualmente a dois aspectos como a substân-
cia e o camp o. Prim eira ment e, isso decorre da d escob erta
do fato de q ue to da um a série de partí culas que relacio-
namos anteriorm ente à substância (como p. ex., os mésons,
os elétrons, os pósitro ns) relaciona m-se igual mente com o
domínio do campo, já que elas formam os campos correspon-
dentes, e as partículas que relacionamos anteriormente, unica-
mente com o campo (como, p. ex., os fótons e os gravitons),
entra m na composiç ão da substância. Logo, não há uma
diferenc iação rigoros a entre a substância e o camp o. Há tod a
uma série de forma çõe s materiais que inclui nelas uma e
outra, isto é, elas relacionam-se simultaneamente com a subs'-
tància e o camp o. Em segundo lugar, a própr ia substância não
 pode desempenhar o papel de um aspecto da matéria, po rq ue
ela integra nela formações materiais que representam graus os
mais diversos do desenvolvimen to da matéria. A divisão da
matéria em dois grandes aspectos — a substância e o campo
 — é muito ru di me nt ar e inexata. O po nto de vista de que
existem não dois, mas uma grande quantidade de aspectos da
matéria, parece-nos mais correto.
Visto que o aspecto da matéria representa o conjunto de
formações materiais que constituem um nó qualitativo deter-
minado da matéria,, correspondente a um grau preciso de sua
evolução, as particularidades características da formação ma-
terial enquanto forma particular da existência da matéria são
igualmen te próp rias ao aspecto da matéria. O aspecto da ma-

75

Savério ^mko
.: ^ .
•Sposito
 

téria representa uma realidade independente e possui a facul-


dade de transformar-se em outros aspectos da matéria.

3. DA SUBSTANCI ALIDADE
DA MATÉRIA

Se o problema da distinção da matéria, das formações


materiais (corpos, coisas, fenômenos) e das propriedades for
desenvolvido, conduzirá à necessidade de considerar a matéria
como substância. Na qualidade de substância a matéria opõe-se
não à consciência, mas às suas manifestações, entre as quais
figura tamb ém a consciência. Enqu anto substância, a matéria
é a base do tod o sendo. Todo s os fenô menos observado s no
mundo não representam nada mais do que as diferentes mani-
festações de uma natureza material única, as diferentes formas
de sua existência, seus diferentes estados e propr iedad es. Nesse
 pl an o, a consciência sen do um a fu nç ão , uma prop ried ade de
uma das formas da matéria — o cérebro — não se opõe às
outras propriedades, mas constitui com elas uma mesma série.
Como as outras propriedades da matéria, ela possui sua causa
final, fonte de sua existência na matéria, seja qual for a forma
de' organ izaçã o desta últim a ou seu esta do etc. É aqui que
aparece de maneira particularmente clara a relatividade da
oposição da matéria e da consciência da qual falou Lenin em
 Materialisme e emp¿riocriticisme 3. 1

Analisando a matéria como uma substância manifestando-


se por meio da multiplicidade das formaçõ es materiais, dos
fenômenos e das propriedades que existem no mundo, é preciso
acreditar que esta substância representa alguma coisa de
imutável e de absolu to. O reconh ecime nto de uma substância
absoluta e imutável caracteriza unicamente o materialismo
metaf ísico . O materiali smo dialético não recon hece, por sua
vez, nenh uma substância absoluta. A substancialidade da ma-
téria, do ponto de vista do materialismo dialético, consiste no
fato de que, modificando-se continuamente e passando de um
estado qualitativo a outro, ela permanece sempre a mesma.
Isso traduz-se, primeiramente, pelo fato de que ela conserva
sua quantidade, e, em segundo lugar, ela não perde nenhum

13
V. Lenin, op. cit., p. 152-255.

.76
 

de seus atributos ou de suas propr iedad es. Se essa ou aquela


 pr opri ed ad e desaparece em um cer to po nt o em certa s fo rma-
ções materiais, ela reaparecerá necessariamente em outro lugar,
em outras formações materiais . Em tercei ro lugar, cada
14

formação material (fenômeno) contém em potencialidade (em


sua natureza), todas as propriedades da matéria, todos os seus
atributos, pelo fato de que ela pode, em condições correspon-
dentes, transformar-se em uma outra formação material (fenô-
me no ). Por exemplo, segundo dados da ciência moderna,
cada elemento químico, em certas condições, pode transformar-
se em um outro elemento químico, cada partícula "elementar"
em uma outra partícula "elementar", uma substância em campo,
um campo em substância etc.
Se a substancialidade da matéria consiste no fato de que
ela jamais perde seus atributos e suas propriedades e de que
cada um a de suas formações (fen ômeno ) encerra nela mesma
 potencialmente essas mesmas propriedades é, então, absoluta -
mente evidente que não podemos dizer quem, entre a matéria
(substância) e as suas propriedades, é o primeiro, já que a
matéria fora de suas propriedades e relações e antes delas
nunc a existiu. El a existe apenas mediante as form açõe s mate-
riais particulares, passando uma pela outra e qualitativamente
são determinadas e possuem propriedade universais e particula-
res. A única questão que podemos leva ntar aqui é a de saber
quais são as formações materiais, os estados qualitativos, as
 propri edades e as rel açõ es que, na cadei a ger al das correlações
e das passagens recíprocas, são as primeiras ou determinantes
em relação às outras (formações materiais, estados qualitativos,
 propriedades, re la çõ es). O que é primeiro ou sec und ário
concerne, assim, não às relações da matéria com suas proprie-
dades e correlações, mas às relações existentes entre as dife-
rentes formas materiais (formações), as diferentes propriedades,
as diferentes ligações, os estados qualitativos.

14
F. Engels escreveu sobre isso que: "A matéri a permanece eter-
namente a mesma... nenhum de seus atributos pode jamais perder-se
e . . . em conseqüência disso, se ela tiver um dia de exterminar, c om uma
necessidade imperiosa, sua floração suprema, o espírito pensante, é
 prec is o co m a me sm a nece ssidade que em ou tr a pa rt e qu al qu er e em
outra hora ela o reproduza" op. cit., p. 46.

.77
 

4. O REF LEX O

Segundo o materialismo dialético, a consciência não é uma


 prop ried ade universal da matéria, ela é própria apenas a certas
formas altamente organizadas de sua existência e aparece
somente em um certo estágio de seu desenvolvimento. Entre-
tanto, a consciência representa não uma manifestação contin-
gente da matéria, mas o resultado necessário de seu desenvol-
vimento progressivo, a forma superior da faculdade que lhe
é eternamen te própria — o reflexo . A consciência é uma das
formas do reflexo própria a toda a matéria, a todas as coisas e
fenômenos do mundo exterior  . 15

O reflexo representa a faculdade de uma formação material


reagir de uma maneira determinada, sob a influência de uma
outra formação material, e, através das modificações correspon-
dentes de certas propriedades ou estados, a faculdade de repre-
sentar ou de reproduzir as particularidades desta outra formação
material.
Partindo do fato de que, sobre cada formação material
existente na realidade objetiva, age não apenas uma formação
material qualquer, mas uma quantidade infinita de formações
materiais, que lhe estão ligadas de uma maneira ou de outra,
ela reproduz em si, em suas particularidades, em suas proprie-
dades e suas modificações , as particula rida des de t odas as
formações materiais que agem sobre ela . 16

Ref let ind o em suas modificações os objet os agentes, a


formação material não é passiva, mas ativa; ela própria age
sobre as formações materiais que lhe estão ligadas, provocando
nelas modificações que reproduzem suas próprias particulari-
dades sob essa ou aquela forma condicionada pela natureza da
formação material correspondente dada.

"A presença do reflexo como propriedade universal da matéria,


1 5

escreve sobre isso o psicólogo soviético S. Rubinstein, significa que a


sensação e os fenômenos psíquicos têm sua base e suas premissas no
mund o mat eria l. Eles não são absolu tament e estra nhos em relaç ão a
tudo o que existe; eles não devem ser, por essa mesma razão, introduzidos
do exterior; no próp rio fun dam ent o do mund o mate rial , existem as
 prem is sa s pa ra seu de se nvol vi me nt o na tu ra l; eles re pr es en ta m um a
forma específica superior da manifestação das propriedades, que toda
natureza possui sob formas elementares qualitativamente diferentes" (S.
L. Rubinstein,  Ser e consciência,  Moscou, 1957, p. 12. Original em russo).
Cf. S. L. Rubinstein, op. cit., p. 11.
16

.78
 

Assim, o reflexo está ligado não apenas à ação de uma


formação material sobre a outra, mas também à sua interação,
em decorrência da qual cada formação material particular é.
ao mesmo tempo, refletora e refletida. Ela reproduz sob uma
forma específica as particularidades dos objetos e dos fenô-
menos que agem sobre ela e reproduz-se ela própria nas par-
ticularidades correspondentes desses objetos e desses fenômenos.
Pelo fato de que todas as modificações surgidas na forma-
ção material, sob a ação de outras formações materiais, são
resultado de uma ação não unilateral, mas bilateral, isto é, de
uma interação, as particularidades não somente dos corpos que
agem (os refletidos), mas igualmente dos corpos sobre os quais
essas ações são conduzidas, isto é, os refletores, são represen-
tadas nessas modifi cações. É por isso que não é todo o con-
teúdo das modificações, surgidas na formação material em
decorrência da ação de outras formações materiais sobre ela,
que representa o reflexo destas últimas, mas somente o que é
isom orfo a esse ou àquele aspecto dos objet os que agem. É
verdade que esses aspectos são organicamente construídos com
outros aspectos de modificações que não são representantes das
modificações materiais agentes e não podem ser inteiramente
separados destes últimos a não ser pela abstração.
Essa idéia é expressa com precisão pelo filósofo soviético
V. Tioukhtine: "As modificações ou as marcas no objeto re-
fletido representam um produto total, integral, como resultado
da inte raçã o dos objeto s. Em outros termos, as características
dos objetos agentes são adicionadas segundo a lei de sua inte-
ração, embora nas modificações do corpo refletor sejam cifradas
ou codif icada s as propr iedad es do agente, do refletor. O qu?
se segue é que essas modificações não podem ser ainda captadas
 pelo reflexo em seu sentido exato. O reflexo pr op ri am en te dito
realiza-se quando o que caracteriza a fonte do reflexo é desli-
gado da marca, do produto total da ação e o que pertence ao
suporte do reflexo é "anulado", "eliminado" . 1, 7

A parti r disso, certos autores negam compl etame nte a


 possi bil idade do reflexo dos objetos agentes nas modificações
sobrevindas da formação material em decorrência de sua inte-

17
V. S. Tioukhtine,  Sobre a natureza da imagem,   Moscou, 1963,
 p. 112. Ori ginal em russo.

.79
 

raç ão com eles. O reflexo, segundo eles, só pod e estar ligado


a modificações que aparecem em decorrência de ações orien-
tadas unilateralmente do refletido sobre o refletor.
Esse pon to de vista, em nossa opinião, é errôneo. Na
realidade objetiva, não há ações puras, orientadas unilateral-
ment e. Cada ação está necessa riament e ligada a uma reação .
Cada formação material representa um sistema de movimento
relativamente estável, é ativa por sua natureza e, por isso, ela
é não apenas um objeto submetido à ação de outras formações
materiais que lhe estão ligadas, mas é igualmente ela própria
um agente sobre estas últimas.
Assim, não é uma ação orientada unilateralmente, mas a
interação que é a ligação geral, universal das coisas e das for-
maçõ es mat eriais. E se a inte raçã o exclui o reflexo, isso
significa que este não pode existir na realidade objetiva, isto é,
que o reflexo é uma ficção.
Os defensores desse ponto de vista referem-se habitual-
mente a Lenin, que escreveu que o reflexo é segundo em
relação ao refletido, que ele não pode existir sem o refletido,
enquanto o refletido existe independentemente do refletores.
Visto isso, temos de raciocinar da seguinte maneira: a interação
exclui todo primeiro absoluto e todo segundo absoluto, pelo
fat o de que ela é um processo bilater al. O refle xo é segundo
em relação ao refletido, o que significa que no ponto onde há
interação, não pode haver reflexo.
Contudo, do fato de que o reflexo é segundo em relação
ao refletido, e de que o refletido existe independentemente do
refletor, não decorre que a interação exclui o reflexo. Como
 já o dissemos, na interação, cada um a das formações materiais
age sobre a outra e provoca nela as modificações correspon-
dentes, nas quais são refletidas suas particularidades e as
 particularidades da fo rm ação material que se modifica. É por
isso que cada uma delas é, ao mesmo tempo, o refletor e o
refletido, nela é representada uma outra formação material e
ela própria é representada nessa outra. Quand o ela desem-
 pe nh a o papel de refletor, os element os do conteúdo de suas
modificações, que reproduzem, sob uma outra forma, as parti-
cularidades da formação material agindo sobre ela, serão

18
V. Lenin, op. cit., p. 68-9.

.80
 

segundos com relaç ão ao refleti do, pelo fat o de que eles


depend em dele, e o repre senta m no refle tor. O refleti do, nesse
caso, aparece como independente do refletor.
Poderemos sofrer a seguinte objeção: pelo fato de que o
refletor age sobre o refletido e modifica suas particularidades,
não se pode dizer que o refletido existe independentemente
do refl etor . Est a observaçã o teria um sentido se, na qualidade
de reflexo, nós considerássemos todo o conteúdo das modifi-
cações do refletor surgidas em decorrência de sua interação
com o refletido, porque é somente nesse caso que o objeto
refletido será representado no refletor sob a forma que ele tomou
depois da ação do refle tor sobre ele. Po r refle xo, nós enten-
demos não todo o conteúdo das modificações do refletor, mas
apenas a parte que representa o refletido, assim como ele é
em si mesmo, isto é, indep enden temen te do refle tor. É prati-
camente possível separar esta parte do conteúdo das modifi-
cações, do outro, que depende de sua ação sobre o refletido
e por isso mesmo e reproduzir as particularidades do refletido,
no reflet or. Por isso, é preciso colocar em evidência as leis
da interação do refletido e do refletor e, apoiando-se nelas,
estabelecer os desvios provocados pela ação de retorno do
refletor sobre o refletido.
O que é característico para uma formação material em
inter ação també m o é para uma outra. É por isso que não há
aqui absoluta mente um primei ro lugar, nem um segundo. Mas
tudo isso só terá lugar quando os considerarmos como elementos
iguais da interação e não sobre o plano do reflexo das parti-
cularidad es de um nas modificações do outro. Se nós os
examinamos sob esse ângulo, considerando a maneira como,
no processo de sua interação, as particularidades de um
fixam-se nas modificações do outro, a primazia absoluta do
refletido com relação ao reflexo e sua independência com
relaçã o a este últim o e ao refle tor serão incontestáveis. O ponto
de vista oposto, isto é, o de que o reflexo é idêntico à interação,
 parece- nos igualmente incorreto.
O reflexo está ligado à interação, representa um resultado
desta última, mas não é idêntico a ela. A inter ação represent a
a influência recíproca de formações materiais ligadas entre si,
que provocam certas mudanças nas propriedades, nos estados
etc. de cada uma delas. O reflexo é apenas um dos momentos
da correlação de formações materiais que se encontram em

.81
 

interação, isto é, a propriedade de cada formação material


de reproduzir, nas mudanças surgidas nela mesma, em decor-
rência da interação, certas particularidades de outras formações
materiais agindo sobre ela.
Logo, o reflexo não é a interação de um objeto sobre um
outro, nem as mudanças que se produzem no decorrer desta,
mas sim a faculdade de reproduzir nessas mudanças esses ou
aqueles traços ou aspectos do objeto agente.
 Nesse plano, a identifica ção do re flexo com o movimento,
com as mudanças sobrevindas na formação material em decor-
rência de outras formações materiais que ela sofre, não tem
fundamento.
O reflexo não é simplesmente a modificação do objeto
sob a ação de fatores exteriores ou interiores, mas uma repre-
sentação particular, nessas modificações, das particularidades
dos fato res agentes. A modif icaçã o do objet o em decorrência
de interações exteriores ou interiores representa não o reflexo,
mas o movimento.
Certos autores identificam igualmente o conceito de
reflexo com o conceito de prop ried ade. Seu raciocínio é o
seguinte: toda propriedade do objeto, sendo seu momento
interior, manifesta-se e existe apenas em suas relações, na
intera ção desse objet o com outros objet os. No decorrer da
interação, um objeto reflete-se no outro. As propriedades
desse objeto constituem a forma de seu reflexo em um outro
objet o. Assim, as propr iedades de cada obje to dado existem
como reflexos de outros corpos.
Sem dúvida alguma, o reflexo de uma formação material
em uma outra está ligado à colocação em evidência de algumas
de suas propr iedad es. Mas o refl exo não é idêntico às pro-
 priedades do objeto refletor. As pr op ri ed ad es do objeto reflet or
não representam uma forma de reflexo de outros objetos,
mas, antes de tudo, uma forma de manifestação de sua essência.
 Nã o são as propriedades, mas suas mudanç as, reproduzindo
as particularidades dos objetos agentes, que são a forma de
reflexo nele e em outros objetos. A única prop riedad e à qual
 pgdemos identificar o reflexo é a fa culd ad e das formações
materiais de representar nas mudanças de uma ou outra de
suas propriedades outras formações materiais agindo- sobre elas.
Mas, mesmo essa propriedade não constitui uma form a de
existência do reflexo de alguns objetos em outros, ela é uma

.82
 

forma da manifestação da natureza interna dos próprios objetos


refletores.
Assim, o reflexo é uma propriedade universal da matéria,
que consiste na capacidade de reproduzir, das formações mate-
riais, as particularidades de outras formações materiais agindo
sobre elas, nessas ou naquelas modificações de seu estado ou
de uma propriedade qualquer.
A forma de reprodução das particularidades dos objetos
agindo sobre ela, em uma formação material, é determinada
 pel a sua natureza. É po r isso que as form ações materiais qua-
litativamente diferentes refletem as mesmas ações sob uma
for ma diferente. Assim como a matéria , em sua diversidade
qualitativa é infinita, há, também, uma variedade inumerável
de forma s de reflexo. A modific ação das formas do reflexo
são particularmente observadas na passagem da matéria de
um grau qualitativo de seu desenvol vimento a outro. Assim,
na natureza inanimada, o reflexo toma a forma de uma reação
física ou química em retorno, que coincide com a mudança
do estado interno da formação material submetida às ações
exteriores* . 9

Com o surgimento dos organismos vivos, entre os quais


o metabolismo é uma condição necessária para sua existência,
o carát er de reflexo modifi ca-se. Ele torn a-se biológico e
manifesta-se como irritabilidade, como ação em retorno que
depende não apenas da natureza do organismo refletor, mas
igualmente de seu estado concreto, e na qual se manifesta,
sob uma forma embrionária, uma certa regularidade de ações . 20

Aqui, as interações do meio exterior refletem-se sob a forma


de uma ação em retorno seletivo.
Com a evolução da matéria viva, que é contínua pela
adaptação sempre mais perfeita dos organismos ao meio, no-
tadamente com o aparecimento dos organismos pluricelulares,
a forma do reflexo, característica dos organismos vivos elemen-
tares, aperfeiço a-se. Esse aper feiç oame nto caminh a no sentido
de uma especialização dos diferentes tecidos dos organismos
vivos, tendo em vista ocupar certas funções bem determinadas
de reflexo, e alguns tecidos especializam-se, particular e unica-
mente no reflexo (percepção, fixação) da ação e da excitação

19
S. L. Rubinstein, op. cit., p. 13.
20
F. Engels, op. cit., p. 179.

.83
 

que se segue, enquanto outros especializam-se na transmissão


dessa excitação da parte do organismo em que se efetua a ação
imediat a a outra part e do organ ismo. Os tecidos que são
especializados na função do reflexo distinguem-se progressiva-
mente e formam um órgão especial, ou seja, o sistema nervoso
que se torna uma espécie de mediador entre as diferentes partes
do organismo e o mundo exterior e que exerce um controle sobre
a ligação recíproca entre o organismo e as condições exteriores
da existência e, ainda, contribui para estabelecer um equilíbrio
entre o organismo e "as forças exteriores do meio ambiente" . 21

O reflexo, pelo organismo, das forças exteriores, que têm para


ele uma importância vital, é mediado pelo sistema nervoso e
distingue-se em uma forma autônoma de irritabilidade chamada
excitabilidade.
O sistema nervoso, que surgiu primeiramente sob a forma
de fibras e de células nervosas particulares, dispersas no corpo
do animal, complica-se no decorrer da evolução dos organis-
mos, tornando-se sempre mais perfeito. Algumas células ner-
vosas unem-se estreitamente e formam núcleos nervosos que,
 po r sua vez, unem-se entre eles e fo rm am os centros, a med ula
espinhal e o cérebro.
Assim, passo a passo, é constituído o sistema nervoso
centra l. A for ma do refl exo segue o desenvolvimento do sis-
tem a nervoso. Essa for ma torn a-se sempre mais flexível e
aperfeiçoada e, com o surgimento do sistema nervoso central,
adquire possibilidades que modificam fundamentalmente sua
qualidade e, exatamente por isso, transformam-na em uma
nova forma superior de reflexo.
Com efeito, entre os organismos que não possuem sistema
nervoso central, a correlação com o meio ambiente realiza-se
 po r mei o do reflexo e da fo rm aç ão de certas rea ções aos exci-
tantes que têm uma importânci a vital para o organismo. Entre
os organismos que possuem um sistema nervoso central, esta
correlação realiza-se não apenas por meio do reflexo e da
reação aos excitantes ligados à atividade vital do organismo,
mas igualmente por meio do reflexo e da formação de reações
determinadas aos excitantes, que não apresentam nenhuma
importância para a vida do organismo, se sua ação precede
no tempo à do excitante tendo uma importância vital.
I. P. Pavlov,  Obras completas, 72-  ed. 3, Moscou-Leningrado, 1951,
21

t. 3, Parte 1, Livro 2, p. 124. Original em russo.

.84
 

A reação aos excitantes que não têm importância vital


imediata para o animal, mas que precedem, algumas vezes no
tempo, a ação dos excitantes que têm uma importância vital
imediata para o organismo, leva o nome de reflexo condicio-
nado, diferentemente da reação do organismo ao excitante que
tem para ele uma importância direta e constitui o reflexo incon-
dicionado. O reflexo condicionado elabora-se no processo da
vida de um indivíduo, no curso de sua experiência pessoal,
enquanto o reflexo incondicionado é inato, isto é, transmite-se
de uma geração a outra.
Dessa maneira, entre os animais que possuem um sistema
nervoso central, os reflexos condicionados começam a desem-
 penhar um papel im po rt ante na correlação do organismo com
o meio, ao lado dos reflex os incond icionad os. Graças a eles,
esses animais reagem com precisão às modificações das con-
dições de vida e a elas adaptam-se rapidamente.
O reflexo condicionado, enquanto forma nova, mais ele-
vada do que o refle xo, adquir e, diferentemen te de todas as
form as precede ntes ao refl exo que eram puram ente biológicas,
um caráter psíquico; é a partir deste reflexo que surge o psiquis-
mo, forma nova, mais elevada do reflexo da realidade e qua-
litativamente diferente das precedentes.

5. O PSÍQUI CO
E O FISIOLÓGICO

O reflexo psíquico é um sinal, uma imagem dos objetos


do mundo exterior que agem sobre o organismo.
O laço do psíquico com a atividade reflexiva condicionada
não é fortuito. Um traço específico do reflexo condicionado,
como já dissemos, é o reflexo dos fenômenos do mundo exterior
que em si mesmos são indiferentes ao organismo, não desem-
 penham nenhum papel era sua ativid ade vital, mas encontram-se,
contu do, ligados aos fenômeno s que têm uma i mpor tânci a
 biológica ime dia ta. Esses fenô menos ind iferentes manifestam-
se como sinais de outros fenômenos biológicos significantes para
o organismo, representam estes últimos '. Sua ação sobre o
22

22
I. P. Pavlov.  Obras completas  cit., p. 196.

.85
 

organismo equivale à ação de fenômenos biologicamente signi-


ficantes, dos quais eles são os sinais, isto é, no momento de
sua percepção, a partir de laços temporários formados no córtex
surgem imagens de outros fenômenos biologicamente signifi-
cantes que lhes estão ligados.
Assim, o mecanismo do reflexo condicionado inclui como
um dos momentos necessários o aparecimento (a reprodução)
da imagem de um objeto biologicamente significante, a partir
do sinal percebido — do fenômeno indiferente que se encontra
em ligação mai s ou menos de ter min ada e estável com esse
obje to. E é por isso que a sua for maç ão é considerada como
o princípio do surgimento do psíquico, da forma psíquica do
reflexo da realidade.
 Numerosos psicólogos e filósofos un em o psíquico, como
uma forma particular do reflexo da realidade, à atividade re-
flexiva condiciona da. Ent ret ant o, há entr e eles divergências
quanto à definição do órgão do psiquismo e o estágio de desen-
volvimen to do mund o animal no qual ele aparece. A questão
é que a formação do reflexo condicionado é observada não
apenas entre os animais que possuem um córtex, mas igual-
mente entre os que são desprov idos dele. Aind a mais, alguns
autores consideram que os laços temporários específicos, per-
mitindo o reflexo condicionado, surgem inclusive entre os
 pr ot is tas . É por isso que, reunin do o aparecimento' do psí-
23

quico à formação dos laços temporários, reflexos condiciona-


dos, devemos reconhecer a existência do psiquismo entre os
organismos que não somente não possuem córtex, mas ainda
não têm sistema nervoso.
Por outro lado, o sábio russo Pavlov, depois de haver
descoberto o laço da atividade psíquica e dos reflexos condi-
cionados especialmente, salientou que o psíquico é uma função
do cérebro-, resul tado da ativid ade do córtex: "A atividade
 psíqui ca é o resultado da atividade psicol ógica de uma certa
massa determinada do cérebro" . Ele disse também que:
24

" . . . A atividade dos grandes hemisférios recebeu o nome de


atividade especial, psíquica, de acordo com a maneira pela

A. N. Léontiev,  Ensaio sobre o desenvolvimento do psiquismo,


23

Moscou, 1947. Original em russo,


I. P. Pavlov, Reflex os condici onados, in  Grande Enciclopédia
24

 Médica,  t. 33, p. 43. Original em russo.

.86
 

qual nós a sentimos, percebemo-la em nós mesmos e supomos


sua existência entre os animais, por analogia   c o n o s c o " 2 5 .
Apoiando-se na teoria de Pavlov, alguns autores recusam-
se categoricamente a reconhecer a existência do psiquismo entre
os animais que não possuem sistema nervoso central, relacio-
nando seu aparecimento apenas ao cérebro, ao córtex.
Só podemos resolver essa disputa respondendo à questão
de saber se todo laço temp orár io supõe o aparec imento da
imagem do objeto refletido ou se o reflexo em imagem da
realidade constitui uma função do cérebro, resultado da forma-
ção de conexões nervosas no cérebro, sendo dado que o
 psí qui co, simplesme nte nã o é nem os laços temporários, nem
os próprios reflexos condicionados, mas sim as imagens dos
objeto s agentes que eles faze m surgir. A questão de saber
em que estágio do desenvolvimento da matéria viva aparecem
as primeiras imagens dos objetos do mundo^ exterior ainda não
foi suficientemente estudada. O fat o de que elas existem entre
os animais superiores, possuidores de um córtex já foi provado,
mas ninguém pode, com certeza, afirmar que elas existem
também entre os animais que possuem um sistema nervoso
menos desenvolvido, e menos ainda, que elas existem entre
os protistas, que são desprovidos de sistema nervoso.
A identificação do psíquico com o reflexo condicionado
conduz necessariamente à deformação da correlação do psíquico
com o fisiológico e, em particular, a reduzir o psíquico ao
fisiológico e a eliminar o primeiro enquanto fenômeno par-
ticular, qualitativamente determinado.
O psíquico é um dos aspectos interiores do reflexo que
concer ne a sua fun ção refletiva social. O psíquico é o reflexo
em imagem da realidade, surgido no processo da formação dos
laços temporários.
Sendo um aspecto do reflexo condicionado e represen-
tando no conjunto um fenômeno fisiológico, o psíquico está
organicamente ligado ao fisiológico, aparece e existe sobre sua
 base, é uma conse qüência del a, uma prop riedad e par ticular.

25
I. P. Pavlov,  Obras completas  cit., t. 4, p. 17.

.87
 

6. A CONSCI ÊNCIA

A atividade psíquica dos animais superiores, a um certo


grau do desenvolvimento de seu sistema nervoso, do cérebro,
transforma-se necessariamente em uma forma qualitativamente
outra do reflexo da realidade — transforma-se em consciência.
O aparecimento da consciência é condicionado pelo desen-
volvimento do sistema nervoso, do cérebro. Entr etan to, esse
desenvolvimento nunca é insuficiente para que apareça a
consciência. O aparec imen to da consciência está ligado a
fato res exteriores à fisiolog ia da ativida de nervosa superior.
Como propriedade da matéria altamente organizada, a cons-
ciência é, ao mesmo tempo, o produto do trabalho humano,
o result ado do desenvolvimento social. Um sistema nervoso
altamente desenvolvido cria apena s a possib ilidade real do
aparecimento da consciência; mas, a transformação dessa pos-
sibilidade em real idad e está ligada ao trab alho. Foi precisa-
mente sob a ação do trabalho que a forma psíquica do reflexo,
 própria aos ancestrai s ani mais do ho mem, transformou-se
 pro gress ivament e em consc iên cia , em reflexo consciente da
realidade. O ponto de parti da desse processo foi o momento
no qual uma espécie superior de macacos começou a utilizar
objetos da natureza para obter um resultado ligado à satisfação
de uma ou outra necess idade do organismo. No começo, essas
ações constituíam apenas casos isolados, mas, pelo fato de que
elas davam, em geral, resultados positivos, e de que «las con-
tribuíam para a satisfação de uma ou outra necessidade, um
reflexo condicionado elaborou-se a part ir delas e, com esse
reflexo, apareceu o hábito de utilizar, em certas condições, os
objetos da natureza como "ferram entas ". Esse hábito conduziu
a mudanças fundamentais no comportamento desses animais.
Sua ligação com a rea lidade ambi ente foi, desde então,
mediatizada pelos objetos da natureza.
Uma tal complicação da ligação do organismo com o
meio ambiente influenciou de maneira positiva o desenvolvi-
mento do sistema nervoso e, em particular, o desenvolvimento
do cérebro que, obrigado a criar novos laços e a cumprir novas
funções cada vez mais complexas, desenvolveu-se e aperfei-
çoou-se, o que, em comp ensa ção, exerceu uma influênci a
 ben éfica sob re a "utiliz açã o das fe rr am en ta s" pelos macacos
superiores. Essa atividade complic ou-se e desenvolveu-se. A

.88
 

um determinado estágio de seu desenvolvimento, os macacos


superiores, quando da ausência da "ferramenta" necessária
 para a exe cução de um determinado ato, procuravam ad ap ta r
o objeto não adequado, modelando-o segundo a necessidade.
Surge, então, a tendência de criar as ferramentas necessárias a
 partir de objetos da natureza. Pode-se observar tentat ivas de
transformar um objeto que não é conveniente para uma função
dada e de criar uma ferramenta necessária, mesmo entre os
macacos atuais ®. 2

O desenvolvimento dessa tendência entre os ancestrais


animais do homem condicionou a transformação progressiva
dos reflexos em atividade consciente, visando a modificação
da realidade ambiente com a ajuda de ferramentas criadas para
esse fim. Essa atividade torno u-se uma form a necessária de
ligação entre os seres que se distinguem do estado animal,
entre eles próprios, de um lado, e com a realidade ambiente, de
outro. Essa atividade os coloca em relações deter minada s
independentes de sua vontade, e assim os reúne em um todo
único, organica mente ligado. Par a que tudo isso possa surgir,
funcionar normalmente e desenvolver-se, uma certa coordena-
ção das ações dos indiví duos que a for mam é necessária. Mas
isso. suporia tom ar consciência dos objetivos e das tare fas,
reparti r as fun ções no process o de sua realização. Tu do isso
tornaria necessária uma troca de pensamentos entre indivíduos
que agem em comum. "Logo, os homens em formação chega-
riam a um ponto em que eles teriam reciprocramente   alguma
coisa para se dizer*'M.  Cad a nova necessidade condicio na
tamb ém o aparecimen to de meios par a satisfazê-la. Um desses
meios é a linguagem. Com a linguagem, a consciência recebe u
uma forma material de existência correspondente a sua natureza
social. Por meio dela, os pensa mentos de um homem tor na-
ram-se acessíveis a outros homens, a um grupo de homens.
Sublinhando o laço orgânico da consciência com a linguagem,
Mar x e Engels es creveram: "A linguagem é tão velha quant o
a consciência; a linguagem  é   a consciência real, prática, exis-

 N . N. La di guin a- Ko ts , De se nvol vi me nt o das fo rm as de re fl ex o no


26

 proces so da ev ol uç ão do s orga ni sm os, in   Problemas de filosofia,  1956,


v. 4, p. 101. Original em russo.
27
F. Engels, op. cit., p. 174.

.89
 

tindo também, para outros homens, existindo, portanto, so-


ment e pa ra eu mesmo tam bém . . . "28. Por i ntermé dio da
linguagem, os homens trocaram idéias e chegaram a uma coor-
denação de sua atividade necessária para o trabalho coletivo e
 para a vida social.
Sendo ligada ao trabalho e à sociedade que a engendrou,
a consciência é dotada de uma natureza social, é um aspecto
necessário da forma social do movimento da matéria, embora
exista na consciência dos indivíduos que formam a sociedade.
Com efeito, cada indivíduo, por intermédio da linguagem, dos
meios de trabalho, dos modos de atividade, assimila a expe-
riência acumulada pela sociedade e transmite sua experiência
individual, encarnando-a em valores culturais e materiais
criados — as formas da vida e da ação.
O fato de que a consciência seja um aspecto da forma
social do movimento da matéria, um "produto social" ' , é 2 9

freqüentemente deixado de lado pelos autores que estudam


o prob lema da consciência. A afir maçã o, segundo a qual a
consciência representa o produto ou o resultado da atividade
fisiológica do cérebro, é muito difund ida. Nã o há dúvida de
que a consciência está ligada a certos processos que se desen-
volvem no cérebro, mas esses processos não têm condições
 para engendrar a consciência. Pa ra que ela apareça, o ser
 possu idor de um cérebro deve necessariamente estar incluído
em um sistema de relações sociais e agir em comum com outros
homens; ou, em outros termos, deve viver uma vida humana,
social. Logo , os processos fisiológicos do céreb ro fazem
nascer a consciência apenas em sua união ou, mais exatamente,
em sua ligação orgânica com as atividades sociais determinadas
que são executadas pelo sujeito, e não pela ligação com o
exercício dessa ou daqu ela fun ção soci al. Ain da mais, as
ligações neurodinâmicas do cérebro, ou seja, as estruturas a
 partir das quais sur ge e func iona a consc iência, estabe lecem-se
sob a ação de fato res sociais, da atividade prá tica. "O psiquis-
mo do home m, escreve sobre isso o psicólo go soviético A.
Léontiev, é uma função das estruturas cerebrais superiores, que
se formam de maneira ontogénica no processo de assimilação
das formas historicamente constituídas da atividade em relação
K. Marx e F. Engels,  L'idéologie allemande,  Paris, Editions So-
28

ciales, 1968, p. 59.


K. Marx e F. Engels,  L'idéologie  cit., p. 59.
29

.90
 

ao mundo ambiente" . É por isso que não pode mos admitir


30

a afirmação de que a consciência é uma função, um produto,


uma manifestação ou uma propriedade de interações fisiológi-
cas, isto é, uma forma biológica do movimento da matéria.
Ela é uma propriedade, um produto, um resultado de interações
sociais, uma forma social do movimento da matéria, que
encerra em si, sob uma forma anulada, todas as outras formas
anteriores do movimento, notadamente as formas física, quí-
mica e biológica. Leva ndo tud o isso em conta, parece-nos
mais correto falar dos laços da consciência, não com os pro-
cessos fisiológicos do cérebro, mas com o próprio cérebro e
não simplesmente com o cérebro, mas com o cérebro humano,
 porq ue é aqui que se exprim irá em um a certa medida a idéia
do cérebro, órgão do pensamento, e este com a consciência,
enquanto sua função, representam uma forma mais elevada do
movimento da matéria do que a forma biológica.
A impossibilidade de deduzir o superior do inferior é,
freqüentemente, utilizada pelos filósofos burgueses, assim como
 pelos neotomistas, para "re fu ta r" a teoria marxista, seg undo a
qual a consciência é uma prop rie dade da maté ria. É sobre
isso que Josef de Vries baseia sua crítica da resposta materia-
lista à quest ão do laço da consciênci a e da maté ria. "O
materialismo dialético, escreve ele, afirma que todo o 'psíquico',
todo o 'espiritual', é apenas uma função da matéria ou, mais
exatamente, a função do sistema nervoso central, do cérebro" . 31

"Nós consideramos a resposta materialista insuficente, já que


explicamos o que é mais elevado, a alma, o espírito, a partir
do que é inferior, a matér ia . . . Seja qual for a grand eza das
forças descobertas da matéria, elas permanecerão sempre insu-
ficientes para produzir qualquer coisa de mais elevado, a alma
ou o espírito" .
32

Assim, o existente pode efetivamente engendrar alguma


coisa de mais elevado do que ele mesmo? É claro que sim.
Foi precisamente assim que se produziu a evolução da matéria.

A. N. Léontiev, Sobre a abordagem histórica no estudo do psi-


30

quismo humano, in  Ciência Psicológica na URSS,  t. 1, p. 41. Original


em russo.
J. de Vries,  Die Erkenntnistheorie des dialektischen Materialismus?
31

Munique, Salsburgo Kiiln, 1958, p. 141.


J. de Vries, op. cit., p. 166.
32

.91
 

Algumas formações materiais, em decorrência de interações,


for mam outras, mais complexas. E estas últimas, por sua vez,
formam outras ainda mais complexas, e assim sucessivamente
até o infinito.
Tudo o que é novo, mais elevado, provém unicamente do
inferio r. Essa é uma lei universal da evolução da matéria.
O filósofo alemão Walter Hollitscher, em seu artigo "Consciência
e matéria" exprimiu esse ponto muito bem. "Uma nova forma
determinada, ele escreve, provém unicamente de uma forma
antiga determinada em suas condições interiores e exteriores,
que são determinadas segundo as leis objetivas determinadas" . 33

É verdade que podem-nos fazer uma objeção: a de que


falamos da passagem de formações materiais ou de estados
qualificativos a outros mais elevados . De Vries considerou a
 possibilid ade da pas sagem do material ao espiri tual como forma
mais elevada e perfe ita, do cérebro à consciência. No que
concerne a essa passagem, não há nenhuma relação com a
geração do superior pelo inferior, com a transformação do
segundo em primeiro. A form ação material não pode trans-
formar-se em sua propriedade. Ela pode transformar-se uni-
camente em uma outra ou, mais exatamente, em outras forma-
ções materiais ou estados qualificativos. Transfor mando-se de
uma formação material, ou de um estado qualificativo em uma
outra, ela pode perder algumas propriedades e adquirir outras,
além de modificar e desenvolver tercei ras. É por isso que é
totalmente inexato falar da passagem ou da transformação da
matéria em consciência, pelo fato de que esta última é sua
 propriedade. Trat a-se aqui apenas do aparecimento da cons-
ciência no processo da passagem ou da transformação de
algumas formações materiais ou de alguns estados qualificativos
em outros, do laço dessa propriedade com as interações e as
estrutur as nas forma ções materiais. À essa questão, o mate-
rialismo dialético e a ciência psicológica contemporânea dão
uma respost a muit o precis a: a consciência está ligada a algumas
formações estruturais do cérebro e a algumas formas de inte-
ração dos homens, entre eles e com a natureza, e a algumas
formas de sua atividade.
Essa solução não satisfaz a De Vries, porque ela exclui

W. Hollitscher, Bewusstsein und Materie, in  Weg und Ziel , Viena,


33

1964, v. 2, p. 112.

.92
 

a necessidade de explicar a consciência apelando para a "alma"


e par a Deus. Par a ele é necessár io mostr ar que a "al ma " e
Deus existem e que sem eles é impossível explicar o apareci-
mento da consciência. Ê por isso que ele repud ia   a limine
todas as tentativas de deduzir a consciência da maté ria. Se-
gundo ele, a consciência nã o tem nen hum a relação com a
matéria, pelo fato de que ela extrai seu princípio de Deus,
essência pura ment e espiritual. De Vries declara que não se
 pode enc ontrar a cau sa da primeira aparição da consciência
sensível ou espiritual nesse mund o. Mas, levand o isso em
consideração, a saída para fora dos limites desse mundo torna-se
inevitável, e essa saída contradiz completamente o materialismo
dialético. A causa fina l de tod a vida espiritual nesse mun do,
 prossegue De Vries, deve ser um a essência puramente esp iritual.
Mas, essa essência supra-universal, puramente espiritual, to-
mada exatamente nesse sentido, não dependente de nada além
dela, é, em conseqüên cia disso, incond iciona da,   "absoluta",
logo, essa essência constitui o que a religião chama, desde há
muito tempo, pelo grande nome de Deus . 34

Refutando, assim, a possibilidade de encontrar as causas


do aparecimento da consciência no mundo realmente existente
e sua explicação a partir da matéria, De Vries teria necessa-
riamente de procurá-las fora desse mundo, em um mundo
supran atural, isto é, no idealismo . Isso é norma l, já que existem
apenas dois caminhos para explicar a consciência (assim como
 para explicar qualquer outr o fen ôme no ): o materialismo e o
idealismo. Se nós repu diam os o primeir o, queiramos ou não,
engajamo-nos no segundo.
Sendo uma propriedade da matéria altamente desenvolvida,
que se formou a partir do trabalho e das relações sociais
surgidas entre os indivíduos no decorrer da produção dos meios
necessários para a vida, a consciência representa uma forma
nova, mais elevada do refle xo psíquico da realidad e. Ela é
uma fotog rafia , uma cópia, um a imagem particula r desta. E,
como qualquer outio fenômeno psíquico, ela também possui
uma natureza ideal.
A idealidade da consciência exprime-se no fato de que
suas imagens constitutivas não possuem nem as propriedades

3J
J. de Vries, op. cit., p. 169-70.

.93
 

dos objetos da realidade refletidos nela, nem as propriedades


dos processos nervosos a partir dos quais essas imagens nas-
ceram. Elas não encerra m nem um grão de substância,
característica da real idad e refl etid a e do cérebro. São, além
disso, privadas de peso, de características espaciais e de outras
 propriedades físicas. Distinguindo-se fu nd am en ta lm en te do
material, o ideal lhe é organ icame nte ligado. Ele aparece e
existe unicamente no material — no cérebro do homem —
e é um produto da interação do homem com a realidade
ambiente, por um lado, e do homem com outros homens, por
outro lado. Seu conteúd o é determinado por essa realidade, a
qual representa o reflexo. Destaca ndo a ligação do ideal
com o material e a dependência do primeiro com relação ao
segundo, Marx salientou que: " ( . . . ) O movimento do pensa-
mento é apenas a reflexão do movimento real, transportado e
transposto para o cérebro do homem" . 35

Constatando que a consciência aparece no cérebro, corpo


material altamente organizado, a partir de conexões nervosas
que se estabelecem, alguns autores sentem-se inclinados a
considerá-la como um fenômeno material, como uma forma
 particular do movi me nt o da matéria.
A afir maçã o de que o psíquico (a consciência) é corporal
e constitui uma forma particular do movimento da matéria,
análoga às oscilações eletromagnéticas, não reflete a situação
exata das coisas. A consciência nã o é um process o corporal ,
uma forma particular do movimento da matéria encontrando-se
na mesma série de suas outras formas de movimento, não existe
sob o aspecto de qualquer forma ção material, ao lado do
cérebro, do homem e da sociedade, ela é uma propriedade
 parti cular do cérebro, o pr od ut o de processos que nele des en-
rolam-se em resposta à interação do homem com a realidade
social e natural que o rodeiam, reproduzindo esta realidade,
não sob a forma em que ela existe, nem sob a forma de
 propr iedades , laços e processos mater iais corpo rais, mas sob
a forma de imagens ideais desprovidas de características físicas.
Embora essas imagens apareçam a partir de processos corporais,
de conexões materiais e, em particular, de conexões nervosas,
elas não são idênticas a esses proces sos e laços. Seu conte údo

35
K. Marx,  Le Capital,  Paris, Editions Sociales, v. 1, p. 21.

.94
 

é constituído não por esses processos e esses laços, não pelas


 propriedades car acterísticas destes últ imos, mas sim po r cópias,
fotografias particulares dos processos, das propriedades e dos
laços correspondentes da realidade ambiente.
Alguns autores falam da materialidade da consciência re-
ferin do-se à real idad e de sua existência. A consciência, consi-
der am eles, existe na real idad e. Tudo o que existe na reali-
dade é material; em conseqüência, a consciência é material.
"O materi alismo , escreve, por exemplo, I. Shipos, designa
tradi cional mente , com a aju da do conceito de mat éri a do
Universo, o mun do real existente. Assim, tudo o que existe
na realidade é 'material': não há nada de 'imaterial' no mundo...
 Nesse sentido, o pe nsam ento é, ele próprio, mate rial: existe
realmente na qualidade de pensamento, de   r e f l e x o " 3 6 .
Podemos notar facilmente que os raciocínios de Shipos
encerram uma certa inexatidão, que deforma a teoria marxista-
leninista da maté ria e do material. Segundo o mater iali smo
dialético, tudo o que existe na realidade está longe de ser
mater ial. Nã o é mate rial o que se relaciona com a maté ria
e a caracteriza como algo diferente da consciência, o que se
manifesta como realidade objetiva, isto é, o que existe fora e
independente mente da consciência. O pensamento e a cons-
ciência existem igualmente na realidade, mas não na qualidade
de realidade objetiva, não materialmente, mas sob a forma de
imagens dessa realidade, desprovidos de formas do ser que
a constituem e das propriedades que os caracterizam, isto é,
de for ma ideal. Há duas realidades: a realidade objetiva que
existe fora e independentemente da consciência e a realidade
subjetiv a enge ndra da pela primeir a, da qual é o refl exo. A
 primeira re al id ad e  é,  por sua natureza, material e a segunda
é ideal.
O método mais utilizado para basear a materialidade da
consciência é o de considerar esta sob dois aspectos: gnoseo-
lógico e ontológico, com relação ao objeto refletido e com
relaç ão ao cérebro. Os partid ários desse pon to de vista
afirmam que se examinamos a consciência sobre o plano gno-
seológico, com relação à realidade refletida, ela manifesta-se

 Problemas de Filosofia marxista-leninista. 


36 
Artigos de autore s
húngaros , Moscou, Ed. Progresso, 1965, p. 424. Original em russo.

.95
 

como ideal, repres enta uma imagem ideal, uma fotograf ia,
uma cópia de objetos e de fenômenos do mundo exterior; e
quando a examinamos sobre o plano ontológico, como pro-
 priedade ou pr od ut o da atividade do cérebro, a consciência
manifesta-se como fenômeno material . 37

Esse ponto de vista não pode ser considerado justo pelo


fato de que coloca a natureza da consciência na dependência
da orientação da pesquisa, dos desejos subjetivos do pesquisador
e de sua vonta de. Com efeito, segundo esse ponto de vista,
a consciência é ideal não em si mesma e não sempre, mas
apenas quando a examinamos sob o plano gnoseológico, isto
é, em relação ao objeto refletido. Desde que transportemos
nossa atenção para sua ligação com o cérebro, nós a considera-
mos como uma propriedade deste, e ela perde então sua idea-
lidade e torna-se um fenômeno material, no sentido em que
"falamos, por exemplo, da materialidade da massa, da energia,
do espaço, das relações sociais" . Segue-se que é o pesquis ador
38

quem decide se a consciência será ideal ou não . Se ele quiser


examiná-la sob o plano gnoseológico ela será ideal, mas se
ele interessa-se pelos aspectos ontológicos, a consciência perderá
sua idealidade e se manifestará sob uma form a material,
semelhante à massa, à energia e ao espaço.
Entretanto, a natureza da consciência, assim como a de
qualquer outro fenômeno, não pode depender do ângulo sob
o qual nós a examinamos, nem da orientação do pesquisador.
É verdade que a consciência, enquanto reflexo da realidade nas
imagens ideais, manifesta-se em sua relação com a realidade,
com o objeto refletido, mas ela é ideal em todas as suas relações
e não apenas nessa aqui. A consciência é ideal por sua natu-
reza, por sua essência, e como tal permanece, qualquer que
seja a maneira como nós a consideremos: tanto em ligação
com a realidade refletida, como com o cérebro, ou, ainda, em
qualque r outr a ligação. Na nossa opiniã o, Rubinstein tem
razão quando escreve que "Na relação gnoseológica com a
realidade objetiva, os fenômenos psíquicos manifestam-se como

 N . P. An to no v,   Origem e essência da consciência,  Ivanovo, 1959,


37

 p. 283 ; F. F. Ka lh si n,   Problemas fundamentais da teoria do conheci-


mento,  Gork, 1957, p. 10; Y. A. Ponomariob,   Psiquismo e intuição,
Mos cou, 1967, p. 64. Originais em russo.
Ciências filosóficas,  1968, v. 3, p. 112. Origi nal em russo.
3S 

.96
 

uma imagem desta. E é precisa mente a essa relaç ão da imagem


com o objeto, da idéia com a coisa que está ligada à caracterís-
tica dos fenômenos psíquicos como ideais, é precisamente no
 plano gnoseológico que o psíquico manifes ta-se como ideal,
fi claro que isso não significa que os fenômenos psíquicos
deixem de ser ideais quando eles são considerados sob um
outro ângulo, por exemplo, como fu nçã o do cérebr o. A ca-
racterística dos fenômenos psíquicos, como de qualquer outro
fenômeno, não depende do ponto de vista segundo o qual eles
são considerados" . Não é nem a natur eza da consciência,
39

nem sua essência que dependem do ângulo sob o qual a análise


é feita, mas a evidenciação de alguns aspectos. Efet ivamen-
te, a idealidade da consciência — isto é, sua existência sob
a forma de imagem, de cópia do objeto — só aparece em sua
relação com o objeto, da mesma maneira que o fato de que
ela é uma propriedade, uma função do cérebro, só é descoberto-
no estudo de sua relação com este. Mas, ser á que sua idea-
lidade desaparece, deixa de ser uma cópia do ideal, uma
fotografia, quando reconhecemos que ela é uma propriedade
do cérebro? É lógico que não . Depois da colocação em
evidência dessas novas características, ela ainda perma nece
sendo uma imagem, uma cópia ideal, uma fotografia da rea-
lidade ambiente.
Alguns autores emitem um ponto de vista que diferencia
a consciência, por um lado, como reflexo da realidade, e, por
outro, com uma aptidão par a esse refle xo. O reflexo da
realidade objetiva, segundo eles, é   ideal,  e a aptidão ao reflexo
é  material  .
40

Essa maneira de colocar a questão parece-nos correta.


A aptidão ao reflexo da realidade nas imagens ideais e o reflexo
em si são coisas muito diferentes. A primeira existe objetiva-
mente, fora e independentemente da consciência, e por isso
ela é material. Condiciona o aparecimento das imagens ideais
que reproduzem a realidade e constituem a consciência, mas
não se transforma ela própria nessas imagens, existe fora e
indep enden temen te delas. Ligado organi camente às imagens

S. L. Rubinstein,
30
op. cit., p. 41.
40
K-H Oberländer, Einige Bemerkungen zum Verhältnis von Materie
und Bewusstsein, in  Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität,  Ros-
tock, 1962, t. 3, v. 11, p. 204-5.

.97
 

indicadas, o segundo realiza-se e existe unicamente por meio


delas. E por isso é ideal. A idealidade da consciência é,
 port anto , determin ada pela ide alidade das ima gens atr avé s
das quais, enquanto forma superior do reflexo, ela existe e
reproduz a realidade que a rodeia.
Existindo sob a forma de imagens ideais surgidas no
cérebro do homem em decorrência da interação com a realidade
que a rodeia, a consciência representa um reflexo subjetivo
da reali dade. A subjeti vidade da consciência exprime-se no
fato de que ela existe como mundo interior, espiritual do
homem-sujeito e da sociedade humana, que reflete o mundo
exterior, a real idad e objeti va. Mas, tudo o que constitu i o
mundo interior do sujeito, tudo o que entra na esfera de sua
consciência, nã o dep ende dele. No mun do subjetivo do
homem há aspectos e momentos que são condicionados pela
realidade objetiva, que correspondem a ela e que não dependem
nem .do homem-sujeito, nem da humani dade. Esses aspectos
e esses momentos representam igualmente o objetivo no subje-
tivo e constituem uma forma particular da existência do mundo
exterior no mun do interi or do sujeito . A consciência, sendo
assim o reflexo subjetivo da realidade objetiva, representa a
unidade do subjetivo e do objetivo, a unidade do que depende
do sujeito, do estado de seu sistema nervoso, de sua experiência
individual, de sua situação social, de suas condições de vida
etc. e do que não depende dele, mas que é condicionado pela
realidade ambiente e a reflete.
Surgida sob a ação do trabalho na qualidade de aspecto
da vida social e de função do espírito humano, a consciência
manifestou-se, antes de tudo, como uma tomada de consciência,
 pelo ances tra l do ho me m, de seu ser^i, de sua pr ópri a existência,
de sua separação do mundo exterior e de uma certa relação
com este último. O animal não se distingue da realidade que
o rodeia, não sabe que ela existe. Ele se con fun de completa -
mente com sua atividad e vital. Par a o animal, não há nenh uma
relação com ele mesmo, nem com a realidade que o rodeia.
"Onde existe uma relação, salientam Marx e Engels, ela existe
 pará mim. O animal  'não está em relação'   com nada, não

41
K. Marx e F. Engels,  L'idéologie,  cit., p. 51.

.98
 

conhece , no final de contas, nenh uma rela ção. Par a o animal,


suas relações com os outros não existem enquanto relações" '. 42

O selvagem, após haver adquirido consciência, percebe


 primeiro que ele existe, que está rodead o de objetos e que esses
objetos apresentam certas relações e certas ligações entre eles
e com ele próp rio. Tom and o consciência de seus instintos e
de seus hábitos, ele progressivamente compreende o que se
 passa ao seu re do r, em sua realidade ambie nte. Assim , a
consciência é a comprensão do que se produz na realidade
ambiente.
Mas a compreensão do que se produz não representa nada
além de seu saber. Como conseqüência, a consciência é um
certo saber. O mun do exterior é apre sentado na consciência
sob a forma de imagens produzidas no cérebro humano pela
interação do homem com esse mundo. O conjunto dessas
imagens que refletem a realidade ambiente constitui o saber
do hom em. Utili zando essas imagens e a inf orm açã o que elas
contêm sobre essas ou aquelas propriedades e ligações dos
objetos e fenômenos do mundo exterior, o homem chega à
comp reen são do que se prod uz em tor no dele. Assim, o saber
é uma fo rma da existência da consciência. "O modo de exis-
tência da consciência e o modo de existência de qualquer outra
coisa para ele, escreve Marx, é o   saber"^.
Ainda que a consciência manifeste-se como saber, ela está
longe de lhe ser idênti ca. A consciência existe não apena s sob
a forma de conhecimentos, mas igualmente sob a forma de
emoções, sentimentos, vontade etc. Por outro lado, todo o
saber não constitui a consciência. O saber repre senta o con-
 ju nto de informações, sob re a realidade ambiente, do qual
dispõe a sociedade humana. A consciência é for mada unica-
mente pela rede de informações que entram no processo con-
creto do pensamento do sujeito e a partir dos quais elabora-se
sua comp reen são da situaçã o. Em outros termos, a consciência
não é todo o saber, mas somente aquele do qual o homem
utiliza-se a cada momento dado, que nasce de seu cérebro,
quando da compreensão dessa ou daquela situação concreta.

42
K. Marx e F. Engels,  L'Ideologie  cit., p. 59.
4 3
K. Marx e F. Engels,  Das primeiras obras,  p. 633. Origi nal em
russo.

.99
 

 No dec orrer de sua vida, de sua ati vidade prática, o


homem passa progressivamente da tomada de consciência
de alguns aspectos e de algumas ligações da realidade para
outros, o que faz com que o conteúdo de sua consciência
modifi que-se constantemente. Ao mesmo tempo, o conjun to
de conhecimentos que entram na esfera da consciência também
mud a continuamente. Alguns desses conhecimentos animam-
se e entram na esfera da consciência, enquanto outros, depois
de ter cumprido sua função, saem da esfera da consciência e
 passam pa ra o domínio do incon sciente .
Alguns autores não levam esse fato em conta e incluem
na consciência todo o saber do qual dispõe a human idade,
esteja ele contido ou não no processo do pensamento do sujeito,
seja ele utilizado ou não para chegar à compreensão dessa ou
daquela situação .44

Falando das leis da relação da consciência e do saber,


temos em vista a consciência de um único homem . Mas tam-
 bé m po de mos trat ar da consciência referindo- nos não apenas
a um indivíduo, mas igualmente à socieda de. Nesse caso, o
saber não será um modo de existência da consciência social?
A totalidade do saber, o saber enquanto tal também não pode
manif estar- se na qualida de de fo rma do ser da consciência
social. No conteúdo da consciência social entra apenas a part e
do saber que reflete, de uma maneira ou de outra, o ser social
existente.
O saber é um modo ou uma forma de existência da cons-
ciência que não existe nele mesmo, mas na medida em que
chegamos, por meio dele, à tomada de consciência (intelecção,
compreensão) de um estado de coisas dado.
A tomada de consciência de certos momentos da realidade
efetua-se seja introduzindo-os nos conceitos e representações
correspondentes, dos quais dispõe o sujeito, seja descobrindo
ou penetrando o sentido de novos aspectos e ligações do objeto
considerado, anteriormente desconhecidos do sujeito. A to-
mada de consciência do objeto pela descoberta, nesse objeto,
de novo s aspectos e ligações estabelec e o conhecimento. O
que significa que a consciência manifesta-se igualme nte como
conhecimento da realidade.

A. Spirkin,  Origem da consciência, Moscou, 1960, p. 9. Original


44

em russo.

.100
 

Levando em conta o fato de que todos os conhecimentos


dos quais o homem dispõe foram adquiridos no decorrer da
evolução da consciência social e do reflexo da realidade, a
 pa rar de sua modificação na prática, é fácil per ceoer que o
conhecimento é um aspecto necessário da essência da consciên-
cia, sem o qual seu funcionamento e seu desenvolvimento são
impossíveis.
Embora sendo um aspecto necessário da consciência e
uma forma de sua manifestação, o conhecimento não esgota o
conteúdo desta, assim como também não exclui suas outras
form as de manif estaç ão. O conhec imento, como já dissemos,
supõe a descoberta do novo, de novas propriedades e ligações
do objeto do qual tomam os consciência. Mas a consciência não
está sempre ligada ao reflexo do novo, ela pode funcionar
igualmente no plano do conhecido, sobre a base de conheci-
ment os já existentes na sociedade. Esse pon to escapa a certos
autores que, para caracterizar a consciência, indicam que ela
está ligada apenas a novos momentos, anteriormente desconhe-
cidos do sujeito, da real idade ambiente, do objeto do qual
toma mos consciência. E po r isso que ela manifes ta-se apenas
quando o sujeito defronta-se com uma situação desconhecida
e que está ausente nos casos em que se repete o que já aconteceu
uma vez, aquilo com que o sujeito já se defrontou várias vezes.
O sábio alemão E. Schrõdinger desenvolve o seguinte tipo de
 pont o de vista sob re a consc iên cia: "P en et ra m na esf era da
consciência apenas as modificações ou as diferenças graças às
quais uma nova corrente de fenômenos distingue-se das prece-
dentes .. . " . Par a ilustra r seu pensamen to com exemplos, ele
4 5

 prossegue: "Nós tomamos o caminho habitual pa ra ir pa ra o tra-


 balho, passamo s do outro lado da rua, atrave ssamos sempre no
mesmo lugar, pensa ndo em outra coisa. Se produzir-s e uma mo-
dificação na situação (p. ex., se o caminho estiver fechado e nós
tivermos de con tor ná-l o), isso pene tra na consciência. A
rami fica ção do caminho é igual mente fixa. Se a situação
apresenta diversas variantes (como, p. ex., às vezes vamos à
universidade, às vezes ao instituto de física), nós escolhemos
as variantes de nossas reações racionais (ou atravessamos ou

45
E. Schrödinger,  Geist und Materie,  Braunschweig, Yieweg, 1961,
v. 2, p. 6.

.101
 

continuamos em frente) de maneira automática, completamente


inconscient e. Assim, as diferent es variante s de ramifica ção
colocam-se umas sobre as outras, em número infinito e somente
as variantes novas, que não requerem treinamento, penetram
na consciência" . "E u poder ia resum ir as coisas da seguinte
46

maneira: a consciência está ligada à educação da substância


orgânica, à habilidade orgânica e inconsciente" ?.
4

Assim, segundo Schrodinger, todo fenômeno está "ligado


à consciência do sujeito apenas na medida em que ele é novo
 pa ra o sujeito" , e tudo o que se repete "sai da esfera da
48

consciência" . 49

Schrodinger tem razão quando considera que as ações


uniformes, que se repetem freqüentemente, são automática e
inconscientemente efetuadas pelos homens. Mas isso não quer
absolutamente dizer que eles não têm consciência da situação
na qual eles se encontram, embora ela repita casos precedentes.
Por mais automáticas que possam ser suas ações, os homens
não podem deixar de estar conscientes do lugar em que eles
se encontram, do que eles fazem, do que se produz na realidade
que os rodei a. Em uma palav ra, apesar do autom atism o da
execução dessa ou daquela ação, o homem não perde jamais a
compreensão do que se passa mesmo que isso não tenha nada
de novo, de diferente em relação a algo que já foi feito várias
vezes. Isso é natu ral, já que essa com pre ensã o é atingida não
apenas pelo conhecimento, a colocação em evidência do que é
supostamente novo, do que ainda é desconhecido, mas igual-
mente pela utilização das informações das quais dispõe o
sujeito sobre a realidade que o rodeia, de conhecimentos do
que já se repetiu muitas vezes.
Mais acima falamos dos caminhos da compreensão do que
se passa com o sujeito, por um lado, e com a realidade que o
rodeia, por outro. Mas qual o papel que a compreensão do
que se prod uz desempenha na vida dos homens? El a é a con-
dição necessária da orientação do homem na realidade.
Apoiando-se sobre uma compreensão justa da realidade, sobre
o conhecimento de certos aspectos e ligações necessários, o

46
E. Schrodinger, op. cit.
47
E. Schrodinger, op. cit.
48
E. Schrodinger, op. cit.
49
E. Schrodinger, op. cit.

.102
 

homem, como se prevesse o futuro, reproduz sob a forma de


imagens o que ainda não existe, mas que deve se produzir em
decorrência dessa ou daquela modificação da realidade que o
rodeia, dessas ou daquela s ações exercidas sobre ele. A partir
desse reflexo antecipado da realidade, o homem fixa objetivos
correspondentes e a eles submete seu comportamento e suas
ações. A antecipação do futuro, baseada no conhecimento dos as-
 pec tos e ligações necessári os dos fe nô menos do mundo exterior
e sobre a compreensão do que se passa na realidade ambiente, e
a fixação, em conseqüência disso, constituem a função essencial
da consciência. A execução dessa fun ção é que distingue o
comporta mento do homem do comport amento do animal, a
atividade racional do homem, das ações instintivas dos animais.
"Uma aranha, escreve Marx, realiza operações semelhantes às
do tecelão, e a abelha, pela estrutura de suas células de cera,
con fun de a habil idade de mais de um arquit eto. Mas o que
distingue, antes de tudo, o pior dos arquitetos, da mais esperta
das abelhas, é que ele constrói a célula em sua cabeça antes
de construí-la na colméia. O resu ltad o ao qual se chega com
o trabalho preexiste idealmente, na imaginação do traba-
lhador'^.
O reflexo antecipado da realidade pela consciência está
não apenas na base da fixação do objetivo, na orientação ra-
cional do sujeito na realidade ambiente, mas igualmente na
 base da ati vid ade criadora e tr ansf orma do ra , aspec to necessá-
rio do tra balh o. Surgindo sob a ação imediata do trabalho
que supõe a transformação da realidade segundo as necessidades
da sociedade, com a ajuda das ferramentas criadas para esse
fim, a consciência não apenas torna possível a compreensão
dos atos executados, e cria uma imagem ideal do que deve
resultar dessas ações, mas também coloca em correlação, reúne
todas essas ações ao resultado final, isto é, a partir do conheci-
mento da situação efetiva das coisas e das possibilidades reais
que ela condiciona, a consciência cria qualquer coisa de novo,
que não existe na realidade e que, sendo expresso no sistema
de imagens ideais, torna-se um plano real da atividade material
transformando uma possibilidade dada da matéria em realidade.
Sem esse plano preciso indicando os caminhos da transforma-

50
K. Marx, op. cit., p. 136.

.103
 

ção da realidade, segundo as necessidades do homem, a ativi-


dade prática, laboriosa, é impossível. Isso confirma o fat o de
que a consciência, aspecto necessário da atividade produtiva,
forma-se e desenvolve-se ao mesmo tempo que esta última.
Embora sendo esse aspecto prático que transforma a
realidade objetiva da atividade em interesses da sociedade, a
consciência não se con fun de com essa atividade. Essa atividade
é um process o materia l. "O tra bal ho, escreve Marx, é antes
de tudo um ato que se pass a ent re o hom em e a naturez a. O
 próprio ho me m desempenha, nesse caso, fr ente a frente com
a natureza, um papel de potência natural ( . . . ) . As forças
das quais seu corpo é dotado, braços e pernas, cabeça e mãos,
são colocadas em movimento, por ele, a fim de assimilar as
matérias dando-lhes uma forma útil para sua vida" . Quanto
51

à consciência, é, por natureza, ideal; ela é o reflexo, a fotografia,


a cópia da realidade existente e a representação, repousando
sobre esse refle xo (sob a for ma de um sistema de imagens
ideais e de relações), da realidade futura, que atualmente ainda
não existe. Ela não é o processo real da criação de novas
formações materiais, mas sim o modelo ideal do processo de
criação e seu resultado, assim como o fator que controla o
desenrola r da cri ação, con fro nta ndo constan tement e a esse-
modelo os atos do sujeito e seus resultados.
Assim, a consciência repr esen ta um reflex o consciente
ideal por sua natureza, associado à compreensão, pelo sujeito,
do que é refletido, reflexo que antecipa a realidade, representa
de forma subjetiva o resultado de sua transformação e de
seu desenvolvimento, e, a partir disso, torna possível a fixação
do objetivo e a criação. Em uma palavra, a "consciência
humana não reflete apenas o mundo objetivo, mas também o
criado" . São somen te todos esses momen tos, em sua tota-
52

lidade, em sua correlação e interdependência orgânicas, que


constituem a essência da consciência, sua natureza específica.
A tentativa de reduzir as particularidades da consciência
unicamente ao reflexo da realidade conduz à supressão de sua
especificidade qualitativa e a identificá-la com formas inferiores
do reflexo.

K. Marx, op. cit., p. 136.


31

52V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 201.

.104
 

Certos críticos contemporâneos da teoria leninista do


reflexo estabelecem da seguinte maneira seu raciocínio: inter-
 pr etando a consci ência como reflexo da realidade, o marxismo
teria eliminado sua essência específica, pelo fato de que ele
a identifica aos processos de reflexo, próprios aos organismos
animais e vegetais e até mesmo às formações materiais da
natureza inanimada.
O filósofo iugoslavo Mihailo Markovic diz, por exemplo,
que o reflexo "não é uma característica específica da consciên-
cia humana; a percepção dos animais, o reflexo das plantas
e mesmo a interação dos objetos da natureza inorgânica são
igualmente formas particulares do reflexo" . De acord o com
53

esse ponto de vista, "do qual o representante mais característico


é Lenin, além de muitos outros, entre os quais Todor Pavlov,
Gajo Petrovic declara que toda nossa vida espiritual é, em sua
essência, reflexo . E toda s as for mas de nossa consciência são
apenas diferentes aspectos do reflexo subjetivo da realidade
objetiva. Mas a consciência não é a única font e de reflexo; a
matéria possui igualmente uma propriedade próxima da sen-
sação, a propri edade do reflexo. O reflexo é uma propriedad e
geral do mundo material. . . "54.
É correto dizer que o reflexo é próprio de toda a matéria.
Mas a decorrência disso não é a de que a consciência não seja
o reflexo da reali dade. A consciência represe nta uma forma
superior do reflexo que é própria ao homem e que aparece
apenas na sociedade, sobre a base da atividade produtiva trans-
for man do a real idad e ao redor no interesse do home m. 13,
 por isso que, jogando alg uma luz sobre a essência da consciên-
cia, nós não podemos ignorar o fato de que ela representa o
reflexo da r ealid ade. Por ém, outra coisa é dizer que essas
características são insuficientes par a colocar em evidência a
especificidade da consciência. Indi cando que a consciência é
uma forma superior do reflexo da realidade, devemos mostrai-
as particularidades dessa forma de reflexo que a distingue das
outras formas de reflexo da realidade. Essa particularidade
reside no fato de que a consciência é o reflexo consciente da

53
M. Markovic,  Humanizam i díjalektika,  Belgrado, 1967, p. 129.
54
G. Petrovic, Mladost, in  Filozofija i marksizam,  Zagreb, 1965,
 p. 252.

.105
 

realidade, a compreensão pelo sujeito, de seu ser e de seu


relacio nament o, com o que o rode ia; que ela está ligada à
fixação do objetivo e à atividade, tendo em vista realizar os
objetivos e, ao mesmo tempo, transformar a realidade; ou,
em outros termos, essa particularidade reside no fato de que
a consciência é um aspecto e uma condição necessários da
atividade criadora. Nenh um desses traços pertence às outras
formas de reflexo, anteriores à consciência.
Mas, será suficiente, na definição da consciência, indicar
apenas os momentos específicos que a diferenciam dos outros
fenômenos, sem mencionar que ela é um reflexo, já que esse
refle xo não a distingue de outr as for mas de refle xo? Não , isso
não é suficiente. O reflexo da realidade é uma propriedade
fundamental da consciência, que condiciona a possibilidade de
existência de suas outra s prop ried ades. Se a consciência perde
sua faculdade de refletir a realidade, ela perde também, ne-
cessariamente, todas as suas outras prop ried ades. De fato, a
tom ada de consciência, pelo sujeito , de seu ser e de seu
relacionamento com a realidade ambiente, na qualidade de
índice de consciência, é apenas o reflexo da realidade; o sujeito
não compreende o que se passa ao seu redor a não ser por
meio do reflexo, por meio da utilização da informação obtida
dessa maneira. A fixação da meta como funç ão determinada
da consciência apóia-se sobre as informações das quais o
homem dispõe e que são concernentes às propriedades e às
ligações da realidade ambiente, isto é, sobre os resultados do
reflexo, e, em última análise, sobre o reflexo das necessidades
do sujeito e ao mesmo tempo, de seu ser.
Enfi m, chegamos à atividade criad ora da consciência. Vá-
rios autores que se opõem à concepção da consciência como
reflexo da realidade pensam que o reflexo caracteriza o animal
e não o relacionamento do homem com a realidade. O homem,
declara m eles, é essenci almente criad or. A atitud e criadora,
 praticada com relação à realidade, é car act erística do homem.
É por isso, segundo eles, que a consciência do homem deve
ser considerada não como o reflexo da realidade, mas como
sua criação. "Qua ndo nós falam os da relação do homem e
da consciência humana com o mundo, declara Mihailo Mar-
kovic, devemos partir do fato de que somos seres práticos,
que antes de tudo nós tra bal ham os. Essa é nossa característica
fundamental. É por isso que ( . . . ) a propriedade do reflexo

.106
 

não é típica da consciência hum ana . Da mesma forma como


a teoria do conhecimento não é típica da filosofia marxista.
O reflexo não é típico da consciência huma na, porq ue ele
existe igualment e na consciência dos animais. O que é típico
 para a consciência do ho me m e sua ati tud e em relação ao
mundo é o fato de que esta atitude é criadora, ativa, prática" .
55

Segundo os partidários desse ponto de vista, o homem


não reflete, mas cria, transforma o mundo, e não o faz apenas-
quando age praticam ente sobre ele, mas também quand o o
inter preta e o explica. Criti cando a segunda tese de Mar x
sobre Feuerbach, segundo a qual os filósofos marxistas limi-
taram-se a interpretar o mundo de maneiras diferentes, sem
fixar-se como missão transf ormá-lo , Gaj o Petrovic escreve:
"Uma interpretação do mundo que não signifique sua trans-
formação é logicamente imp oss íve l.. . Quando o homem
interpreta o mundo, ele muda, pelo menos, sua concepção do
mundo e, modificando sua concepção do mundo, ele não pode
deixar de modificar seu relacionam ento com o mundo. Modifi-
cando sua concepção e sua conduta, ele influencia a compreen-
são e atividade de outros homens, que se encontram com ele
em diferentes relacionamentos.
É a prática que mostra até que ponto uma teoria modifica
o mundo. Mas, em princípio, uma teoria filosófica não pode
deixar de modificar o mundo. É impossível porque toda teoria
filosofia e, em geral, toda interpretação do mundo significam
uma certa criação do mundo" . 56

Assim, segundo Petrovic, toda explicação, todo conheci-


ment o do mund o constitui a criação , mas não o reflexo. O
reflexo é incompa tível com a criação . "Não há nad a nela de
criador" . "Co mo conseqüência, conclui Petrovic, a teori a
57

leninista do reflexo não tem valor científico, ela é 'incompa-


tível com a concepção marxista do homem enquanto ser criado,
 prático' . As tentat ivas de salvar a teoria do reflexo não têm
58

muitas chances de sucesso" . 59

 Neki problemi teorije odraza,  Belgrado, 1961, p. 140.


55

G. Petrovic, op. cit., p. 256.


56

G. Petrovic, op. cit., p. 257.


57

G. Petrovic, op. cit., p. 250.


58

G. Petrovic, op. cit., p. 256.


59

.107
 

Vejamos até que ponto esses raciocínios estão bem fun-


damen tado s. É exato que o traço distintivo do relac ionam ento
humano com a realidade é a transformação desta no curso da
atividade prát ica. E é igualmente exato que devemos part ir
desse fato para definir a essência da consciência, que surgiu a
 parti r da atividade laboriosa dos homens e que constitui uma
condição essencial de sua existência e de seu desenvolvimento.
Mas disso não decorre absolutamente que a consciência apenas
cria, sem nada reflet ir. A consciência não pode criar, não
 pode produzir na da de novo sem refletir a realidade, sem
apoiar-se em suas propriedades e ligações necessárias refletidas
nas leis de sua transformação e de seu desenvolvimento, porque
tudo o que é novo, que aparece na realidade objetiva, graças
ao homem, em decorrência da atividade criadora de sua cons-
ciência, deve submeter-se a leis objetivas, existentes for a e
indep enden temente da consciência. Além disso, toda verda-
deira criação é o reflexo e a realização na consciência e na
realidade de possibilidades reais.
É lógico que, se pela atividade criadora da consciência
compreendemos a criação de qualquer idéia, corresponda ou
não ela à realidade, seja ou não ela realizável, então o reflexo
não será um aspecto necessário da consciência e essa criação
não pode transformar a realidade, fazendo dela um meio de
satisfazer as necessidad es da sociedade. É por isso que ela
não pode constituir a essência das relações do homem com a
realidade . O relac ionam ento do homem com a reali dade ca-
racteriza-se unicamente pela criação que conduz a uma trans-
formação real da realidade ambiente, ao estabelecimento de
condições necessárias para a existência e a evolução da socie-
dade. Como decorr ência disso, só é possível quan do ela reside
no reflexo da realidade existente e de possibilidades reais que
lhe são próprias.
Segundo os críticos da teoria leninista do reflexo, a ativi-
dade criadora da consciência não deve repousar sobre o reflexo,
E se o reflexo é necessário, não será nunca para realizar a
transformação prática da realidade, assim como também não
será para a criação do novo, mas sim para conhecer o que já
foi criado. É por isso que o reflexo realiza-se não na criação,
nem no período que a precede, mas quando a atividade criadora
 já foi executada. "Ningué m poderia saber ant ecipadamente,
escreve sobre isso Dragan Jeremie, qual seria a sociedade

.108
 

iugoslava antes que os políticos e nosso povo tivessem começado


a criá-la. At é 1950 , ninguém poderia prever qual seria o
trabal ho dos conselhos operários. No começo, foi preciso
observar seu trabalho na prática para, em seguida, compreender
que era uma nova forma de gestão socialista dos meios de
 pr od uç ão ." Mais tarde, "a partir da prática, modificações
fora m-se pro duz indo em nosso sistema econômico. Em con-
seqüência, ele conclui, é preciso agir, criar, modificar e, em
seguida, observar atentamente como se desenrolaram as ações,
a criação, a tr an sf or ma çã o. .. "60. Segundo Jeremie, os ho-
mens criam cegamente, por acaso, sem saber o que resultará
disso.
É fácil compreender que tal criação, assim como a criação
arbitrária das construções conceituais, não constitui a essência
do relacionamento do homem com a realidade, a função ne-
cessária de sua consciência. A essência da atitu de do homem
em relação à realidade constitui a criação que repousa sobre
o reflexo da realidade existente e de suas possibilidades reais,
de seus aspectos e ligações necessários, das leis objetivas de
sua tra nsf orm açã o e de seu desenvolvimento. É precis amente
a essa atividade criadora que a consciência está ligada, porque
é precisamente ela que determina sua essência específica.
Assim, qualquer que seja o ângulo sob o qual abordemos
a característica da consciência, somos obrigados a nos referir
ao fato de que ela representa o reflexo da realidade, reflexo
específico que se distingue fundamentalmente de outras formas
de reflexo próprias à matéria, mas que dela nada mais são
do que o reflexo.
A tese segundo a qual há, na consciência dos homens,
 pensamentos, conceitos, juízos que, mes mo sen do verdade iros,
na realidade nada refletem é habitualmente apresentada para
refutar a concepção da consciência como reflexo da realidade.
"Todos nós, escreve Petrovic, emitimos a cada dia juízos ver-
dadeiros, de cuja veracidade não duvidamos absolutamente,
embora não possamos responder à seguinte pergun ta: 'O que
eles refle tem?' O juízo existencialista negativo, por exemplo,
é verda deiro , embo ra o que ele reflete não existe. Pod emos
inter preta r esse juízo como um reflexo da reali dade? O que

 Neki problemi teorije


eo
odraza,  p. 141.

.109
 

reflete o juízo: 'Os centauros não existem' ou, então, 'Não há


quadra do redon do'? Tod o o sistema dos juízos matemáticos
é um sistema de juízos verdadeiros, embora seja difícil precisar
o que eles refl ete m. O que reflete, pergunta-se o autor , o
 juízo de pa ssado, de fu tu ro , de pos sib ilidade, de impossibi li-
dade?'^.
Esse raciocínio não tem nenhum fundame nto real. Tem-se
a impressão de que, para o autor, só se pode tratar de reflexo
quando na consciência aparece a idéia de um objeto, de uma
 propriedade ou de um a relação, realmente existentes. Entre-
tanto, isso está muito longe da realidade, já que a consciência
fixa não apenas o que existe, o que é próprio a um objeto
dado, mas igualmente o que não existe, o que não caracteriza
o objeto. No prime iro e no segundo casos, os juízos nos
quais realiza-se esta fixação são verdadeiros unicamente porque
eles refletem a situação real das coisas.
• Os juízos de passado, de futuro, de possibilidade e de
impossibilidade são considerados por Petrovic a partir dessas
mesmas posições. Ele acha que é possível refletir apenas o
que existe no momento presente, no moment o dado. Mas,
os juízos sobre o passado, o futuro, o possível e o impossível
concernem ao que não existe em um momento dado¡ ao que
não existe no moment o presente. O autor nã o leva em conta
o fato de que o reflexo é não apenas imediato, mas também
mediato . O refl exo imedi ato supõe um objeto refle tido exis-
tindo realmente em um momento dado, enquanto que o reflexo
mediato supõe que o objeto pode não existir realmente em um
momento dado . Sua reprod ução na consciência faz-se por
meio do reflexo de outros objetos que permitem a expressão
desse ou daquele juízo verda deiro sobre ele. O que nos serve
de base para pensar no que foi e no que será, quanto aos
objet os real ment e existentes? A rep rodu ção na consciência
do passado e do futuro, a partir do reflexo do presente, é pos-
sível porque o passado existe igualmente sob uma forma anu-
lada no pr esen te. Ref letind o a essência dessa ou daquel a
formação material e descobrindo as leis de seu funcionamento
e de seu desenvolvimento, reproduzimos, de uma maneira ou
de outra, o processo de seu vir-a-ser, os graus transpostos de

61
G. Petrovic, op. cit., p. 254.

.110
 

seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, os traços que lhe


são próprios. Sendo conhecida a essência da form ação ma-
terial existindo realmente e colocando-se em evidência os
aspectos e tendências que lhe são próprios, podemos julgar
no que se tornará essa formação material no futuro, em outras
condições, e dizer como suas propriedades se transformarão,
o que elas virã o a ser. Esses juízos serão verdad eiro s e refle-
tirão a situação real das coisas.
A veracidade dos juízos de possibilidade e de impossibili-
dade resolve-se tam bém nesse plan o. A idéia de possibi lidade
ou de impossibilidade repousa sobre o reflexo da realidade,
dos aspectos e ligações que lhe são próprios e necessários, das
leis da transformação.
Para provar que o reflexo não é uma característica necessá-
ria da consciência, alguns se referem igualmente a fenômenos
da consciência, como as emoções e a vontade, que não refletem
nad a na realidad e. "Qu and o eu digo, escreve sobre isso Pe-
trovic, que ele (o reflexo — A. Ch.) é incompatível com o
fenômeno da consciência, penso que ele não pode explicar-nos
 porque, em que sen tid o e de que maneira to das as nossas
ações conscien tes reflet em a realid ade. O que refl ete a von-
tade e a emoç ão? O amor, o ódio, a inveja , a mal dad e serão
diferentes formas do reflexo de objetos exteriores aos quais
eles se dirigem?" . 62

Percebe-se facilmente que esses raciocínios repousam


sobre uma compreen são estreita e simplista do refle xo. Se-
gundo esse auto r, só pode ser reflexo o que rep rod uz na
consciência um objeto que se encontra diante de nós, enquanto
que a consciência reflete não apenas os objetos que agem sobre
os órgãos sensitivos do homem, mas também suas condições
de vida, as relações econômicas nas quais ele se encontra.
Ela reflete não apenas sob a forma de imagens ideais, repro-
duzindo esses ou aqueles aspectos dos objetos agentes, mas
também sob a forma de emoções, de aspirações, de estados
de espírito, de sentime ntos. Estes últimos, em part icula r, re-
fletem a importância, para o sujeito, dos fenômenos que agem
sobre ele e sua atitude com relação a eles.
Para provar que a consciência não pode ser um reflexo
da realidade, alguns se referem às leis da correlação do sujeito

62
G. Petrovic, op. cit., p. 254.

111
 

com o objeto, que testemunhariam de fato que a consciência


representa não o reflexo subjetivo da realidade, mas sua criação.
Danko Grlic diz que os que consideram a consciência como
um reflexo subjetivo do mundo objetivo "opõem claramente,
e sem qualquer equívoco, o sujeito a toda realidade objetiva
e assim excluem -na". "O que repr esen ta, perg unta ele, um
determinado sujeito, se ele não é nem uma realidade material,
nem uma realidade objetiva?". E ele mesmo respon de: "Trata-
se então de uma ficção vazia, uma ilusão, uma invenção,
alguma coisa irreal. . . " .
6 3

A identificação do conceito de sujeito e do conceito de


reflexo subjetivo da realidade objetiva deve reter nesse ponto
nossa atenção. São, de fato , coisas extr emame nte diferentes.
O sujeito — se não for o reflexo subjetivo da realidade, nem
a consciência, mas sim um sistema material — a sociedade,
formada pelos homens, a partir da produção, da partilha e do
consumo de bens materiais, que são dotados de uma consciência
e, por essa razão, estão em condições de refletir, em imagens
subjetivas, a realidade objetiva . Sendo um sistema social ma-
terial, o sujeito não se exclui da realidade objetiva, mas inter-
vém na qualidade de uma de suas partes constitutivas, de uma
das for mas do seu ser. Ele age tam bém sobre outras formas
de existência da matéria que o rodeiam, reflete suas proprie-
dades e suas ligações em imagens subjetivas que aparecem nele
no curso dessa interação e, a partir da informação que elas
contêm, transforma de maneira racional a realidade ambiente.
Entretanto, não se deve pensar que Grlic ignora tudo isso.
Ele sabe o que os marxistas entendem por sujeito e é por isso
que ele se vê obrigado a deter-se especialmente sobre essa
conce pção. "Podemos dizer, ele escreve . . . que o sujeito da
teoria marxista do reflexo representa um resultado histórica
e socialmente condicionado, que decorre da interpenetração
das leis dos fatores reais e do grau dado de desenvolvimento
social. Mas a dialética, par a certos 'teóric os', prossegue, não
é a confusão de conceitos, um ecletismo insensato, que salva
sua inconsequência por meio de frases sobre a interpenetração
de pólos opostos. Pelo fato de que o sujeito é o prod uto de
leis sociais, a tentativa de o introduzir na tese da imagem subje-
tiva do mun do objetivo é tota lmen te absurda. Nesse caso,

 Neki problemi teorije odraza,  p. 134.


S3

.112
 

não seria apenas o sujeito que seria uma ficção, mas também
todas essas leis econômicas, históricas e sociais, que conside-
ramos ilusões não objetivas, ineficazes e vazias e que opõem-se
à realidade" 64.
Assim, o reconheci mento da consciência como imagem
subjetiva da realidade objetiva deve, segundo Grlic, necessa-
riamente transformar o sujeito em alguma coisa de ilusório,
não efetivo, ou, em outras palavras, em uma ficção.
Mas de onde vem tudo isso? Por que então a faculdade
do sujeito de refletir, na consciência, sob uma forma subjetiva,
a realidade objetiva deve excluir o sujeito dessa realidade?
Por que essa faculdade deve transformá-lo em alguma coisa de
irreal? Pelo contrário, é precisam ente esse fato, isto é, a
 presença no sujeito da capac idade de um reflexo subjetivo da
realidade objetiva, do seu conhecimento, que o transforma em
um sujeito real, capaz de agir sobre o mundo ambiente e de
transformá-lo de forma criativa, porque, como já dissemos,
uma transformação que tende a uma meta da realidade pres-
supõe o conhecimento de suas propriedades e ligações necessá-
rias, das leis do seu funcionamento, do desenvolvimento e das
 possibilidades que disso dep endem. O suj eit o pri vado da
faculdade de refletir a situação real das coisas, de conhecer as
leis do movimento e do desenvolvimento do mundo ambiente
não está em estado de agir de maneira racional, de transformar
 praticamente a rea lid ade, de criar o novo. Sem isso, ele não
 pode ser um sujeito real, válido. Isso significa que nã o é a
 presença, no sujeito, da faculdade do reflexo subjetivo da rea-
lidade objetiva, mas sua ausência, que transforma o sujeito em
ficção, em alguma coisa de irreal.
Um outro argumento é apresentado contra a concepção
de que a consciência é o reflexo da realidade: se a consciência
representa o reflexo da realidade, seu desenvolvimento deve
necessariamente conduzir ao conhecimento definitivo da natu-
reza e da sociedade. Mas, nesse caso, o mund o inteiro teria
de ser contido em nossa consciência e, então, esta, como cons-
ciência humana, teria, a nosso ver, de desaparecer, perder sua
atividade e transformar-se em um espelho-refletor   u n i v e r s a l .
Esse raciocínio, assim como o seu precedente, não tem

 Neki problemi teorije odraza,  p. 133-4.


u

 Neki problemi teorije odraza,  p. 134.


e5

.113
 

nenhum fundamento real, não reflete a situação verdadeira das


coisas. Primeiramente, o conhecimento huma no nunca atingirá
o pon to de desenvolvimen to em que tud o será inteira mente
conhecido, em que o mundo inteiro será refletido na consciência
dos homens; isso é impossível, porque a realidade refletida não
é estática, mas transforma-se e desenvolve-se continuamente.
Em segundo lugar, nenhum desenvolvimento do conhecimento
 po de conduzir à tr an sfor ma ção da con sci ência de um homem
em consciência universal, porque as possibilidades de um indi-
víduo são sempre limitadas e ele não está em condições de
 possuir todo s os con hec iment os dos quais dispõe a humanidade.
Em terceiro lugar, o acréscimo dos conhecimentos dos homens
não apenas não elimina sua atividade, mas a reforça pelo fato
de que sua possibilidade criativa e seu campo de atividade
alargam-se.
A crítica da teoria marxista da consciência, considerada
como reflexo da realidade, reserva um lugar importante para
a demonstração da "falsidade" da tese leninista sobre a sensa-
ção como imagem subjetiva da realidade objetiva. Essa
demonstração é feita, em geral, da seguinte forma: toma-se
uma certa sensação, freqüentemente a sensação de cor, e mos-
tra-se que ela não é uma cópia exata, uma fotografia das ondas
luminosas de comprimentos correspondentes. Em seguida,
conclui-se que a teoria leninista das sensações como cópias,
imagens de objetos do mund o exterior é falsa . Proc edem
dessa maneira, em particular, A. James Gregor e H. B. Acton.
Tem-se a impressão, diz Gregor, de que a declaração leninista,
segundo a qual as sensações são cópias ou imagens de objetos,
deve ser incontestável, mas mesmo uma análise preliminar será
suficiente para evidenciar mais do que o caráter insensato dessa
afirmação.
"A primeira dificuldade, ele prossegue, surge com o exame
dos simples predicados que devem ser atribuídos aos objetos
do mund o exterior. O que temos em vista, por exemplo,
qua ndo dizemos de alguma coisa que ela é vermelha? A cor
vermelha da qual partimos não pode ser concebida em um
sentido pouco significativo, como uma 'cópia', um 'reflexo', ou
uma 'fotog rafia ' da onda luminosa de um comprimento de
647.760 milionésimos de milímetro" . 66

66
A. James Gregor, Lenin on the nature of sensations, in   Studies
on the left,  1963, v. 3, n. 2, p. 35.

.114
 

"A vibração do éter e a sensação da cor, escreve Acton,


desenvolvendo a mesma idéia exposta acima, são muito diferen-
tes uma da outra, embora pareça estranho supor que as cores
 percebidas sejam cópias, fotografias ou espel hos refletor es da
vibração" .67

Torna-se evidente, aqui, que esses autores dão aos termos


"cópia", "fotografia" e "reflexo" o mesmo sentido que eles
adquirem quando os empregamos para a concepção dos fenô-
menos físicos. Por cópia, eles ente ndem cópia física, p or
fotografia, clichê fotográfico, e por reflexo, reflexo do espelho.
Isso é o que se destaca, em particular, da afirmação de Gregor:
"Nós todos temos consciência do que entendemos quando fa-
lamos de 'imagens' no sentido de fot ografia , pensamos na
semelhança icônica — como se falássemos da semelhança de
um retrato" . 63

Mas Lenin dava um outro sentido a esses termos. Ele


salientava que as sensações são imagens subjetivas das coisas,
ideais, cópias, clichês ideais e não físicos . Sendo imagens
69

subjetivas, isto é, existindo unicamente na consciência dos


homens, as sensações sofrem a influência não apenas do objeto
refletido, ou de suas propriedades, mas também do homem
refletor, dependendo não apenas do objeto, mas também do
sujeito, de seus órgãos sensitivos, de seu sistema nervoso, de
seu estad o psíquico . Em outros termos, a sensação é o resul-
tado da interação do objeto com o sujeito, ela traduz a apre-
sentação do objeto ao sujeito e, como todo fenômeno, não
apenas exprime a essência do objeto agente, mas, ao mesmo
tempo, a deforma . Não é por acaso que todo fenômeno,
quando coloca em evidência a essência desse ou daquele objeto,
nã o coincide com ela, mas dela distingue-se. Isso é ainda
mais característico da sensação, que exprime a essência do
objeto agindo sobre os órgãos sensitivos do homem, não sob
uma form a material, mas sob uma for ma ideal, subjetiva.
Segue-se que a sensação não pode ser uma cópia literal e
completa, um espelho refletor fiel aos objetos, mas sim uma

87
A. B. Acton,  The illusion of the epoch. Marxism-leninism as a
 Philosophical creed,  Londres, 1955, p. 40.
e8
A. James Gregor, op. cit., p. 35.
69
V. Lenin, op. cit., p. 121.

.115
 

reprodução modificada, segundo as particularidades do sujeito


refletor, desses ou daqueles aspectos, propriedades, do objeto.
 Nã o se deve acr editar que isso te nha escapado aos críticos
da teoria leninista do reflexo. Eles citam especialmente a pas-
sagem em que Lenin faz referência à subjetividade das sensações
e o criticam. "Uma das tendê ncias do marxi smo contem porâ-
neo, escreve sobre isso A. J. Gregor, dá uma interpretação das
declarações de Lenin com um espírito crítico realista, isto é,
afi rma que a for ma da sensaçã o é subjetiva, enquan to seu
conteú do é objetivo. Em outros termos, a sensação de vermelho
é uma forma subjetiva 'do conteú do objetivo' da onda de
comprimento dos 647.670 milionésimos de milímetro".
" ( . . . ) Mas essa interpretação, ele prossegue, é vulnerável
e podemos fazer a ela numerosas objeções'" . 70

Em seu raciocínio cont ra a inte rpretaçã o da sensação


enquanto "imagem subjetiva do mundo objetivo", Gregor diz
o seguinte: "Se consideramos que a sensação possui uma for ma
subjetiva e um conteúdo objetivo no sentido anteriormente ci-
tado, poderemos então dizer de forma precisa que as sensações
'refletem', 'representam', 'foto grafa m' a realidade? Não seria
mais exato dizer que, nas melho res condições, as sensações
'assinalam' a 'realidade' (isto é, as ondas luminosas, os elétrons,
os fótons etc.), que pode ser deduzida apenas por uma análise
conceituai e uma construção lógica?'"? . 1

O fato de que a sensação seja uma imagem subjetiva não


exclui um outro fato, o de que ela reflete a realidade objetiva,
da qual ela é uma cópia. A necess idade do pensamento abstra-
to, da análise lógica e da síntese para estabelecer a situação
real das coisas e descobrir a essência do objeto agente sobre
os órgãos sensitivos não mostra que a sensação não reflete a
realidade, mas sim que ela reflete, copia seus aspectos exterio-
res, o que se encon tra na superf ície, isto é, o fenô men o. E o
fenômeno, como já dissemos, não coincide com a essência, ele
a def orm a. Refletindo o fenômeno e os aspectos exteriores
da realidade objetiva, a sensação não está em condições de nos
for nece r o conheci mento da essência. É por isso que surge a
necessidade do pensamento abstrato que, por meio da análise

70
A. James Gregor, op. cit., p. 38.
71
A. James Gregor, op. cit., p. 38.

.116
 

lógica das sensações e da edificação de construções correspon-


dentes, realiza a passagem do exterior ao interior e reproduz
de maneira mais ou menos precisa a situação exata das coisas.
É preciso salientar aqui que a passagem do exterior ao interior,
da fixação do fenômeno nas sensações à reprodução da essência
do objeto no processo do pensamento abstrato torna-se possível
unicamente porque a realidade objetiva, seus aspectos e seus
momentos são refletidos, são copiados nas sensações, porque
é apenas apoiando-se sobre o conhecimento desses aspectos e
 propriedades pró prios ao objeto refletido, existente objeti va-
mente com relação à natureza, que o conhecimento teórico
 pode edificar constru ções conceituais, que reproduzirão a
essência do objeto estudado no sistema dos conceitos abstratos.
Assim, a subjetividade das sensações e o fato de que elas
não estão em condições de fornecer o conhecimento da essência
do objeto agente sobre os órgãos sensitivos não provam que
elas não refletem a realidade objetiva.
A segunda objeção de Gi'egor à subjetividade das sensa-
ções é igualme nte sem fun dam ent o. "Se, ele declara, apenas
a forma subjetiva (as sensações) nos é imediatamente dada,
quem pode nos garantir que podemos adivinhar o conteúdo
objetivo da experiência sensível?" . 72

Quando Lenin diz que a sensação é uma imagem subjetiva


do mundo objetivo, ele entende por subjetividade a dependência
das sensações ao sujeito, isto é, sua existência na consciência
do homem, como form açõe s ideais, espirituais. Sendo subjetivas
 por sua fo rm a de existência, as sensações encerram, em seu
conteúd o, mome ntos que, sob uma for ma específica par a o
sujeito (sob a forma de imagens ideais conscientes), refletem
os aspectos correspondentes do objeto agente sobre os órgãos
dos sentidos do homem e têm "um conteúdo independente do
sujeito,, indep enden te do ho mem e da   h u m a n i d a d e " ,  a
7 3

 prese nça desses momentos obj etivos no conteúdo das sensações


garante o fato de que a experiência sensível nos dá um conhe-
cimento definido, verdadeiro, do mundo exterior, da realidade
objetiva.
Gregor entende a subjet ividad e a sua maneir a. Par a ele,
a subjetividade das sensações designa a ausência no mundo das

72
A. James Gregor, op. cit., p. 38.
73
V. Lenin, op. cit., p. 125.

.117
 

 propriedades das quais tomamos con sciên cia por meio das
sensações. É por isso, e não po r acaso, que ele nega a existên-
cia no mundo ambiente de todas as propriedades colocadas em
evidência pelos homens no proce sso do conhecimento. E ainda
mais, ele faz a imputação dessa negação a Lenin. " ( . . . ) Ago-
ra, com o aparecimento da relatividade e da física nuclear, ele
declara, não há mais qualidade única das 'coisas' que, em um
certo sentido, não seja 'ref utad a'. Ne m o comprimento, nem
a extensão, nem a cor, nem o gosto, nem a forma, nem a
estrutura, nem a impenetrabilidade podem apresentar-se como
qualid ades objetivas no sentid o ontológ ico. Sob a pressão
dessas considerações, Lenin foi obrigado a afirmar que a 'filo-
sofia do materialismo' não deve designar qualidades definitivas
do objeto percebido, com exceção da propriedade 'de existência
incondicional fora da   c o n s c i ê n c i a ' .  Depo is de ter feito de
7 4

Lenin um subjetivista, Gregor escreve que: "Se nós só somos


capazes de determinar corretamente, em parte, as propriedades
objetivas da matér ia, como pod emo s dizer que as sensações
'copiam', 'refletem' e 'fotografam' essas propriedades?" . 75

 No que concerne a Gregor, ele deve ter, é cla ro, liber dade
 para ter a representação que ele qui ser pa ra essa ou aquela
 pr op ri edad e da realidade ambiente. Ma s, pelo fa to de que ele
confere a Lenin seu próprio ponto de vista, devemos deter-nos
nesse particular e examiná-lo mais detalhadamente.
Em primeiro lugar, nem a teoria da relatividade, nem a
física nuclear refutaram a objetividade da existência das pro-
 priedades da matéria como o espaç o, o te mpo, a fo rm a, a estru-
tur a etc. Nã o é sua objeti vidade , sua existência fora e indepen -
dente mente da consciência que é ref uta da, mas seu caráter
absoluto, sua imutabilidade, sua independência com relação às
formas concretas de existência da matéria.
Em segundo lugar, falando da objetividade da existência,
como propriedade única da matéria, em cujo reconhecimento
está ligado o materialismo filosófico, Lenin não negava a exis-
tência, na matéria, de outras propriedades universais e especí-
ficas; como por exemplo, ele salientava especialmente que esta

74
A. James Gregor, op. cit., p. 38-9.
75
A. James Gregor, op. cit., p. 39.

.118
 

é inconcebível sem o movimento, fora das características


espaciais e tempor ais etc. El e fazia referên cia não à ausência
na matéria e nas formas concretas de seu ser dessas ou daquelas
 propriedades obj etivas, ma s à relatividade de nossas represen-
tações dessas propr iedad es, à inevitab ilidade da modi ficação
dessas representações no decorrer do desenvolvimento do co-
nhecim ento social e da práti ca. Mas, falando do caráter rela-
tivo de nossos conhecimentos dessas ou daquelas propriedades
da realidade objetiva, Lenin destacava que elas trazem em si
momentos de absoluto, que nem tudo em seu conteúdo muda
com o desenvolvimento do conhecimen to. Algum as idéias,
teses, conceitos, por refletirem de forma justa esse ou aquele
aspecto da realidade, permaneceram e constituem elos que
formam uma corrente infinita da verdade absoluta.
Logo, a a firmação de Grego r, segundo a qual "nós só
 podemos determinar corret amente um a pa rte das propriedades
objetivas da matéria", é, simplesmente, muito errada, não cor-
responde à situação real. A prátic a social mostra que podemos
determinar com precisão suficiente numerosas propriedades da
realidade ambiente. Ela demonstra constantemente que nossas
sensações refletem, copiam essas propriedades.
Certos autores, e em particular Acton, apresentam o se-
guinte argumento contr a a conce pção marxista da sensação
enquant o reflexo, cópia da real idad e obje tiva: "Se o sujeito
 perceptivo, ele declara , nu nc a tem acesso direto às realidades
materiais que existem fora dele, mas tem apenas acesso às
cópias que essas matérias produzem nele, então o sujeito não
 pode saber quais cópias são verdadeiras e quais são falsa s,
quais as que se assemelham e quais as que não se assemelham
a seus originais" . 76

Efetivamente, a realidade objetiva apresenta-se ao homem


sob a forma de imagens subjetivas que são suas cópias, mas
isso não significa que o homem não tenha acesso imediato à
realidade objetiva. Esse acesso é aberto para ele pela atividade
 prá tic a, no curso da qual, orie nt an do -j e pelas cópias ideais
dos aspectos e ligações dessa realidade que se encontram em
sua consciência, o homem transforma a realidade e assim ele
 própr io diz se essas cóp ias correspondem ou nã o ao original.

76
H. B. Acton, op. cit., p. 37.

.119
 

Da mesma maneira, referem-se freqüentemente ao fato de


que a concepção da consciência, como reflex o da realidad e,
não é específica do marxismo, que não repre senta o que o
marxismo trouxe de novo para o estudo desse problema e que
tal solução da questão é um feito não apenas de todos os
materialistas pré-marxistas, mas também de certos idealistas.
Alegando a concepção das sensações como cópias, foto-
grafias e imagens de coisas, expressa por Lenin, A. James
Gregor faz notar, por exemplo, que: "Tem-se a impressão de
que Lenin adota esse tipo de representação identificando-se com
o materialismo dos séculos XVII e XVIIF' ' . "A teori a do
7 1

reflexo, escreve sobre isso Markovic, não é típica da filosofia


marxista; desde Demócrito, ela foi defendida pelas diferentes
form as do realis mo ingênuo e do materia lismo mecanicista.
Esta teoria não exprime o elemento novo trazido por Marx à
Filosofia'" . Segundo Brank o Bosniak, se se trata da teoria
78

do reflexo, é interessante lembrar que ela não é específica da


teoria do materi alism o fi losófico. A teoria do reflexo foi
apresentada pela primeira vez no sistema filosófico de Platão,
que considerav a que tudo o que existe (o real ) deve ter seu
modelo em alguma coisa de absolu to (a idéia ) . . .'"79. A teoria
do reflexo, declara Dano Grlic, "evidentemente não é um
 produto especial do pensamento marxista e os mat eri ali stas nã o
são os únicos a aceitá-la. . . já que ela também é aceita por
vários idealistas objetivos . Pla tão que, por coisas objetivas
entende as idéias e também considera que o processo cognitivo
desenvolve-se no plano do subjetivo está, sem dúvida alguma,
de acordo com ela.. . "so.
É verdade que a concepção da consciência como reflexo
da realidade caracteriza não apenas o marxismo, mas também
a filosofi a pré-m arxista. É tamb ém verd ade que esta concepç ão
não constitui o elemento novo trazido pelo marxismo à Filo-
sofia. A filos ofia marxista não nasceu do nad a, ela é herdeira
de tudo o que é racional, de tudo o que foi obtido pela filosofia
 precedente. É precisamente a esse racional que se relac iona
a tese segundo a qual a consciência é um reflexo da realidade.

"A. James Gregor, op. cit., p. 36.


M. Markovic, op. cit., p. 129.
78

™Neki problemi teorije odraza,  p. 108.


"Neki problemi teorije odraza,  p. 134.
 s

.120
 

Tendo emprestado essa tese dos filósofos materialistas, Marx


e Engels não a deixaram em sua forma primitiva, mas a desen-
volveram. Eles a livrar am de seu caráter contemplativo e
mecanicista. Pa ra Mar x e Engels, o reflexo da real idad e
objetiva pela consciência não se produz passivamente, como
no espelho, nem de forma estática, como pensavam os materia-
listas pré-marxistas, mas de maneira ativa, criativa, sobre a
 base e no decorrer da tran sf orma çã o prática da realidade. E
tudo isso constitui precisamente o elemento novo introduzido
 por Ma rx e Engels na concepção do ref lexo da realidade
objetiva pela consciência, concepção da qual parte Lenin na
elabo ração da teor ia do reflex o. Os críticos da teor ia leninista
do reflexo a apresentam como se ela não se distinguisse em
nada das concepções da consciência, apresentadas pelos mate-
rialistas pré-marxistas.
Alguns, como Gajo Petrovic e outros, consideram que o
mérito de Marx e Engels foi o de considerar o homem como
um ser criador e de assim ter transposto o caráter contempla-
tivo do materialismo anterior, mas eles também afirmam que
a teoria do reflexo contradiz a essência da teoria marxista,
embora essas teses tenham sido apresentadas tanto nas obras
de Mar x e .Engels com nas de Lenin. Sobre isso Petrovi c
escreve que: "Eu sublinho que a teoria do reflexo é incompa-
tível com a concepção marxista do homem, como ser criador
 prático. Qu an do digo isso, não afirmo absolutamente que essa
teoria não se encontre nas obras de Engels e Lenin e mesmo
nas de Marx" . "Os elementos da teoria do refle xo, ele
81

 prossegue, são descobertos até mesmo onde não esperávamos


encontrá-los, como, por exemplo, na primeira parte da tese de
Marx sobre Fe uerba ch, se a examinamos isoladamente. Em
compensação, essa teoria encontra-se em contradição com toda
a concepção marxista do mundo e do homem" . 82

Outros ainda, percebendo a introdução feita por Marx,


do momento da atividade na teoria do conhecimento, dizem
que ele foi obrigado a adotar essa atividade para satisfazer sua
teoria materialista do desenvolvimento social. ( . . . ) Para ga-
rantir, escreve Henry B. Mayo, o fundamento determinista de

«G. Petrovic, op. cit., p. 255.


s G. Petrovic, op. cit., p. 257.
2

.121
 

suas leis de aço da história, Marx tinha freqüentemente a ten-


dência de adotar essa atividade (atividade do sujeito manifes-
tando-se no processo de sua interação com a realidade que o
rodeia — A. C h.) e faze r dela alguma coisa que se assemelha
às mais simplistas concepções de Engels e de Lenin, segundo
as quais a consciência é um simples reflexo da matéria dia-
lética'^.
Os críticos da concepção leninista da consciência como
reflexo da realidade não podem ou não querem compreender
que essa tese não somente não contradiz a concepção marxista
do homem enquanto ser prático criador, mas que ela é um
aspecto necessário dessa concepção e que não apenas ela não
conduz à diminuição da atividade do sujeito em sua influência
sobre a realidade ambiente, mas ainda que ela torna possível
o fundamento científico dessa atividade, descobrindo as condi-
ções da ação criadora do sujeito.
 No que concerne aos argumentos segundo os quais os
idealistas objetivos compartilham a concepção da consciência
como reflexo da realidade, e segundo os quais uma tal con-
cepção caracteriza a teoria de Platão, esses argumentos não
têm nenhum fun dam ento real. Par a os marxistas, a concepção
da consciência como reflexo da realidade está ligada à solução
materialista da questão fundamental da Filosofia e constitui um
aspecto necessário dessa soluçã o. A consciência é secundári a
em relação à matéria, porque é engendrada por ela em um
certo estágio de seu desenvolvimento e também porque é o
reflexo da matéria que existe fora e independentemente dela.
 Nenhum idealista po de aceita r essa soluç ão da questão. Pa ra
os idealistas, a consciência não é segunda em relação à matéria,
ela é primeira, engendra a matéria, as coisas sensíveis e, de uma
maneir a ou de out ra, reflete-se nelas. Par a eles, não são as
idéias que a constituem que são fotografias, cópias das coisas
materiais, mas, pelo contrário, estas últimas é que são cópias
das idéias. E isso é tam bém precisa mente o que acontece com
a solução dessa quest ão na teor ia de Plat ão. Parec e-nos, então,
muito claro que a concepção marxista da consciência, como
reflexo da realidade, não apenas nada tem em comum com
a concepção idealista e, em particular, com a concepção pla-
tônica, mas ainda que ela é diretamente oposta a elas.

83
H. B. Mayo,  Introduction of marxist theory,  New York, 1960, p. 44.

.122
 

Examinamos o conjunto dos principais argumentos apre-


sentados por diferentes autores contra a concepção marxista
da consciência como reflexo da realidade e vimos que eles não
têm fund amen to. A consciência é uma form a particula r, supe-
rior do reflexo do mundo exterior e é unicamente por isso
que ela pode orientar o homem na realidade ambiente e trans-
formá-la, modificá-la de forma criativa.

.123
 

IV. AS CATEGORIAS
COMO GRAUS
DO DESENVOLVIMENTO
DO CONHECIMENTO
SOCIAL E DA PRÁTICA

Com o surgimento da consciência, o reflexo da realidade,


 pelo sujeito, adquire um caráter consciente e manifesta-se, antes
de tudo, sob a forma de conhecimento, chamado para assegurar
à sociedade os conhecimentos necessários para a organização
e o desenvolvimento da produção, assim como a transformação
do meio ambiente no interese do homem.
Estando ligado organicamente à atividade laboriosa dos
homens e à prática, o conhecimento, como já fizemos observar,
funciona a partir da prática e desenvolve-se da intuição viva
ao pensamento abstrato, e do pensamento abstrato à prática,
como critério de verdade. Repetindo um númer o infinito de
vezes o ciclo: intuição viva-pensamento abstrato-prática, o co-
nhecimento desenvolve-se, descobre novos aspectos e ligações
e, em um certo estágio de seu desenvolvimento, começa a captar
e a distinguir as propriedades e as ligações universais e a tomar
consciência das leis universais da realidade e das formas uni-
versais do ser.
Os aspectos e as ligações universais conhecidos exprimem-
se, como já dissemos, nas categorias que, send o for mas do
reflexo do universal, são também, ao mesmo tempo, pontos
centrais, graus do movimento do conhecimento inferior ao
superior.
Em que ordem realizou-se o conhecimento das formas
universais do ser, das propriedades e das ligações universais da
realida de? Em que ordem surgiram as categori as filosóficas e
qual a relação existente entre elas, enquanto graus do desen-
volvimento do conhecimento social?
Vamos tentar aqui responder a essas perguntas.

.124
 

1. A RELA ÇÃO ENT RE


AS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA ENQUANTO
GRAUS DO DESENVOLVIMENTO
DO CONHECIMENTO

Sabemos que a forma primeira, a mais simples do apareci-


mento da consciência, é a tomada de consciência, pelo homem,
de sua existência, a separação de si com relação à natureza e a
compre ensão de sua relação com ela. O animal não se distingue
da real idade que o rodeia, ele não sabe que existe. "O animal,
escrevem a esse respeito Marx e Engels, 'não está em relação'
com nada, não conhece, somando tudo, nenhuma relação.
Para o animal, suas relações com os outros não existem en-
quan to rela ções "!. É o homem que, tendo já adquir ido a
consciência, not a pela primeira vez sua existência e toma
consciência de seu relacionamento com o mundo exterior.
Desligando-se da natureza pelo trabalho, o homem toma
consciência de sua autonomia e de seu relacionamento com o
mundo exterior por meio da ação ativa que ele exerce sobre
este último, transformando-o, segundo seu projeto, no interesse
da soc iedade. Isso condicio na o fa to de que a rela ção do
homem com o mundo exterior manifeste-se, antes de tudo,
como uma interação com o mundo, cujo resultado é a trans-
formaç ão deste último. Esses momentos do relacionamento
do homem com a realidade ambiente são captados por meio
dos conceitos de correlação e de movimento.
A separação em si, com relação à natureza, supõe a tomada
de consciência pelo homem da espacialidade, da existência dos
obje tos for a dele e, ao mesmo tempo , do aparec iment o da
representação, depois do conceito de espaço, das características
espaciais. O conhecimento das particularidades das transfor-
mações intervindo na realidade ambiente, em decorrência da
atividade laboriosa, conduz à formação do conceito de   tempo,
como medida de toda  modificação  e de todo  movimento  con-
cretos.
Confrontando-se no processo do trabalho e na vida quo-
tidiana com o  particular,  isto é, com os objeto s, fenômenos,
 proce sso s parti cular es, o home m distingue aqueles dentre eles

'K. Marx, F. Engels,  L'idéologie alemande,  p. 59.

.125
 

que,'estando de uma maneira ou de outra ligados a sua atividade


vital, poderiam ser utilizados para a satisfação dessa ou daquela
necessidade da socied ade e os concebia, no começo, como
alguma coisa  singular,  inédita, jamais encontrada.
Mas, à medida que foi descobrindo outros objetos, capazes
de satisfazer a essa mesma necessidade, o homem os reuniu em
um mesmo grupo e fez deles uma representação geral, depois
um conceito, e assim executou a passagem, na consciência, no
 pensamento, do singu lar ao  geral   e, no curso do desenvolvi-
mento ulterior da prática, ao  universal.
Tomando consciência do particular (objeto, processo,
fenômeno) como singular, o homem julgava-o sob o ângulo de
sua  qualidade  e esforçava-se para elucidar o que representava
esse objeto. Nesse grau do desenvolv imento do conhe ciment o
do objeto, as características quantitativas eram indiferenciadas
e manifes tavam- se como qualitativas. Mas, à medida que o
homem passava de um objeto para vários, e comparando-os na
 prática e na con sciência, ressaltava sua semel hança, isto é,
o geral e o diferente (particular), ele começava a tomar cons-
ciência das características  quantitativas.  Cada aspecto da qua-
lidade, cada  uma de suas  propriedades pareciam desdobrar-se;
ao lado da manifest ação do que ela repres entava, revelava
também sua grandeza.
As características qualitativas e quantitativas distinguidas
nesse grau do desenvolvimento do conhecimento são considera-
das pelo homem como coexistentes, independentes umas das
outras. O desenvolvimento ulterior do conhecimento do objeto
conduz à descoberta da correlação e da interdependência orgâ-
nicas das características qualitativas e quantitativas, de sua in-
terpenetração e de sua passagem de uma a outra.
Com o conhe cimen to da corre lação entre os diferentes
aspectos da qualidade, entre as características quantitativas e
as passagens recíprocas da quantidade e da qualidade, o ho-
mem consegue tomar consciência de que a transformação de
um aspecto, de uma propriedade, de um fenômeno é condicio-
nada por uma certa modificação de um Outro aspecto, uma
outra propriedade, um outro fenôme no. O que engendra o
outro e condiciona seu aparecimento reflete-se no conceito de
causa-,  o que é engendrado e condicionado reflete-se no conceito
de  efeito.

.126
 

O estudo da ligação de causa e efeito, mostra que, em


certas condições, a causa engendra o efeito corespondente, que
a ligação da causa e do efeito possui um caráter necessário.
Surge, então, o conceito de  necessidade.  A necess idade é,
antes de tudo, concebida como propriedade da ligação de
causa e efeito. Entre tanto , no decorrer do desenvolvimento
do conhecimento, o conteúdo do conceito de necessidade vai
 precisando-se. Começa-se a consid erar como necessários nã o
somente os laços causais, mas também todas as ligações que
se manifest am necessariamente em certas condições, e não
apenas as ligações, mas também as propriedades e os aspectos,
 próprios ao objeto po r sua natureza. As ligações neces sár ias
estáveis, repetindo-se, começam a ser consideradas como leis,
a ser conce bidas mediant e o conceito de  lei  especialmente
criada pelo seu reflexo .
 medida que vão-se acumulando conhecimentos sobre
as propriedades e ligações (leis) necessárias no domínio estu-
dado da realidade, surge a necessidade de reunir todos esses
conhec iment os em um tod o único e de conside rar todo s os
aspectos (propriedades) e ligações (leis) necessárias do objeto
em sua  interdependência  natural. A reprodução , na consciência
e no sistema, de imagens ideais (conceitos) do conjunto dos
aspectos e ligações necessários próprios ao objeto representa
o conhecimento de sua  essência.
O movimento em direção da essência começa com a defi-
nição do fundamento — do aspecto determinante, da relação
 — que de sempenha o pa pel de célula original na to ma da de
consciência teóri ca da essência do tod o estud ado. A dedu ção
(explicação), desde o princípio de partida, de todos os aspectos
que constituem a essência do objeto supõe a análise do funda-
mento (do aspecto determinante, da relação) em seu movimen-
to, seu aparecimento e seu desenvolvimento, porque é precisa-
mente no curso de seu desenvolvimento que o fundamento faz
nascer e transforma outros aspectos e relações do todo (do
fun dam ent ado) e assim form a sua essência. A representa ção
da célula original (do fundamento) do todo estudado em mo-
vimento e em desenvolvimento presume a descoberta de ten-
dências contraditórias que lhe são próprias, da luta dos contrá-
rios que condiciona sua passagem de um estado qualitativo a
outro . Assim, o conheci mento, desenvolvendo-se, chega final-

.127
 

mente à necessidade da formação das categorias de   "contradi-


ção",  de  "unidade"   e de  "luta dos contrários".
Colocando em evidência a  contradição  própria do funda-
mento e seguindo seu desenvolvimento e sua resolução, assim
como a transformação do objeto, o sujeito descobre que a
 pas sag em do objeto de um estado qualit ativo a outro, efetu a-se
mediante a  negação dialética  de certas formas do ser por outros,
a manutenção do que é positivo no negativo e a repetição do
que já passou sobre uma nova base superior. Os conceitos de
negação dialética  e de  negação da negação  surgiram para re-
fletir essa lei.
O conhecimento do objeto não termina com a reprodução
da essência na consciência. Ele vai ainda mais longe: po r
um lado, da essência ao fenômeno (as propriedades e as liga-
ções contingentes exteriores explicam-se a partir dos aspectos
e das ligações int erio res ), por outro lado, da essência da
ordem primeira à essência da ordem segunda e assim suces-
sivamente até o infinito (à medida que descobrimos novas
 propri edades e ligações necessárias do objeto, são produzidas
a elucidação teóric a de sua essência e a elaboraç ão de um
sistema de conceitos por seu reflexo, que é sempre mais pre-
ciso e completo).

2. ORDEM DE APARE CIMEN TO


E DE APLICAÇÃO DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA NO CURSO
DO DESENVOLVIMENTO
DO CONHECIMENTO CIENTIFICO
Pode-se observar a lei do movimento do conhecimento
de uma categoria a outra no desenvolvimento dos conhecimen-
tos científicos. Pelo fato de que as categorias são graus ne-
cessários do desenvolvimento do conhecimento social, o mo-
vimento de umas às outras deve necessariamente surgir em
qualquer domínio do saber.
Tomemos como exemplo a história do desenvolvimento do
conhe cimen to dos fenômenos elétricos. Sabe-se que na Anti-
güidade o âmbar foi descoberto sob a forma de objetos par-
ticulares, existindo de for ma autô noma . Com o manuse io do
âmbar, do qual faziam jóias e ornamentos, os homens notaram
que, fric cion ado, ele adquiria a facu ldad e de atrair outros

.128
 

corpos . A primeir a coisa que foi obser vada nesse fenô meno
foi a ligação existente entre a faculdade do âmbar de atrair
outros corpos e a fricção, e a ligação do âmbar, pela atração,
com outros corpos, assim como as modificações condicionadas
 por essas ligações (i nter ações), isto é, o movimento. Tudo
isso no começo não passou de observações isoladas, concernin-
do certos casos de polime nto do âmbar. Em seguida, à medida
que esse fenômeno se reproduzia, os homens conceberam a
idéia de que o âmbar era uma substância capaz de manifestar,
 po r meio da fricção, propriedades elétricas. O des envolvime nto
ulterior do conhecimento da eletricidade prosseguiu com a des-
coberta de novos corpos capazes de manifestar, por meio da
fricção, propriedades elétricas e da formação, assim, de uma
repre sent ação sempre mais geral da eletricidade. Na Grécia do
século IV, antes de nossa era, por exemplo, a propriedade de
atrair corpos leves por fricção foi observada em uma pedra
 preciosa chamada  lynkurion.  No fim do século XVI , o sábio
inglês William Gilbert descobriu essa mesma propriedade no
diamante, na safira, na ametista, no cristal de rocha, no enxo-
fre , na resina e em outras substâncias. Em seguida, ficou
estabelecido que a faculdade de uma substância de atrair por
fricção outros corpos (mais. leves) pertencia a todos os corpos
maus condu tores de eletricidade. Fina lmen te, no começo do
século XVIII (1729), o físico inglês Stephen Gray descobriu
essa faculdade em corpos que eram também bons condutores
de eletricidade . Ele estabeleceu, então, que se esses corpos
fossem colocados sobre um suporte isolante, eles poderiam ser
eletrizados por fricção.
 No dec orrer dessas pesquisas, as caract erísticas qualitativas
e quantita tivas dos fenômenos elétricos for am colocadas em
evidência. Depois de haver descoberto a prop ried ade do
âmbar de, friccionado, atrair outros corpos, os homens esfor-
çaram-se, naturalmente, para compreender o que representava
esse fenômeno, isto é, esforçaram-se para elucidar seu aspecto
qualita tivo. E par a conseguir isso, eles com para ram esse a
outros fenômenos. Comparand o os fenômenos elétricos com
os fenômenos eletromagnéticos, Gilbert (1600) observou, por
exemplo, que a força elétrica surge graças à fricção, que desa-
 parece no momento do contato com alguns corpos , que atrai
os mais diferentes corpos etc. Mais tarde, Guericke (16 72)
estabeleceu que ao lado da atração elétrica existe também a

.129
 

repuls ão elétrica. Em 1729 Stephen Gray, generalizando várias


experiências com a eletricidade, concluiu que todos os corpos
dividem-se em condutores e em isolantes . Algum temp o depois
(1730), Du Fay estabeleceu que a eletricidade é qualitativa-
mente heterogên ea e que há dois tipos de eletricidade. Em
1749, Franklin descobriu que, no momento da eletrificação
dos corpos, manifestam-se sempre dois tipos de eletricidade,
iguais em qualid ade. Alguns anos mais tarde, Joh n Cant on
descobriu a faculdade que um corpo, colocado sobre um suporte
isolante, tem de eletrificar-se, se dele for aproxim ado um
outro corpo carre gado de eletri cidade etc. Assim, evidencian-
do uma após a outra, as propriedades da eletricidade, os sábios
formaram uma idéia cada vez mais completa de sua qualidade.
Depois de ter sido dada uma certa explicação sobre o
aspecto qualitativo dos fenôm enos elétricos, a aten ção dos
 pes qui sad ore s voltou-se em direção ao asp ect o quant itativo e
às características desses fenô menos. Charles Coulomb deu
um passo decisivo no estudo do aspecto quantitativo da eletri-
cidade. Utilizan do um apar elho que ele havia criado para
medir as forças de atração e de repulsão elétricas (balança
de torsão), estabeleceu, em 1784, uma série de características
quantitativas fundamentais da eletricidade.
A partir do século XIX, observa-se a passagem ao estudo
da correlação entre os diferentes aspectos quantitativos e qua-
litativos, assim como entre as características qualitativas e
quantita tivas dos fenômenos elétricos. Em 1826, o físico
alemão Ohn provou que a resistência do condutor depende do
comprimento desse condutor, da superfície de sua secção e de
sua natur eza. Bem mais tar de, o acadêmico russo Lenz e o
físico inglês Joule estabeleceram que a quantidade de calor
desprendida no momento da passagem da corrente elétrica em
um condutor depende da resistência desse condutor, da inten-
sidade da corrente e de sua duração.
 No decorrer da análise da correlação das características
qualitativas e quantitativas dos fenômenos elétricos, foi feita
a tentativa de estabelecer o laço de causa e efeito desses fenô-
menos e de colocar em evidência as causas que os condicionam.
Assim, no começo do século XIX, o italiano Volta explicou
que há o aparecimento de uma corrente elétrica quando metais
diferentes são reunidos por uma articulação úmida. Em 1821,
o francês Arago descobriu que a agulha imantada desvia-se

.130
 

no campo de uma corrente elétrica; em 1831, Faraday explicou


 porque a rota ção de um círculo de cobre provoca o desvio da
agulha imantada etc.
Os laços de causa e efeito, colocados em evidência nos
fenômenos elétricos, foram apresentados como necessários, pro-
duzindo-se necessariament e em certas condições. Arago, por
exemplo, apresentou como necessário o laço de causa e efeito
no aparecimento de um campo magnético em torno de um con-
dutor percorrido pela corrente elétrica; o laço do campo
magnético e do desvio da agulha iman tada foi apres enta do
como necessário por Oersted.
As ligações necessárias mais importantes são concebidas
media nte a categor ia de lei. A dependência da resistência
do condutor de sua substância, de seu comprimento e da
superfície de sua secção, por exemplo, colocada em evidência
 por Ohm, foi ch am ad a de lei. A quantidade de calor emitid a
no momento da passagem da corrente elétrica pelo condutor
depende necessariamente da resistência do condutor, da inten-
sidade da corrente e do tempo; isso foi expresso em uma lei da
Física por Lenz e Joul e. Por meio da categoria de lei foi
concebida a ligação necessária, evidenciada por Faraday, entre
a substância depositando-se sobre os elétrons e a quantidade
de eletricidade que atravessa o eletrólito etc.
À medida que houve o acúmulo de conhecimentos sobre
os aspectos e as ligações (leis) concernentes aos fenômenos
físicos, houve também a tentativa de estabelecer sua interde-
 pen dênci a, de reuni-los em uma teoria única, isto é, de re pro-
duzir na consciên cia a essência da eletricidade. O perí odo
do desenvolvimento do conhecimento dos fenômenos elétricos,
que começou com a descoberta do elétron e do próton. é um
exemplo do grau d o moviment o do conhecimento. Com a
descoberta do elétron, portador de carga elétrica negativa, e
depois com a descoberta do próton, cuja carga é positiva, o
átomo foi considerado como uma formação material consti-
tuída por uma quantida de igual de elétrons e de prótons . A
carga do corpo era explicada pelo fato de que, por determina-
das razões, o número de elétrons não correspondia ao número
de próton s. Se havia meno s elétrons do que próto ns, o corpo era
considerado como tendo carga positiva, se havia mais elétrons
do que prótons, o corpo era considerado como tendo carga
negativa. Segund o essas concepções, a eletrificação dos corpo s

.131
 

não representava nada mais do que a criação neles de uma


insuficiência ou de uma superabundância de elétrons para sua
transmissão para outros corpos ou seu empréstimo destes
últimos. Isso explicava porq ue o apare ciment o de uma certa
carga elétrica em um corpo acarreta necessariamente o apare-
cimento de uma carga oposta equivalente em um outro corpo.
Partindo da interação dos elétrons e dos prótons, a divisão da
carga entre os corpos carregados ou não-carregados no mo-
mento de seu contato, assim como o desaparecimento da carga
no momento do contato de corpos carregados opostos e a
introduçã o eletroestática etc. eram facilmente explicados. A
descoberta do elétron, como parte constitutiva do átomo de
qualquer substância, permitia igualmente a compreensão do
fat o de que certos corpos são condut ores de eletricidade,
enquanto outr os corpos não o são. Esse fenôme no está ligado
à estrutura da camada eletrônica dos átomos. Partin do da
estrutura eletrônica, a essência de alguns fenômenos elétricos
torna-se compreensível, como, por exemplo, a corrente galvâ-
nica, a termoeletricidade, a introdução eletromagnética etc.
Dessa forma, o elétron constitui a base, o elo fundamental e
decisivo a partir do qual poderia ser explicado o conjunto
dos fenômenos elétricos, representando-os como um todo, como
uma corrente única da manifestação da natureza eletrônica da
substâ ncia. Nesse estágio de seu desenvolvimento, o conheci-
mento consegue captar a essência da eletricidade e compreender
as propriedades (fenômenos) elétricas em sua ligação necessá-
ria e em sua interdependência.
Assim, o desenvolvimento do conhecimento da eletricidade
testemunha que o conhecimento começa com a colocação em
evidência do particular, dos fenômenos particulares, de seu
isolamento e que passa ao reflexo de sua correlação, de sua
interação e da modificação (do movimento) desses fenômenos
 particulares, que ele acarr eta. No começo, o particular era
 percebido como singular, depois, no curso da co mpar aç ão com
outros fenômenos (objetos) particulares, o geral distinguiu-se
e houve o movimento do menos geral para o mais geral e,
enfim, para o univers al. No processo do movim ento do co-
nhecimento, do singular para o geral, efetua-se a evidenciação
da qualidade e da quantidade do objeto estudado e a passagem
da primeira à segunda, assim como sua correlação e, depois,

.132
 

a passagem à causalidade, à necessidade, à lei, ao fundamento,


à contradição e à essência.

3. A REL AÇÃ O DAS CATE GORI AS


COMO PONTOS CENTRAIS,
CONSIDERADA SOB O ÂNGULO
DO DESENVOLVIMENTO
DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

A lei do movimento do conhecimento de uma categoria a


outra, que mencionamos acima, aparece claramente na história
da Filosofia, na ordem do estudo das categorias e da elaboração
das formas de movimento do pensame nto filosófico. Para
examinar esse ponto, deteremo-nos um pouco na história da
Filosofia ocidental.
Os primeiros filósofos gregos, Thales, Anaxímenes e Ana-
ximandro davam uma importância excepcional às categorias
de "ligação" e de "movimento". Essas categorias desempe-
nhavam o papel de princípios iniciais na elaboração de suas
concepçõe s do mun do. O estudo das categorias de correla ção
e de movimento tornou necessária a análise dos conceitos de
espaço e de tempo. Os filósofos da Antigüida de referiam-se
aos conceitos de espaço para fundamentar o ser real das coisas
e de seu movimento . Para a existência e o movi ment o das
coisas, segundo eles, é preciso um lugar, isto é, o espaço. Lu-
crécio, por exemplo, dizia que se não houvesse nem espaço,
nem lugar — o que nós chamamos de vazio — os corpos
não poderia m encontrar-se em lugar algum e também não
 pode ri am desloc ar-se. A fo rm ação do conceito filos ófi co de
espaço encerrou-se com a filosofia de Aristóteles que foi o pri-
meiro a utilizar esse conceito como categoria. Considerando
o espaço como um lugar ocupado alternadamente pelas coisas,
ele relaciona essa categoria com o limite que separa um corpo
do outro e assim reúne a categoria de espaço à categoria de
relaçã o. No que concern e ao conceito de temp o, apenas Aris-
tóteles o estabeleceu definitivamente como categori a. Ò tempo,
segundo Aristóteles, é uma característica do movimento que
exprime nele a duraç ão. O tempo, salientava Aristóteles, é
apenas "o número do movimento" . Par a most rar a ligação
2

2
Aristóteles,  Phisique,  Paris, I-IV t. 1, v. 1-4, p. 150.

.133
 

orgânica do tempo e do movimento, ele escreveu: " . . . medi-


mos não somente o movimento pelo tempo, mas também o
tempo pelo movimento, porque eles determinam-se reciproca-
mente; já que o tempo determina o movimento, do qual ele é
o número, e o movimento, o tempo" . 3

 Nesse mesmo período desenvolveu-se a elaboração das


categorias do "singular" e do "geral". Os primeiros filósofos
gregos e, em particular, os representantes da escola de Mileto
elaboraram suas concepções partindo do particular, do singular
(da água, do ar etc), que tomava, para eles, a forma do ser
dos fenômenos concretos, embora também desempenhasse o
 pap el de princípio primeiro de tu do o que existe. Pa ra Platão,
a forma determinante do ser é o geral, as essências ideais gerais
que constituem o mundo real; quanto ao particular, ao singular,
Platão denomina-o o mundo das sombras, cópia imperfeita do
mundo das idéias.
Aristóteles empreende a tarefa de colocar em evidência
dialética do singular e do geral, do geral e do particular.
Considerando o mundo exterior, a realidade ambiente por
meio do prisma do particular, do singular, os primeiros filósofos
gregos estudavam os fenômenos que aí se desenvolviam sob o
ângulo de sua qual idad e. Os pitagóricos conc entr aram sua
atenção no aspecto quantitat ivo dos objeto s. No estudo desse
 probl ema, Empé do cl es e Anaxágor as deslocaram o centro da
gravidade para a correlação da quantidade e da qualidade.
Segundo Empédocles, por exemplo, a qualidade de uma coisa
é determinada pela propo rção na qual agrupam-se os quatro
elementos ("princípios") que a compõem: a água, a terra, o
ar e o fogo. Essa elaboração, e a transfo rmação posterior, dos
conceitos de qualidade e de quantidade e de sua correlação
em categorias foi efetuada por Aristóteles.
A filosofia de Aristóteles encerra o período do movimento
do conhecimento do singular ao geral e, em conseqüência, da
qualidade à quanti dade e de sua correlação. Mas, encerrando
uma etapa do movimento do conhecimento, Aristóteles come-
çava outra. Ele analisa as categorias de "cau sali dade " e de
"for ma". A filosofia da Idad e Média nada acrescentou à
contribuição de Aristóteles na elaboração dessas categorias
e também não trouxe nada de novo na análise das categorias

3
Aristóteles, op. cit., p. 153-4.

.134
 

de singular e de geral, que permaneceram, entretanto, sempre


no centro das atenções.
Mais tarde, a intelecção das categorias de causalidade e
de forma entra, juntamente com a filosofia de Francis Bacon,
nos tempos modernos.
Ao contrário de Aristóteles, segundo o qual a causa ori-
ginal encontrava-se fora da matéria, Bacon considerava que
as causas das coisas estão contidas nos elementos (as nature-
zas), a partir dos quais se forma a coisa, isto é, não fora da
matéria, mas nela própria . Procedendo à análise da causa-
4

lidade, Bacon pressentiu sua ligação com as categorias de forma


e de lei (nec ess ida de) . Segundo ele, as causas das natu reza s
 parti cular es (fen ômenos , pr opriedades ) são form as que não
representam nada além de leis®.
 Na questão da concepção da fo rm a, Francis Ba con deu
um grande passo a fre nte de Aristóteles que, sep ara ndo a
forma da matéria, reconhecia a existência de uma matéria
indefinida (in form e) e de uma form a imaterial pura e, parti-
cularmente, a for ma de todas as formas — Deus. Segundo a
teoria de F. Bacon, a forma é inseparável da coisa material,
existe nela mesma, determina sua natureza, é uma lei à qual
esta coisa é submissa .
6

Isso prova, precisamente, que a teoria de Bacon é que


representa esse estágio da história da Filosofia, que corresponde
ao grau de conhecimento ligado à colocação em evidência da
ligação de causa e efeito e à formação dos conceitos de forma
e de lei (necessidade).
Mas esse estágio não se encerra com Francis Bacon. En-
contramos o desenvolvimento da teoria da causalidade e de
sua ligação com a necess idade em Spinoza, que salien tou o
caráter geral, universal da ligação da causa e efeito, identifi-
cando com a neces sidad e. Ao mesmo temp o, Spinoza colocou
a questão da causa primeira, do fundamento dos fenômenos
observados no mundo, da maneira pela qual as coisas começa-
ram a existir e em que tipo de dependência elas encontram-se
com relação à causa primeira; ele via na substância que, sendo

4
F. Bacon,  Oeuvres de Bacon: Nouvel Organon, Essais de morale
et de politique de la sagesse des anciens,   Paris, 1945, p. 86.
F. Bacon, op. cit., p. 85-6.
5

6
F. Bacon, op. cit., p. 150.

.135
 

sua própria causa, é também o fundamento de tudo o que


existe.
Prosseguindo o estudo da causalidade e da necessidade,
começado por F. Bacon, Spinoza passa para um novo grau,
um novo ponto nodal do desenvolvimento do conhecimento —
 passa às cat ego rias do fu nd am en to e do fu nd am en ta do . Mas ,
tomando a substância como fundamento de tudo o que existe
e declarando-a eterna, infinita, imutável, Spinoza não podia
explicar o aparecimento e a modificação das coisas e dos fenô-
menos limitados no espaço e no tempo.
 No começo de sua ati vidade filosófica, Ka nt fez a pri mei ra
tentativa para resolver esse problema — deduzir o fundamen-
tado do fund amen to. Segundo a hipótese de Kant, o surgi-
mento e o desaparecimento dos mundos, das coisas e dos
fenômenos é o resultado de tendências (forças) contrárias pró-
 prias à matéria — a atração e a repulsa. Te nd o dado um passo
no estudo da correlação do fundamento e do fundamentado,
que consiste na colocação em evidência da natureza contradi-
tória do fundamento e na explicação, a partir dela, do funda-
mentado (aparecimento e transformação das coisas e dos
fenômenos particulares), Kant dedicou também uma grande
atenção ao problema da lei, da necessidade, da forma, problema
colocado e, de uma certa maneira, resolvido por F. Bacon e
Spinoza. O per íodo do estudo das categori as de necessário e
de contingente, de conteúdo e de forma estende-se até Hegel
que, na análise dialética dessas categorias, delimitou-as rigo-
rosamente, colocando em evidência sua unidade contraditória,
mostrando suas correlações e suas passagens de umas. às outras
e que, dessa maneira, marcou o fim dessa etapa do movimento
do pen sam ent o filosófico. Mas isso não é o essencial da filo-
sofia hegel iana. Ao nome de Hegel está ligado o estudo das
leis do movimento do conhecimento dirigido para a essência.
Dese nvol vendo a i déia de S pinoza, segundo a qual a
substância é sua própria causa, assim como a causa de tudo o
que existe, e desenvolvendo também a teoria de Kant sobre a
natureza contraditória da causa primeira, Hegel mostrou como
a substância (o fundamento) desenvolve seu conteúdo e en-
gend ra a diversi dade das for mas do ser. Na qualidade de
substância — de fundamento e de causa primeira de tudo o
que existe — é encontrada em Hegel a "idéia absoluta" que,
graças a sua natureza contraditória, no curso da negação

.136
 

dialética de certas formas do ser por outras, cria e, ao mesmo


tempo, fundame nta sua essência. Mostr ando o processo do
movimento do conhecimento em relação à essência, Hegel re-
consi derou e colocou em uma ligação necessária e em uma
dependência rigorosa todas as outras categorias da dialética.
Mas foi Marx quem apresentou, com uma base materialista
e científica conseqüente, leis da formação e do conhecimento
da essência, aplicadas à formação capitalista.
Como podemos ver, a ordem da elaboração das categorias
na história da Filosofia corresponde, em seu conjunto, à rela-
ção entre as categorias enquanto graus do desenvolvimento do
conhecimento social.

4. AS CATEGORIA S ENQ UAN TO GRAUS


DO DESENVOLVIMENTO
DA PRÁTICA SOCIAL
O conheciment o das form as universai s do ser dá-se no
decorrer da atividade prática, no processo da transformação,
orie ntad a em direção a uma meta e à reali dade. As ligações
e as propriedades universais colocadas em evidência exprimem-
se não apenas nas imagens e conceitos ideais surgidos no
decorrer do desenvolvimento do conhecimento, mas igualmente
 pelos mei os de tr ab al ho criados pelos ho me ns e pel as fo rmas
de sua atividade hum ana . É por isso que, no curso da for-
mação dessa ou daquela categoria, reflete-se não somente a
especifi cidade do estágio corres ponde nte ao desenvolvimen to
do conhecimento, mas também as particularidades de formas
da atividade dos homens, formas de relacionamentos existentes
entre eles, assim como as existentes entre eles e a natureza, que
são dominantes no período considerado como sendo o do
desenvolv imento histórico da sociedade. Por exemplo, a
correlação, a interação e a modificação (movimento), con-
cebidos pelo homem como formas universais do ser, nos pri-
meiros graus do desenvolvimento do conhecimento, são mo-
mentos necessários e universais do trabalho, da transformação
racional dos objetos da natureza em meios de existência.
Com efeito, a atividade laboriosa tem por meta transfor-
mar esse ou aquele objeto ou fenômeno da natureza, por meio
da ação de outro objeto (ferramenta) sobre ele, isto é, criar
entre esses objet os uma certa ligação. No processo do trabalho,

.137
 

colocando os objetos em uma outra ligação que não aquela


encontrada em seu estado natural e fazendo-os agir uns sobre
os outros, o homem conseguiu sua transformação no sentido
que lhe convi nha. Obse rvan do milhare s de vezes esse fenô -
meno , ele conclui u, inevitave lmente, que tudo na r ealid ade
ambiente encontra-se em correlação, em interação e que tudo
leva a modificações e transform ações de um no outro. Ainda
mais, é preci same nte essa convicção de que os objet os do
mundo exterior se encontram em correlação, agindo uns sobre
os outros, e, em decorrência, a convicção de que eles podem
transformar-se, que foi uma das condições necessárias para a
organização consciente e o desenvolvimento ulterior da produ-
ção. Se o hom em nã o soubesse ou não tivesse certeza de que
os objetos que o rodeiam pudessem transformar-se, ele não
teria começado a agir sobre eles, não teria igualmente organi-
zado a produ ção. Na Antigüidade, o próprio funcionam ento
e o desenvolvimento da produção provaram não apenas que
o homem conhecia a capacidade dos objetos do mundo exterior
de se transformar, em decorrência de sua interação, mas tam-
 bém que ele utilizava com sucesso esse conhecimento em sua
atividade laboriosa.
A história do desenvolv imento da t écnica test emunha a
utilização da interação e das transformações que esta última
implica, na atividade prática e, mais exatamente, no começo
do desenvolvimento do conhecimento. Por exemplo, as pri-
meiras formas de obtenção do fogo baseiam-se no fricciona-
mento de dois objetos, assim como as primeiras máquinas
elétricas basearam-se na interação, e assim por diante.
A influência da atividade prática — e, em particular, das
formas de ligação que se estabelecem na sociedade entre os
homens, das formas de suas relações — sobre a formação das
categorias, é expressa, por exemplo, pela maneira como se
estabelece o fundamento da ligação e do movimento universais
dados por Heráclito e que se baseiam na unidade (comunidade)
da natu reza primei ra de tudo o que existe. Pa ra prov ar que
todos os fenômenos do mundo estão ligados e que passam uns
 pelos outros, a part ir do fa to de qu e eles tê m uma natureza
comum — o fogo —, Heráclito compara o papel desempenhado
 pelo fogo no mu nd o das coisas ao pape l do ou ro na s relações
comerciais da sociedade huma na. Esse filósofo dizia que tudo
 po de ser tr ocado pelo fogo e o fogo po de ser tr oc ado po r

.138
 

qualquer coisa, assim como toda mercadoria pode ser trocada


 pelo ouro e o ouro por qualquer mercadoria.
A ligação da teoria de Aristóteles sobre os quatro tipos
de causas — final, normal, material, produtiva — na prática,
é bast ant e evidente. Aristóteles expõe a base de sua teoria
da causalidade, tomando, como exemplo, a construção de
uma casa.
Esse exemplo e o próprio fato de que Aristóteles tenha
apresentado quatro tipos de causas mostram que ele procurava
explicar o aparecimento das coisas na realidade ambiente por
analogia com a criação no processo da atividade laboriosa dos
homens.
A dependência da formação das categorias da dialética,
com relação à atividade prática, e o reflexo por elas desses
ou daqueles aspectos e formas surgem igualmente na elaboração
da conc epçã o mecanic ista da causalidade na filosofia pré-
marxi sta. Segundo essa concepção , as causas são forças exte-
riores que são aplicadas aos corpos para provocar o movimento.
Essa representação da causa tem suas raízes na atividade labo-
riosa, exatamente na forma que ela possuía quando realizava-se
essencialmente pela ação do organismo humano sobre o mundo
exterior, assim como no mecanismo terrestre baseado na duali-
dade da relação de causa e efeito: um aspecto sendo ativo e
o outro passivo. Mostran do o caráter limitado da noção pré-
marxista da causa como uma força agindo sobre o corpo, Engels
escreveu: " ( . . . ) A idéia de força, pelo próprio fato de que
tem sua origem na ação do organismo humano sobre o mundo
exterior e também no mecanismo terrestre, implica que apenas
uma parte é ativa e operante, enquanto a outra é passiva, re-
ceptiva . . .
A idéia de dependência frente a frente com a prática e com
as relações sociais foi aplicada por Marx e Engels a outras
categorias da dialética e, em particular, às categorias do sin-
gular e do geral. Mos tra ndo a ligação dessas teorias com as
formas de vida e de atividade dos homens, Marx escreveu que:
"O que diria, então  old   (o velho) Hegel se viesse a saber no
outro mundo que o  Allgemeine  (o geral) em alemão e em nór-
dico, nada mais significa do que o  Gemeinland   (os bens co-

TF. Engels,  La dialectique de la nature,   p. 87.

.139
 

muns), e o  Sundre, Besondere  (o particular), nada mais é do


que a parcel a partic ular desligada dos bens comuns? Assim,
 portan to, as categorias lógicas resultam simpl esm ent e de nossas
relações humanas" .8

O resul tado disso é que as categorias não são apenas


graus do desenvolvimento da consciência, mas também graus
do desenvolvimento da prática social dos homens, de suas re-
lações entre eles e deles com a natureza.
Desempenhando o papel de graus do desenvolvimento do
conhecimento social e da prática, as categorias refletem não
apenas as formas universais do ser, as propriedades e as ligações
universais da realidade e suas leis universais, mas também as
leis do movimento do conhecimento do inferior ao superior, as
leis do funcionamento e do desenvolvimento do pensamento.
" ( . . . ) A s categorias do pensamento, escrevia Lenin, não
são um formulário do homem, mas a expressão das leis que são
obedecidas tanto pela natureza como pelos homens" . E, em 9

outro ponto, ele escreve, citando a expressão de Hegel: "O


movimento da consciência, 'assim como o desenvolvimento de
toda vida natural e espiritual', baseia-se na 'natureza das essen-
cialidades puras que formam o conteúdo da lógica' "; além disso
ele salienta que: "A inverter: a lógica e a teoria do conheci-
mento devem ser deduzidas do 'desenvolvimento de toda vida
natural e espiritual' " .
1 0

As categorias, formando-se em uma certa ordem no curso


do desenvolvimento do conhecimento social, estabelecem, en-
tre elas, ligações e relações necessárias e assim formam a estru-
tura da atividade do pensamento dos homens, que se manifesta
sob a forma de uma ordem lógica do conhecimento, sob formas
universais do movimento do pen same nto. No decorrer do co-
nhecim ento do objeto, o sujeito o concebe pelo prisma das
categorias, que se criou em sua consciência e, realizando uma
síntese categorial, coloca em evidência as propr iedad es e as
ligações próprias a esse objeto e, em seguida, as formas espe-
cíficas de sua manifestação em um domínio concreto da reali-
dade. Ao mesmo tempo, o sujeito tam bém coloca em evidên-

8
K. Marx e F. Engels,  Correspondance,  Moscou, Ed. Progresso,
1971, p. 202.
V. Lenin,  Oeuvres,  t. 38, p. 89.
9

10
Lenin, op. cit., p. 86.

.140
 

cia as características qualitativas e qu antitati vas do objeto


estudado, das ligações de causa e efeito que lhe são próprias
e as leis de seu funcionamento e de seu desenvolvimento.
À luz de tudo isso, a estrutura categorial que assegura o
movimento do pensamento em direção à verdade é verificada
em cada ação cognitiva e prática, em cada operação do pensa-
mento e, em virtude de milhares de repetições e de confirma-
ções, na prática, adquire um caráter de universalidade e de
verdade.
"Quando Hegel, observa V. Lenin, esforça-se — e às
vezes ele chega mesmo a aplicar-se, a esmerar-se — para
introduzir a atividade humana, propondo-se um fim nas cate-
gorias da Lógica, dizendo que essa atividade é um 'silogismo'
(.Schluss), que o sujeito (o homem) desempenha o papel de
um 'termo' da 'figura' lógica do 'silogismo' etc.
 ISSO NÃO É APENAS FORÇA, NÃO Ê APENAS UM
 JOGO. HÁ AQUI UM CONTEÚDO MUITO PROFUNDO,
 PURAMENTE MATERIALISTA. Ê PRECISO INVERTER:
 É PRECISO QUE A ATIVIDADE PRÁTICA DO HOMEM
 LEVE A CONSCIÊNCIA HUMANA A REPETIR MILHA-
 RES DE VEZES AS DIFERENTES FIGURAS LÓGICAS,
 PARA QUE ESSAS FIGURAS POSSAM GANHAR O VA-
 LOR DE AXIOMAS.  NOT A BENE"U .
Assim, sendo um produto da atividade cognitiva, as cate-
gorias refletem as particularidades dos estágios do conhecimento
no próprio momento em que elas se formam e, por meio de
relações necessárias surgidas entre elas — as leis do movimento
do conhecimento do inferior ao superior, as leis do funciona-
mento e do desenvolvimento do pensamento; estando ligadas
à prática, que coloca em evidência as formas universais do ser,
as propriedades e as relações universais das coisas e as mate-
rializa nos meios de trabalho criados e nas formas de atividade
 — as categorias refle tem, de um a maneira ou de outra, as leis
do funcionamento e do desenvolvimento da atividade prática.

"V. Lenin, op. cit., p. 180-1.

.141
 

5. O DESENV OLVIMEN TO DAS FORMA S


DO PENSAMENTO NO PROCESSO
DO MOVIMENTO DO CONHECIMENTO
DE UMA CATEGORIA A OUTRA

O problema da modificação das formas do pensamento


no curso do desenvolvimento do conhecimento é desconhecido
 pelo materialismo metafísico e pela lógica fo rm al. Na lógica
formal, as formas do pensamento não são consideradas nem em
movimento nem em desenvolvimento, mas sim como estáticas
e imutáveis umas ao lado das outras; e a partir desse fato, os
sistemas de classificação elaborados não refletem o processo
histórico do surgimento e do desenvolvimento das formas do
 pensamento, nem colocam em evidência sua correlação e sua
interdepend ência necessárias. Essa classificação das forma s do
 pensamento é en co nt ra da em Arist óte les, fu nd ad or da lógica
formal, e em Kant, além de outros filósofos.
Hegel procurou, pela primeira vez, apresentar as formas
do pensam ento em seu desenvolvimento. Par a ele, o pon to de
 part id a das fo rm as do pe nsamento em movi mento é o con cei to,
embora na realidade isso não seja correto. Historicamente, o
conceito é precedido por toda uma série de outras formas do
 pensamen to, fo rmas mai s simples cu jo desen volvi mento pr ep ar a
o terreno para seu aparecimento. O conceito é o resultado do
desenvolvimento e da correlação de formas do pensamento,
assim como o juízo e o raciocínio. É prec isame nte a part ir do
 juí zo e do raciocínio que nascem e se con stituem os conceitos.
Formando-se, o conceito nega-os e os inclui sob uma forma
anulada na qualidade de momentos necessários de seu conteúdo.
Para Hegel, o desenvolvimento do conceito e a descoberta,
no decorrer desse processo, de certos momentos do conteúdo
do conceito condicionam o surgimento dos juízos e dos racio-
cínios. O juízo, par a ele, é o isol amen to e a con fro nta ção de
momentos do conceito, assim como o singular, o particular e
o universal. O juízo conserva essa funç ão, mesmo quando
ele não concerne o próprio conceito, mas o objeto, as coisas.
Aplicado ao objeto, o juízo representa "o objeto nos diferentes
momentos do conceito. Ele ( o juízo — A. Ch.) contém o
objeto na determinação do singular e na determinação do
universal da mesma forma como a relação simples e desprovida
de qualquer conteúdo do predicado com o sujeito — 'é' —

.142
 

representa a cópula." . "No raciocíni o, diz Hegel, devemos


12

considerar o objeto de duas maneiras: primeiramente, em sua


realidade singular" , e, em segundo lugar, em seu conceito.
13

É por isso que aqui o objeto é representado seja como singular


erigido em sua universalidade, seja, o que finalmente dá no
mesmo, como universal tornado singular quando passa para
sua realidade , é por isso que, segundo Hegel, o juízo deve
14

representar a verdade, já que ele exprime nele mesmo a con-


cordância ou a correspondência do conceito e da realidade.
Mas esta correspondência do conceito com a realidade no
 juízo somente é atingida, seg undo Hegel, no estágio mais ele-
vad o do desenvolvimento do juízo. No começo, este engloba
apenas o imediato, apenas o que se encontra na superfície dos
objetos, e é por isso que ele é o juízo do ser-aqui.
Hegel construiu sua classificação dos juízos inteiramente ba-
seado na correlação do singular e do geral e nas passagens do
singular ao geral e vice-versa, assim como no movimento do
exterior, do universal abstrato ao universal subjetivo, ao con-
ceito. O juízo do ser-aqui engloba, então, apena s o laço exte-
rior do singular abstr ato com o universal abstraio . Em decor-
rência do desenvolvimento desse juízo, o singular e o universal
voltam para eles mesmos por meio do seguinte elo: o particular.
E a partir de então passam pela primeira vez a apresentar-se
como determinados e não como abstratos.
Em decorrência do desenvolvimento do juízo, e, em par-
ticular, do juízo de reflexão e de necessidade, dá-se o movi-
men to do u niversa l ao partic ular, que chega a unidade do
univers al e do parti cular. A partir desse momento , o juízo
entr a na esfera do conceito e contin ua a desenvolver-se. No
 processo desse des envolvime nto, o singular, po r um lado, eleva-
se até o universal por meio do particular e, por outro lado, o
univers al (igualm ente por meio do par tic ular ) desce até o
singular. Em decorrência, a verda deira natureza do objet o
singular assim como sua correspondência com um certo conceito
aparecem e por esse fato conseguimos obter o saber verdadeiro.
Assim, apesar do caráter artificial de sua classificação

"Vollständige Ausgabe Durch einen Verein..., in   Hegel's Werke,


 p. 125-6.
13
G. W. F. Hegel: Wissenschaft der Logik, in   Sämtliche Werke,
Stuttgard, 1928, v. 5, p. 75.
"Hegel, Wissenschaft der Logik, in  Sämtliche Werke  cit.

.143
 

dos juízos, Hegel teve sucesso em sua tentativa de exprimir a


lei geral do movimento do conhecimento, pelo homem, do
mun do ambiente. Sua tentat iva de deter minar o lugar e o
 papel corre spondentes de cada juízo nesse processo do conhe-
cimento da verdade está assentada sobre uma base objetiva.
O raciocínio, segundo Hegel, é a representação completa
do conceito. Ele é o ciclo de med iaçã o de todos os seus mo-
mentos que se produz tanto no processo da passagem da natu-
reza universal por meio da particularidade em direção da sin-
gularidade, como no processo que consiste em elevar a singu-
laridade até o estado que lhe é idêntico, por meio do particular
até o universal. O raciocín io, pa ra Hegel, assim como o juízo,
executa um movimento determinado, tem um desenvolvimento.
Em suas formas inferiores, ele engloba apenas as correlações
exteriores do singular, do particular e do universal; e em suas
formas superiores, ele engloba as correlações internas, essenciais,
necessárias.
Os diferentes tipos de raciocínios são classificados por
Hegel na ordem em que eles aparecem no processo do movi-
mento do conceito, a partir da correlação exterior, contingente
de seus movimentos (universal, particular, singular) — assim
como ela aparece no raciocínio do ser-aqui — dirigida para a
necessidade desta ligação que ela adquire em decorrência do
desenvolvimento do raciocínio de reflexão e, daí, para a iden-
tidade, para a unidade imediata desses momentos, fixada na
objetividade imediata do conceito, em sua transformação em
coisas. Ao mesmo tempo, no processo desse movimento
realiza-se a passagem dos momentos abstratos do singular, do
 particular, do universal pa ra os moment os concretos, essenciais.
Em seus esquemas, Hegel conseguiu captar uma lei efetiva
do conhecimento do mundo objetivo, pelo homem. O conhe-
cimento vai realmente da apreensão do mundo exterior, da
compreensão das correlações abstratas do singular, do par-
ticular e do universal nas coisas, até o conhecimento e a
representação, mais ou menos correta, de sua natureza interna,
de seu aspecto essencial, por tan to, o conheci mento vai do
exterior, do geral superfical ao essencial, ao necessário —
à lei.
Tendo captado, embora confusamente, esta lei do conhe-
cimento, Hegel classifica os diferentes tipos de raciocínio de
manei ra extrem amente artificial. No conhecime nto histórico

.144
 

dos fenômenos do mundo ambiente, pelo homem, os raciocínios


surgiram em uma ordem diferente daquela dada por Hegel.
Por exemplo, antes de raciocinar do geral ao particular e ao
singular, como é o caso para Hegel (mesmo se esse geral é
superficial e abstrato), seria preciso primeiro elaborar repre-
sentações gerais, separar o geral do partic ular, isto é, seria
 preciso primeiramente conduzir os raciocínios do singular ao
 partic ular e deste ao unive rsal. É po r isso que o pri meiro tipo
de raciocínio não poderia, em nenhum caso, ser o raciocínio
que Hegel apresenta como o racioc ínio do ser-aqui. Este
raciocínio deveria ter sido o de indu ção. Entr etan to, Hegel
liga esse raciocínio ao segundo tipo, do segundo grupo de
raciocínio, isto é, ao raciocínio de reflexão.
Em seguida, os raciocínios condicionais e disjuntivos
desempenharam u m papel considerável (e, por esta razão,
apareceram de forma verossímil) no estágio do movimento do
conhecimento do geral superficial ao geral essencial, do exterior
ao interior, do efeito à causa, isto é, no momento da elaboração
dos conceitos gerais. Par a Hegel, os raciocínios aparece ram
 para relevar o conceito genérico comum em todas as suas pa r-
ticularidades e espécies. É evidente que os raciocínios em
questão são utilizados para alcançar esse fim, mas em primeiro
lugar isso é uma etapa ulterior de sua utilização e, em segundo
lugar, isso não constitui sua funç ão essencial. Na história do
conhecimento, eles ocupam um outro lugar e desempenham um
outro papel muito diferente deste.
Assim, embora Hegel tenha pressentido toda uma série
de leis profundas da passagem de certas formas do pensamento
 pa ra outras, ele nã o conseguiu rep rod uzi r seu mov imento , e seu
desenvolvimento reais por causa de seus princípios de partida
idealistas.
O desenvolvimento das formas do pensamento está inevi-
tavelmente ligado ao desenvolvimento do conhecimento, a sua
 passagem por certos estágios e graus de desenvolvimento a
outros. Com a passagem do conhecimento para estágios novos,
superiores, de novos aspectos da realidade objetiva, novas
relações e ligações, que exigem os meios correspondentes de
expressão e de fixação aparecem. Tud o isso conduz necessa-
riamente a modificações e a aperfeiçoamentos das antigas
formas do pensamento e suscita novas formas destes novos
tipos de juízos, de raciocínios e de conceitos.

.145
 

Vejamos a evolução das formas do pensamento.


A for ma mais simples do pens amen to é o juízo. É por
isso que o desenvolvimento das formas do pensamento deve
ser observado, antes de tudo, a partir do juízo.
 Nós já dissemos que conhecer o mei o ambiente é, antes
de tudo, perceber o particular como singular, colocar em evi-
dência essas ou aquelas propriedades singulares que não eram
encon trad as anteriormente. Esse saber exprime-se e fixa-se
nos juízos singulares do seguinte tip o: "O particula r é o sin-
gular ". No estudo da Uni ão Soviética, por exemplo, desco-
 brimos várias propriedades que eram desconhecidas antigamen te
e que fixamos nos seguintes juízos: "A União Soviética está
 pr oceden do à construção do co muni sm o"; "N a Un ião Soviética'
impera a propriedade social dos principais meios de produção"
etc. Outro exemplo: desde a Antigüidad e, os homens perce-
 be ra m que o âmbar, quando fricci onado com a lã, ou com
algum tecido de lã, apresenta va um a pro prieda de insólita: a de
atrair outros corpos. Eles não haviam observado propriedades
semelhante s em outros corpos . Os hom ens exprimiram este
conhecimento no juízo: "O particular é o singular"; "O âmbar
adquire propriedades magnéticas pelo friccionamento".
Todos esses juízos apresentam-se no começo como juízos
singulares indeterminados pelo fato de que não sabemos se as
 propriedades fixadas neles pertencem ta mbém a outra s fo r-
mações materiai s. O processo do conhecimento pode conduzir
à demonstração, posterior, de que essas propriedades não
 pertencem a outros obj etos de um grupo da do. Nes se caso, o
 juízo singular indeterminado to rna- se determinado e exprime-se
sob a seguinte forma: "Dentre todos os objetos desse grupo,
apenas esse objeto possui essa propriedade, até então desconhe-
cida"; "Dentre todos os S, um único S dado é P"; "Dentre
todos os objetos estudados, apenas o âmbar adquire, por meio
do friccionamento, propriedades magnéticas".
Mas à medida que se alarga o círculo dos objetos estudados,
à medida que aprendemos que a propriedade expressa em um
 juízo singular determinado nã o pertence aos obj etos de um
grupo dado, nem aos de outros grupos, o juízo singular deter-
minado, desenvolve-se em um juízo singular seletivo: "Apenas
este particular, e unicamente este, possui esta propriedade an-
teriormente desconhecida"; "Apenas o S dado e, unicamente
ele, é P".

.146
 

Se, no decorrer do estudo de outros objetos de um grupo


dado, descobrimos que a propri edade encontrad a no objeto
anteriormente estudado, e que havíamos exprimido em um juízo
singular indeterminado, pertence também a outros objetos estu-
dados do grupo considerado, o juízo singular indeterminado
tran sfor ma-s e em um juízo singular do seguinte tipo: "O par-
ticular é o geral"; "Na União Soviética (mas não apenas na
União Soviética) a propriedade social dos meios de produção
existe"; "O âmbar (mas não apenas o âmbar) adquire, peló
friccionamento, a propriedade de atrair outros corpos".
O juízo, "o particular é o geral", indicando que o objeto
 particular dado possui a pr op ri edad e geral dada, destaca exata-
mente, por isso, o fato de que o utros ob jetos particula res
tamb ém possuem esta propri edad e. É por isso que o juízo
singular desse tipo transforma-se necessariamente em um juízo
 part icul ar: "Certos objet os particulare s possuem essa propr ie-
dade"; "Certos S são P", "Certos países europeus possuem a
 propri edade social dos meios de pr od uç ão "; "Certas substâncias
adquirem, por fricção com outras substâncias, a propriedade de
atrair alguns outros corpos".
Mas o desenvolvimento posterior do conhecimento também
 pode seguir uma outra orientação. Qu an do do estudo de
outros objetos do grupo dado podemos descobrir que eles
 possuem todos a propri edade considerada. O iuízo par ticul ar
indeterminado torna-se então um iuízo geral: "Todos os S são
P"; "Todos os países socialistas possuem a propriedade social
dos meios de produção"; "Em todos os países socialistas é
aplicado o princípio: 'De cada um segundo suas capacidades,
a cada um segundo seu trabalho'"; "Todas as substâncias, em
certas condições, adquirem propriedades magnéticas".
O juízo geral manifesta-se, antes de tudo, como juízo in-
determinado, porque não sabemos, a princípio, se a propriedade
 pertence somen te aos objetos considerados ou se ela per ten ce
também aos objetos de outros grupos.
O desenvolvimento do conhecimento pode conduzir à evi-
denciação do fato de que os objetos de uma série de grupos
estudad os não possua m a prop ried ade indica da. Nesse caso, o
 juízo geral indeterminado transforma-se em um juízo geral
determinado: "Dentre todos os grupos de objetos estudados,
apenas o grupo considerado possui a propriedade em questão";
"Dentre todos os S, apenas os S dados são P"; "Dentre todos os
.147
 

 países contemporâneos, somente nos países socialistas existe a


 propriedade social dos meios de pr od uç ão "; "Dentre todos os
 países contemporâneos, é apenas no s países socialistas que é
aplicado o seguinte princípio: 'De cada um segundo suas capa-
cidades, a cada um segundo seu trabalho' ".
Se fica estabelecido que essa ou aquela prop riedade das
formações materiais está ausente em todos os outros grupos,
o juízo geral determinado desenvolve-se em um juízo geral
seletivo: "Apenas os objetos em questão e, unicamente eles,
 possuem essa pr op ri ed ad e" ; Ap en as os S em que stão e, uni ca-
mente eles, são P"; "Apenas os países socialistas e, unicamente
eles, aplicam o seguinte princípio: 'De cada um segundo suas
capacidades, a cada um segundo seu trabalho' ".
Mas à medida que há o desenvolvimento do conhecimento,
 pode parecer que essa ou aquela propriedad e fixada em um
 juízo geral indeterminado pertence a objetos que se relacionam
com outros grupos. Nesse caso, o juízo geral trans forma-se
em um juízo mais geral: "Todos os S (mas não apenas eles)
são P"; "Todos os países socialistas (mas não apenas eles)
têm uma produção mercantil"; "Todos os países socialistas
(mas não apenas eles) têm um Estado".
Esse juízo mais geral se- desenvolverá, por sua vez, em
dois sentidos: por um lado, ele se desenvolverá no plano hori-
zontal, isto é, pode transformar-se em um juízo seletivo, e, por
outro lado, ele se desenvolverá no plano vertical, transforman-
do-se em um juízo ainda mais geral e assim sucessivamente,
enquanto não forem evidenciadas as propriedades universais,
isto é, as propriedades que são próprias a todos os objetos do
grupo estudado ou a todos os objetos em geral.
Assim, no estágio do movimento do conhecimento do
singular ao geral e ao universal, os juízos desenvolvem-se dos
singulares par a os juízos particula res e em seguida para os
universais. Ao mesm o temp o, cada um dos grupos indicados
desenvolve-se por sua vez, indo dos juízos indeterminados aos
 juízos determinado s e depois aos seletivos, isto-é, a consciência
leva, por um lado, a uma procissão, uma separação do par-
ticular, e, por outro lado, a uma evidenciação do geral e do
universal.
Todas as formas de juízo examinadas fixam apenas o que
é dado imediatamente a nossa observação, o que se encontra
à superfície dos fenômenos, e por isso seu valor cognitivo não

.148
 

é grande. Por exemplo, se consider armos todos esses juízos


do ponto de vista da verdade, descobrimos que, nesse estágio
do conhecimento, os juízos gerais (contrariamente aos juízos
singulares e particulares cuja verdade é incontestável, já que
eles fixam o que é) são probl emático s, porque não podem os
observar em uma primeira tentativa — e, aliás, não é apenas
em uma primeira tentativa que não podemos observar — todos
os objetos dessa ou daquela classe mais ou menos extensa.
É por isso que a conclusão, de que todos os objetos dessa ou
daquela classe possuem uma propriedade geral é hipotética.
Baseia-se em uma simples repetição e no fato de que todos os
objetos observados do grupo dado possuem essa propriedade.
Mas o conhecimento não pára nesse estágio de desenvol-
vimento, com a constatação das propriedades gerais, ele esfor-
ça-se para explicar as propriedades gerais dos objetos a partir
de sua natureza, esforça-se para penetrar no interior das coisas.
Os homens constróem hipóteses relativas às causas que condi-
cionam o aparecimento dessas ou daquelas propriedades gerais.
A suposição das causas dessa ou daquela propriedade exprime-
se no juízo de possibilidade: "É possível que esta circunstância
seja a causa do fenômeno estudado"; "É possível que S seja P";
"É possível que a condutibilidade elétrica de um condutor de-
 penda de seu co mpri me nt o" ; "É possível que as propriedades
químicas dos elementos dependam da carga do ponto de par-
tida"; "É possível que a diferença de velocidade dos corpos
em queda livre pro ven ha da resistência do ar". Nesses juízos,
é o laço hipotético do efeito com sua causa que se encontra
fixado.
 No estudo do laço de causa e efeito, habitualmente, não
é construída uma única hipótese, mas sim várias, e é por isso
que o juízo de possibilidade é substituído pelo juízo disjuntivo,
o primeiro transf orman do-se no segundo. "S é P ou PI " ; "A
condutibilidade elétrica de um condutor depende ou de seu
comprimento ou da composição de sua substância"; "As pro-
 priedad es quí micas dos elemen tos dep endem ou da car ga do
centro ou do peso atômico"; "A diferença de velocidade dos
corpos em queda livre a um ponto dado da terra depende seja
da resistência do ar seja da diferença de sua aceleração".
Verificando a correlação dessa ou daquela suposição,
chegamos a conseqüências que devem necessariamente produ-
zir-se se a causa suposta é a causa real da propriedade estudada.

.149
 

Esse movimento do pensamento exprime-se no juízo condicio-


nal: "Se S é P, então SI é PI"; "Se a condutibilidade elétrica
de um cond utor depen de de sua secção , os condu tore s de
grande secção, qualquer que seja a composição de sua substân-
cia, devem conduzir eletricidade"; "Se as propriedades químicas
dos elementos dependem da carga do núcleo, as propriedades
do elemento mudam ao mesmo tempo em que se modifica a
carga do núcleo".
Os resultados da verificação da presença real do efeito
suposto são fixados em juízos categóricos, nos quais o que é
estabelecido exprime-se sob uma forma incondicional: "S é P";
"S não é P"; "A modificação da carga do núcleo de um ele-
mento químico dado levou à trans formaç ão desse elemento
(em um outro elemento químico)"; "Um fio condutor de seda
grosso não conduz a eletricidade".
O juízo categórico fixa o que existe e por isso ele é, na
verdade, um juízo de realidade, contrariamente ao juízo de
 pos sibil idade, do qual tr atamos no começo do estudo de causa
e efeito.
A part ir dos resul tados estabeleci dos pela verifica ção,
concluímos, diante da presença ou da ausência de um laço de
causa e de efeito entre os fenômenos estudados também sob
a forma de juízos categóricos, que "S é P"; ou "S não é P";
"A condutibilidade elétrica de um condutor não depende de
sua secção"; "As propriedades químicas de um elemento depen-
dem da carga do núcleo"; "As propriedades químicas de um
elemento não dependem do peso atômico".
Mas, diferentementemente dos juízos categóricos que fixam
os resultados da verificação, e que são juízos de realidade, os
 juízos dados são juízos de neces sid ade, po rq ue fi xam nã o apenas
o que existe, mas também o que se produz necessariamente em
certas condições: "S é necessariamente P"; "As propriedades
químicas dos elementos dependem necessariamente da carga do
núcleo"; "A condutibilidade elétrica de um condutor depende
necessariamente da composição de sua substância".
Assim, no processo do movimento do efeito à causa, do
exlerior ao interior e ao necessário, realiza-se a passagem dos
 juízos de pos sibil idade , po r meio dos juízos disjunti vos, con di-
cionais e categóricos, para os juízos de realidade e de necessi-
dade. Os juízos disjuntivos, condicionais e categóricos mani-
festam-se sob formas de elos de uma corrente reunindo nova-

.150
 

mente os juízos de possibilidade aos juízos de realidade e de


necessidade.
Da colocação em evidência das ligações particulares ne-
cessárias, o conhecimento, em seu desenvolvimento, dirige-se
 pa ra a essência — pa ra a repr od ução da correlação necessária
dos aspectos interiores das formações materiais estudadas.
 Nesse estágio do movimento do conhecimento, aparecem novos
tipos de juízos.
Se observarmos bem os juízos analis ados mais acima,
notaremos facilmente que alguns dentre eles fixam o que se
encontra na superfície, o que existe, o que aparece e existe em
toda sua imediatez, como unidade do contingente e do neces-
sário, enquanto que outros fixam as ligações necessárias.
Em primeiro lugar, o necessário ainda não está bem distin-
guido, separado do contingente, e, em segundo lugar, esse
necessário é pensado enquanto tal, sem ligação com o contin-
gente. Os primeir os juízos, como já vimos, apar ecer am no
estágio do movimento do conhecimento do singular ao geral,
os segundos no estágio da passagem do efeito à causa, do
exteri or ao interior e ao necessário. Enge ls classifica o primei ro
grupo de juízos, de singularidade, e o segundo, de juízos de
 particularidade.
Os juízos de singularidade são caracterizados pelo fato de
que eles fixam o ser-aqui, o ser enqu anto fato . Eles ainda não
exprimem os aspectos interiores dos objetos, dos fenômenos;
não refletem, não reproduzem as ligações internas necessárias.
Por exemplo, "a fricção engendra o calor", "a carga do núcleo
do hidrogênio é um próton" , "o urânio é radioativo". Em
todos esses juízos está fixado o que existe, o que já foi desco-
 bert o. Aqui, o interior, o necess ário nã o é refletido, a nat ureza
dos fenômenos ou das propriedades fixadas não é explicada.
Mas o homem, como já vimos, não se limita a fixar o
ser-aqu i. Ele e sforça-s e para explicar esse ser a part ir das
ligações e de suas relações internas, isto é, o homem esforça-se
 pa ra compreendê-lo com o nec ess ári o. A expre ssã o do conhe-
cimento do necessário concretiza-se, como já dissemos, nos
 juízo s de nec ess ida de, que representam os juízos de particula-
ridade, porque fixam a ligação necessária de um grupo particular
de fenômenos com um outro grupo particular de fenômenos em
condições particulares, rigorosamente determinadas: "Todo mo-
vimento mecânico transforma-se, por fricção, em calor"; "O

.151
 

urânio, depois de uma desintegração alfa transforma-se em


tório"; "O  radium,  passando por uma desintegração alfa, trans-
forma-se em radônio"; "Todos os elementos químicos, cuja
carga do núcleo torna-se igual a duas unidades, adquirem as
 propriedades químicas do hélio" .
Todos os juízos citados são juízos particulares, já que
fixam a ligação necessária de certos fenômenos particulares
com outros fenômenos particulares, em condições particulares,
rigorosamente determinadas. No primeiro juízo é fixado o fato
de que uma forma particular do movimento da matéria (movi-
mento mecânico) transfor ma-se em uma out ra forma de mo-
vimento particular (em calor), em condições particulares,
rigoro sament e determinadas (por fri cçã o). No segundo juízo
exprime-se a ligação necessária, cujo conteúdo reside no fato
de que um elemento químico particular (o urânio) transforma-
se em um outr o elemento químico (o tóri o) , em condições
 parti cular es, rigorosam ente dete rminadas (n o momento de sua
desintegração alfa) etc.
Em decorrência do desenvolvimento do conhecimento e
na medida em que se acumulam os conhecimentos de diversos
aspectos gerais necessários desse ou daquele grupo de fenôme-
nos, os homens, tendo distinguido um aspecto fundamental,
decisivo e geral, reproduzem, passo a passo, o conjunto dos
aspectos necessários internos dos fenômenos estudados, sua
essência. Nesse estágio do conh ecime nto, eles form ula m juízos
de universalidade, como por exemplo: "Toda forma de movi-
mento da matéria, em condições rigorosamente determinadas
em cada caso, pode transformar-se e transforma-se inevitavel-
mente em uma outra forma de movimento da matéria"; "Um
elemento químico, em condições rigorosamente determinadas,
 pode e deve necessari amente tran sf or ma r- se em um outro
elemento químic o". Esse juízo fix a nã o apena s o ser-aqui,
não apenas o que existe, mas igualmente o que se produz ne-
cessariamente; e não somente uma ligação necessária particular,
mas o sistema de ligações necessárias que engloba todos os
objetos de um grupo dado e todos os seus aspectos fundamen-
tais. O juízo dado é, por sua for ma e po r seu conteúd o, o
desenvolvimento posterior, superior dos conhecimentos do
grupo de fenômenos limitados por esse juízo, que fixa a ligação
de cada objeto do grupo dado com qualquer outro objeto desse
grupo. Nesse juízo, são confer idas a cad a objeto do grupo

.152
 

dado todas as propriedades que pertencem a um grupo dado


de objetos (tanto as já reveladas, como as que ainda não o
foram), e isso pelo fato de que se exprime o conhecimento
de que cada objeto pode, em condições determinadas, vir a ser
um outro objeto qualquer, transformar-se em qualquer outro
objeto e, dessa maneira, manifestar as propriedades de cada
um deles. O apare cimen to, nesse ou naqu ele domínio da ciên-
cia, de um tipo dado de juízos, é uma prova direta de que
nesse domínio a ciência alcançou o conhecimento da essência
dos objetos estudados.
Abordemos agora, rapidamente, as transformações dos
raciocínios e dos conceitos no processo do movimento do co-
nhecimento de um grau ao outro.
 No pri mei ro estágio do movimento do conheciment o, apa-
rece o raciocínio indutivo, no qual, a partir de várias premissas
que fixam fatos singulares, chega-se à conclusão de que essa
ou aquela propriedade, ligação ou relação, pertence ou não
 pertence a todos os objetos do grupo estudado. Nos raciocínios
indutivos, o pensamento vai do singular ao geral e ao universal.
Os raciocínios dedutivos aparecem no estágio em que se
estabelece o laço de causa e efeito e de necessidad e. No racio-
cínio dedutivo ,. o pen same nto vai do geral ao particular, do
geral ao geral, do singular e do particular ao singular e ao
 particular. Os racio cínios ded utivos apresentam-se sob nume-
rosas form as. No estágio da descoberta do laço de causa e de
efeito e do estabelecimento da necessidade, os raciocínios dedu-
tivos aparecem sob a forma de um silogismo categórico disjun-
tivo e de um silogismo categórico condicional. Quand o, após
ter enunciado uma série de teses sobre as supostas causas desse
ou daquele fenômeno (efeito) e tê-las verificado, raciocinamos
e, conseqüentemente, exprimimos nossos pensamentos com um
silogismo categórico disjuntivo . Por exemplo, temos duas
suposições concernentes à causa da condutibilidade elétrica.
Como causas, citamos a composição da substância e a secção
do condu tor. No decorrer da pesquis a, estabelecemos que uma
suposição é exata, enquant o que a outra não o é. Expri mimos
tudo isso no seguinte racio cíni o: "A condutibilidade elétrica
 pode depen der ta nt o da sec ção como da com pos ição da substân-
cia do condutor. Ent ret ant o, no final, ficou estabelecido que
a condutibilidade elétrica não depende da secção do condutor,
logo, ela depende da composição da substância".

.153
 

 No momento da verificação dessa ou daquela sup osição


relativa à causa de um fenômeno dado, quando procedemos a
conclusões, a parti r de sta suposi ção, e quando verificam os
como isso acontece na realidade, e, ainda depois, quando resol-
vemos a questão de saber se o laço dado é ou não o da causa
e efeito, exprimimos nossos pensamentos mediante um silogismo
categórico condicional. Por exemplo, quando estudamos a
causa da propriedade que certos corpos têm de conduzir a
eletricidade, raciocinamos da seguinte maneira: "Se a conduti-
 bilidade elétrica depende da sec ção de um condutor, modifican-
do-a, podemos fazê-lo de tal maneira que em um caso esse
condutor conduza a eletricidade e em outro caso não o faça
mais. Modi fica ndo a secção de um cond utor feito de cobre,
não obtivemos resultado na tentativa de impedi-lo de conduzir
a eletricidade. Isso significa que a pro pri edad e de conduzir
eletricidade não depende da secção do cond utor . . . Então , se
a condutibilidade elétrica depende da composição da substância
do condutor, quando modificamos essa composição, chegamos
aos seguintes resultados: no primeiro caso, o condutor conduz
a eletricidade, enquan to no segundo ele nã o o faz. O fio de
cobr e condu z a eletricidade, mas o de seda não a conduz. Isso
significa que a condutibilidade elétrica depende da composição
da substância do condutor".
As conclusões tiradas dos resultados da verificação dessa
ou daquela suposição, exprimem-se, como já o dissemos, nos
 juízos de nec ess ida de. E isso significa que eles refletem
aspectos e propriedades próprias a todos os objetos e fenô-
menos, compreendidos em toda a extensão do sujeito do juízo
dado. Por isso, os juízos de neces sidade podem ser usado s
 pa ra o entendimento do saber, que entra em seu conteúdo e
que, a cada objeto concreto e a cada caso particular, refere-se
ao domínio comp reendido pelo juízo indic ado. Essa utilização
desses juízos pode-se dar tanto no lugar que lhes é próprio,
como quando reproduzem os laços de um aspecto da formação
material com um outro, ou, ainda, no estágio do movimento
do conhecimento, indo da colocação em evidência dos aspectos
 particulare s comuns a objetos estudados à re pr oduç ão de sua
essência, (d o conjunto dos aspectos internos necessários) ou,
ainda, finalmente, no estágio da utilização desses ou daqueles
conhecimentos na atividade prática dos homens. Esse movi-
mento do pensamento exprime-se por meio do silogismo cate-

.154
 

górico. Por exempl o: "A carga do núcleo, sendo igual a um


 pr óton, condiciona pr opri edad es químicas, cujo co nj un to
caracteriza o hidrogênio. Ou ainda: "Tod a mercadoria tem
seu valor. O dinheiro tam bém é um a mercadoria. Isso signi-
fica que o dinheiro deve ter um valor".
Assim, os diferentes tipos de raciocínio não são fixos,
dados uma vez por todas, existindo um ao lado do outro e um
independentemen te do outro. Eles estão em movimento, em
desenvolvimento, em uma ligação orgânica necessária, condi-
cionad a pelo proces so evolutivo do conheci mento, por suas
 passagens de um gra u a ou tr o.
Usando os juízos e os raciocínios, os homens elaboram e
formam representações e conceitos nos quais fixam o que é
conheci do. E esses conceitos e essas representações são, de
certa forma, pontos centrais do complexo e contraditório cami-
nho do conhecimento do mun do ambiente. Refletindo o pro-
cesso do movimento e do desenvolvimento do conhecimento,
e formando-se no decorrer desse processo, os conceitos não
 permanecem imu táv eis , mas, pelo con trário, eles modificam-se
e desenvolvem-se à medida que há o desenvolvimento e a
modificação de seu conteúdo.
 No pri meiro estágio do conhecimento, no estágio da int ui-
ção viva, aparecem e formam-se conceitos concretos que re-
fletem o objeto ou o fenômeno na totalidade de suas proprieda-
des e de seus aspectos. Mas esse concreto nesse estágio é
apenas sensível. É uma representação desor denada, caótica
do todo e, por essa razão, o conceito confunde-se, aqui, com
as representações, aparece como uma representação concreta
sensível. Depois , qua ndo o sujeito conhec edor analisa os
dados concretos sensíveis, começa a distinguir os diferentes
aspectos e pro prie dade s dos objeto s estudados e passa do
singular para o geral, e então aparecem e se formam conceitos
abstratos que refletem apenas certos aspectos dos objetos e dos
fenômenos. Mas, à medida que o conhecimento huma no em
desenvolvimento penetra na essência das formações materiais
estudadas, reproduz na consciência, passando de um elo a outro,
todo o sistema de ligações e de relações necessárias e internas,
então aparecem novamen te conceitos concretos. Mas esse
concreto, ao contrário do concreto que apareceu no estágio
inicial do conhecimento, não é uma representação visual, sen-

.155
 

sível e caótica do todo; ele reflete a natureza interna das


formações materiais.
Essas são algumas leis do desenvolvimento das formas do
 pensamento no processo do movimento do conhecimento de
uma categoria ( um grau) a outra.
Examinamos a transformação das principais formas do
 pensamento, no decorrer do desenvolvime nto do conhecimento
social, e vimos que elas estão ligadas a estágios determinados
do desenvolvimento do conhecimento social, à intelecção de
formas universais determinadas do ser, de ligações e de pro-
 priedades uni ver sai s da realidade, ref let idas pelas categorias
filosóficas correspondentes.
Isso indica que as categorias filosóficas são graus do
desenvolvimento do conhecimento e que sua relação, refletindo
íeis universais determinadas do ser, exprime a lei do funcio-
namento e do desenvolvimento do conhecimento.
A parte que se segue nesta nossa obra será dedicada à
análise das diferentes categorias e leis da dialética, que serão
consideradas na ordem em que elas aparecem no processo do
desenvolvimento do conhcimento social e da prática.

.156
 

V. O PARTICULAR,
O MOVIMENTO, A RELAÇÃO

1. O PARTI CULAR

Para o materialismo dialético, o movimento e o repouso


relativo, compreendidos como um dos momentos do movimento,
são, por sua natureza, próprios à matéria. O movimento con-
diciona "a corrente", a modificação permanente da matéria;
o repouso acarreta o equilíbrio do movimento, a transformação
da matéria, como se interrompesse a corrente contínua, obri-
gando-a a "parar" nesse ou naquele lugar e a manter-se nesse
ou naquele estado, embora a corrente contínua do movimento
apareça como descontínua, como um conjunto de diferentes
sistemas de movim ento. Com base em cada um desses siste-
mas, constitui-se uma formação material, uma coisa particular,
ou naquele estado, embora a corrente contínua do movimento
constitui uma coisa concreta, cuja natureza é determinada pela
for ma do movi mento que a constitui. Sendo eterno como a
matéria, o movimento absoluto assim como o repouso relativo
condicionam a existência eterna da matéria, mediante as forma-
ções materiais particulares, encerradas no espaço e no tempo.
O particular é, portanto, uma forma universal da existência da
matéria. E aqui relacionam-se conceitos de "corpo ", de "coisa"
e de "objeto".

2. O MOVI MENT O

a) O CONCEITO DE MOVIMENTO

O movimento como forma universal do ser da matéria foi


analisado pelos pensadores, logo no começo do desenvolvimento

.157
 

da Filosofia, como forma particular da consciência social. Entre


os primeiros filósofos gregos, por exemplo, o movimento desem-
 penhou o papel de principio inicial, a partir do qua l pr oc ur a-
ram explicar todos os fenômenos observados na realidade
ambiente. Tom and o como princípio primeiro uma ou outra
substância concreta, eles mostraram que todas as formas do ser
observadas no mund o aparecer am em decorrência de certas
transformações dessa substância (princípio primeiro), e que,
sendo diferentes estados de uma mesma natureza, elas estão
organicamente ligadas, passando uma pela outra e pelo prin-
cípio inicial.
Tomando como princípio primeiro o   apeiron,  uma matéria
indeterminada, por exemplo, Anaximandro dizia que: "O infi-
nito é o princípio primeiro do existente, porque é dele que tudo
nasce e nele tudo se destrói. É dele que 'se desligara m os
céus e os mundos em geral', cujo 'número é infinito' e eles
todos perecem depois que um tempo bastante considerável
tenha decorrido desde seu aparecimento; e todos eles executam
um movimento circular desde tempos imemoriais. ..".
É evidente que na obra de Anaximandro a universalidade
do movimento desempenha o papel inicial de sua teoria do
mundo exterior.
Encon tramo s uma tese análoga a essa em Thales, que
toma como princípio primeiro a água, e também em Anaxí-
menes, que tom a esse princípio no ar. Simplicius afirma, por
exemplo, que na obra de Anaxímenes, o princípio primeiro das
coisas (o ar), em decorrência de modificações que lhe são
 própr ias, é, às vezes, uma determinada substância, às vezes
outra substância: quando se rarefaz, ele torna-se fogo; com-
 pri min do-se , ele to rna-se vento e dep ois nu vem; comprimindo-
se ainda mais, torna-se água, depois terra e depois pedra; e
todo o resto nasce dessas substâncias. Simplicius acrescenta
que Anaxímenes reconhece que o movimento é eterno e que
acarreta as transformações das coisas.
A idéia de universalidade do movimento é expressa de
maneira particul armente clara por Heráclito. Ele diz que a
morte do fogo é o nascimento do ar, a morte do ar é o nasci-
mento da água; da morte da terra nasce a água, da morte da
água nasce o ar, da morte do ar nasce o fogo e vice-versa.

.158
 

Assim, os filósofos gregos reconheciam a universalidade


do movimento dos fenômenos da realidade e elaboravam, a
 partir dela, sua concepção do mund o.
Salientando que o homem descobre o movimento no
estágio inicial do conhecimento e que essa forma universal do
ser é conceitualizada já nas primeiras concepções filosóficas do
mundo, Engels escreveu que: "Quando submetemos ao exame
do pensamento a natureza ou a história humanas, ou ainda
nossa própria atividade mental, o que temos como primeiro
resultado é o quadro de um entrelaçamento infinito de relações
e de ações recíprocas, no qual nada permanece como era, no
lugar onde estava ante riorm ente e como estava, mas em que
tudo muda, modifica-se, vem a ser e perece.. .
Essa maneira primitiva e ingênua, porém fundamental-
mente correta, de encarar o mundo, foi a maneira adotada pelos
filósofos gregos da Antigüidade, e o primeiro a formulá-la de
modo claro foi Heráclito. . . "1.
Os primeiros filósofos gregos da Antigüidade concebiam o
movimento com um processo de destruição de um e do sur-
gimento (sobre essa mesma base) do outro.
Eles colocavam o conceito do movimento, da transforma-
ção em primeiro plano, deixando, dessa maneira, de lado, a
estabilidade. Somente um pouco mais tarde é que outros
filósofos e, em particular, os eleatas se interessaram pela esta-
 bil idade. Ao contrá rio dos jónico s, eles colocaram a estabili-
dade como princípio inicial, erigiram-na como absoluta e che-
garam finalmente a negar o movimento, porque para eles,
tudo o que existe baseia-se no todo único, imutável e homogêneo,
 preenchendo tu do . Sobre o ser, escreveu Pa rm ên id es : "Há
mil sinais de que o sendo não pode ser engendrado e é impere-
cível, inteiro em seu corpo, contínuo, imóvel, sem começo nem
fim'*.
Empédocles retoma o conceito do movimento, mas con-
serva igual mente a estabili dade. Suas quatr o "raí zes" (a terra ,
a água, o ar e o fogo), que constituem os objetos e os fenô-
menos do mund o exterior, são eternas e imutáveis. Po r isso
o movimento para ele não é o surgimento de uma coisa e o
desaparecimento de outra, como era o caso para os filósofos

X
F. Engels,  Anti-Diihring,  Paris, Editions Sociales, 1950, p. 52.
2
Y. Battistini,  Trois présocratiques,  Paris, 1969, p. 113.

.159
 

de Mileto, assim como par a Heráclito. Pa ra Empédocles o


movimento representa apenas um descolamento de raízes e seu
diferente reagr upame nto. Ele diz que: "Nad a do que é morta l
tem seu nascimento ou seu fim determinado pela morte que
tudo leva. Os elementos apenas associam-se e, uma vez mis-
turados, eles se disassociam. Nasci mento é apenas um nome
dado pelos homens para um momento desse ritmo das coisas" . 3

Essa questão é resolvida de forma semelhante por Anaxá-


goras. Ele sustentava que as palavras "apar ecime nto" e "desa-
 parecimento" nã o eram emp regad as co rretamente pel os heléni-
cos, porque, na verdade, não há coisas que apareçam, nem que
desapareçam, mas cada coisa é formada pela mistura das coisas
existentes ou delas se separa. Assim, seria mais correto dizer
"misturar-se" no lugar de "aparecer", e no lugar de "desapa-
recer", "desinteg rar-se". Esse mesmo conceito pod e ser encon-
trado em Demó crito . Os átomos eternos e imutáveis consti-
tuem, segundo ele, a base de tudo o que existe, o movimento
resume-se apenas a seu deslocamento, sua reunião e sua
separação.
Caracterizando a doutrina de Demócrito, Aristóteles es-
creveu, por exemplo, que: "Demócrito e Leucipo, pelo contrá-
rio, depois de terem estabelecido as figuras, tiram delas a alte-
ração e a geração: a separação e a união dessas figuras pro-
duzem a geração; e a corrupção, e sua ordem e sua posição,
a alteração" . Plutarco, analisando a teoria de Demócrito,
4

escreveu que, para ele, "os seres infinitamente numerosos, invi-


síveis e indiferenciáveis, não sendo possuidores de qualidades
(internas), nem submissos a uma ação (exterior), habitam um
espaço vazio; quando eles reaproximam-se, chocam-se ou en-
trelaçam-se e, dentre essas acumulações (assim formadas),
algumas parecem ser a água, outras o fogo e as terceiras parecem
ser plantas e, finalmente, as quartas, o homem; para Demócrito,
elas são apenas (na realidade) fo rmas indi vis íve is. .. como ele
as chama, e, além delas, nada mais existe".
Aristóteles desenvolveu posteriormente a teoria do movi-
mento e da correlação. Ele retomo u o pon to de vista dos
 jónicos e de Heráclito, que consideravam o movimento como o
aparecimento de uma coisa e a destrui ção de outr a. Restab e-

Y. Battistini, op. cit., p. 155.


3

"•Aristóteles,  De la génération et de la corruption,   Paris, 1951, p. 10.

.160
 

lecendo o que haviam dito os primeiros filósofos gregos, ele


incluía, sob uma forma anulada, em sua teoria do movimento
e da correlação, as concepções de filósofos que se seguiram a
esses primeiros, tais como Empédocles, Anaxágoras e Demó-
crito. Segundo Aristóteles, o movi mento não é apenas a des-
truição e o aparecimento, mas igualmente o crescimento e a
diminuição, assim como o deslocamento dos corpos no espaço.
Aristóteles distinguia seis formas de movimento: "há seis espé-
cies de movimento: a geração, a corrupção, o crescimento, a
diminuição, a alteração e a modificação local" . Destacando
5

a eternidade do movimento, o fato de que "o movimento sempre


existiu e existirá o tempo todo" , Aristóteles une-o novamente
6

à natureza e às coisas materiais, porque considerava qüe o mo-


vimento é uma característica universal das coisas e que não
existe sem elas. "A natureza é o princí pio do movimento e da
modificação" . E em outra par te do mesmo texto ele diz que:
7

" . . . n ão há movimento fora das coisas" .8

A filosofia de Aristóteles encerra a formação da categoria


do movim ento. Emb or a ele não a ten ha incluíd o entre as dez
categorias que distinguia, utilizava-a como um conceito unifi-
cador para categorias como as de "posição", "posse", "ação"
e "sofrimento".
 No período imediatamente posterior de seu desenvolvi-
mento, a filosofia materialista tende a erigir em absoluto a forma
mecanicist a do movimento da matéria. Nos séculos XV II e
XVIII esta foi uma tendência dominante, e o movimento é,
então, interpretado como um deslocamento dos corpos no
espaço. Encont ramos essa concepção em Descartes e em
Holbach, que escreveu que: "O movimento é um esforço pelo
qual o corpo muda ou pelo menos tende a mudar de lugar,
isto é, a corresponder sucessivamente a diferentes partes do
espaço. . ." .
9

A concep ção do movimen to como deslocamento dos


corpos no espaço é limitada e, por essa razão, incorreta,

5
Aristóteles,  Organon, I. Catégories, II,  Paris, 1946, p. 72.
«Aristóteles,  Physique,  Paris, 1931, t. 2, v. 5-8, p. 138.
'Aristóteles,  Physique  cit., Paris, 1926, t. 1, v. 1-2, p. 88.
8
Aristóteles,  Physique  cit., p. 90.
9
P. Holbach,  Systéme de la nature ou des lois du monde physique
et du monde moral,  Londres, 1769, p. 13.

.161
 

Ela não inclui a diversidade das transformações próprias à


matéria. As transf ormaçõ es que se produzem, por exemplo,
no núcleo atômico, no organismo vivo, na sociedade etc. não
são apenas simples deslocamentos.
Uma definição científica do movimento foi dada, pela
 primeira vez, pelos fu nd ad or es do mat erial ismo dialético e,
em particular, por Engels que escreveu que: "o movimento,
aplicado à matéria, é a  modificação em geral"  .  Ele "inclui
w

todas as mudanças e todos os processos que se produzem no


universo, da simples mudança de lugar até o pensamento" . 11

O movimento é um atributo da matéria, sua propriedade


fund amen tal . É po r isso que ele está indissoluvelmente ligado
a ela. Nã o houve, não há e nã o pod e haver matéri a sem
movimento, nem movimento sem matéria.
A lei de correspondência da massa e da energia é teste-
munha desse laço indissolúvel entre a matéria e o movimento.
Segundo essa lei, a cad a qua nti dade determinada de massa
corresponde uma quantidade muito precisa de energia. Toda
modificação da massa é acompanhada de uma transformação
correspondente de energia e, inversamente, toda transformação
de energia acarreta uma modificação correspondente de massa.
Certos filósofos e físicos burgueses não reconhecem o laço
orgânico do movimento com a matéria, eles "estabelecem" a
 pos sib ilida de de um a redução da matéria ao movimento e,
 baseados nisso, consid eram a energi a como primeira e det ermi-
nante, considerando que a matéria é uma das formas de energia.
Para provar seu ponto de vista, eles se referem à transformação
da substância em luz e, notadam ente, à transf ormaçã o do
elétron e do pósitron em dois ou três fótons, considerando-os
como a transformação da matéria em energia pura.
"A matéria, escreve, por exemplo, o sábio norte-ameri-
cano Roy K. Mars hall , é um a das for mas de energia. Em
certas condições, a transformação da matéria em energia pura,
ou da energia pura em matéria, é possível"^.
É evidente que os partidários desse ponto de vista têm uma
concepção pré-marxista, metafísica da matéria como substância
e que, dessa form a, eles defor mam a realidade. A transf orma-

F. Engels,  Dialectique de la nature  cit., p. 252.


10

"F. Engels,  La dialectique de la nature   cit., p. 75.


R. K. Marshall,  The nature and things,   New York, 1951, p. 47.
12

.162
 

ção de elétrons e de pósitrons em fótons — partículas de luz —


não é a trans forma ção da m atéria em energia (movimen to
 pu ro) , mas sim a tr ansforma ção de uma fo rm a de matéria
em outra forma, por que toda realidade objetiva é matéria. Não
apenas a substância relaciona-se com a matéria, mas também
uma variedade infinita de formas do ser, já conhecidas, assim
como as ainda desconhecidas.
Sendo uma realidade objetiva, existindo fora e independen-
temente da consciência humana, a matéria não pode desaparecer
total ou parcialmente, nem se transformar em qualquer coisa
de imaterial. Ela existe eternamente, passando continu amente
de um estad o ou aspect o qualitativo a outr o. E o mesmo
acontece com o movimento . Estan do organicamente ligado à
matéria, ele não pode desaparecer ou se transformar em nenhu-
ma outra coisa que não seja o movimento, porque sua quanti-
dade permanec e sempre a mesma. Salientando a eternidade da
matéria e do movimento, assim como sua ligação orgânica,
Engels escreveu que: "A maté ria sem o movimento é tão in-
concebível qua nto o movim ento sem a matéri a. O movi ment o
é, portanto, tão impossível de ser criado e destruído quanto a
 própria maté ri a. . .". E mais adi ante ele diz qu e: " . . . a quan-
tidade de movimento existente no mundo permanece constan-
te"i3.

b)  O MOVIMENTO E O REPOUSO

Quando apresentamos o movimento como uma proprie-


dade fundamental da matéria, não podemos nos esquecer de
indicar sua outra proprie dade — uma certa estabilidade e
invariabilidade. A matéria "flu i" continuamente, trans form a-
se, mas, mesmo se transformando a esse ou àquele grau, ela
 permanece imutável, em repouso.
É preciso observar, aqui, que certos autores compreendem
o repouso em um sentido restrito, portanto, de maneira incor-
reta. Eles consideram que o repous o é a ausência de movi-
mento , sob essa ou aquela relação. Por exemplo, tom a-se um
corpo que se encontra em estado imóvel em relação à Terra
e diz-se que esse corpo está em estado de repouso em relação

13
F. Engels,  Anti-Dühring   cit., p. 92.

.163
 

à Terra. Para confirmar essa idéia, referem-se habitualmente à


característica do repouso que é dada por Engels em sua obra
 Anti-Diihring,  na qual ele cita um caso análogo como exemplo
de repouso. Mas, nessa referência são freqüen temente omitidas
as passagens que mostram o caráter limitado desse exemplo.
Engels, quando descrevia o caso em questão, indicava também
que a noção de repouso é tomada aqui em um sentido mecânico,
e que o corpo está em repouso apenas do ponto de vista da
forma mecânica do movimento da matéria . De fato , se a
14

forma mecânica do movimento é o deslocamento dos corpos


no espaço, en tão, o rep ouso, no qu adro dessa forma do "movi-
mento será, naturalmente, a ausência de deslocamento, a "liga-
ção" com um certo lugar.
Além disso, os autores que citam esse exemplo de repouso
não precisam a que forma de movimento ele é aplicável, permi-
tindo, dessa maneira, que se entenda que ele é um exemplo
clássico do repouso em geral e é exatamente por isso que eles
deformam a concepção marxista do repouso e sua essência.
Sendo o contrário do movimento, o repouso representa,
entretanto, não a ausência de movimento, mas sua forma
 particular, ou seja, o movimento em equ ilíbri o. De fa to, o
sistema solar é um sistema em repouso, não porque ele seja
isento de movimento (ele está em movimento constante e diver-
sifica do), mas porqu e há um equilíbrio entre suas diferentes
 part es: o át omo de uma substância, enqu anto fo rm aç ão mate-
rial, possui o repouso não porque ele está imóvel, assim como
suas partes, mas porque é um sistema de movimento relativa-
ment e estável das partí culas "ele ment ares", um sistema de
equilíbrio. É precis amente isso, ou seja, a presen ça de um
movimento em equilíbrio, e não a ausência de movimento, que
é u ma propri edade universal do repo uso. Se o repouso é
igualmente movimento, movimento em equilíbrio, então as teses
do materialismo dialético, assim como "o repouso é um movi-
mento do movimento" e "o repouso é um caso particular do
movimento", tornam-se perfeitamente claras.
O sistema de movimento relativamente estável que cons-
titui uma coisa dada não esgota todo o movimento dessa coisa.
Ao lado do movimento em equilíbrio, próprio a uma formação

14F. Engels,  Anti-Diihring   cit., p. 92.

.164
 

material, produzem-se transformações contínuas, tanto no qua-


dro desse sistema, como nas relações dele com outros sistemas
de movimento relativamente estável.
Por exemplo, em um átomo, ao lado do sistema relativa-
mente estável, do movimento dos elétrons em redor do núcleo,
dos prótons e de outras partículas, produzem-se certas modifi-
cações no estado energético das partíc ulas "element ares" . O
elétron pode passar de uma órbita a outra, perdendo uma certa
quantidade de energia ou mesmo adquirindo-a; o átomo pode
 perder um ou vár ios elétrons e, em interação com outros
átomos, pode constituir um sistema de movimento relativamente
estável e mais complexo etc.
Em uma única palavra, paralelamente ao movimento em
equilíbrio, no quadro, e ao lado desse movimento, produz-se
uma massa de outras transformações e de outros movimentos.
Todas essas transformações incorporando-se até um certo mo-
mento ao sistema de movimento dado, relativamente estável,
não comp rome tem o equilíbrio de suas diferen tes parte s. Mas
desde que essas transformações atinjam um nível em que elas
ultrapassem o quadro do sistema de movimento relativamente
estável, o equilíbrio é perturbado, o sistema fica arruinado e,
em seu lugar, aparecem um ou outros sistemas de movimento
relativamente estável, representando novas formações materiais
ou novas coisas. Nesses novos sistemas de movim ento relati-
vamente estável produz-se a mesma coisa: as transformações
que afetam alguns de seus elementos não influem, no começo,
sobre seu equilíbrio e perman ecem em seu quad ro. Mas, a
seguir, desde que um certo nível seja atingido, essas transforma-
ções destroem esses sistemas e fazem aparecer sistemas novos,
e assim por diante.

c)  O MOVIMENTO E O DESENVOLVIMENTO

Se o movimento condiciona a passagem constante da ma-


téria de um estado estável a outro, a destruição contínua de
formações materiais e o aparecimento de novas formações que
as substituem, a questão que se coloca é a de saber qual é a
tendência de todas essas transformações, qual é o sentido do
movimento e o que aparece no lugar das formações materiais
destruídas que desaparecem?

.165
 

Segundo a teoria do movimento circular, todas as trans-


formações observadas no mundo transpõem os mesmos estágios,
voltando, a cada vez, à posição de partida, isto é, elas descrevem
um círculo. Esta idéia foi formula da de maneira muito precisa
 pelos fil óso fos gregos da Antigüidade (Thales, An ax im an dr o e
Anaxí menes ). Tom and o como princípio primeiro algo conside-
rado como um  apeiron,  Anaximandro, por exemplo, dizia que:
"O infinito é o princípio primeiro da existência, porque é dele
que tudo nasce e nele tud o se destró i". É do  apeiron  que "se
desligaram os céus e, em geral, todos os mundos", "que perecem
todos depois que um tempo bastante considerável tenha decor-
rido desde seu aparecimento; e eles todos executam um movi-
mento circular, desde tempos imemoriais. . .".
Em sua forma mais categórica, que supõe a repetição
literal e absoluta dos estágios já transpostos, a idéia do movi-
mento circular foi expressa pelos pitagóricos que consideravam
que todos os 760.000 anos, tudo no mundo, volta a seu
estado inicial e repete os estágios já transpostos.
"Os pitagóricos acreditavam, escreve sobre isso Eudeme,
um dos alunos de Aristótel es, que eu fal aria nova men te a
vocês, que teria nas mãos esta mesma vara, que vocês estariam
sentados no m esmo lugar e que me escu tari am. . . " . 1 5

Segundo uma outra teoria, as tr ansform ações que se


 produzem no mu nd o nã o se fazem segundo um círcul o, mas
têm uma tendência à destruição, à morte, a ir ao encontro do
que é cada vez menos perfeito. Entr e essas teorias, encontra-
mos também as do "movimento inverso", da "regressão" etc.
O astrônomo inglês James Jeans desenvolve uma teoria desse
tipo. Gener alizando, em seu livro  O movimento das estrelas,
sua experiência no estudo do Universo, ele declara que esse
Universo "vive sua vida e vai do nascimento à morte como
todos nós, já que a ciência não conhece nenhuma outra trans-
formação além da passagem para a velhice e nenhum outro
 pro gresso alé m do movimento em direção ao túmulo" . 16

O materialismo dialético reconhece tanto o movimento em


círculo, como o retorno para trás (regressão), mas não consi-

L.15
Vaciliev,  Espaço, tempo e movimento,  Petrogrado, 1923, p. 7.
Original em russo.
16
J. Jeans,  The stars in their courses,  Cambridge University Press,
1948, p. 152.

.166
 

dera essas como tendências dominan tes. A tend ência domi-


nante, no mundo material, é o movimento progressivo, as trans-
formações que conduzem à passagem do inferior ao superior,
do simples ao complexo, isto é, o desenvolvimento.
A tese do materialismo dialético sobre o desenvolvimento
que se produz na realidade objetiva é confirmada, de forma
evidente, p elos dados das ciências contemporâneas , notad a-
mente das ciências da natureza e da sociedade.
A ciência moderna, por exemplo, afirma que a luz irra-
diada no Espaço por corpos incandescentes transforma-se, em
certas partes do Universo, em partículas "elementa res", que
 possuem um a massa de repouso, isto é, tr ansf or ma -s e em par-
tículas de substâncias que se acumulam em grandes quantida-
des, formam os átomos de elementos químicos, depois as
molécu las de alguma s substâncias. Em decor rênci a da intera-
ção, essas partículas materiais se aquecem, condensam-se e, a
um certo estágio de seu desenvolvimento, formam os corpos
celestes, sobre os quais, à medida que as condições necessárias
aparecem, como por exemplo, sobre a Terra, combinações mais
complexas de substâncias orgânicas nascem e, desenvolvendo-se,
transformam-se em organismos vivos.
Os organismos vivos depois de aparecerem não permane-
cem imóveis, mas, seguindo as modificações do meio ambiente
e a ele adaptando-se, transformam-se, passam de menos per-
feitos para mais perfeitos, de simples para mais complexos e,
em particular, passam de simples bolinhas de substância viva,
desprovidas de estrutura celular, para organismos unicelulares,
e de organismos unicelulares, os mais simples, aos organismos
 plu ricelul ares e, finalmente, passam de seres do ta dos unica-
mente de excitabilidade a seres dotados de sensações e de
rudimentos de pensamento elementar.
 Na histó ria da soc iedade hu ma na , observamos o mesmo
 processo. A hu ma ni da de começou a existir sob uma fo rm a
muito simples, a sociedade primitiva, depois conheceu o regime
escravagista, que é mais elevado e mais complexo do que o da
comunidade primitiva, em seguida, o regime feudal, o regime
capitalista e, enfim, o socialista, erguendo-se cada vez a um
grau mais elevado, passando a uma forma cada vez mais perfeita
de vida social.
Assim, a história da natureza, da mesma maneira que a
história da sociedade, mostra que, no processo da passagem da

.167
 

matéria de formações materiais ou de estados qualitativos a


outros, aparece uma tendência ao desenvolvimento, isto é, ao
movimento progressivo, à modificação indo do inferior ao
superior.
O reconhecimento do desenvolvimento é um dos princípios
de partida fundame ntais do materialismo dialético. Entretant o,
na literatura marxista, não encontramos uma concepção única
do movi mento. Exist em variado s pon tos de vista sobre esse
assunto. Lev ando em conta o laço que existe entre nosso tema
e o problema do desenvolvimento, vamos nos deter um pouco
sobre ele.
Certos autores entendem por desenvolvimento as diferentes
transformações que se produzem na natureza, na sociedade e
no conhecimento. V. Molodt sov, por exemplo, emite o se-
guinte ponto de vista: "Por desenvolvimento, no sentido mais
amplo da palavra, a dialética marxista entende as diferentes
transformações dos objetos da natureza, dos fenômenos da vida
social, assim como as modifi cações do conhe ciment o que o
homem tem do mundo objetivo" . 17

Mas se o desenvolvimento é qualquer modificação, então


não há nenhu ma diferença entre desenvolvimento e movi-
mento, e os conceitos de "desenvolvimento" e de "movimento"
designam a mesm a coisa. Ent ret anto, a análise da teori a dos
fundadores do materialismo dialético, concernente ao movi-
mento e ao desenvolvimento, mostra que eles davam um sen-
tido difer ente a essas du as noçõe s e tam bém que não as
identi ficava m. Efet ivam ente, se o movi ment o e o desenvolvi-
mento designassem a mesma coisa, Engels, definindo a dialé-
tica, não teria dito que ela é "a ciência das leis gerais do
movim ento e do desenvolvi mento da natu reza , da sociedade
humana e do pensamento" . Não se junt a com um "e"
18

 palavras que significa m a mesma coisa.


Se o movimento e o desenvolvimento fossem noções iguais,
Marx e Engels teriam criticado os materialistas anteriores a eles,
não pela negação do desenvolvimento, como é o caso, mas
 por haverem-no reduz ido a um a fo rm a mecânica, po rque os
materialistas pré-marxistas reconheciam algumas modificações,

V. Molodtsov,  A dialética marxista sobre o desenvolvimento na


l r 

natureza e na sociedade,  Mosc ou, 1953, p. 31. Orig inal em russo.


18
F. Engels,  Anti-Diihring   cit., p. 171-2.

.168
 

tais como o deslocamento dos corpos no espaço. Além disso,


se Marx e Engels entendessem por desenvolvimento todas as
modificações, Engels, analisando o processo da moagem dos
cereais, não teria podido dizer que nenhum desenvolvimento
tinha lugar no decorrer desse processo, já que as transformações
eram nele muito evidentes. Tudo isso most ra que esse pont o
de vista não está de acordo com a teoria dos clássicos do
marxismo-leninismo relativa ao desenvolvimento.
Ao contrário dos partidários do ponto de vista que aca-
 bamos de exa minar, que reduz o des envolvimento a qualquer
modif icaçã o, os partid ários de outr o pon to de vista agem de
maneira exatamente diversa. Eles definem corretamente o de-
senvolvimento como movimento, "segundo uma linha ascen-
dente, como um processo infinito de renovação, de surgimento
do novo e de deterioração do antigo", e declaram ainda que,
todas as modificações são um movimento, segundo uma linha
ascendente, o nascimento do novo e a deterioração do antigo,
o que o materialismo dialético compreende o movimento como
desenvolvimento.
"A natureza, assim como essas diferentes partes, declara
A. Vislobokov, encontra-se em um movimento perpé tuo, em
uma mudança perpétua, e esse movimento segue uma linha
ascendente, indo das formas inferiores às formas superiores"* . 9

"É o movimento, a mudança a cada instante, da existência de


todos os objetos materiais que constituem o mundo material,
 pro sse gue ele, que é o conteúdo do pro cesso do desenvolvi-
mento da matéria dos graus inferiores aos graus   s u p e r i o r e s " 2 0 .
O resultado é o mesmo: identificação do movimento e do
desenvolvim ento. A única difere nça é que os autores do
 primeiro po nt o de vista dissolvem o desenv olvimento no mo-
vimento, enquanto que os do segundo, pelo contrário, dissolvem
todo o movimento no desenvolvimento.
F. Kalsine e A. Fourman fundamentam de maneira um
 pouc o diferente a ide ntifi cação de qualquer muda nç a com o
desenvolvi mento. Eles estão de acor do quant o ao fat o de que,
ao lado do desenvolvimento — movimento do inferior ao supe-
rior na realidade objetiva — há outras formas de mudanças e,

A. Vislobokov,  A indissolubilidade da matéria e do movimento,


19

Mosc ou, 1955, p. 29. Original em russo.


20
A. Vislobokov,  A indissolubilidade  cit., p. 33.

.169
 

em particular, o movimento circular, as mudanças regressivas


etc. Mas, pelo fat o de que tod as essas mud anç as são sempre
aspectos de um processo mais complicado de desenvolvimento,
que condiciona seu aparecimento, devemos considerá-los como
momentos, elos do movimento progressivo, isto é, do desenvol-
vimento. " ( . . . ) A mudança, escreve Fourma n, pode-se dar
em qualquer direção: do simples para o complexo, do com-
 plexo pa ra o simples, em círculos etc. Ma s se começarmos a
 pr oc ur ar o po rq uê da realização dessa ou daquela muda nç a
regressiva ou circular, poderemos descobrir que sua causa en-
contra-se sempre em um processo mais complexo e mais geral
do desenvo lvim ento .. . Isso significa que todos os processos
da natureza inanimada e da natureza viva devem ser considera-
dos como diferentes aspectos ou momentos do desenvolvimento
geral e progressivo do mundo" . 21

A respeito desse juízo, é preciso dizer, antes de tudo, que


nem todos os movimentos circulares e mudanças regressivas —
mas longe disso — são engendrado s pelo proce sso geral de
desenvolvimento; vários dentre eles são aspectos, elos desse ou
daquele processo geral da degradação, da desagregação desse
ou daquele sistema, e é por isso que eles não podem, absoluta-
mente, ser considerados como momentos do desenvolvimento.
 No que concerne aos movimentos cir culares e às mudanç as
regressivas, que se desenrolam no quadro de um sistema em
desenvolvimento, também estes não são momentos do desen-
volvimento, já que o desenvolvimento representa o movimento
do inferior para o superior. No melhor dos casos, podemos
considerá-los como condições do desenvolvimento se o movi-
mento do sistema do inferior para o superior for impossível sem
eles. Mas a cond ição do desenvo lviment o e seu mom ent o estão
longe de ser a mesma coisa.
Fazendo desse ou daquele movimento circular ou mudança
regressiva um desenvolvimento, unicamente porque ele está li-
gado a esse ou àquele processo mais geral do desenvolvimento,
o autor mostra uma aproximação unilateral, porque ele se limita
a considerá-lo apenas como uma parte do todo. O movimento
circular, sendo uma parte de um todo mais geral, manifesta-se,
ele próprio, como um todo possuidor de suas próprias partes.

 Livro de leitura sobre a filosofia marxista,  Moscou, 1960, p. 142-3.


n

Original em russo.

.170
 

O autor não leva em conta esse aspect o das coisas. A part e e


o todo são noções correlativas; todo fenômeno é, ao mesmo
tempo, parte e todo . Sob uma certa relação ele manifesta-se
como parte, enquanto que, sob uma outra relação, ele aparece
como todo. Por exemplo, a muda nça de nossa Terra em relação
às mudanças do sistema solar é uma parte, mas, em relação às
mudanças do mundo vegetal e animal que vivem sobre ela, é
um todo; as mudanças de nosso organismo em relação às
mutações da espécie humana são uma parte e, em relação às
modificações das células ou dos órgãos que as constituem, são
um todo.
Segue-se que não devemos nos limitar a considerar esse mo-
vimento circular unicamente como uma parte desse ou daquele
todo, mas sim estudá-lo como um todo e, portanto, resolver
a questão: um movimento circular ou uma mudança regressiva
são um desenvolvimento? Resp onde ndo a essa questão, che-
gamos necessariamente à conclusão de que as mudanças regres-
sivas e os movimentos circulares não se relacionam ao desenvol-
vimento, mas que o desenvolvimento é apenas o movimento do
inferior ao superior.
Denominando todo movimento de desenvolvimento, os
autores, cujo ponto de vista acabamos de analisar, consi-
deram-se vitoriosos na tentativa de ultrapassar a estreiteza da
conc epçã o metafís ica relativa a essa ques tão. Mas, na reali-
dade, embora de forma invertida, a estreiteza metafísica também
está prese nte em seu pont o de vista. Os metafísicos reduze m
toda mudança, inclusive o desenvolvimento, a uma única forma
de movimento, notadamente ao simples deslocamento dos cor-
 pos no espaç o. Já os aut ore s do po nt o de vista em questão
declaram, contrariamente, que toda mudança, inclusive o deslo-
camento dos corpos no espaço, é um desenvolvimento.
Dialético não é o que vê o desenvolvimento onde ele não
existe, mas sim o que representa a realidade em toda a sua
diversidade, sem confundir progresso e regressão, aquele que
vê na massa das mudanças o que intervém no desenvolvimento
 — o movimento progressivo que, "a pesa r de to dos os acasos
aparente s e de todos os retornos pa ra trás, . . .termin a por
aparecer" .
22

22
K. Marx e F. Engels,  Etudes phylosophiques,  Paris, Editions So-
ciales,  1961,  p. 45.

.171
 

Ao contrário dos autores que identificam totalmente o


conceito de desenvolvimento com o de movimento, S. Meliukhin
distingue-os, mas apresenta como critério de sua diferenciação
momentos e aspectos que não constituem a essência específica
do desenvolvimento. Ele considera, por exemplo, a integrali-
dade, o caráter lógico e a espontaneidade das mudanças do
estado qualitativo de uma formação material como principais
 par ticul aridade s do desenvo lvimento. "A noçã o de desenvol-
vimento, ele escreve, caract eriza apena s a mud ança integral,
lógica e espontânea do estado qualitativo de um sistema dado,
como um todo único" . Incon testa velm ente, esses traços ca-
23

racterizam o processo de desenvolvimento, mas não lhe são


específicos. E eles caracteriz am igualm ente o movime nto
circular e as mudanças regressivas. A especificidade do desen-
volvimento é constituída não pela integridade, o caráter lógico
ou a espontaneidade das mudanças das formações materiais,
mas pelo caráter progressivo das mudanças, pela passagem do
inferio r ao superior, do menos perfe ito ao mais perfeito. É
 pre cisam ente esse caráter que os clássicos do marxismo toma-
ram como critério do desenvolvimen to. O autor ignora e,
 port an to , deforma o con cei to de desen volvimento . Nã o é por
acaso que ele dá o nome de desenvolvimento tanto à mudança
das formações materiais, indo do inferior ao superior, como à
mud anç a do superior ao infe rior . Par tind o desse critério de
desenvolvimento, o autor termina por pensar que as mudanças
irreversíveis devem ser consideradas como desenvolvimento.
Seu raciocínio é o seguinte:
O Universo não é um sistema integrado, no qual todos os
elementos estariam em uma ligação funcional única, mas re-
 presenta "o co nj un to da multiplicidade infin ita de sistemas
relativ amente autôn omos, na qual cada um está ligado ao
outro, mas cada um desenvolve-se de maneira completamente
independente" . Por isso o Universo não se modif ica inteira-
24

mente do inferior ao superior: algumas das formações mate-


riais que o constitue m (sistemas relativamente autônomo s) se
desenvolvem do inferior ao superior, outras desenvolvem-se
no sentido contrário, e outras, ainda, seguem um movimento

23S, Meliukhin,  Sobre a dialética do desenvolvimento da natureza


inorgânica,  Mosc ou, 1960, p. 10. Origi nal em russo.
S. Meliukhin,  Sobre a dialética  cit., p. 158.
24

.172
 

circular. Mas há algo comum a todas essas mudan ças, e isso


é o fato de que elas são irreversíveis e de que não repetem
total mente os estados já trans posto s. Por isso não devemos
considerar o desenvolvimento como um movimento progressivo,
mas como uma mudança irreversível.
"Em relação ao conjunto do Universo, escreve Meliukhin,
 podemos falar nã o de des env olvim ento progressivo, mas de
mudança irreversível, que supõe a impossibilidade de retorno
completo aos estados já trans posto s. Os processos de desenvol-
vimento progressivo são apenas casos particulares de sua mu-
dança irreversível geral, pelo fato de que esta última encerra
não apenas a complicação das ligações e das formas do mo-
vimento, mas igualmente a degradação e a desintegração dos
sistemas materiais" .25

V. Koziutinski defende um pon to de vista análogo. Em seu


artigo "De la direction du développement des objets cosmiques".
ele escreve: "Qual é, então, o critério de desenvolvimento dos
sistemas cósmicos e dos elementos que os constituem? Se o
desenvolvimento se resumisse principalmente a uma mudança se-
guindo uma linha ascendente, a resposta seria clara: o critério
do desenvolvimento é o grau de "complicação" da estrutura,
das ligações e das formas de movimento da matéria, atingidas
 pelo sistema. Mas , desde que a matéria inanimada nã o se
desenvolve em um sentido preferencial, e desde que o desen-
volvimento dos objetos cósmicos consiste em sua passagem a
novos estados qualitativos, que dão a impressão de ser, a cada
vez, originais e únicos em seu gênero, mas que nem sempre
são mais complexos do que os estados que os precedem, é
 preciso int roduz ir, então, um novo critério de desenvolvimento
O desenvolvimento pode ser determinado como processo de
trans forma ções qualitativas irreversíveis do objeto. No desen-
volvimento "ascendente", o novo significa ao mesmo tempo a
ascenção a um novo grau qualita tivo. Mas o desenvolvimen to
"ascendente" é apenas uma das direções do desenvolvimento
irreversível dos objetos cósmicos, uma das ramificações de
 pro cessos extremamente complexos que se desenr olam na Me-
tagaláxia" .
26

S. Meliukhin, op. cit., p. 159.


25

26
V. Koziutinsky, Sobre o sentido de desenvolvimento dos objetos
cósmicos, in  Ciências filosóficas,  1961, v. 4, p. 91-2. Original em russo.

.173
 

 Nesses racio cín ios é ressaltado o caráter nã o fu nd am en ta -


do das conclusões relativas à necessidade de expandir a noção
de desenvolvimento e de estender, a todos, os processos irre-
versíveis.
Esses autores descobriram que o movimento do inferior
ao superior não engloba todos os processos que se desenrolam
no mundo, que existem ainda os movimentos circulares e des-
cendent es. A par tir disso, eles concluíram que o conceito de
desenvol vimento como movi men to do infer ior ao superior é
insuficiente, que é preciso substituí-lo por um outro conceito
que possa englob ar todas as mud anç as observáveis. Segundo
eles, esse conceito seria o da irreversibilidade das mudanças.
Ele caracteriza tão bem o movimento do inferior ao superior,
como os movimentos circulares e as mud anças regressivas. Vê-
se então , claramente, que as tenta tivas desses autores para
expandir a noção de desenvolvimento, qualificando de desen-
volvimento qualquer mudança que intervenha na realidade
objetiva, decorrem da vontade de mostrar o caráter universal
do desenvolvimento.
Afirmando que toda mudança não é desenvolvimento e
que, ao lado dos processos de desenvolvimento, observamos
movimentos circulares e mudanças regressivas, não estaremos
colocando em dúvida a universalidade do desenvolvimento? É
evidente que não. O desenvolvimento é um a propri edade uni-
versal da matéria, necessariamente própria a todas as formações
materiais. Ele existe sob a form a de capa cida de à complicação
e à passagem do infe rior ao super ior. Sendo próprio a toda
a matéria e a cada formação material, esta capacidade, como
qualquer outra, aparece apenas em condições adequadas. Onde
essas condições reúnem-se, há necessariamente mudança do
inferior ao superior, do simples ao complexo; onde essas con-
dições não são criadas há, ou movimento circular, ou mudanças
regressivas. As formações materiais que participam do movi-
mento circular ou sofrem mudanças regressivas não perdem a
capacidade de passar do inferior ao superior. Essa capacidade
conserva-se sob todas as transformações e mudanças, manifes-
tando-se desde que as condições favoráveis sejam reunidas.
A idéia segundo a qual a capa cida de de passagem do
inferior ao superior é necessariamente própria da matéria e de
que ela se manifesta necessariamente onde são criadas condi-
ções correspondentes foi exposta de uma maneira particular-

.174
 

mente clara por Engel s: "A maté ria move-se em um ciclo


eterno: ciclo que, é bem verdade, só executa sua revolução
nas durações pelas quais nosso ano terrestre é apenas uma
unidade de medida suficiente, ciclo no qual a hora do supremo
desenvolvimento, a hora da vida orgânica e, ainda mais, a hora
em que vivem os seres que têm consciência deles mesmos e da
natureza é medida com tanto mais de parcimônia quanto o
espaço no qual existem a vida e a consciência de si; ciclo no
qual todo modo de vida finito de existência da matéria — seja
ele o Sol ou nebulosas, animal singular ou gênero de animais,
combinação ou dissociação química — é igualmente transitório
e no qual nada é eterno, a não ser a matéria em eterna mu-
dança, em eterno movimento, e as leis segundo as quais ela se
move e se modifica. Mas, qualquer que seja a freqüência e
qualquer que seja o inexorável rigor com os quais o ciclo se
complete no tempo e no espaço; qualquer que seja o número dos
milhões de sóis e de terras que nascem e que perecem; por
maior que seja o tempo necessário para que, em um sistema
solar, as condições de vida orgânica estabeleçam-se, mesmo
que apenas em um único planeta; por mais numerosos que
sejam os seres orgânicos que terão primeiro de aparecer e
 perec er antes que saiam de seu seio animais com um cérebro
capaz de pensar e, mesmo que eles encontrem, apenas por um
curto lapso de tempo, condições próprias a sua vida, para em
seguida ser exterminados sem piedade, ainda assim, temos a
certeza de que. . . se ela (a ma té ria ) tiver um dia de exter-
mina r sobre a Terra, com um a necess idade imperiosa, sua
floração suprema, o espírito pensante, será preciso que, com
a mesma necessidade, em algum outro lugar e em alguma outra
hora, ela o reproduza" . 2, 7

Desse raciocínio de Engels destaca-se o fato de que os


clássicos do marxismo, considerando o movimento da matéria
do inferior ao superior como uma evolução, levavam em conta
movimentos circulares infinitos próprios à matéria, a presença
de mudanças regressivas e o caráter temporário da existência
de cada sistema, de cada formação material.
Analisamos vários pontos de vista relativos à concepção
do desenvolvimento, diferentes, todos eles, do que havíamos

27F. Engels,  La dialectique  cit., p. 45-6.

.175
 

exposto anteriormente, e acreditamos que a teoria mais justa


do desenvolvimento é a que o considera como um movimento
 progressivo, seg und o um a linha ascenden te, como mudança no
decorrer da qual se produz a passagem do inferior ao superior,
do simples ao complexo, do menos perfeito ao mais perfeito.

3. A REL AÇÃ O

As diferentes formações materiais, sendo sistemas de


movimento relativamente estáveis, não coexistem simplesmen-
te, mas agem umas sobre as outras, prov ocan do muda nças
mútuas e encontrando-se, assim, em correlação e interdepen-
dência determinadas.
A ligação é a rela ção entre os objetos da reali dade. Mas
nem toda relação é liaação. O conceito de "rela ção" é mais
vasto do que o de "lig ação ". Esse conceito engloba não apenas
a ligação entre os fenômenos da realidade, mas igualmente seu
isolamento, sua separação, não apenas sua interdependência,
mas também uma certa independência,  uma  relativa autonomia.
A ligação é uma relação entre dois fenômenos quando a mo-
dificação de um supõe um a certa t ransfor mação do outro,
quando a essa ou àquela modificação em um correspondem
essas ou aquelas modificaç ões no outro. Por exemplo, o mo-
vimento do corpo está organicamente ligado a sua massa, já
que a modificação do primeiro acarreta necessariamente a
modificação da segunda; as propriedades químicas dos elemen-
tos estão ligadas à carga do núcleo atômico, porque sua mo-
dificação acarreta uma certa modificação dessas propriedades;
os organismos animais e vegetais estão em correlação com o
mundo exterior: mudanças precisas do meio acarretam neces-
sariamente mudanças correspondentes nos organismos; as
ferramentas de trabalho estão em correlação com o objeto
do trabalho e toda modificaç ão da fer ramenta provoca uma
modificação rigorosamente determinada do objeto. Por sua
vez, a transformação do objeto do trabalho acarreta certas
modificações das ferramentas de trabalho etc.
O isolamento (a separação) é uma relação entre os fenô-
menos da realidade feita de tal forma que as mudanças de um
deles não afetam os outros fenômenos, não acarretam mudanças
nestes últimos. Por exemplo, os princípios morais da sociedade

.176
 

e a natureza exterior estão em estado de isolamento, as modi-


ficações dos princípios morais não acarretam uma mudança da
natureza e vice-versa, as mudanças na natureza não modificam
os princípios morais. Fenôme nos como a natureza biológica
do homem e a luta de classes, as jazidas de carvão e de ferro
etc. não estão ligados entre si. Uma modificação de um nã o
acarreta uma modificação de outro.
Dando esses exemplos de correlação e de isolamento (sepa-
ração), nós não queremos absolutamente dizer que a correlação
é particular a certos fenômenos, enquanto o isolamento é ex-
clusivo de outro s. No caso da correlação que consid eramos
mais acima, há igualmente isolamento, assim como no caso de
isolament o há tam bém correlação . A única difere nça é que,
em certos casos, a correlação está em primeiro plano, enquanto
que, em outro s, é o isolam ento, a separaç ão. Ten do fix ado por
meta mostrar o que representa a correlação, escolhemos, natu-
ralmente, exemplos em que ela aparece de maneira particular-
mente clara, em que ela predomina sobre o isolamento.
E procedemos da mesma forma para mostrar o que repre-
senta a separação (o isola mento ). A correlação e a separaçã o
(o isolamento) existem conjuntamente e caracterizam todos os
fenômenos, sem exceção.
 No mundo, todos os fenômenos estão, ao mesmo tempo,
ligados e isolados . Eles estão ligados sob certas relações e não
o estão sob outras; neles são produzidas tanto mudanças que
supõem outras corre sponde ntes em outros fenôme nos, como
mudanças que não implicam absolutamente em correspondentes.
O núcleo atômico, por exemplo, está organicamente ligado à
camada eletrônica, embora esteja, ao mesmo tempo, separado
dela (iso lado) . Nesse núcleo produzem-se modificações que
acarretam modificações correspondentes na camada eletrônica,
e outras que nã o a afetam. Assim, a modif icaçã o da carga do
núcleo acarreta uma modificação de sua camada eletrônica.
Mudanças, como a troca permanente de mésons, que se efetua
entre os núcleos que é acompanhada por suas transformações
uns nos outros, não acarretam nenhuma modificação da camada
eletrônica, assim como uma modificação nesta última e, em
 par ticul ar, a pe rd a ou a aquisi ção de elétrons nã o acarreta
mudanças no núcleo.
A relaç ão organi smo-meio é um exemplo manife sto da
unidade da ligação e da separação (is olamen to). O organismo

.177
 

está indissoluvelmente ligado ao meio e, ao mesmo tempo, está


separado dele; porque o organismo possui uma certa autonomia,
conhece um certo isolamento. Algumas mudanças no meio
engendram necessariamente mudanças no organismo, enquanto
outras não o fazem. Apenas as mudanças do meio que con-
cernem aos aspectos e aos fatores ligados à atividade vital do
organism o inf luem sobre ele. As mud ança s do meio que não
afetam a atividade vital do organismo não acarretam mudanças
 para ele.
As idéias de separação, de isolamento da existência dos
fenômenos e de sua correlação surgiram com o nascimento da
Filosof ia. Assim, entre os prime iros filósofos gregos, a corre-
lação desempenhou um papel de princípio inicial na explicação
dos fenômenos observados na realidade ambiente.
Tomando como princípio inicial uma substância ou um
fenômeno natural (a água, o ar, o fogo), os filósofos da Anti-
güidade most rara m que todos os fenômenos observados no
mundo provinham de modificações dessa substância (fenô-
meno) e que, sendo diferentes estados de uma mesma natureza,
eles estão organicamente ligados, passam um no outro e no
 princípio inicial.
A idéia da correlação universal dos fenômenos foi muito
claramente exprimida por Heráclito que tomava o fogo como
 pri ncí pio inicial e dele fazia o fu nd am en to de to da separação
e de toda ligação.
 Nas teorias dos primeiros fil ósofos gregos, a co rrel aç ão
era compreendida como a passagem dos fenômenos uns nos
outros. Mas logo depois, esse pon to de vista foi substit uído
 por um outro, segundo o qual a correlação manifesta-se sob a
forma de junção e de disjunção mecânicas dos mesmos elemen-
tos invariáveis. Esse ponto de vista foi particularmente desen-
volvido por Empédoc les e Anaxágoras. Foi somente Aristó-
teles quem conseguiu super ar esse pon to de vista limita do.
Par a ele, a corr elação é a inter depen dênci a das coisas. Ele
ensina que tudo o que é correlativo a qualquer outra coisa é
expresso em relação às coisas que estão em interdependência.
Aristóteles foi o primeiro a denominar de categoria o conceito
de "relação", dando-lhe, dessa maneira, o caráter geral neces-
sário.
A categoria de "relação" foi, em seguida, desenvolvida por
Kant, para quem a relação compreende, ao mesmo tempo, a

.178
 

ligação e a sepa raçã o. Ele destacava que, no juízo, os con-


ceitos estão, ao mesmo tempo, ligados e separ ados , e que
todo juízo fixa tanto a presença de ligação, como sua ausência.
Por exemplo, o juízo "o lobo é um animal" exprime que o lobo
está ligado aos animais e também que ele está separado de todos
os outros animais, com exceção de seus semelhantes, isto é, dos
lobos. Dese nvol vend o a justa idéia de que a ligaçã o e a sepa-
ração são dois aspectos que se condicionam em qualquer rela-
ção, Kan t deu um grande passo à fre nte na resol ução desse
 prob lema . Mas, ao mesmo tempo, deu um passo atrás. Ele
negava a presença da correlação dos fenôme nos no mundo
exterior, na realidad e objetiva. Para ele, a correlaç ão é intro-
duzida no mun do dos fenômenos pelo sujeito pensante. Hegel
opunha-se a essa afirmação de Kant . Ele afirmava que a cor-
rela ção e as relaç ões são, por natureza, próprias às coisas. É
 precisamente po r mei o das relações que as coisas manife stam
sua essência. Hegel dizia que: " Tud o o que existe encon tra-se
em relação, e essa relação é a verdade de toda existência" . 28

Embora demonstrasse que a ligação e a relação são próprias


às coisas, Hegel estava longe de adotar posições materialistas.
Ele acreditava que as relações são, por sua natureza, ideais,
que elas const ituem mome ntos ou graus do desenv olvim ento
da idéia absoluta que existe fora e antes do mundo material
e das coisas sensíveis.
Além da concepção dialética das relações desenvolvida
 pelos filósofos já cit ados, apa rece na história da Fi lo so fia um a
concepção metafísica, cujos partidários erigiam em absoluto o
isolamento, a separação e, de uma maneira ou de outra, negavam
a correlação dos fenômenos da realidade. Essa concepção
nasceu do fato de que, em um determinado estágio do desen-
volvimento da consciência social (séculos XV e XVI), os sábios
 passaram do est udo do mundo em seu conj unto , como se fazia
anteriormente, ao estudo dos objetos particulares, que forma-
vam esse mun do, e de suas propr iedades. Eles distinguiram
os objetos uns dos outros, desmembraram-nos em partes e
examinaram cada uma delas separadamente, fora de qualquer
laço com as outras part es e objetos. Esses modo de pesquisa

28
G. W. F. Hegel,  Werke, Vollständige Ausgabe,  Berlin, 1843, t.
6, p. 267.

.179
 

engendrou o hábito de considerar o mundo, a realidade como


um conjunto de corpos, de propriedades e de elementos iso-
lados, sem nenhuma ligação entre eles.
Essa concepção filosófica das relações dos fenômenos da
realidade foi elaborada de uma maneira ou de outra por Francis
Bacon e John Locke. Dentre os filósofos burgueses contem-
 porâneos , são os partidários da teo ria pluralista que a adotam.
Segundo essa teoria, cada objeto apresen ta-se como alguma
coisa encerrada em si mesma, portanto, não pode haver ligação
entre os objetos.
Em oposiç ão aos metafísic os que erigiram o isolamento
em absoluto e negaram a correlação dos fenômenos da reali-
dade, e também em oposição aos idealistas que deduzem a
correlação da consciência, o materialismo dialético acredita
que esta última é uma forma universal do ser, própria a todos
os fenômenos da realidade. Todos os fenômenos que existem
no mundo representam elos de uma matéria única, "um con-
 ju nt o coerente de corpos" . 29

Por exemplo, segundo os dados da ciência, a Terra tem


uma certa ligação com o Sol e os outr os plane tas do sistema
solar. O Sol é um elo da Galáxia que enc erra uma grande
quan tid ade de outra s estrelas ligadas entre elas. A Galáxia
faz parte de um sistema ainda mais imenso e, nos limites desse
sistema, está ligada a uma série de outras formações estelares
etc., até o infinito. Observamos um fenôme no análogo, quan do
 penetramos a matéria. De fato, to do corp o celeste representa
um conjunto de diferentes substâncias ligadas entre elas de
diferentes maneiras; cada substância é um conjunto de molé-
culas ligadas entre elas de uma maneira bem determinada; a
molécula é um conjunto de átomos em ligação recíproca; o
átomo é um conjunto de partículas "elementares" ligadas entre
elas. A ligação dos corpos celestes efetua -se por meio dos
campo s de gravi tação. A ligação das substâ ncias que consti-
tuem um corpo assim como a ligação dos átomos na molécula
e da camada eletrônica com o núcleo atômico realizam-se por
meio dos campos de gravitação e eletromagnéticos.
A natureza viva e a natureza inanimada, o mundo vegetal
e o mundo animal, a natureza e a sociedade, os diferentes

29
F. Engels,  Dialectique  cit., p. 76.

.180
 

aspectos da vida social, os fenômenos da consciência e do


conhecimento estão todos ligados entre eles de forma deter-
minada.
Logo, na realidade, tudo está em correlação, "cada coisa
(fenômeno, processo etc.) está ligada a uma outra coisa qual-
quer'^.

4. O ESPA ÇO E O TE MP O

Como já fizemos observar, a matéria, que possui um mo-


vimento absoluto e um repouso relativo, existe não sob a forma
de massa totalmente homogênea, mas divide-se em um con-
 junto de formações materiais particulares. Cada fo rm ação
material particular, enquanto parte do mundo material, possui
uma certa extensão e está em correlação, de uma maneira ou
de outra, com outros objetos e formações materiais particulares
que a rodeiam .
A extensão das formações materiais particulares e a
relação entre cada uma delas com as outras formações mate-
riais que a rodeiam é o espaço.
Pelo fat o de que a matéria possui como própr io um
movimento e um repouso relativo, cada formação material
 particular nã o é etern a, mas aparece em dec orrência da neg açã o
de formações materiais determinadas que lhe são anteriores,
transpõe certos estágios de desenvolvimento e desaparece,
transformando-se em outras formações materiais, isto é, ela
 possui uma du ração determinada de existência e está em relação
determinada com as formações materiais que a precedem e
com as que a seguem.
A dura ção da existência das formaç ões materiais e a
relação de cada uma delas com as formações anteriores e pos-
teriores é o tempo.
Os idealistas, como de regra, negam a existência objetiva
do tem po e do espaço. Assim, por exemplo, Berkeley, repre-
sentando o idealismo subjetivo, reduz o mundo a um conjunto
de sensações e declara que todo laço ou extensão existe apenas
no espírito, na consciência, e que não há, fora da consciência

30
V. Lenin,  Oeuvres  t. 38, p. 210.

.181
 

e de nossas sensações, nem espaço, nem tem po. O tempo ,


segundo Berkeley, transforma-se em nada se afastamos a su-
cessão de idéias em nosso espírito.
Outros representantes do idealismo subjetivo têm um ponto
de vista semelhante, como por exemplo Ernest Mach, físico e
filósofo austríaco da segunda metade do século XIX e começo
do século XX . Pa ra ele, o temp o e o espaço repr esen tam
sistemas ordenados (ou harmonizados) de séries de sensações.
Kant acreditava que o espaço não constitui a propriedade das
coisas, mas que, assim como o tempo "que não é alguma coisa
que exista em si, ou que pertença às coisas", ele representa
"exatamente uma forma de sentimentos exteriores", uma forma
de intuição, que o homem utiliza para abordar o mundo dos
fenômenos, por meio da qual ele as percebe" . 31

Poincaré apresentou igualmente um ponto de vista subje-


tivo do espaço e do temp o. Segundo ele, o tempo e o espaço
são apenas conceitos elaborados pelo homem, para sua como-
didade.
A concepção idealista do espaço e do tempo caracteriza a
maioria dos filósofos burgueses contempor âneos, assim como
certos físicos que, não sabendo adotar o ponto de vista do ma-
terialismo dialético, para explicar estes ou aqueles fenômenos
físicos, ten dem pa ra o idealismo. Assim, o ast rôn omo inglês
J. Jeans reprova o materialismo dialético por fazer do espaço
e do tempo "qualidades primeiras" e por acreditar que todos
os fenômenos podem ser inteiramente representados no espaço
e no tempo, quando a física moderna mostra que o espaço e o
tempo são próprios apenas aos aspectos exteriores das coisas
e que não caracterizam os processos internos . Segund o Jeans ,
32

só pertence ao espaço e ao tempo o que está na superfície, os


 proces sos internos existe m fo ra do espaço e do te mpo, isto é,
representam uma espécie de mundo à parte.
O físico contemporâneo Arthur Eddington também não
reconhece a realidade do espaço e do tempo para o mundo das
 partículas elementares. Referindo-se a esses estados da maté-
ria ele declara que: "Para tais estados, o espaço e o tempo não
existem — ou pelo menos eu não tenho nenhuma razão para

 siKant's Werke,  Berlim, 1904, t. 3, p. 55.


32
J. Jeans,  The new background of science,  Cambridge, 1933, p. 81.

.182
 

 pensar que eles ex ist am " . Os materialistas que, ao contr ário


33

das diferentes concepções idealistas do espaço e do tempo,


consideram que a matéria, a natureza são primeiras, iniciais,
dete rmina ntes e que a consciência, o espírito são segundos,
derivados da matéria e que constituem uma propriedade da
matéria que aparece apenas em um estágio determinado de
seu desenvolvimento, reconhecem a existência objetiva e real
do espaço e do tempo, existência independente da consciência.
Segundo o materialismo dialético, o espaço e o tempo são pro-
 prie dades fu nd am en ta is da matéria, fo rm as determinadas de
sua existência, formas objeti vament e reais do ser. "O Univers o,
escreve Lenin, é apenas matéria em movimento, e essa matéria
em movimento só pode mover-se no espaço e no tempo" . 34

Se o espaço e o tempo são propriedades fundamentais da


matéria, formas de sua existência, é totalmente normal e ne-
cessário que eles estejam em ligação orgânica com a matéria.
Mas, na história da Filosofia, foi a opinião contrária que pre-
valeceu por muito tempo. Os filósofos acreditavam que o
espaço e o tempo, embora existindo objetiva e independente-
mente da consciência, não estavam absolutamente ligados à
matéria, não dependiam dela. Essa idéia já fora exposta de
maneira bastante clara pelos filósofos gregos da Antigüidade,
e, em particular, pelo pitagórico Archytas de Tarente, em cuja
obra encontramos a afirmação de que o espaço existe realmente
e de que ele lembra uma imensa caixa na qual encontram-se
coisas e números separados, e que ele não depende das coisas
e que po de existir sem elas. Demó crit o reco nhec eu igualm ente
a independência do espaço com relação às coisas materiais.
Segundo ele, o espaço existe sob a forma de um vazio, no qual
move m-se os átomo s. Aristóte les expôs um pon to de vista
semelhante; é verdade que ele não falou de espaço vazio, mas
escreveu que o espaço é apenas um lugar ocupado alternada-
mente pelas coisas.
Foi Newton que, em sua teoria do espaço absoluto, desen-
volveu a tese da independência do espaço com rela ção à
mat éri a, que torn ou-s e um pilar da física clássica. Segundo

A. S. Eddington,  The nature of the physical world,  New York,


33

The Macmillan Company, 1929, p. 198.


V. Lenin, op. cit., t. 14, p. 181.
34

.183
 

essa teoria, o espaço não está ligado às coisas de forma neces-


sária, não depende delas; ele é eterno, imutável e imóvel, en-
quanto que as coisas particulares dependem do espaço, existem
no espaço, movem-se com relação a ele.
 Na his tória da Filosofia, ho uv e tentativas de ligar o espaço
à matéria, às coisas materiais. Gior dano Bruno (Itál ia, Renas-
cença), por exemplo, tentou disseminar a idéia de que não
existe nenhum espaço vazio, que o espaço está indissoluvelmente
ligado à matéria e em especial ao éter, o qual, sendo penetrável,
incorpora todas as coisas existentes.
Descartes reúne de maneira mais clara o espaço à matéria.
Para ele, o espaço não está ligado a uma forma qualquer da
matéri a, como dizia Br uno, mas a toda s as for mas de sua
existência. A verd ade é que ele prat icam ente caiu em um outro
extremo identificando o espaço à matéria.
A tese da ligação orgânica do espaço com a matéria foi
igualmente sustentada por outros filósofos e, em particular, por
Spinoza (Holanda, séc. XVII), segundo o qual o espaço é um
atributo da matéria, e pelo filósofo inglês John Locke
(1632/1704), que identificava o espaço à grandeza dos corpos,
à sua "extensão".
Os materialistas pré-marxistas que salientaram, com justa
razão, a ligação do espaço e da matéria, pensavam, entretanto,
que o espaço é o mesmo para todos os corpos, que possui as
mesmas qualidades e obedece às mesmas leis, o que manifesta-
mente não corresponde à situação real das coisas e é o resul-
tado da influência metafísica própria do materialismo pré-
marxista.
Apenas o materialismo dialético rompeu definitivamente
com a metafísica na interpretação da correlação do espaço e
da matéri a. Ele considera que o espaço não está apenas orga-
nicamente ligado à matéria, às coisas materiais, mas também
que depende igualmente da matéria, de suas formas de exis-
tência e que não é, em conseqüência, o mesmo para todos os
corpos, mas que muda de uma forma de existência da matéria
a outra. Assim, por exemplo, os gazes, cuja atração molecular
é tão fraca que as moléculas podem deslocar-se em todas as
direções, possue m relações espaciais deter minad as. Os líquidos
caracterizam-se por outras relações espaciais: suas moléculas
têm uma atração muito mais forte e, por esse motivo, elas não
 pode m mover-se liv rem ente, seus movimentos são atrapalhados

.184
 

 pe las moléculas vizinhas e de sloc am-s e apenas co m elas.


Outras relações espaciais existem, por exemplo, nos sólidos,
nos metais em que as moléculas e os átomos estão dispostos
em uma ordem rigorosa e formam uma rede cristalina estável.
As aquisições da física contemporânea e, em particular,
a teoria geral da relatividade são um poderoso testemunho da
dependência imediata do espaço com relação à natureza das
forma ções materia is. Segundo essa teoria, as característic as
espaciais dependem da divisão e do movimento das massas
em atração, isto é, da densidade da matéria que constitui essa
ou aquela parte do Universo e de suas forças de atração
(campos de gra vitaçã o), que ela determina. Em particular,
nas partes do Universo caracterizadas por uma forte densidade
de matéria e por grandes forças de atração, o espaço curva-se
tanto mais quanto a densidade e a força de atração cresçam.
O proble ma da maté ria e do tem po é análog o. Dur ant e
muitos anos, acreditou-se que o tempo não estava ligado à
matéria, não dependia da natureza das formações materiais,
mas existia em si mesmo, corria de maneira regular, repetindo
o mesmo ritm o. Spinoza, por exempl o, escreveu que : "A
dura ção é a conti nuaçã o indef inid a da existênci a. . . ela não
 po de jamais ser de te rm in ad a pe la pr óp ri a na tu re za da coisa
que existe; nem pode ser determinada pela causa eficiente"35.
Essa idéia foi levada ao extremo por Newton que acreditava
que o tempo, enquanto tal, era absoluto, que existia em si
mesmo, independente dos acontecimentos; que corria de forma
igual, uniforme.
A separ ação do tem po da maté ria, dos aconteci mentos
que se davam na realidade objetiva, pode ser encontrado igual-
men te na litera tura filos ófica soviética. Certos filósofos sovié-
ticos defendem e desenvolvem a teoria de um tempo puro que
não será preenchido, nem "sujado" por nenhum acontecimento
Como tempo puro, eles prop õem o tempo futuro. O futuro,
efetivamente, não está preenchido pelos acontecimentos, como
é o caso do present e e do passa do. Mas, por enqua nto, ele
não é real, é apenas um tem po possível. Por isso não é válido
compará-lo aos acontecimentos presentes, podemos confrontá-
lo apenas com acontecimentos possíveis, com acontecimentos
que se produ zirã o no fut uro . E desde que colocamos a questão

35
Spinoza,  Ethique,  Paris, 1908, p. 64.

.185
 

nesse plano, a "pureza" do tempo futuro desaparecerá imedia-


tamente, este verificar-se-á "sujo", preenchido pelos aconte-
cimentos, e precisamente pelos aconteciment os futur os. O ma-
terialismo dialético não reconhece nenhum tempo puro existindo
fora e independent emente dos acontecime ntos que têm lugar
nesse mundo.
O tempo, assim como o espaço, está organicamente ligado
à matéria, depende dessa ou daquela forma de sua existência.
A dependência do tempo com relação às formas de existência
da matéria é confirmada pelos dados mais recentes da ciência
da natureza contemporâ nea. Por exemplo, segundo a teoria
da relatividade, o decorrer do tempo, seu ritmo dependem da
densidade da substância desse ou daquele sistema e das forças
de atração que agem entre os corpos dados: quanto mais a
densidade da substância é elevada, tanto mais lentamente corre
o tempo.
A dependência do espaço e do tempo, com relação à
matéria, sua determinação pelas formas concretas de existência
da matéria decorrem necessariamente do fato de que o espaço
e o tem po estão organ icame nte ligados ao movim ento . Com
efeito, mesmo o movimento mecânico é testemunha dessa cor-
relação. Por exemplo, a distância perco rrida por um corpo
em movimento uniforme é determinada pelo produto do tempo,
 pela veloc idade. A distânci a é a me di da do esp aço; a veloci-
dade, a medida do movimento. Port anto , o espaço é, aqui,
determinado pelo movimento e pelo tempo. A dependência da
duração da existência de certas partículas "elementares" com
relação à sua velocidade testemunha igualmente que o tempo
depe nde do movim ento. Por exempl o, o méson existe tanto
mais tempo, quanto maior for sua velocidade. Isso se encontra
confirmado em certas teses da teoria da relatividade e, em
 particular, no fa to de que, em um sistema em movimento,
com par ado a um sistema em repo uso, as relações espaciais
modificam-se, reduzem-se, e poderíamos mesmo dizer que o
corpo é comprimido no sentido do movimento, que os períodos
temporais aumentam e que o escoar do tempo torna-se mais
lento.
Se o espaço e o tempo estão ligados ao movimento, e se
o movimento é um atributo da matéria, o tempo e o espaço
estão, no entanto, organicamente ligados à matéria, dependem
das formas de seu movimento e, portanto, de sua existência.

.186
 

A caract erístic a do espaço é a de ser tridimensional. A


representação das três dimensões do espaço é dada por três
linhas perpendiculares uma a outra, passando por um único
e mesmo ponto do espaço. Um a delas vai da esquerda para
a direita, a outra de cima para baixo e a terceira da írente
 pa ra trás. Ess es três eixos são to talmen te suficientes pa ra
que possamos, deslocando-nos paralelamente a eles, atingir
qualquer que seja o corpo e localizá-lo no espaço.
Certos filósofos idealistas contestam essa tese, afirmando
que as três dimensões não são absolutamente necessárias para
todos os corpos, nem para todos os seres. Ernest Mach, por
exemplo, acreditava que os átomos dos elementos químicos não
são tridimensionais. Por isso, segundo Mach, "nó s não deve-
mos representar-nos os elementos químicos em um espaço com
três dimensões" . Outros representantes do idealismo e, em
36

 particul ar, os espiritua listas, pr oc ur ar am jus tificar um espaço


com quatro dimensões e seres também com quatro dimensões.
O professor Zelner, espiritualista, chegou a recorrer ao seguinte
raciocínio: Admitamos que existam seres com duas dimensões,
que só podem deslocar-se da esquerd a para a direita, para
frent e e para trás, mas não de baixo para cima. Eles seriam
 parecidos com um peixe chato, po r exemplo, o linguad o, col o-
cado em um aquário chato, e privado da possibilidade de se
desloca r par a o alto e par a baix o. Esses seres viventes nã o
sabem nada da terceira dimensão espacial que nós conhecemos,
 já que somos seres de três dimensões. É po r isso que, pa ra
chegar ao centro do círculo, esses seres só podem deslocar-se
no sentido do raio e, assim, eles cor tarã o forç osam ente a
circunferência. Quanto a nós, podemos chegar ao centro do
círculo de outra maneira, seguindo a terceira dimensão, isto é,
aproximando-nos do alto para baixo e de baixo para o alto.
Segundo Zelner, nós, os seres de três dimensões, estamos em
relação aos seres de quatro dimensões como os seres de duas
dimensões estão em relação a nós mesmos. Efetivament e, não
 po de mos chegar ao centro de um a esfera evitand o sua sup erfíci e,
nem podemos entrar em uma casa sem passar pela porta ou
 pela janela etc., po rq ue só conhecemos trê s dimensões e todas
elas passam pela superfície das forma ções indicadas (esfera,

36
E. Mach,  Erhaltung der Arbeit,  Praga, 1872, p. 54-5.

.187
 

ca sa ); os seres sobre natur ais que conhecem outras direções


 pode m penetrar na esfera ou na casa sem passar por sua super-
fície. Daí todas as maravilhas sobrenatu rais que não podemos
compreender nem explicar, a partir do ponto de vista de nosso
espaço de três dimensões.
Esses raciocínios mostram o quanto a quarta dimensão é
necessária a certos filósofos para fundamentar a existência de
Deus e todo o misticismo.
Quanto às teorias físicas de um espaço com quatro, cinco,
ou mesmo um número infinito de dimensões, não têm nada a
ver com as afirmações que acabamos de examinar e refletem
certas leis do mundo objetivo sem, entretanto, invalidar a tese
do espaço de três dimensões . Qua ndo os físicos fa lam de
quatro dimensões, eles consideram, na verdade, quatro coorde-
nadas, das quais três se relacionam ao espaço e a suas dimen-
sões e a quar ta é o tem po. A mesm a coisa acontece quando
se fala em espaço pluri dimen siona l. Qua ndo os físicos ou os
matemáticos falam de dimensões, eles, habitualmente, têm em
vista não somente as dimensões do espaço, mas igualmente as
de outros aspectos e propriedades das coisas, que são em
número infinito. Tudo isso não enfraqu ece em nada a teoria
do espaço de três dimensões, mas simplesmente mostra que
os termos "espaço de quatro dimensões", "espaço de várias
dimensões" ou "espaço de  n  dimensões" não correspondem a
seu conteúdo, mas são empregados para definir as característi-
cas que ultrapassam grandemente o quadro das dimensões
espaciais.
Ao contrário do espaço, o tempo possui apenas uma di-
mensão, ele vai sempre em um único sentido: para a frente,
do passado para o presente e depois para o futuro. Não pode-
mos mudar a disposição dos momentos nem modificar o curso
do tempo, porque o tempo é irreversível.
Outra particularidade do tempo e do espaço é que eles
são infinitos. Embo ra a matéri a exista apenas mediante for-
mações materiais limitadas no espaço e no tempo, enquanto
tudo, ela é infinita. Cada formaçã o material, colocada à parte,
 possu i suas relaçõe s espaciais, mas é apenas .um elo da corrente
das coisas materiais. Cad a coisa está ligada a uma quantid ade
infinita de outras coisas, e é por isso que as relações espaciais
de uma coisa, de uma formação material transformam-se ime-
diatamente em relações espaciais de outras coisas, e assim até

.188
 

o infinito . Emb ora a existência de cada formação material seja


marcada por um começo e um fim, já existia antes dela um
número infinito de formações materiais, da mesma maneira
que, depois de seu desaparecimento, existirão outras formações
materiais. O desap areci mento de uma conduz ao surgimento
de outr a e, assim, sucessivamente. O mun do nunc a teve co-
meço, nem terá fim, ele existia e existirá eternamente.
Entret anto, o caráter infinito do espaço e do tempo é
contestado pelos representantes das diferentes escolas idealistas,
assim como pelos teólogos. Os teólogos resumem o carát er
finito do mundo, no espaço e no tempo, à doutrina religiosa da
criação do mun do por Deus . Deus, segundo eles, tem uma
existência eterna e não tem necessidade nem de espaço, nem de
tempo. O espaço e o temp o apare ceram , dizem eles, depois
da criação do mundo, que Deus situou no espaço e no qual
Ele deixou um lugar pa ra a mar cha dos acontecim entos. Os
teólogos propõem-se a aceitar sua doutrina do espaço e do
tempo como uma fé e recusam-se a qualquer discussão sobre
seu fundam ento e sua lógica. Quando , por exemplo, pergunta-
vam para Luther: "Onde se encontrava Deus e o que Ele fazia
antes da criação do mundo?", ele respondia que Deus estava
sentado em um bosque de bétulas e preparava açoites para os
que fizessem perguntas desse tipo.
 Nos últimos tempos, a no çã o de um mundo limitado no
tempo e no espaço é freqüentemente ligada à teoria da relati-
vidade , a algumas de suas teses e deduções. Segundo a teoria
da relatividade, a julgar pela densidade da substância e pelas
forças de atração que condiciona, o Universo representa uma
esfera fechada, limitada no espaço. Concluir pelo caráter
finito do mundo no espaço, resulta em equações da teoria geral
da relatividade, que supõem que a matéria é repartida de forma
homogênea nesse espaço. Entre tanto , os últimos dados da
astronom ia most ram o cont rár io: a divisão da ma téri a no
espaço é extremamente heterogênea ?. 31

Também não tem nenhum fundamento dizer que o mundo


é finito no espaço e no tempo, referindo-se ao processo de
expans ão do Univers o. O fato de que os sábios observem o

37
V. Ambartsumian,  Alguns problemas metodológicos da cosmo-
 gonia,  1957, p. 6. Ori gina l em russ o.

.189
 

deslocamento de raios espectrais na direção do vermelho, quan-


do observam a luz proveniente das estrelas, foi utilizado para
concluir que a parte observada do Universo está em expansão,
que as galáxias afastam-se umas das outras a uma velocidade
inacreditável, atingindo, para algumas estrelas mais afastadas,
a velocidade de 120. 000 a 170 .0 00 Km/ s. Levando em conta
que a velocidade na qual as galáxias afastam-se umas das
outras e a posição em que foram observadas, os sábios calcula-
ram a época em que essa matéria em recessão ainda permanecia
 junto, isto é, eles estabeleceram quando começou essa dilatação
suposta da matér ia. Isso rep res ent a de 2 a 5 milhões de anos.
Os idealistas e os teólogos imediatamente tiraram conclusões
correspondentes. Assim, foram criadas teorias, segundo as
quais todo o Universo tem por começo um átomo pai, criado
 por Deus, isto é, o mu nd o tev e um começo no tempo, po rt an to ,
ele também é limitado no espaço . O papa Pio XII, baseando-se
nessas reflexões, decidiu acrescentar uma correção à Bíblia e
declarou que o mundo foi criado não há 7.500 anos, mas há
vários milhões de anos.
É evidente que esses são raciocínios incorretos. O erro,
nesse caso, reside no fato de que leis próprias a algumas partes
do Universo são estend idas para tod o o Univers o. Do fat o de
que a parte observada do Universo esteja em expansão não
decorre absolutamente que as outras partes também estejam
expandindo-se. Elas tanto pod em estar em dilatação, como em
contração. E é mesmo muito provável que algumas partes do
Universo estejam dilatando-se, enquanto outras estejam con-
traindo-se, ou ainda que em um momento elas se dilatam e no
outro se contraiam.

.190
 

VI. O SINGULAR,
O PARTICULAR
E O GERAL

1. CRITICA
DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFISICAS DO SINGULAR
E DO GERAL

O problema do singular e do geral nasceu ao mesmo tempo


que a Filosofia. A form ação de representações da realid ade
exterior, do mund o em seu conj unto e a interpreta ção dos
fenômenos que aí se produzem supõem que uma explicação
seja dada quanto ao aparecimento e às relações das diferentes
coisas e quanto a sua essência comum. Não é, portant o, por
acaso que todos os filósofos se interessaram por essa questão
e tentaram, de uma maneira ou de outra, resolvê-la
 Na história da Filoso fia manifestam-se claramente duas
tendências para a resolução desse problema: tendência realista
e tendência nominalista. Os partidários da primeira afirmam
que o geral existe de forma autônoma, independentemente do
singular. Algu ns dent re eles consi deram que o geral, po r sua
 própria natureza, existe sob a fo rm a de idéias, de essências
ideais, enquanto que outros declaram-no material, existindo
fora e independentemente da consciência.
Platão, por exemplo, conferia ao geral uma forma ideal
de existência; o geral manifestava-se, para ele, como conceitos
gerais, como idéias particulares e autônomas, existindo fora e
independent emente da sociedade humana. Para os filósofos
de Megara (Euclides, Stilp on), o geral tomava a for ma de
idéias de "be m", de "r azã o" e de "De us" . O filós ofo inglês

.191
 

contemporâneo George Moore* exprime o geral como relações


espaciais e outra s relações . Segundo os filóso fos burgueses
contemporâneos, George Santayana , Alfred Whitehead3 e
2

outros, o geral é feito de essências ideais, absolutamente inde-


 pendent es de coisas materiais.
Os eleatas (Xenófanes, Parmênides, Zenon) acreditavam
que o geral é material, que ele é "um" — uma massa única,
imutável, idêntica a ela mesm a e que tud o ocupa. Pa ra o
filósofo da Idade Média, Roscelin, o geral existia sob a forma
de uma classe de objetos singulares, como o exército, o povo etc.
Quanto ao singular, os partidários dessa tendência decla-
ravam-no ou inexistente ou secundário, dependendo do geral e
sendo por ele engendrad o. Além disso eles o consideravam
temporário, transitório, surgido sob a influência direta do geral
e desaparecendo em condições correspondentes, enquanto o
geral era const ante, imutável, eterno. Por exemplo, as escolas
de Eléia e de Megara negavam a existência real do singular.
Elas declaravam que as coisas e fenômenos singulares são uma
aparê ncia, um a miragem . Pla tão considerava as coisas singula-
res como o mundo das sombras.
Whitehe ad demonstra o caráter transitório do singular. As
coisas singulares, segundo ele, tendo características espaciais e
temporais, são finitas, cambiantes, aparecem e desaparecem. Seu
aparecimento é condicionado pelo geral, por essências ideais,
eternas, existentes fora do mundo espacial-temporal que obser-
vamos.
Os representante s da segunda tendência, a nominalista,
afirmam, pelo contrário, que não é o geral mas sim o singular,
que possui uma existência real. O geral é o pro dut o da ativi-
dade do pens amen to dos home ns e existe apena s em suas
consciências, sob a forma de nomes gerais, designando objetos
singulares.
A teoria de William Occam, filósofo da Idad e Média,
fornece um exemplo da concepção nominalista do singular e
do geral; ele declara que o geral não existe realmente na rea-
lidade objetiva, mas que é um produto do pensamento, que existe

'G. E. Moore,  Some maine problems of philosophy , Londres-New


York, 1953.
2
G. Santayana,  The real of essence,  New York, 1927.
3
A. N. Whitehead,  Science and the modern world,  Cambridge, 1933.

.192
 

apenas sob a forma de conceito, sinal de numerosas coisas sin-


gulares. Ent re os filósofos contemporâneos, a concepção no-
minalista do singular e do geral é aceita, por exemplo, por
Chase , W. Hugh.5 e Cassius . Hugh, por exempl o, considera
4 6

que os conceitos gerais são ficções que não refletem nada, mas
que confundem os homens, introduzindo entre eles mal-enten-
didos e confli tos. Segundo ele, apenas as coisas singulares
existem na realidade, e é por isso que apenas os conceitos sin-
gulares e individuais têm um verdadeiro valor.
Dec ret and o que apenas o singular existe realmente, os
nominalistas resolvem de diferentes maneiras a questão da
for ma de sua existência. Alguns dentre eles (Willi am Occam
e Richard Midlton) consideram que o singular existe sob a
form a de objetos materiais isolados, outros (Berkeley) afirmam
que ele existe sob a forma de sensações, e outros, ainda (Lei-
 bn iz ), sob a fo rm a de "mônad as", átomos espiri tuais úni cos
em seu gênero.
Houve na história da Filosofia tentativas de ultrapassar
os defeitos e a estreiteza das concepções realistas e nominalistas
do singular e do geral (Aristóteles, Duns, Scotus, Bacon, Locke
e Feu erb ach ). Entreta nto, eles também não conseguiram che-
gar a nenhuma solução científica-do problema, porque partiam
do fato de que apenas o singular tem uma existência verdadeira,
enquanto que o geral existe somente sob a forma de um aspecto,
de um momento do singular.
Erigindo o singular em absoluto, esse ponto de vista
aproximava-se do nominalista e impedia a elucidação do
 pr oblema.
Apenas a filosofia marxista conseguiu definitivamente
ultrapassar os defeitos próprios aos nominalistas e aos realistas
e dar uma solução justa e científica para essa questão.

4
S. Chase,  The tyranny of words,  New York, 1938.
5
W. Hugh,  Semantics. The nature of words and their meaning,
 Ne w Yo rk , 1941.
6
J. K. Cassius,  The rational and the superrational,   New York , 1952.

.193
 

2. A REL AÇÃ O
DO SINGULAR E DO GERAL

Como já demonstramos nos parágrafos precedentes, as


formações materiais estão em correlação, em interação e modi-
ficam-se mutua mente. Essas modificações são próprias a cada
formação material, porque cada uma delas possui seu próprio
ambiente, diferente do das outras, sua própria série de estados
qualitativos, que diferem das séries anteriore s, e sua próp ria
história presente nela sob uma forma anulada. Tud o isso con-
diciona em cada formação material a existência de propriedades
e ligações que são próprias apenas a ela mesma.
As propriedades e ligações que são próprias apenas a uma
formação dada (coisa, objeto, processo) e que não existem em
outras formações materiais constituem o singular.
O singular para cada coisa é, por exemplo, o fato de que
ela ocupa um lugar dado no espaço, que ela é consti tuída
 justamente po r moléculas dadas e que, exposta a um a alta
temperatura, ela emite fótons dados etc.
Cada formação material, possuindo propriedades e ligações
singulares, representa essa ou aquela forma de existência da
matéria, uma for ma particular de seu movimento. É por isso
que, em cada formação material, ao lado do singular, do que
não se repete, deve haver o que se repete, o que é próprio não
apenas a ela, mas também a outras formações materiais (coisas,
objetos, processos).
As propriedades e ligações que se repetem nas formações
materiais (coisas, objet os, proce ssos) constituem o geral. O
que é geral nessa ou naquela coisa é, por exemplo, o fato de que
ela existe objetivamente, independentemente de uma consciên-
cia qualquer, que ela está em movimento, que possui caracterís-
ticas espaciais e tempo rais. O geral no hom em é o fato de que
ele é um ser vivo, que vive em sociedade, que sua essência é
determinada pelas relações de produção correspondentes, que
ele é dotado de uma consciência, reflete o mundo ambiente por
meio de um sistema de imagens ideais, possui uma familia etc.
O resultado do que acaba de ser dito é que o singular e o
geral não existem de maneira independente, mas somente por
meio de formações materiais particulares (coisas, objetos, pro-
cessos), que são mome ntos , aspectos destes últimos. Cada

.194
 

formação material, cada coisa representa a unidade do singular


e do geral, do que não se repete e do que se repete.
Existindo sob a forma de aspectos, momentos das forma-
ções materiais particulares (coisas, processos), o singular e o
geral estão orga nicamente ligados um ao outro, inter penetra m-
se e só podem ser separados no estado puro por abstração. A
correlação do singular e do geral no particular (formação ma-
terial, coisa, processo) manifesta-se como correlação de aspectos
únicos em seu gênero, que são próprios apenas a uma formação
material dada, e a aspectos que se repetem nesse ou naquele
grupo de outras formações materiais.
A correlação do singular e do geral no particular manifes-
ta-se igualmente na transformação do singular em geral e, vice-
versa, no processo do movimento e do desenvolvimento das
formaçõe s materiais. Essa lei pode ser observada nas transfor-
mações das propriedades dos vegetais no momento de sua trans-
 plan tação. Os biólogos acreditam que algumas plantas, sub me-
tidas a condições de vida diferentes, adquirem faculdades de
adaptação e que, quando a ação de fatores correspondentes é
reforçada , essas faculda des de ada ptação transform am-se em
 propriedades gerais qu e carac ter izam primeiro um a pa rt e dos
exempl ares de uma espécie e depois tod a a espécie. Como
exemplo, podemos nos referir às modificações de algumas pro-
 priedades das pl anta s selvagens que crescem nos Cáucasos.
 Na região de Kazbek, essas plantas selvagens tê m, em
geral, favas revestidas de pelos e as plantas com favas sem pelos
são rara s. O fa to de haver favas sem pelos é aqui singular
e é tamb ém algo que pert ence apenas a algumas plan tas. Mais
 para o Oeste, as plan tas com favas sem pel o pr ed omin am cla-
ramente, embora ainda haja 25% de plantas com favas reco-
 bertas de pelo. Ai nd a mais pa ra o Oeste, to da s as fa va s são
desprovi das de pelos . Assim, quand o as condições de existência
das plantas mudam, a propriedade singular (favas sem pelo)
torna-se geral e a propriedade geral (favas recobertas por uma
camada de pelo) torna-se singular, excepcional.
Abo rda mos aqui a correl ação do singular e do geral. Mas
é conveniente distinguir especialmente a correlação do particular
e do geral. Se o singular é uma propr ieda de que nã o se repete,
e que é próprio apenas a uma formação material dada (coisa,
objeto, processo), o particular é a própria formação material,
a própria coisa, o própri o objeto, o próprio processo. O par-
.195
 

ticular é simple smente o singular, mas é igual ment e o geral. O


 particular é a un id ade do singular e do geral. A correlação do
 particular e do ger al representa um a correlação do to do e da
 parte, em que o particular é o to do e o geral é a part e. Sendo
uma parte do particular, "todo o geral engloba, apenas aproxi-
mativamente, todos os objetos particulares", e "todo particular
entra, de maneira incompleta, no geral'" , já que ele possui o
7

singular ao lado do geral e que, ao lado das propriedades repe-


titivas, há propriedades únicas em seu gênero, que são próprias
exclusivamente a ele.
Em uma certa medida, cada formação material particular,
em condições adequadas, pode transformar-se em uma outra
formação material (por exemplo, cada elemento químico em
um outro elemento químico, cada partícula "elementar", em
uma outra partícula "elementar", a substância em um campo
físico, o campo físico em uma substância), porque "todo par-
ticular" é religado, por milhões de passagens, a particulares de
um outro  gênero  (coisas, fenômenos, processos) e "existe
apenas nessa ligação que conduz ao geral" . 8

Efetivamente capaz, em condições adequadas, de transfor-


mar-se em uma outra formação material (coisa, objeto, proces-
so), cada particular encerra em potencial as propriedades
dessas outras formações materiais (coisas, objetos, processos)
e pode, portanto, ser considerado como sendo-lhe idêntico, isto
é, como geral.

3. O GER AL E O PAR TIC ULA R

Se estudamos um objeto dado, do ponto de vista das


categorias de "singular" e de "geral", colocamos em evidência,
 por um lado, as propriedades e as ligações de caráter único,
 próprias somente a esse objeto e, po r outro lado, as que se
repetem e que são próprias a toda uma série de objetos. Mas,
freqüentemente na prática, não se trata de evidenciar o que é
único (não repetitivo), mas de estabelecer a identidade (a se-

7
V. Lenin,  Oeuvres,  t. 38, p. 345.
8
Lenin, op. cit.

.196
 

melha nça) e a diferença entre os objetos confr ontad os. Torn a-


se, portanto, necessário opôr o geral ao particular e não ao
singular.
O que distingue os objetos confrontados constitui o
 particular e o que exprime sua semelhança é o ger al.
Assim, a predominância da propriedade privada na socie-
dade capitalista e da propriedade social na sociedade socialista
representa o particular dessas sociedades, na medida em que
esse traç o distingue uma da outra. Da mesma form a, a explo-
ração do homem nos países capitalistas e sua ausência nos
 paí ses socialistas é o particular.
O singular apresenta-se sempre como particular, porque,
sendo próprio apenas a uma formação material dada, ele a
distingue de qualquer outra forma ção material. Assim, um
fenômeno único, tal como a instauração do poder dos Sovietes,
 pel a primeira vez na URSS, representará sempre o particular
 para a URSS e ma rcar á a diferença entre ela e qualquer outro
 país.
 No que concerne ao geral, seu compor ta me nt o é cambian-
te. Ele pode, seguindo a natu reza de suas relaçõe s, desem-
 penhar, ta nto seu próprio papel, como o papel do particular.
 Nes se caso, em que ele anuncia a semelhança das formações
materia is conf ront adas , ele encarn a o geral, mas q uan do as
distingue umas das outras, então, dese mpen ha o papel do
 particular.
O fato, por exemplo, de que a ditadura do proletariado
na Bulgária existe sob a forma de democracia popular constitui
o geral se compararmos esse país com a Polônia, com a RDA
ou mesmo com a Hungria; e, ao mesmo tempo, se compararmos
a Bulgária com a URSS, esse mesmo fato tornar-se-á o par-
ticular, o regime da democracia popular distinguindo então a
Bulgária da URSS, onde a ditadura do proletariado afirma-se
sob a forma de República dos Sovietes.
É conveniente observar, quando se fala da faculdade que
o geral tem de assumir o papel de particular, que isso não é
absolutamente próprio a qualquer geral. Para desempenhar a
função de particular, o geral deve poder distinguir as formações
materiais umas das outras. E essa fac ulda de não pert ence a
qualq uer geral. Por exemplo, as p ropr iedades e as ligações
comuns a todas as formações materiais (objetos, coisas, proces-
sos) não podem distinguir as forma ções materiais. Assim, a

.197
 

 prese nça, em cada coisa, de uma causa que seja a origem de


sua existência, de uma forma e de um conteúdo determinados,
de ligações e de propriedades necessárias e acidentais, de uma
essência etc. não pode assumir o papel do particular, pelo fato
de que tudo isso caracteriza qualquer coisa ou formação ma-
terial. Aba rca ndo todas as formações materiais, o geral exprime
apenas, quai sque r que sejam suas relações, a semel hança , a
identidade e não pode, portanto, distingui-las umas das outras.
Cada formação material representa, portanto, a unidade
do geral e do particular, a unidade do que a identifica a outras
formações materiais, assim como a unidade do que a distingue.
É conveniente tirar dessa lei a seguinte conclusão para a
 prática e o conh ec imen to : se cada fo rm aç ão mate rial é a uni-
dade do geral e do particular, então, para poder formar uma
representação exata de um objeto dado é necessário colocar
em evidência o que o identifica e o que o distingue de outras
formações materiais. Assim, se quisermos compre ender a es-
sência do poder de Estado da URSS de hoje, devemos explicar
em que ele assemelha-se e em que ele difere do poder de Estado
nesse ou naquele país capitalista, e do poder que existia na URSS
no período da passagem do capitalismo para o socialismo, ou do
 poder nos países de democracia popu lar. Somente assim estará
completa e exata nossa representação da natureza do poder em
questão, de seu conteúdo e de sua forma, de sua essência e da
especificidade de suas manifestações nas circunstâncias dadas.
Prossigamos. Se cada formaç ão material, cada domínio
da reali dade poss ui necess ariame nte o geral e o partic ular,
então, para resolver os problemas práticos, teremos de levar
em cons ider ação nã o somente o geral que se repet e, mas
também o particular próprio a um único domínio, a uma única
forma ção material. Isso determina a diversidade das formas
e dos caminhos para a resolução de um único e mesmo pro-
 blema prátic o. Podemos citar, a título de exemplo, a diversi-
dade das formas que toma a realização da revolução socialista
em diferentes países, em função da diversidade das particulari-
dades nacion ais e da evolução histórica. Por exemplo, na Uniã o
Soviética, a revolução socialista teve lugar em uma época em
que, em todos os outros países do mundo, o poder pertencia
aos exploradores, à burguesia que se recusava a ceder, o que
explica porque a revolução efetuou-se sob a forma de uma
insurreição armada . Em outros países (Bulgária, Romênia,

.198
 

RDA etc.), a revolução socialista desenrolou-se em outras con-


dições, que permitiram a instauração da ditadura do proleta-
ria do por vias pacífi cas. As difere ntes condições nas quais se
desenrolaram as revoluções socialistas na URSS e em outros
 paíse s de democracia popula r nã o deixaram de influir na fo rm a
que a dit adur a tom ou, assim com o na resol ução de certos
 pr oblema s sociais. Assim , a ditadura do pr ol et aria do na Un ião
Soviética foi realizada sob a forma de República dos Sovietes,
enquanto que em outros países mencionados ela tomou a forma
de democracia popula r. Na União Soviética, a burguesia foi
 pr iv ada de seus direitos polít icos, o que nã o aconteceu em
outros países, e um sistema político com um partido único
tomou o seu lugar, enquanto que em certos países de democracia
 po pu la r reina o pluripartidarismo.

4. A CORREL AÇÃO DO GER AL


E DO PARTICULAR
 NO MOMENTO DO MOVIMENTO
DA MATÉRIA
DO INFERIOR PARA O SUPERIOR

O movimento da matéria, de suas formas inferiores para


suas forma s superiores, faz nascer pr opriedad es e ligações
novas, consecutivas ao aparecimento de novas correlações, que
constituem a essência de uma forma nova, superior, do movi-
mento da matéria.
Sabemos que toda forma superior do movimento da ma-
téria encerra nela mesma sua forma inferior modificada e que
 po r isso tem muitos traços comuns (o geral) com ela. En tr e-
tanto, esses traços comuns (o geral) diferem dos que existem
entre as formações materiais que se encontram na mesma etapa
de desenvolvimento e que são refratados mediante a especifi-
cidade das formas superiores do movimento e só podem ser
comp reen dido s na qual idade do elo que liga o in ferio r ao
superior.
Consideremos, a título de exemplo, o átomo de um ele-
men to químico e a molécul a for ma da pelos átom os desse
elemento. A molécula contém os átomos, portanto, essas duas
formaç ões possuem vários traços comuns. Assim, as mesmas
 partículas "e leme ntar es" é que os compõem, port an to , a intera-

.199
 

ção condiciona, no fim das contas, a existência de algumas


 propri edades comuns nessas formaç ões. Mas se no átomo essa
interação se produz diretamente na superfície do fenômeno, na
molécula, pelo contrário, ela é refratada através da interação
dos átomos; e estes últimos, sendo o resultado da interação de
 partículas "e leme ntares" que constituem o átomo, ne m por isso
representam alguma coisa de menos nova em relação à interação
das partículas elementares. Depois de serem refrat adas me-
diante essa nova interação, as propriedades do átomo manifes-
tam-se sobre a superfície de uma maneira completamente dife-
rente daquela como se manifesta no átomo livre.
O geral ganhará um aspecto ainda mais cambiante se con-
front armos o átomo e um organismo vivo. As propriedades
inerentes ao átomo serão várias vezes "refratadas" — mediante
a interação dos átomos, das moléculas e das proteínas; por isso,
sua manifestação no organismo vivo, será ainda mais modificada.
Segue-se que o que é geral (comum) às formações mate-
riais, que representam diferentes etapas da evolução da matéria,
é muito pobre, insuficiente para caracterizar essas formações,
 pa ra exp rimir sua essência. Na s fo rmações mat eri ais que per-
tencem ao estágio inferior, esse geral relaciona-se apenas aos
element os do conte údo que, de uma man eir a ou de outra,
subsistiram e estão presentes nas formações materiais do estágio
superior, e isso ainda sob o aspecto que eles tomaram depois
de ser "refratados" mediante as interações que constituem a
forma superior do movimento, isto é, sob uma forma modificada.
 No que concerne às fo rm ações da fo rm a sup erior do mo-
vimento da matéria, esse geral que exprime apenas o que une
essa formação às formações inferiores também não é capaz de
exprimir sua essência. Esse geral deixa de lad o exatamen te o
que a formação material adquiriu durante sua progressão, o
que a distingue das formações surgidas nos estágios anteriores
de desenvolvimento. Par a compreender o significado verda-
deiro desse geral e suas relações com a essência das formações
materiais confrontadas, é preciso preencher as lacunas existen-
tes entre essas formações, restabelecendo os estágios do desen-
volvime nto que as separ am. Citamos , a seguir, conceitos signi-
ficati vos de Engels, que constam da obra   Dialectique de la
nature: "Se colocarmos à parte duas coisas extremamente dife-
rentes — como um meteorito e um homem, por exemplo —
e os aproximarmos, não sairá disso grande coisa, no máximo

.200
 

veremos que os dois têm em comum o peso e outras proprie-


dades físicas gerais. Mas entre eles intercala-se um a série
infinita de outras coisas naturais e de outros processos naturais
que nos permitirão completar a série do meteorito ao homem
e de designar o lugar de cada um na conexão natural e, como
conseqüência, poderemos  conhecê-los"9.
Restabelecendo os momentos do desenvolvimento que se-
 pa ra m as formações materiais co mpar ad as , seguimos a passa gem
da matéria em evolução, de uma formação material a uma
outra: de uma formação material representando um estágio do
desenvolvimento a uma outra representando um outro estágio,
do inferi or ao superior. E exat amen te po r isso colocam os em
evidência o lugar real, a significação real do geral, assim como
do particular e, ao mesmo tempo, a essência das transforma-
ções materiais estudadas.
A correlação entre o geral e o particular nas formações
materiais que pertencem a um único e mesmo estágio do desen-
volvimento apresenta um aspect o algo diferen te. Aqu i o geral
é que constitui sua essência, o que elas adquiriram atingindo
esse estágio do desenvolvimento, suas ligações e aspectos neces-
sários e partic ulare s surgidos nesse moment o. Por exemplo, o
geral, para os países que chegaram ao estágio capitalista, indica
o que surgiu nesses países depois que eles abordaram esse
estágio de desenvolvi mento. E isso é, notadam ent e, a domina-
ção da propriedade privada capitalista dos meios de produção,
o modo de produção baseado no assalariado e a exploração dos
operários privados de meios de produção, além da chegada da
 burgues ia ao po de r, a in stau ração de sua ditadura etc. Isso
constitui, na essência, a formação sócio-econômica capitalista.
 No que concern e ao particular pr óp ri o às formações mat eriais
que pertencem a um único e mesmo estágio de evolução, o
geral não exerce nenhuma influência sobre a essência, sendo
apenas uma forma particular de sua manifestação, um modo
 particular de sua existência.
A conclusão que podemos tirar disso, para a prática e o
conhecimento, é a seguinte: se o geral, no seio de formações
materiais que pertencem a diferentes estágios de desenvolvimen-
to não caracteriza nem a essência da formação material do

9
F. Engels,  La dialectique de la nature,   p. 235.

.201
 

estágio inferior nem a essência da formação material do estágio


superior, a comparação dessas formações materiais deve-se
 base ar ess encialmen te sobre diferenças e nã o sobre sua seme-
lha nça, isto é, sobre o part icul ar e nã o sobre o geral. Assim,
quando confrontamos o Estado socialista com o Estado capita-
lista, descobrindo, por um lado, o geral e, por outro lado, o
 particular que os car acter izam, o que impo rt a sobretudo é pres-
tar atenção ao particular, ao que os distingue.
O estudo das formações materiais de um único e mesmo
estágio de desenvolvimento deve-se basear essencialmente no
 part icul ar qu e os distingue um do outr o e nã o em sua seme-
lhança, sua identidade. É só então que podere mos explicar sua
essência e, analisando-os sucessivamente, seguir a multiplicida-
de das formas de sua manifestação.

.202
 

VII. A QUALIDADE
E A QUANTIDADE

1. OS CONC EITO S
DE QUALIDADE E DE QUANTIDADE
Como já observamos, cada coisa representa a unidade do
geral e do particular, o que indica sua semelhança com outras
coisas e o que as distingue. Mas, o que distingue uma coisa
das outras, ou o que indica sua semelhança, é uma propriedade.
Assim, a coisa caracteriza-se por uma quantidade infinita de
 prop riedades dif ere nte s. Algumas dentre elas indicam o que
ela representa , ou tras indicam, suas dimensões, sua grandeza.
Por exemplo, as propriedades da água, assim como sua facul-
dade de dissolver algumas substâncias, de matar a sede e o
fato de que ela seja constituída pelo oxigênio e o hidrogênio
etc. indicam o que ela repre senta e o que ela é. As proprie-
dades que testemunham o volume da água e seu peso caracteri-
zam-na do ponto de vista de sua grandeza.
O conjunto das propriedades que indicam o que uma coisa
dada representa e o que ela é constitui sua qualidade.
 Na literatura filos ófica, en contra mos definições as mais
variadas de categorias de qualidade e de quantidade.
 Numero sos aut ores consideram que a qua lid ade é o con-
 ju nt o de propriedades que con stitui det erm ini smo interno da
coisa e a distingue das outras coisas.
A definição da qualidade como determinismo interno da
coisa é insuficiente, já que não coloca em evidência o conteúdo
da categoria considerada, não permite que seja distinguida, não
apenas de toda a série de outras categorias da dialética, mas
também da categoria de "quantidade", que lhe é organicamente
ligada.

.203
 

Efetivamente, o determinismo de uma coisa é não apenas


sua qualidade, mas igualmente sua quantida de. Ò determinismo
do cloro, por exemplo, inclui não somente o fato de que, em
condições habituais, ele é um gás de cor amarelo-esverdeada,
nocivo e ativo, que se liga diretamente com a maioria dos
metais e de outros corpos etc., mas igualmente o fato de que
a carga de seu núcleo atômico é 17, de que a camada eletrônica
de seu núcleo comporta 17 elétrons e sua molécula dois átomos,
que a ligação entre os átomos estabelece-se na molécula com
a ajuda de dois elétrons, que ele é 2,5 vezes mais pesado do
que o ar, que a 0°C e sob pressão normal seu peso específico
é de 3,214 gramas, que sua temperatura de fusão é de 100,98°C
e sua temperat ura de ebulição é de 34,05° C etc. Logo, o
determinismo interno do cloro inclui não apenas suas caracte-
rísticas qualitativas, mas igualmente as quantitativas.
E isso é válido também para qualquer formação material,
assim como para qualquer coisa ou qualquer fenômeno.
O "determinismo interno" é insuficiente para distinguir
a categoria de "qual idade " da categoria de "essência" e de
"conteúdo", porque essas últimas refletem igualmente o deter-
minismo interno da coisa na unidade dialética de seus aspectos
quantitativos e qualitativos.
Esse "determinismo interno" também é insuficiente para
definir a qualidade, assim como para representá-la como um
conjunto das propriedades que distinguem uma coisa das
outras, como sendo ligada ao que distingue e, finalmente, como
sendo algo que traduz apenas a especificidade da coisa.
A qualidade inclui não apenas as propriedades que dis-
tinguem uma coisa das outras, mas igualmente as que indicam
sua semelhan ça com elas. Po r exemplo, a posse de um núcleo
atômico, no qual entrem prótons, nêutrons e outras partículas
"elementares", e de uma dupla camada eletrônica, além do fato
de ser um metal alcalino, que se liga facilmente aos halogênios,
decompõe a água, expelindo hidrogênio, e dissolve-se nos
ácidos, são componentes essenciais da quali dade do lítio. Mas
toda s essas propriedades repetem- se em. outras substâncias e,
assim, exprimem não apenas a diferença, mas também a seme-
lhança do lítio com outros elementos químicos.
A qualidade de toda coisa representa a unidade do singular
e do geral, do geral e do particular.

.204
 

Reunindo a qualidade ao singular, ao particular, os auto-


res do ponto de vista mencionado acima reduzem o geral, o
que se repete nas coisas, direta ou indiretamente à quantidade.
A idéia de que a categoria de "quantidade" reflete somente
o que é o geral nas coisas diferentes é tão incorreta quanto a
idéia de que a categoria de "qualidade" reflete apenas a dife-
rença. A categoria de "qu ant ida de" , assim como a categoria de
"qualidade ", fixa não somente o geral (a semelhan ça), mas
igualmente o particular (a diferen ça). Por exemplo, entre as
características do hidrogênio, do lítio e do sódio, há não apenas
o fato de que seu átomo possui, em sua camada eletrônica
exterior, um elétron (propriedade geral), mas igualmente o fato
de que cada um desses element os possui um peso atômico
específico.
Assim, embora a categoria de qualidade reflita o que dis-
tingue uma formação material dada de outras formações ma-
teriais, esse traço não constitui seu conteúdo específico, da
mesma forma como na categoria de "quantidade" o reflexo do
geral nas coisas não constitui seu conteúdo específico.
As duas categorias refletem tanto a semelhança como a
diferenç a das coisas. O reflexo da diferença entre as coisas
é o conteúdo específico das categorias do "particular" e do
"sin gular " e não o da categori a de "qual idade". O reflex o da
semelhança é o conteúdo específico das categorias do "geral",
da "identidade", e não o da categoria da "quantidade".
Certos autores identificam a qualidade às propriedades
fundamentais . A definição da qualidade como proprieda de
1

fundamental ou conjunto de propriedades essenciais não pode


ser consid erada como exata. Se toda s as propried ades essen-
ciais das coisas relacionam-se à qualidade, apenas o domínio
do não-essencial deve pertencer à quantidade . 2

Mas, na realidade, nem todas as características quantita-


tivas de uma coisa são essenciais. Apen as algumas dentre elas
são essenciais e necessariamente ligadas a sua nature za. Por
exemplo, é essencial, para cada elemento químico, que o número
de prótons que entra em seu elemento atômico seja rigorosa-

íUemov,  Coisas, propriedades e relações,  Editora da Academia de


Ciênc ias da URSS , 1963, p. 39. Ori gina l em russo.
2
M. N. Rutkebiych,  Materialismo dialético,  1959, p. 329. Origina l
em russo.

.205
 

mente determinado, assim como o número de átomos de sua


molécula. Essa particularidade é claramente exposta na lei
química da composição constante da substância.
O fato de que toda mudança afeta as características quan-
titativas dadas acarreta necessariamente a modificação da essên-
cia do fenômeno correspondente, sua transformação em um
outr o fen ôme no, testemunha de seu cará ter essencial. Por
exemplo, a grandeza da velocidade de 7.910 m/s é essencial
 pa ra o vôo "ter rest re" porq ue seu crescimento, mesmo que seja
de apenas um metro por segundo, transforma o vôo terrestre
em um vôo cósmico. São essenciais par a um vôo cósmico as
grandezas da velocidade do corpo: 7.911 e 11.188 m/s; a
diminui ção da p rimeira tra nsf orm a o vôo cósmico em vôo
terrestre, o crescimento da segunda transforma o movimento
cósmico elíptico em parabó lico. É essencial par a o oxigênio
a presença, em sua molécula, de dois átomos (Oa); o aumento
de um átomo acarreta a transformação do oxigênio em uma
nova substância qualitativa, o ozônio (O3 ). Par a o óxido de
carbono (CO), a presença, na molécula, de um átomo de car-
 bono e de um átomo de oxigênio é ess encial po rq ue o aumento
de um átomo de oxigênio conduz à transformação do óxido de
carbono em gás carbônico (CO2).
Em conseqüência disso, a definição da qualidade como
 propri edad e essencial já é inexata pelo fa to de que ela elimina
o limite entre a qualidade e a quantidade e conduz à confusão
entre as características qualitativas e quantitativas.
Decretando as características quantitativas com não-essen-
ciais, os autores do ponto de vista considerado não relacionam,
entretanto, todas as propriedades não essenciais das coisas às
características quantitativas. Ent re as características quantita-
tivas, elas conserva m unicament e as proprie dade s ligadas à
intensidade, à grandeza, ao número, ao volume, ao grau de
maturidade de uma coisa, de um fenômeno etc., ligadas a seu
cresciment o. Eles só relaci onam à qual idade as propri edades
essenciais. O resul tado disso é que as coisas possue m, além de
suas propriedades que constituem a qualidade e a quantidade,
 propriedades que não são nem quali tativas, nem quant ita tivas .
Mas será que propriedades que não constituem nem o
aspecto qualitativo nem o aspecto quantitativo de uma coisa
 po de m pertencer a essa coisa? É óbvio qu e não. As catego-

.206
 

rias de "qualidade" e de "quantidade", desdobrando uma coisa


em aspectos, excluem-se mutuamente e, quando há ligação
entre eles, engloba m toda s as suas prop ried ades e todo seu
cont eúdo . Tud o o que há em uma coisa, seja quantidade, seja
qualidade, indica ou o que a coisa representa ou, então, sua
grandeza, sua dimensão. Não há, nem pode haver proprieda-
des for a da qualid ade e da qua ntid ade de uma coisa. É por
isso que todas as propriedades que não são concernentes às
dimensões de uma coisa, nem à sua grandeza, seu volume, seu
número, à velocidade de seu deslocamento ou à intensidade de
sua cor etc. relacionam-se com sua qualidade. Ent re essas
 propri edades, há alg uma s essenciais, que são sem pre próprias
à coisa, em qualquer que seja a condição e em todos os estágios
de seu desenvolvimento, propriedades sem as quais a coisa não
 pode existir, e há ta mbém outras, que nã o são essenciais, que
se manifestam em certas condições, em certos estágios de sua
existência e que desaparecem em outras condições, em outros
estágios. A quali dade do cobre, por exemplo, será sempre
relacionada não apenas ao fato de que ele é um metal de cor
vermelha, muito maleável, bom condutor de eletricidade e de
calor, mas igualmente ao fato de que ele liquidifica-se entre
1.083°C e 2.360°C e torna-se gasoso a uma temperatura superior
a 2.360°C, e ainda que ele fica coberto por uma camada cinza-
esverdeada etc., sob a ação do ar, da umidade e do gás sulfu-
roso.
O princip al critério de depe ndênc ia dessa ou daqu ela
 prop ried ade à qualidade de um a coisa nã o é seu carát er essen-
cial, mas sua capacidade para caracterizar essa coisa, partindo
do que ela repres enta, e indicar o que ela é. É fácil observar
que não apenas o primeiro grupo de propriedades do cobre
(propriedades essenciais) mas igualmente o segundo (proprie-
dades não-essenciais) indicam o que ele representa, o que ele
é, e é por isso que todas essas propriedades devem entrar na
composição de sua qualidade, porque todas elas são caracterís-
ticas qualitativas.
O fato de pertencer ao essencial ou ao não-essencial em
uma coisa é o critério de distinção não da qualidade e da
quantidade, mas da própria essência do fenômeno. Assim, a
definição da qualidade como conjunto de propriedades essen-
ciais e da quantidade como conju nto de propriedades não-
essenciais representa, na realidade, a identificação das catego-

.207
Tíiseu Savério Sposito
Maria Incarnação "Bétrão Sposito
 

rias de "qualidade" e de "quantidade" com as categorias de


"essência" e de "fenômeno".
Parece-nos mais exato definir a qualidade como o conjunto
das propriedades que indicam o que uma coisa dada repre-
senta, o que ela é, e a quantidade como o conjunto das pro-
 pri edade s que expri mem sua s dimen sões, sua gra ndeza. Essa
definição destaca os momentos específicos do conteúdo das
categorias de "qualidade" e de "quantidade", que as distinguem
uma da outra e também das outras categorias da dialética, e
conferem a elas a autonomia e a autodeterminação necessárias.
Faland o da qualidade e da quantidad e, temos em vista
aspectos, propriedades e características determinadas das coisas.
Entretanto, a qualidade e a quantidade são próprias apenas às
coisas, embo ra pert ençam igual mente às suas p ropri edades.
Por exemplo, cada ângulo é uma das propriedades do triângulo,
mas possui igualmente uma qualidade e uma quantidade rigoro-
sament e definida s. O fat o de que ele seja for mad o por círculos
 partindo de um mesmo po nt o e de que ele tenha outras pr o-
 pri edade s constitui sua qualidade, enqu anto que sua gra nde za
concreta, sua dimensão, expressa em graus, constituem sua
quantidade.
Tomemos um outro exemplo: uma das propriedades da
água é a de dissolver o sal de cozinh a. Ent ret ant o, assim como
a água, essa prop rie dade possui qualidad e e quanti dade. As
 particularidades que caracterizam o processo de dissolução e
indicam o que ele representa são a qualidade dessa propriedade,
e o quanto de sal a água pode dissolver, ou dissolveu, constitui
sua quantidade.

2. O PROB LEMA
DA MULTIPLICIDADE
DAS QUALIDADES DAS COISAS

A aplicação das categorias de "qualidade" e de "quanti-


dade" às diferentes propriedades das coisas permite encontrar
a solução do seguinte debate: uma coisa possui uma ou várias
qualidades?
 Na lit era tur a fil osófica soviética, há dois pontos de vista
diretame nte opostos sobre essa quest ão. Certos autores con-

.208
 

sideram que cada coisa possui apenas uma qualidade . Outros 3

acreditam que elas possuem várias qualidades . 4

Qual desses dois pont os de vista é o correto? Parece-nos


que o segundo é o mais exato. A necessidade de recon hecer
nas coisas uma mutiplicidade de qualidades decorre do fato
de que a coisa possui uma multiplicidade de propriedades, cada
uma das quais tem sua qualidade, diferente das outras proprie-
dades e da coisa em si.
É verdade que, a uma primeira aproximação, pode parecer
que a definição de qualidade que demos contradiz o fato de
que a coisa possui uma multiplicidade de qualidades. Com
efeito, se a qualidade da coisa é o conjunto de propriedades que
indica o que a coisa representa, a coisa deve, então, possuir
uma única qualidade, porque todas as propriedades que cons-
tituem esse ou aquele determinismo qualitativo entram de uma
maneira ou de outra nesse conjunto.
Esse raciocínio seria incontestável se a coisa, em todas as
suas relações e sob qualquer condição, manifestasse todas as
 propriedades indi cando o que ela rep resen ta. Na realidade,
não é assim. Em diferen tes relações e sob diferentes condições
concretas, a coisa manifesta propriedades diferentes, rigorosa-
mente determ inadas, específicas de cada caso concreto. E se
é assim, em certas relações e sob certas condições, a coisa
representará isso e, em outras, aquilo, e em certas condições e
em certas relações ela terá uma qualidade e, em outras, uma
outra. A pro prie dad e que surgirá em primeiro plano sob uma
relação dada, em condições dadas, representará a coisa nessa
relação e nessas condições, e sua qualidade será considerada
como a qualidade da própria coisa.
Em outros termos, pelo fato de que, em diferentes relações
e sob condições diferentes da existência da coisa, ela manifeste
ou não todas as suas propridades, mas propriedades rigorosa-
mente determinadas, ela pode ser considerada não apenas sob

3
 Materialismo dialético  cit., Caderno 1, p. 48.
4
B. P. Rojin,  A dialética marxista-leninista como ciência filosófica,
1957, Ed. da Unive rsida de Estatal de Lenin grado, p. 66-7; Original em
russo; I. B. Andreev,  Passagem das mudanças quantitativas às qualitati-
vas  — o principal elem ento "da dialé tica" , in  Problemas do materia-
lismo dialético,  1960, Ed. da Academia de Ciências da URSS, p. 90-1;
Original em russo. Uemov, op. cit., p. 34-42.

.209
 

o ângulo de sua qualidade particular e fundamental, mas igual-


mente do ponto de vista da qualidade dessa ou daquela pro-
 priedade que ela possua. Po r exemplo, representando uma
substância particular, constituída por dois átomos de hidrogênio
e um átomo de oxigênio, a água, por meio do estado líquido
de gotas, pode manifestar-se como líquido e mostrar, dessa
maneira, sua qualidade de líquido; pelo fato de que ela é capaz
de dissolver algumas substâncias, ela pode ser considerada
como seu dissolvente etc. Segue-se que cada objeto, fenômeno,
além de suas qualidades fundamentais, que exprimem sua na-
tureza específica, pode possuir também uma grande quantidade
de qualidades não fundamentais que aparecem em certas con-
dições e que estão ausentes em outra s. Por isso, a perda, pela
coisa, dessa ou daquela qualidade não acarreta a perda ne-
cessária de sua qualidade fundamental e de suas outras qualida-
des não fundamentais. Por exemplo, a perda, pela água, de uma
quali dade, ou seja, do estado líquido, no mome nto de sua
 passag em a um outro estado de agregação (vap or ou ge lo),
não acarreta a perda de sua qualidade como substância parti-
cular, constituída de hidrogênio e de oxigênio.
Há pontos de vista os mais diversificados sobre a questão
da qualidade e da quantidade . Certos filósofos negam com-
 pletamente a objetividade das diferenças qualitativas, acredi-
tando que elas são apenas aparência, ou, então, eles simples-
mente deixam de reconhecer a existência de um ou de vários
estados qualitativos e negam a multipl icidad e infinita dos
outros. Assim, por exemplo, Thales acred itava que a multi-
 pli cidade das qualidades observadas representava a. mudança
de aspecto de uma única e mesma qualidade, ou seja, a água.
Anaxímenes pensava mais ou menos a mesma coisa e colocava
o ar no pape l de qual idad e univers al. Da mesma maneira
Heráclito, que reduzia todos os fenômenos do mundo à mani-
festação de uma mesma e única qualidade — o fogo.
O filósofo inglês Locke dividia a qualidade em dois grupos:
qualidades primárias (existindo independe ntemente da cons-
ciência do hom em) e qualidades secundárias (condicionadas
 pela espec ifi cid ade dos órgãos sen sit ivos) . El e rel aci onava , às
 primeir as qualidades, a extensão, o movimento, o repouso etc.,
e às segundas, a cor, o gosto, o odor etc.
A divisão de todas as qualidades em primárias e secundá-
rias tor nava possível u ma conclusão idealista. E esta foi

.210
 

formula da p or Berkeley. Ele achava que Locke não era


conseqüente quando afirmava que algumas qualidades são de-
 pendentes do sujei to e outras não. To da s as qua lidades, de-
clarava Berkeley, dependem do sujeito, ou seja, dependem dele
o movimento, o repouso, a extensão e não apenas a cor, o odor e
o gosto, porque todas as qualidades podem ser reduzidas, em
última análise, às nossas sensações. E daí ele chegava a sua
conclusão: todas as qualidades são diferentes sensações; não
há nada além de  MIM   e de minhas sensações.
Embora Berkeley identificasse todas as qualidades às sen-
sações, ele também distinguia o sujeito perceptivo como o único
real. Assim, ele cometia a mesma inconseqüência que repro-
vava em Locke . Hu me observou essa inconseq üência em Ber-
keley e, desenvol vendo ainda mais seu princípio , chegou à
negação da existência objetiva não apenas das coisas e de suas
qualidades, mas também daquele que é o sujeito perceptivo.
Hume raciocinava da seguinte maneira: se todas as qualidades
que percebemos são nossas sensações subjetivas, então a cons-
ciência de si mesmo também é subjetiva, porque ela só se ma-
nifesta no momento em que experimentamos esse ou aquele
estado que nos é próprio, como a fome, o cansaço, a dor, uma
certa posiç ão do corpo etc. É por isso que não apenas as
diferenças das coisas, mas também o próprio   Eu  que as percebe
devem ser considerados como um conjunto de sensações.
Assim, Hume mostrou que a redução dessa ou daquela
qualidade às sensações subjetivas conduz necessariamente não
apenas à negação da existência real de todas as coisas, de todos
os fenômenos, mas também à redução do mundo ambiente ao
mundo subjetivo do  EU   e, em última análise, à negação desse
mesmo  EU.
Os partidários do materialismo dialético, contrariamente
aos filósofos que negam a objetividade das qualidades, acredi-
tam que as características qualitativas existem de forma objetiva,
fora e independentemente da consciência humana e que elas
são as relações e as propriedades universais das formações ma-
teriais, formas universais de seu ser.

.211
 

3. LE I DA PASSAG EM
DAS MUDANÇAS QUANTITATIVAS
ÀS MUDANÇAS QUALITATIVAS
E VICE-VERSA

1
  Prime irame nte, tem-s e a impre ssão de que a quali dade e
• a quantidade comportam-se uma para com a outra de maneira
independente. Por exemplo, as mudanças quantitativas não
são acompa nhada s por mudan ças qualitativas. Entre tanto, as
mudanças quantitativas não acarretam mudanças qualitativas
apenas até um certo limite e em um quadro deter minad o. Os
limites nos quais as mud ança s quantita tivas não acarretam
' mudanças qualitativas exprimem a medida. Assim, as mudan-
ças qualitativas aparecem apenas no momento em que as mu-
danças quantitativas saem dos limites de uma medid a dada . A
destruição de uma medida, em decorrência da ultrapassagem,
 pela quantidade, dos limites rigorosamente determinados em
cada caso preciso, não significa, entretanto, que uma coisa dada
(ou um fenômeno dado) tenha entrado em um estado incomen-
surável. A quan tidade e a qualid ade, for a dos limites de uma
medida, não se comportam de forma caótica, mas, pelo con-
trário, mostram-se ligadas uma à outra, interdependentes, e
constituem uma nova medida. Por exemplo, quando a tempe-
ratura do gelo atinge 0°C, isso acarreta a mudança de quali-
dade desse gelo: ela tran sfor ma-s e em água. Mas a água não
é um caos de quantidade e de qualidade, ela possui uma me-
dida, notadamente uma escala de temperaturas bem definida:
de 0° C a 100°C . A ultr apass agem desses limites implica, por
sua vez, transformações da qualidade da água, destruição de
sua medida e a entrada no quadro de uma nova medida.
Em outros termos, a transformação de um estado quali-
tativo em outro é a passagem de uma medida a uma outra.
O momento da realização dessa passagem, segundo Hegel, pode
ser classificado de nó, e uma série de tais momentos ou nós, de
linha nodal . Assim, a matéria desenvolve-se pelo desenlaçar
inint errupt o de alguns nós e a criação de outros. Um exemplo
dessa linha nodal é fornecido pelo quadro de classificação pe-
riódica dos elementos de Mende lev, em que cada elemento
representa um nó natural, formado pelo crescimento de uma
unid ade da carga do núcleo (carga do núcleo de hidrogênio —

.212
 

um próton; do hélio — dois prótons; do lítio — três prótons;


do berílio — quatro prótons etc).
Assim, o aparecimento de uma nova qualidade está ne-
cessariamente ligado a uma mudança de qualidade, ou, em
outros termos, toda mudança qualitativa é o resultado de mu-
danças quantitativas e por elas são provoc adas. Ess a lei ca-
racteriza um dos aspectos essenciais do processo de movimento
e de desenv olvim ento da matér ia e é por isso que ela foi
formulada como uma das leis fundamentais da dialética, das
quais Engels definiu da seguinte maneira a essência: " ( . . . ) Na
natureza, de uma forma claramente determinada por cada caso
singular, as mudan ças qualitativas só podem ter lugar por
acréscimo ou retração quantitativos da matéria ou do movi-
mento (com o dizemos geralmente, de energia)"5. Em outros
termos, toda mudança qualitativa é o resultado de certas mu-
danças quantitativas.
Uma qualidade nova, surgida em decorrência de mudanças
quantitativas determinadas, não se comporta de maneira passiva
com relação a essas últimas, mas, pelo contrário, exerce uma
influência de volta, acarretando também mudanças caracterís-
ticas quantitativas rigorosamente determinadas.
Por exemplo, o volume da água é diferente daquele do
vapor, no qual t rans for ma-s e a água, quando ela mud a de
qualidade. E essa nova quantidade é diretamente condicionada
 pela nova qu al id ad e: um a interação det erminada das moléculas
que caracterizam o estado gasoso da substância, notadamente
da água. Assim, o desenvolvimento faz-se por meio da mu-
dança de quantidade e de qualidade, mediante a passagem das
mudanças quantitativas às mudanças qualitativas e vice-versa.
Os metafí sicos negam habit ualmen te a corr elaçã o e as
 passag ens recíprocas da quanti dade e da qua lidade. Os pré-
reformistas, por exemplo, acreditam que toda mudança é apenas
uma mud ança de quan tidade, que os objetos não se mo-
dificam quali tativa mente . O natural ista e filósofo suiço Bonn et
(1720/1793), em particular, acredita que um organismo adulto
 já está pr é- fo rm ad o no embrião e que passando pa ra o estado
adulto ele não se modifica qualitativamente, mas simplesmente
aumenta de volume sob todas as relações, manifestando sempre

5
F. Engels,  La dialectique de la nature,   p. 70.

.213
 

as qualidades presentes, que se encontravam dissimuladas no


estado embrionário.
Ao contrário dos pré-reformistas e, em geral, dos evolucio-
nistas, partidários da teoria que nega as modificações qualita-
tivas e que reduz todas as mudanças a mudanças quantitativas,
o naturalista franc ês Georges Cuvier (fins do séc. XV III e
começo do XIX) afirmava, por exemplo, que a única forma
 possível de modifi ca çã o era a fo rm a quali tat iva . Seg undo sua
teoria, as modificações entre os animais e os vegetais, assim
como o desaparecimento de certas espécies e o aparecimento de
outras, são o resultado de catástrofes repentinas que se abatem
sobre a Ter ra. Em decorrência dessas catástr ofes, as velhas
formas animais e vegetais desapareciam completamente, en-
quanto que outra s apareciam. No período que se escoa entre
essas catástrofes, não há nenhuma modificação no mundo ani-
mal nem no vegetal.
O botânico holandês Hugo de Vries (1 84 8/1 935 ) defende
um ponto de vista análogo: a transformação de uma espécie
em outra executa-se igualmente em decorrência de uma espécie
de explosão — mutação — e, no período entre duas mutações,
não há nenh uma modific ação. Ele escreveu que: "Chego à
conclusão de que o progresso no mundo da vida produziu-se
 por pulsões. Du ra nt e milênios, tudo permaneceu ca lm o. . .
De vez em quando, entretanto, a natureza procura criar qual-
quer coisa de nov o e de mel hor . El a capta uma vez uma
espécie, out ra vez outra espécie. A for ça criad ora entra em
movime nto e, sob re uma bas e antiga e até então imutável,
surgem formas novas" . 6

O filósofo contemporâneo norte-americano, Sidnay Hook,


considera falsa a tese da correlação e do intercondicionamento
da quantidade e da qualidade. Ele escreve que: " ( . . . ) Em-
 bora as qu antidades e as qualidades possa m modificar-se e a
relação entre suas modificações possa ser descrita por funções
contínuas e descontínuas, é absurdo dizer que a quantid ade
torna-se qualidade ou que a qualidade torna-se quantidade'" . 7

A quantidade, segundo Hook, não pode transformar-se em

6
H. de Vries,  Die Mutationen und die Mutationsperioden bei der
 Entstehung der Arten, Leipzig, 1901, p. 38.
7
S. Hook,  Dialectical materialism and scientific method,  Manchester,
1955, p. 20.

.214
 

qualidade, porque esta última precede logicamente a quanti-


dade e não pode existir sem ela. "Nã o podem os, ele declara,
falar das quantidades sem supor a existência das qualidades,
mas também não podemos falar das qualidades em situações
em que a existência das quantidades é proble mátic a. . . Nin-
guém pode, falando literalmente, definir a quantidade de qua-
lidades tais como a inocência e a perfeição" . 8

A afirmação de que a qualidade precede logicamente a


quantid ade é correta, No conhecimento, o homem foi histo-
ricamente do conhecimento da qualidade à colocação em
evidência, à tomada de consciência da quantidade. Mas isso não
quer dizer que as mudanças qualitativas não são a conseqüência
de mud anç as quant itati vas. No conhecim ento, somos, às vezes,
obriga dos a ir em sentido contrári o ao da reali dade. Arist ótele s
 já havia revelado esse fenô me no indicando que o primeiro, na
realidade, é o último no conhecimento e vice-versa, o primeiro
no conhecimento é o último na realidade.
Efetivamente, na realidade, o processo desenvolve-se das
mudanças quantitativas às mudanças qualitativas (da causa ao
efei to). Enq uant o que no conhecimento, procedemos da qua-
lidade à quanti dade (do efeito à caus a). É óbvio que isso
não significa que as ligações e as relações do conhecimento não
refletem as ligações e as relações do mundo exterior, mas
testemunha apenas que, ao lado dessas leis que são fotografias
feitas a partir das leis universais da realidade, o conhecimento
 pos sui igualmente leis, ligações e rel ações qu e são condicionadas
 por sua natu reza e qu e são próprias apena s a ela. Po r isso é
 preciso tr at ar da realidade com base nas leis dessa mesma
realidade.
A afirmação de Sidnay Hook de que a qualidade pode
existir sem a qua nti dad e é tota lment e inexata. Os exemplos
que ele dá de uma qualidade pura, com exceção das caracterís-
ticas quantitativas, não são de qualidades puras. A "inocência "
e a "perfeição", que ele cita como qualidades puras, não são
qualidades puras. Como todo fenômeno, como toda proprie-
dade, elas têm características quantitativas e, notadamente, um
certo grau de mani fest ação . Além disso, elas estão organica-

8
S. Hook,  Dialectical   cit.

.215
 

mente ligada s a tod a uma série de mud anç as quantitativas,


 próprias ao ho me m.
Contr ariame nte às doutrinas metafísicas, o materialismo
dialético apóia-se sobre dados das ciências da natureza e reco-
nhece não apenas as mudanças quantitativas e qualitativas, e
sua correlação, mas considera também que essa é uma das leis
fundamentais do movimento e do desenvolvimento da matéria.

4. SALTO. TIPOS DE SALTOS

As mudanças quantitativas e qualitativas têm suas parti-


cularidades. As mudanças quantitativas são, habitualmente,
lentas, progres sivas, dissimuladas e cont ínua s; as mudanças
qualitativas, pelo contrário, são bruscas, evidentes, constituindo
uma rupt ura de gradação e de continuidade. Por isso, as mu-
danças qualitativas são chama das de saltos. O salto é o pro-
cesso de passagem de uma coisa de um estado qualitativo a um
outro que é acompanhado por uma ruptura de continuidade.
O salto, que se distingue das mudanças graduais quanti-
tativas por seu caráter evidente, seu ritmo relativamente rápido,
não se realiza sempre da mesma maneira. . A forma concreta
de realização do salto, seu ritmo dependem da natureza da
formação material em que se executa a passagem de um estado
qualitativo a outro, das condições concretas nas quais efetua-se
essa passagem. Como há uma quantidade muito grande de
formações materiais, de natureza diferente, também pode haver
um númer o infinito de formas de salto. Entr etant o, a diver-
sidade das formas de saltos pode ser reduzida a dois tipos:
os saltos que se produzem sob a forma de ruptura e aqueles
que se desenvolvem, gradualmente, sob a forma de uma
acumulação gradual dos elementos da nova qualidad e e do
enfraquecimento dos elementos da antiga qualidade.
Um dos traços principais do salto-ruptura é o fato de
que ele se produz brutalmente, impetuosamente, e afeta toda a
quali dade em seu conj unt o. Um exemplo disso pod e ser dado
 por um a explosão de din amite ou de pó lvor a, que acarr ete
uma brusca transformação da substância em uma nova qua-
lidade. Em decor rência da explosão, a substância inicial de-
saparec e e, em seu lugar, aparecem novas substâncias . Um
exemplo de salto sob a forma de ruptura é dado pela trans-

.216
 

formação do elétron e do pósitron em dois fótons, quando eles


se chocam. A colisão dessas partículas "elementares " produz
um clarão que marca o surgimento de novas partículas elemen-
tares e o desaparec imento das partí culas iniciais. Na sociedade,
um exemplo de salto sob a forma de ruptura pode ser dado
 pel a revolução social que se efetua mediante a ins urr eição
armada. No decorrer dessa revolução, produz-se uma trans-
formação impetuosa das formas antigas das relações humanas
em novas formas, que atingem todos os aspectos fundamentais
da vida.
A particularidade do salto sob a forma de acumulação
gradual dos elementos da nova qualidade e do enfraquecimento
dos elementos da antiga qualidade é a de produzir-se de forma
relativamente lenta; no curso desse salto, a qualidade não se
transf orma nem inteira, nem rapidamente, mas aos poucos. Um
exemplo desse tipo de salto pode ser dado pelo surgimento de
novas espécies de vegetais e de animais, que se estende por
centenas de milhares de anos e se produz em decorrência da
acumulação gradual de novas propriedades correspondentes à
evolução do meio ambiente, pela transformação gradual de
certas funções e da morfologia desses ou daqueles órgãos.
 Na soc iedade , esse tipo de sal to é car acterí stico , po r exemplo,
da evolução da língua. O aparecimen to de uma nova língua
é o resultado de uma longa acumulação de elementos de uma
nova qualidade e do enfraquecimento dos elementos da antiga
quali dade. No curso do desenvolvimento, da práti ca e do co-
nhecimento sociais, palavras novas aparecem e se acumulam e,
com o tempo, essas palavras começam a fazer parte do voca-
 bulário, enquanto que as palavras vel has tornam-se inúteis,
supérf luas e caem no esquecimento. De mane ira análoga é
que se modi ficam certas forma s gramaticais. À medi da que as
modificações de fundo léxico e de estruturas gramaticais tor-
nam-se mais importantes, uma nova qualidade da língua
torna-se precisa e uma nova língua vai-se formando.
Falando dos saltos-ruptura e dos saltos que se realizam
 por acumulação gradual dos elemen tos da qualidade nov a e
do enfraquecimento da antiga qualidade, tomamos como base
de sua distinção o caráter do desenvolv imento do salto. O
salto-rupt ura é súbito, brutal e engloba a qualidade em seu
con junt o, em todos os seus aspectos e suas ligações. O salto
que se realiza por acumulação gradual dos elementos da qua-

.217
 

lidade nova desenvolve-se lentamente e modifica a qualidade


aos poucos e gradualmente.
Mas, para classificar os saltos, podemos apoiar-nos não
apenas no carát er de seu desenvolv imento, mas tam bém no
caráter das transformações qualitativas que se produzem em
decorrência desse ou daquele salto.
Como já dissemos, cada coisa, além de sua qualidade
fundamental, possui também uma multiplicidade de outras qua-
lidades não fundamentais que, sendo qualidades das proprieda-
des particulares da coisa, representam-na sob esses ou aqueles
aspectos ou condições. A mudan ça da qualidade funda menta l
e da qualidade não fundamental da coisa produz-se sob a forma
de saltos, mas esses saltos são completamente diferentes quanto
ao seu fun dam ent al. O salto, no curso do qual modif ica-s e a
qualidade fundamental da coisa, supõe a destruição radical do
fundamento qualitativo presente, a modificação da essência da
for maç ão mater ial. O salto, no curso do qual modifica-se a
qualidade não fundamental da coisa, não acarreta a destruição
radical de seu fundamento qualitativo, de sua essência, mas
condiciona mudanças qualitativas determinadas da coisa, no
quadro do mesmo determinismo qualitativo, nos limites da
mesma essência. O prim eiro tipo de salto representa a form a
revolucionária das mudanças qualitativas e o segundo repre-
senta a forma evolucionista.
A revolução é, portanto, um tipo particular de salto que,
em seu curso, a passagem à nova qualidade é acompanhada pela
destruição radical do antigo fund amen to qualitativo e pelo
aparecimento de uma formação material que tenha um funda-
mento qualitativo novo, uma essência nova.
 No que diz respeito à evolução, ela é, nesse caso, uma
noção oposta à da revolução e designa um outro tipo de salto,
isto é, o salto em cujo curso a passagem à nova qualidade
realiza-se no quadro da essência dada da coisa, sem a destrui-
ção radical de seu fundamento qualitativo presente.
A passagem de uma formação sócio-econômica a outra,
assim como a passagem de um elemento químico a outro, ou
a transformação de uma partícula "elementar" em outra, são
exemplos de revolução. Por exemplo, a transf ormaçã o do
rádio em radônio, a passagem do capitalismo ao socialismo etc.
serão revoluções.
Como caso de passagem evolucionista de um estado qua-

.218
 

litativo a outro, podemos citar a passagem da substância de um


estado de agregação a outro, como, por exemplo, do gelo à
água, da água ao vapor e vice-versa, a passagem do capitalismo
 pré-monopolista ao capit alism o mon opolist a, a passagem do
socialismo ao comunismo etc.
Certo s auto res utiliza m os conceitos de evolução e de
revolução em um sentido um pouco diferente . Por revolução
9

eles entendem um salto-ruptura e não toda modificação em


cujo curso produz-se a destruição radical do fundamento qua-
litativo da coisa, e por evolução, eles entendem um salto que
se realiza por acumulaç ão gradual dos elementos da nova
qualidade e do enfraquecimento gradual dos elementos da
antiga qualidade.
A identificação da revolução com o salto-ruptura e da
evolução com a passagem de um estado qualitativo a outro, por
acumulação dos elementos da nova qualidade e o enfraqueci-
mento dos elementos da antiga qualidade, não nos parece
 justificada. A revolu ção distingue-se da evolução nã o pela
forma com que se realiza a passagem de uma qualidade a uma
outra, mas pelo caráter, a profundidade, o grau de transforma-
ção da coisa, se essa passagem é acompanhada da destruição
radical da qualidade existente, da transformação da coisa em
uma outra coisa ou simplesmente de uma modificação de seu
aspecto, de um desenvolvimento no quadro do próprio funda-
mento qualitativo.
Outros autoresio entendem por revolução as mudanças
qualitativas e por evolução as mudanças quantitativas. Entr e-
tanto, embora a utilização dos conceitos de "revolução" e de
"evoluç ão" nesse sentido esteja profu ndam ente enraizado na
literatura filosófica, esta significação não constitui o conteúdo
específico das categori as em questão , não é sua signifi cação
categorial.
O que é fund ame ntal e específico no conteúdo desses
conceitos é que um deles — "revolução" — designa um salto,
que supõe a destruição radical do antigo fundamento quali-

9
L. V. Vorobiov, V. M. Kagarov, A. E. Furman,   As categorias e
leis fundamentais da dialética materialista,  Ed. da Universidade Estatal
de Moscou , 1961, p. 220-39. Original em russo.
 N . I. Bo ri n,  A lei de passagem das mudanças quantitativas às
10

qualitativas,  1960, p. 21. Origi nal em russo.

.219
 

tativo cia formação material existente e o surgimento de uma


nova formação material, enquanto que o outro — "evolução"
 — des igna um sal to que supõe a passagem de um a fo rm aç ão
material de um estado qualitativo a um outro, no quadro de
um fundamento qualitativo dado, no quadro de sua essência.
São esses momentos do conteúdo dos conceitos em questão que
lhes conferem a autonomia e o caráter categorial necessários.
Os conceitos de revolução e de evolução são universais,
aplicáveis a todos os domínios da realidade. Entret anto, esses
conceitos adquirem um caráter específico quando são utilizados
 pa ra expri mir as leis da pas sag em de um estado qua litati vo a
outro, nesse ou naquele domínio concreto da natureza ou da
vida social.
Se na natureza, a revolução é sempre um salto que provoca
a destruição radical do antigo fundamento qualitativo, em alguns
domínios da vida social, nos quais o desenvolvimento está
ligado à ação de um fato subjetivo, a revolução não será abso-
lutamente a passagem de uma qualidade a uma outra, que é
acompanhada pela destruição radical do fundamento qualitativo
 presente, mas apenas a passagem que engendra formações mai s
 perfeitas, isto é, a passagem do inferior ao superior. No que
concerne aos saltos ligados à destruição radical do fundamento
qualitativo presente, em decorrência dos quais opera-se a pas-
sagem de uma formação mais aperfeiçoada a uma formação
menos aperfeiçoada, isto é, do superior ao inferior, estes não
representa m uma revolução, mas uma contrarevolução. Uma
revolução é, por exemplo, a passagem do poder político de uma
classe historicamente condenada a u ma classe progressista,
como o dos senhores feudais para a burguesia, ou o da bur-
guesia par a o proletariado. E a contrarevol ução é o restabele-
cimento provisório da dominação econômica e política da
classe historicamente condenada e destruída no curso da
revolução.
A evolução aplicada a fenômenos sociais dados manifes-
ta-se como ref orma ligada, como já sabemos , a muda nças
qualitativas no quadro do próprio fundamento qualitativo e
mudanças que não colocam em questão a essência do regime
econômico ou político da sociedade.
Tendo indicado a diferença entre as mudanças reformistas
e revolucion árias , Leni n escreveu que: "A ciência histórica nos
diz que o que distingue uma mudança reformista de uma mu-

.220
 

dança não reformista em um regime político dado é, em geral,


que, no primeiro caso, o poder permanece nas mãos da antiga
classe dominante, e que, no segundo caso, o poder passa das,
mãos dessa classe para as de uma nova" !. Mas ao mesmo
1

tempo ele destacava que: "seria absolutamente falso pensar


que, para lutar diretamente a favor da revolução socialista,
 possamos ou dev amo s abando nar a luta pel as reformas. Nã o
é isso absolutamente. Nós não pode mos saber em quanto
tempo alcançaremos o sucesso e em que momento condições
objetivas permitirão o acontecimento  dessa  revolução. É pre-
ciso que sustentemos qualquer melhoria, toda melhoria real da
situação econômica e política das massas" . 12

Desde que a passagem de um estado qualitativo a outro


efetua-se por meio de saltos, no que concerne às transformações
da sociedade, assim como às relações sociais, e ainda a qualquer
outro problema concreto, é preciso ser revolucionário, não ter
medo de derrubar tudo o que já está ultrapassado, tudo o que
 já envelheceu.
Pelo fato de que os saltos, em decorrência dos quais pro-
duz-se a passagem da antiga qualidade à nova qualidade, não
têm o mesmo caráter, nem a mesma forma, é preciso, na prática,
que, no momento de uma ação consciente sobre esse ou aquele
 processo da tr an sf orma ção de uma qual idad e a outra , estudemos
minuciosamente a situação e que escolhamos a melhor forma
de salto, correspondente às condições concretas dadas, porque
somente dessa maneira estaremos livres de erros e poderemos
realmente acelerar o curso objetivo dos acontecimentos.
Os clássicos do marxismo-leninismo conferiram sempre
uma grande importância a essa questão primordial e souberam
utilizar as leis de mudanças qualitativas em sua atividade prá-
tica. Leva ndo em conta as condições concreta s ou uma nova
situação, eles freqüentemente apresentaram uma forma de pas-
sagem a uma nova qualidade no lugar de uma outra forma já
elaborada e adotada porque, em condições novas, a anterior
correspondia menos ao fundo do problema do que a nova.
Por exemplo, nos anos 70 do século XIX, K. Marx e F. Engels,
levando em conta o fato de que na Inglaterra e nos EUA não

"V. Lenin,  Oeuvres,  t. 18, p. 588.


V. Lenin, op. cit., t. 23, p. 174.
12

.221
 

havia o aparelho burocrático que caracterizava os outros países


capitalistas, e também que esses países ainda não estavam
extremamente militarizados, fizeram uma exceção quanto a
esses países, no que concerne às formas da passagem ao socia-
lismo. Se em todo s os outr os países, segund o Mar x e Engels ,
essa passagem tivesse de ser efetuada sob a forma de insurreição
armada, na Inglaterra e nos EUA, pelo contrário, ela poderia
dar-se pela via pacífica. Em seguida, quando o capitalis mo
entrou em seu último estágio de desenvolvimento — o imperia-
lismo, e quando a tendência ao fascismo do Estado e à hiper-
trofia do aparelho burocrático e militar tornou-se característica
de vários países capitalistas, essa exceção perdeu seu funda-
mento real e deixou de correspon der à nova situação. Por isso
Lenin, no começo do século XX, substituiu a tese de Marx e
de Engels por uma tese nova emitindo a idéia de que, na época
atual, a passagem ao socialismo é impossível por via pacífica
e que esta só é possível sob a forma de insurreição armada —
de ruptura. Mas, depois de fevereiro de 1917, quand o na
Rússia um concurso de circunstâncias (dualida de do poder,
fraqueza da burguesia russa e de seu governo provisório etc.)
criou a possibilidade de uma passagem pacífica do poder para
o proletariado, Lenin substituiu o  slogan  de insurreição armada
 pelo de to mada do po de r por via pacífica, obtida pela modifi-
cação da comp osição .dos Sovietes, graças à elimin ação dos
mencheviques e dos S. R . e a satisfação da exigência da devo-
lução de tod o o pode r aos Sovietes. Mas , depois dos aconteci-
mentos de julho, quando os mencheviques desempenharam
abertamente o papel de valetes da burguesia, que o período de
dualidade do poder chegou ao fim e que todo o poder já se
encontrava nas mãos da burguesia e de seu governo provisório,
o período pacífico da revoluçã o também chegou a seu fim. Nes-
sas novas condições, a única forma possível e justa para con-
seguir a vitória da revolução socialista tomou-se a insurreição
arm ada. Por isso Leni n colocou na ord em do dia a insurr eição
armada que, como sabemos, conduziu à derrubada da burguesia
e ao estabelecimento da ditadura do proletariado.
A tese de Lenin sobre a insurreição armada, como a forma
melhor adaptada para a conquista da ditadura do proletariado
nas condições do imperialismo, correspondeu durante muito
temp o à situação real das coisas e perm aneceu aplicável a
qualquer país capitalista. Entre tant o, com a vitória do socia-

.222
 

lismo na URSS e, em particular, com o surgimento do sistema


mundial do socialismo surgiu também a necessidade de precisar
e de desenvolver essa tese de acordo com as novas condições do
desenvolvim ento social. O XX Congresso do PCUS, genera-
lizando a experiência da revolução socialista em diferentes
 países e analisando a no va situação interna cional (nascimento,
desenvolvimento e fortalecimento do sistema socialista mundial,
enfraquecimento geral do capitalismo e agravamento de suas
contradições, crescimento dos efetivos, do grau de organização
e da coesão da classe operária, alargamento do número de seus
aliados objetivamente interessados na luta contra o imperialis-
mo, aumento dos efetivos dos partidos comunistas e operários
e de seu prestígio), apresentou e criou a idéia da possibilidade,
nas condições atuais, de efetuar, em alguns países, a revolução
socialista pela via pacífica, assim como a de utilizar o parlamento
 burguês. Essa idé ia foi desen vol vida e fi rm ada no Pr og ra ma
adotado no XX II Congresso do PCUS. Esse programa destaca,
em particular, que: "Nas atuais condições, em alguns países
capitalistas, a classe operária, sob a direção de sua vanguarda,
tem a possibilidade de, basea da em um confron to popula r e
operário ou em outras formas eventuais de acordo e de cola-
 bora çã o pol íti ca de diversos partidos e organizações sociais, unir
a maioria do povo, conquistar o poder de Estado sem guerra
civil e de fazer passar os principais meios de produção para as
mãos do povo. Apoia ndo-s e na maioria do povo e opondo-se
resolutamente aos elementos oportunistas, incapazes de renun-
ciar à política de conciliação com os capitalistas e os agrários,
a classe operária pode infligir uma derrota às forças antipopula-
res, reacionárias, e conquistar uma sólida maioria no parla-
mento, transformando-o de um instrumento ao serviço dos
interesses da classe da burguesia em um instrumento ao serviço
do povo trabalhador, além de desenvolver amplamente a luta
extraparlamentar das massas, quebrar a resistência das forças
da reação e criar as condições necessárias para a realização
 pacífica da revolução socialista"* .3

 Rumo ao comunismo, compilação dos documentos do XXII Con-


13

 gresso do Partido Comunista da União Soviética,   (17-31 de outubro de


1961), Moscou,  Edições em línguas estrangeiras,  p.  517, 1961.

.223
 

VIII. A CAUSA E O EFEITO

1. A EVO LUÇ ÃO DOS CONCEITOS


DA CAUSALIDADE
 NA FI LO SO FI A PR É- MA RXI STA

Com o nascimento da Filosofia surgiu uma certa concepção


da causa. Ent ret ant o, entre os primeiro s filósof os, ela era
extremamente confusa e indeterminada. Para eles a causa ainda
não se distinguia do princíp io primeir o, da maté ria que se
encon tra à base das coisas e dos fenômenos existentes. Na
filosof ia grega, ela adqui re pr imeir amente a for ma de água
(Th ale s), de ar (Anaxím enes) e de fogo (Her ácli to) , que
engendram, no curso de sua transformação todos os fenômenos
observa dos no mun do. Em seguida, a causa é repr esen tada por
átomos eternos e imutáveis, que se distinguem entre eles por
sua forma, posição, ordem e que formam, quando se chocam,
diferent es corpo s. Aristóteles caracteriz ava da seguinte ma-
neira a concepção dessa questão que havia em Leucipo e De-
mócrito: eles "admitem que há certas diferenças (os átomos
 — A. Ch.), que são as úni cas causas de todo o resto dos
fenômenos. Entr etant o, eles reduzem essas diferenças a apenas
três: a forma, a ordem e a posição" . 1

Mais tarde, foram considerados como causas todos os


fatores que condicionam o aparecimento de coisas particulares.
Para Platão, esses fatores eram: a matéria informe, uma idéia
determinada, a relação matemática e a idéia de "bem supremo".
Segundo sua teoria, cada coisa particular aparece em decorrên-

1
Aristóteles,  Métaphysique d'Aristote,  Paris, 1879, p. 43-4.

.224
 

cia da interação do não-ser (matéria) com o limite (limitação


mate máti ca). O modelo da coisa em formaç ão é essa ou
aquela idéia, que penetra na coisa sensível e, com a relação
matemá tica, constitui sua essência. O elemento mot or dessas
transformações é a idéia de "bem supremo", situado fora e
acima delas.
Aristóteles agrupa esses fatores em quatro tipos distintos
de causa: 1.°) — a material, que representa a matéria parti-
cipando da formação da coisa; 2.°) a formal, que comunica
uma forma à matéria; 3.°) a produtiva, que une a forma à
matéria no processo de formação da coisa; e 4.°) — a finalista,
que representa o objetivo que se realiza no curso do apareci-
mento da coisa.
Aristóteles explica o processo do aparecimento das coisas
 por ana logia com sua cri ação pelos homens. Não foi po r acaso
que, para exprimir a manifestação das quatro causas, ele tomou
exemplos da prática da criação, pelos homens, desses ou da-
queles valores materi ais. Em particu lar, ele cita o exemplo da
construção de uma casa, em que o material de base desempenha
o papel de causa material; o plano, o papel de causa formal; o
trabalho do arquiteto e sua experiência, o de causa produtiva;
o objetivo que deve ser realizado ao fim da construção, o de
causa final . El e escreveu que, nesse caso, a arte e o const rutor
são o começo do movimento; o produto é "o porquê" (,o obje-
tivo) ; a terra e as pedras são a matéria; a concepção é a forma.
A concepção aristotélica da causalidade dominou durante
muito tempo na histór ia da filosofia. A filosofia da I dad e
Média nada acrescentou à contribuição de Aristóteles na ela-
 bora ção dessas categorias. Uti lizando sua teo ria das causas
formal e final, ela foi inteiramente absorvida pelo fundamento
da existência de Deus e da criação divina do mundo sensível.
Francis Bacon deu um passo a frente no conhecimento da
causalida de. Embo ra ele reconhecesse as quat ro causas aristo-
télicas (material, produtiva, formal e final), só conferiu, entre-
tanto, uma importância categorial a uma delas: a causa formal
que, para ele, encontra-se não fora da coisa, como era para
Aristóteles, mas na própria coisa, porque ela representa a lei de
existência da coisa . 2

2
F. Bacon,  Oeuvres de Bacon, Nouvel Organum,   Paris, 1845, p. 138.

.225
 

Ao contrár io de F. Bacon, Hobbes rejeita as causas


form al e fina l e considera como reais apenas du as causas: a
 produtiva (p ar a ele, eficaz) e a material. Por causa produtiva,
ele entende o conjunto de propriedades (acidentes) do corpo
ativo que acarreta mudanças correspondentes no corpo passivo;
 por cau sa material, o co nj un to de prop riedades (aci dent es) do
corpo passivo que assegura o aparecimento dessas mudanças . 3

Se F. Bacon, na definição de causa, apoiava-se no fato de


que ela pertence ao domínio interior da coisa, à sua natureza,
Hobbes, por sua vez, concede, à causa, o domínio exterior,
liga-a aos acidentes, às propriedades flutuantes e acessórias;
enfim, a reduz à ação de um corpo sobre o outro.
Em Spinoza, igualmente, a causa situa-se fora dos fenô-
menos concretos singulares dos corpos: "Toda coisa singular
ou, em outros termos, toda coisa finita e que tem uma existência
limitada não pode existir, nem ser determinada a agir, se ela
não for determinada a isso, por uma outra causa, que é ela
 própria finita e qu e te m igualmente uma existê ncia limitada...4,
Entretanto, o próprio Spinoza percebe o caráter restrito dessa
concepção da causalidad e e procura atenuá-lo. Ele coloca a
questão da necessidade de pesquisar as causas da existência
das coisas nas próp rias coisas e, a esse respeito, apre sent a o
conceito de  causa sui.  Por   "causa sui",  ele entende "aquilo cuja
essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza só
 pode ser concebida co mo existe nt e" . É ver dad e que a causa
5

de sua existência, segundo Spinoza, pode ser contida somente


no mundo tomado em seu conjunto, na natureza absoluta infi-
nita. Qua nto às coisas finitas, as causas de sua existência estão
contidas não nelas mesmas, mas fora delas, em outras coisas
finitas.
A idéia extremamente progressista de que a natureza en-
cerra nela mesma a causa de sua existência, e de que não tem
absolutamente necessidade de uma forma exterior, fora dela mes-
ma, desempenhou um grande papel na luta contra o idealismo
e a religião, mas ela era insuficiente para ultrapassar a concepção
metafísica da causalidade, que reduzia o laço de causa e efeito
à ação de um cor po sobre o outro . É po r isso que nã o é de

T. Hobbes,  Hobbes Selections,  Chicago, 1930, p. 94-5.


3

"Spinoza,  Ethique,  Paris, 1908, p. 43.


5
Spinoza, op. cit., p. 13.

.226
 

espantar que a  causa sui  de Spinoza não tenha trazido nenhuma


modificação para a concepção de causalidade da época. Nas
ciências da natureza, assim como na Filosofia, continuavam a
entender por causa a ação de uma força exterior sobre essa
ou aquela coisa. Enc ont ram os essa definição da caus a em
 Newton, no s materialistas franceses do século XVIII etc. As
causas, escreve, por exemplo, Newton, são as forças que é
 preciso conferir aos corpos a fi m de produzir o movimento.
Holbach salienta, por sua vez, que: "Uma causa é um ser que
coloca um outro em movimento ou que produz alguma mu-
dança nele"6.
Reduzir a causa do aparecimento e do desenvolvimento de
uma coisa à ação de uma outra coisa acarreta toda uma série
de dificuldades para o domínio do conhecimento. Efetivam en-
te, o conhecimento de uma coisa supõe o conhecimento de sua
causa. Arist óteles já sabia disso. Ent ão, se a causa de uma
coisa dada está contida em uma outra coisa, para conhecer a
coisa dada devemos também conhecer a outra coisa, a que é
a causa da prim eira . Mas o conhecimento da segunda coisa
supõe a colocação em evidência de sua causa que, por sua vez,
encontra-se em uma terceira coisa, cuja causa encontra-se ainda
em uma qua rta coisa. E assim sucessivamente até o infini to.
Em conseqüência, o conhecimento de qualquer coisa conduz-nos
necess ariame nte a o infin ito e supõe o conhe cimento de um
número infinito de outras coisas, o que, é claro, é irrealizável.
Spinoza já havia observado isso e chegara à conclusão da
impossibilidade de um conhecimento adequado das coisas sin-
gulares.
É ver dad e que os filóso fos e os natur alistas do século
X V i n ,  que haviam apresentado o princípio metafísico de cau-
salidade, não viam a contradição que necessariamente o acom-
 panh a. Gu iand o- se po r esse pri ncí pio , nã o somente eles nã o
duvidavam da possibilidade de conhecer a coisa estudada, mas
ainda consideravam-no como suficiente para obter um conhe-
cimento completo de todo o Universo, para explicar qualquer
fenômeno que tivesse acontecido no passado e par a prever
qualquer acontecimento do futuro . Isso é expli cado pelo
7

6
P. Holbach,  Systeme de la nature ou des loix du monde physique
et du monde moral,  Londres, 1769, p. 13.
P. Laplace,  Essai philosophique sur les probabilites,   Paris, 1920, p. 8.
7

.227
 

fato de que eles reduziam todos os fenômenos, todas as mu-


danças ocorridas no mundo a simples deslocamentos mecânicos
e acreditavam que podiam explicá-los a partir das leis da mecâ-
nica clássic a. O nível de desenv olvimen to da física de então
 permitia, desde que se con hecess e a fo rç a qu e agia sobre os
corpos, as coordenadas e a velocidade de seu movimento em
um dado instante, determinar suas coordenadas e sua veloci-
dade em qual quer outro mome nto do fut uro . Mas se essa
concepção de laço de causa e efeito é aceitável, em uma certa
medida, para explicar os fenômenos do movimento mecânico
simples em que a mudança do estado de um sistema isolado
não está ligada à mudança de sua qualidade, ela é absoluta-
mente inaceitável para explicar os fenômenos de outras formas,
mais complexas, de movimento, cujo aparecimento está ligado
a certas mudan ças qualitativas condicionadas não tanto pela
ação de forças exteriores, como pela interação no interior do
objeto.
Hegel foi o primeiro a chamar a atenção para o caráter
restrito e contraditório da concepção metafísica da causalidade.
Mostrando que a aproximação metafísica do laço de causa e
efeito dos fenômen os conduz necessariamente a um infinito
errôneo (cada fenômeno que desempenha o papel de causa e
de efeito tem, por sua vez, sua causa em outros fenômenos etc.),
Hegel recu sou essa concepç ão de causal idade e prop ôs uma
soluçã o dialétic a para o prob lema . Segundo ele, a causa e o
efeito estão em interação dialética.
A causa, sendo uma substância ativa, age sobre a substân-
cia passiva e acarreta nessa certas mudanças que produzem nela
um efeito. A substância passiva exerce uma ação de retorno
e anula, dessa maneira, a ação da substância ativa e, assim, de
substân cia passi va ela transf orma- se em substância ativa e
começa a interferir em relação à primeira substância ativa como
alguma coisa de inicial, isto é, como causa.
Gra ças à inte raçã o, a causa e o efeito, segundo Hegel,
 passam um pelo outro, mu da m de lugar e, ao mesmo tem po,
manifestam-se um frente ao outro, de uma só vez, como causa
e efeito. Como conseqüência, quand o se dá o conhecim ento
do fenô meno , não há necessidade de considerar um número
infinito de outros problemas que se unem a ele, é suficiente
estudar sua interação. Conhecendo-a, conhecemos também a
causa e, ao mesmo temp o, a natu reza dos dois fenômenos. Foi

.228
 

assim que Hegel, baseado na interação da causa e do efeito,


anulou, de fato, o caráter limitado da concepção metafísica da
causalidade.
Tomando como ponto de partida a interação da causa e
do efeito, Hegel aproximou-se muito da concepção marxista da
causalidade.

2. A CONCEP ÇÃO MAR XIS TA


DA CAUSALIDADE

A definição da causa como fenômeno que condiciona o


aparecimento de um outro fenômeno e do efeito como fenôme-
no engendrado pelo primeiro fenômeno está amplamente difun-
dida na literatura filosófica .8

Mas essas definições de causa e de efeito parecem-nos


insufici entes. Ela s não permit em a capt ação da diferença exis-
tente entre a concepção marxista da causalidade e a do mate-
rialismo mecanicist a pré-marxi sta. Segundo essas definições, a
causa de qualquer fenômeno encontra-se fora dele, em um outro
fenô meno . Ess a tese servia de pont o de par tid a para a con-
cepção da causalidade feita pelos materialistas pré-marxistas,
que consideravam a causa como a ação de um corpo sobre o
outro e o efeito como mudanças surgidas nesse segundo corpo.
O materialismo dialético não nega as ações exteriores e
suas possibilidades de acarretar mudanças correspondentes nos
fen ômen os submetido s a essa ação. Mas, não reduz a causa do
aparecimento e da existência de fenômenos às ações exteriores
que eles sofrem, nem procura essa existência no exterior, em
outros fenômenos, mas no próprio fenômeno, em sua natureza
interna.
É verdade que o termo "fenômeno" pode ser utilizado não
somente no sentido de "corpo", de "coisa", de "formação ma-
terial", mas igualmente no sentido de manifestação, à superfície
da essência de uma coisa, de um corpo, de uma formação
materi al. Será possível que a utilização, nesse sentido, da

 Materialismo dialético,  Moscou, 1962, p. 262. Redação de A. B.


8

Maka rov, A. V. Vostri kov e E. N. Tchesnákov. Original e m russo. N. A.


Mussabaeva,  O problema da causalidade na filosofia e na biologia,
Alma-Ata, 1962, p. 9. Original em russo.

.229
 

 palavra "f en ôm en o" possa no s aj ud ar a evitar os erros obs erv a-


dos nas definições já estudadas da causa e do efeito?
 Não, já que uma tal utilização do term o "f en ôm en o" nã o
salva a situação, não evidencia a essência da concepção dialé-
tico-mate rialista da causal idade . Com efeito, se o fenô meno
representa o aspecto exterior de uma coisa, a forma da manifes-
tação, à superfície de sua essência, então, quando definimos a
causa como fenômeno que engendra um outro fenômeno e o
efeito, como sendo esse segundo fenôme no engendrado pelo
 pri mei ro, reduz imo s, exatamente po r esse processo, o laço de
causa e de efeito às ligações exteriores, às ligações dos aspectos,
das propriedades exteriores, das formações materiais.
 Na realidade, o laço de ca us a e de efeito é próprio nã o
somente aos aspectos exteriores dos objetos, não somente ao
domínio dos fenômenos, mas igualmente aos aspectos internos
e necessários, ao domínio da essência, assim como à correlação
do interno com o externo, da essência com o fenômeno.
Portanto , se partimos da definição da causa, como um
fenômeno que engendra um outro fenômeno, engendrado pelo
 primeiro, chegamo s inevitavelmente à negação da existência das
causas internas e do laço de causa e efeito entre os aspectos
internos e externos de uma coisa, entre a essência e o fenômeno.
Decretar como causa o conjunto de circunstâncias necessá-
rias ao aparecimento desse ou daquele fenôm eno (efeito) é uma
tentativa de ultrapassar os defeitos dessas definições da causa . 9

Esse ponto de vista sobre a causa, embora sendo uma


reação à tendência de reduzir a causa à ação exterior, não é
novo. Ele foi desenvolvido pelo positivista John-Stuart Mill.
"A causa, escreveu ele, é, filosoficamente falando, a soma total
das condições positivas e negativas do fenômeno, tomadas em
conjunto, a totalidade de toda espécie de contingências cuja
 prese nça acarreta necessariamente o efeito" . 10

O defeito dessa definição da causa reside no fato de que,


dissolvendo a causa no conjunto dos fatores necessários ao
aparecimento desse ou daquele fenômeno, esquecemos o essen-
cial, o que constitui uma parte fundamental do conteúdo da

9
L. B. Vorobiov, V. M. Kaganov, A. E. Furman,   As categorias e
leis fundamentais da dialética materialista,  Mos cou , 1962, p. 60. Ori-
ginal em russo.
10
J. S. Mill,  System of logic,  6? ed., Londres, 1865, v. 1, p. 372.

.230
 

categoria de causa, ou seja, o momento da atividade, o fato de


que a causa é um elemento motor, que impulsiona as mudanças
correspondentes nas coisas e nos fenômenos.
Parece-nos mais correto definir a causa como a interação
de dois ou mais corpos ou, ainda, como a interação de elemen-
tos ou aspectos de um mesmo corpo acarretando certas mu-
danças nos corpos, elementos ou aspectos, agindo uns sobre os
outros, e o efeito como as mudanças surgidas nos corpos,
elementos e aspectos agindo uns sobre os outros, em decorrência
de sua interação. Foi precisamente assim que os funda dores
do materialismo dialético e, em particular, Engels definiram a
causa: " ( . . . ) A ação recíproca é a verdadeira  causa finalis
das coisas"H.
A interação conduz à modificação dos corpos ou aspectos
em interação, assim como ao aparecimento de novos fenômenos
e à passa gem de um esta do quali tativo a outro. Por exemplo,
a interação das classes antagônicas condiciona o aparecimento
do Estado, a mudança do sistema social e de estado e a passa-
gem da sociedade de uma formação sócio-econômica a uma
outr a. A causa da corrosão do meta l está na inte ração químic a
dos metais e dos gases presentes no ar assim como na água e
nas substâncias que nela. são dissolvidas. A causa do apar e-
cimento da corrente indutiva em um circuito fechado, deslocan-
do-se em um campo magnético, é a interação do circuito fechado
e do campo magnét ico. A causa da incandescência do fila -
mento de uma lâmpada elétrica não é a corrente elétrica que
a atravessa, como pensam certos autores , mas a interação da
12

corrente elétrica com a substância da qual é feito o filamento.


Tor nan do evidentes as raízes do caráter limitado e da
insuficiência da concepção da causa como ação unilateral dessa
ou daquela força sobre o objeto, a coisa, Engels salientou a
idéia de que a causa de todo fenômeno é dupla e que ela re-
 pres enta a interação de duas partes, ou me lh or :
"Todos os processos naturais são duplos, baseiam-se na
relação de pelo menos duas partes agentes, a ação e a reação.
Então, a idéia de força, pelo fato de ter sua origem na ação
do organismo humano sobre o mundo exterior e, em seguida,

U
F . Engels,  La dialectique de la nature,  p. 234.
 As categorias da dialética materialista,  Mosc ou,
1!í 
1957, p. 93.
Original em russo.

.231
 

da mecânica terrestre, implica que apenas uma parte seja ativa,


operant e, e que a outra seja passiva, recepti va. . . A reaçã o
da segunda parte, sobre a qual a força age, aparece mais do
que tudo como uma reação passiva, como uma   resistência"  13.
Mais adiante ele diz que: "A força de refração da luz tanto é
inerente à luz, quant o aos corpos transparentes. No que con-
cerne à aderência e à capilaridade, a força encontra-se segu-
rame nte tanto na superf ície sólida, como na líquida. Par a a
eletricidade de contato é, de qualquer forma, certeza que os
dois  metais contribu em e a "for ça de afinidade química",
quando encontrada, mostra que, nesse caso, as duas partes
combinam" . 14

Mesmo os partidários do materialismo mecanicista, que


apresentaram a idéia da causa como ação mecânica de um corpo
sobre o outro, foram obrigados, quando da elaboração de sua
teoria da causalidade, a levar em conta de uma maneira ou de
outra, a ret roa ção do segundo corpo sobre o primei ro. Com
efeito, segundo seu ponto de vista, o estado futuro (efeito) do
movimento mecânico de um corpo depende do estado desse
corpo (das coordenadas e da velocidade de seu movimento)
em um dado momento e da força que age sobre o corpo durante
todo o movimento, isto é, da interação dos corpos considerados.
Segue-se que, do ponto de vista do materialismo dialético,
a noção de causa designa a interação dos corpos ou dos elemen-
tos, dos aspectos de um mesmo corpo, que acarreta em mu-
danças correspondentes nos corpos, elementos e aspectos em
interação. O conteú do do conceito de "efeit o" é constituído
 pelas mu da nç as qu e ap ar ecem no s corpos, elementos e asp ectos
em interação, em decorrência de sua interação.

3. CAUS ALID ADE E NECESSID ADE

O laço entre a causa e o efeito que ela acarreta, é neces-


sário. O laço de causa e efeito representa, portanto, uma das
forças da existência da necessidade. Esse mome nto é desta-
cado, com justa razão, por David Bohm em seu livro   Causali-

13
F. Engels, op. cit., p. 87.
14
F. Engels, op. cit., p. 87.

.232
 

dade e contingente na física moderna.   "A causa lidad e. . . é


uma forma particular, mas muito difundida da necesidade" . 15

O caráter necessário do laço de causa e efeito é reconhecido


 po r vários autores . 16

Ao mesmo tempo, certos autores acreditam que não é


cada laço de causa e efeito que é necessário, mas que há
efeitos que estão ligados às suas causas de maneira necessária,
e efeitos que estão ligados às suas causas de maneira contin-
gente. Esses autores justif icam seus pont os de vista pelo fato
de que todo s os fenômeno s (tan to os necessários, como os
contin gentes ) têm uma causa par a seu aparecimen to. Se for
assim, a ligação causal, segundo eles, pode-se manifes tar
tanto sob uma fo rma necessária, como sob uma forma con-
tingente .17

Que os fenômenos contingentes tenham causas que os


 produzam é ve rdade, mas disso nã o decorre absolutamente
que a ligação desses fenômenos (efeitos) com as causas que
os engend rou seja continge nte. Uns ou outros fenôm enos são
considerados contingentes, não porque eles não decorrem ne-
cessariamente de suas causas, mas porque são engendrados
 por causas conting entes . A destruição das sementes pel o
granizo é reconhecida como contingente não porque a interação
do gelo com os organismos vegetais (causa) não condicione
necessariamente a destruição desses últimos (efeito), mas porque
essa intera ção, o granizo, nessa época do ano, é apenas o
resultado do acaso, não decorrendo nem da natureza das
condições climáticas, nem do lugar, nem das leis do funciona-
ment o e do desenvolvimento dos vegetais. A morte de um
homem, em decorrência da queda de uma pedra, que cai de
um telhado, sob o efeito do vento, deve-se ao acaso não porque
a ligação da causa (interação de uma pedra, de um certo peso
e do organismo humano) com o efeito (a morte do homem)
seja contingente. El a é necessária. O choque de uma ped ra
de tamanho adequado sobre a cabeça de um homem acarreta
necessa riamente a mort e desse último. A morte do home m é

13
D. Bohm,  Causality and chance in modem physics,  Londres,
Routle dge and Kegan Pau l Ltd., 1957, p. 2.
 Problemas de causalidade na física contemporânea,   Mosc ou, 1960,
16 

 p. 380 . Orig inal em russ o.


17
 N . A. Mu ss ab ae va , op. cit ., p. 108.

.233
 

contingente porque a causa que a acarreta é contingente, con-


dicionad a por toda uma série de circunst âncias. Da natur eza
da pedra e do homem não decorre necessariamente sua colisão.
Essa colisão poderia não ter acontecido, isto é, a causa poderia
não se apresentar, mas como ela se produziu, porque o choque
teve lugar, o efeito — a morte do homem — tornou-se neces-
sária e inevitável.
Outros autores, e, em particular, Mário Bunge, reconhe-
cem igualmente a existência do laço contingente de causa e
efeito. Bunge acred ita que seu domínio de manif estação é o
movimento dos microcorpos, no qual a situação de um acon-
tecimento (causa) não condiciona a necessidade do apareci-
mento de um outro acontecimento (efeito), como acontece no
domínio do movimento dos macrocorpos, mas somente a pro-
 babilidade de seu aparecimento. El e de nomina esse laço de
causa e efeito de "determinismo estatístico" ( statistical déter-
minacy)í%.
Como exemplo, prov ando o dito caráter contingente do
laço de causa e efeito no micromundo, é citado o caso da
 passagem dos elétrons através da ab er tu ra de um diaf ragma
situado em sua trajetóri a. Como sabemos, os elétrons idênticos
que se deslocam na mesma direção não caem em um mesmo
 pont o, mas dispe rsa m-s e sobr e to do o  écran.  Conclu ímos disso
que o laço da causa (o elétron em movimento) e do efeito (seu
 po nt o de impacto sobre o  écran  não é necessário, unívoco,
mas que, aqui, a mesma causa e as mesmas condições engen-
dram os efeitos os mais diversos.
Será essa dedu ção exata? Em nossa opinião, ela é in-
correta.
O fato de que os elétrons, depois de haver transposto a
mesma abertura, terminem em pontos diversos do   écran,  não
exclui o caráter necessário do laço de causa e efeito, concer-
nente a esse impacto. Emb or a os elétrons estejam em interação
com um mesmo objeto (o diafragma), essas interações não são,
entretanto, absolutamen te idênticas. No diafragma, com o qual
os elétrons estão em interação, assim como no meio ambiente
que eles atravessam quand o se dirigem par a o   écran,  cada
elétron provoca, em sua passagem, certas mudanças e, por esse

18
M. Bunge,  Causality,  Harvard Unrversity Press, p. 14-7.

234
 

fato, cada elétron não está em interação nem com o mesmo


objeto, nem com o mesmo meio, mas com objetos e com meios
cada vez diferen tes. É por isso que não podemos dizer que,
em todo s os casos, a causa é a mesma. Existe, nesse caso,
tantas causas diferentes quanto são os elétrons em movimento.
Cada uma delas condiciona necessariamente a queda do elétron
sobre um ponto dado do  écran.  Em outros termos, embora
cada elétron em movimento possua diferentes possibilidades de
cair sobre esse ou aquele ponto do  écran,  somente uma dentre
elas realiza-se e, precisamente, realiza-se aquela para a qual
estão reunidas as condições adequadas, e ela o faz de maneira
necessária.
O laço da causa (interação do elétron, do diafragma e do
meio ambiente) e do efeito (sua queda sobre um ponto preciso
do  écran) é necess ário. O que será contingente aqui não é a
queda desse ou daquele elétron sobre esse ou aquele ponto do
écran,  mas a divisão dessas quedas sobre o   écran,  pelo fato
de que cada elétron, em seu movimento, tendo seu meio am-
 biente específico, entre em interaçõe s úni cas em seu gênero,
que condicionam sua queda em um ponto dado do   écran.  O
 pont o da queda de outros elétro ns nã o depende necessaria-
mente do ponto da queda do elétron indicado e encontra-se
com ele e com tod os os outros em relações contingentes. É
isso, precisamente que condiciona o caráter estatístico das leis
das partículas em movimento.
O raciocínio de G. Svetchnikov a esse respeito parece
 plenamente justificado. El e escreve que: "Na interação das
micropartículas e dos microcorpos existe um traço particular,
que determina o caráter estatístico da mecânica quântica. . .
 No inter ior de um macroambiente dado produzem-se micro-
 pro cessos que exercem uma influ ência fundame natl sobre o
comportamento de um microobjeto considerado, mas que são
não essenciais para o macroambiente em seu conjunto, conside-
rad o do pont o de vista da física clássica. Isso conduz a que
o ambiente macroscópico dado possa ser realizado por todas as
combinações dos microprocessos; essas combinações distin-
guem-se entre elas no nível microscópico, mas não são discer-
níveis no nível macroscópico. Cada combinação dada dos
microscópicos que se desenvolvem no quadro de um ambiente
macroscópico dado acarreta um comportamento bem definido
do micro objet o. A inter ação do micro objet o e dos micropro-
.235
 

cessos que constituem o mieroambiente dado condiciona seu


comportamento...
Segundo essas concepções, o caráter estatístico da mecâ-
nica quântica é a expressão do fato de que, por um lado, o
movimento de cada microobjeto individual depende de sua
interação com um número considerável de microprocessos, que
constituem seu ambiente real e, por outro lado, a mecânica
contemporânea considera o ambiente de um microobjeto dado
de maneira macroscópica, sem uma análise detalhada da estru-
tura microscópica desse ambiente" .19

O caráter necessário do laço de causa e efeito foi situado,


na base da explicação do movimento das partículas "elemen-
tares", pelo filósofo alemão Herbe rt Hõrz. Analis ando o com-
 port am en to das partículas elementare s, qu an do de sua passa-
gem através de uma fenda estreita, ele escreve: "A queda da
 partícula sobre um po nt o determinado do   écran  situado atrás
da fenda é condicionada de maneira ca us al .. . A partícula
encontra-se necessariamente em um ponto determinado do
écran.  Esse é o resultado do fat o de que à causa relacio ne-se
o conjunto de todas as condições necessárias e suficientes, que
conduziram a isso" . A partícula elementar em movimento
20

encontra-se, segundo Hõrz, em numerosas ligações causais com


o meio ambie nte. Qualq uer modi ficaç ão, por mais leve que
seja, no comportamento da partícula, é o resultado da ação da
causa correspond ente que lhe é diretamente ligada. O conjunto
dessas causas determina a orientação do movimento da par-
tícula e sua queda sobre um ponto dado do  écran.
Falando do laço necessário de causa e efeito no movimento
dos microobjetos, é conveniente lembrar que, em virtude da
diferença essencial entre o microobjeto e o macroobjeto e, em
 particular, pelo fa to de que o primeiro representa a unidade
das prop ried ades corpus culares e o ndulat órias, é impossível
observar esse laço e traduzi-lo sob a forma de leis dinâmicas
adequadas. A natureza da micropartícula, ao contrário do ma-
crocorpo, não permite a definição simultânea e exata de sua
 pos içã o e de sua velocidade. Quanto mai s o lugar da micro-

0 Problema da causalidade na física contemporânea,  p. 355-6.


1S 

Original em russo.
Hörz,  Zum Verhältnis von Kausalität und Determinismus, DZFPh,
20

n. 2, p. 155-7, 1963.

.236
 

 partícula fo r determinado com preci são, tant o mais sua veloci-


dad e ou sua impu lsão se torn ará imprecisa. E, pelo contrá rio,
quanto mais a velocidade seja definida com precisão, tanto
mais será imprecis o seu lugar. Essa circunstância exclui a
 pos ssibi lid ade de prever de fo rm a unívo ca o comporta ment o
fut uro do objeto, tendo como base o conhecimento de sua
 posição no mome nt o presente.
Certos físicos e filósofos, que identificam o princípio de
causalidade com o determinismo mecânico (dito determinismo
de Laplace), que permite, a partir do conhecimento da velocida-
de e da posição de um objeto em um momento dado, calcular
sua posição e sua velocidade em um outro momento, deduziram,
da relação de indeterminismo, a impossibilidade de aplicar o
 princípio da causalidade ao micromundo.
Gerhard Hennemann diz que é precisamente em relação
à questão da possibilidade de prever o curso dos futuros pro-
cessos natur ais que aparece o conflito entre as conce pções
causais da física clássica e os dados da mecâni ca quântica. Ao
mesmo tempo em que a primeira considera como evidente que
todo fenômeno da natureza está completamente determinado, e
 po de também ser determinado no fu tu ro , a mecânica quâ ntica,
escreve ele, recusa-se a reconhecer a possibilidade de prever
até o fim o curso futuro dos acontecimentos na natureza, e
exatamente por isso destrói a convicção, segundo a qual todos
os fenômenos da natureza estão submissos a um condiciona-
mento causal universal ' . Art hur Lukowsk y, tendo em vista o
2 1

 princípio de indetermi nismo de Hei sen ber g, escreveu qu e: "(...)


Esses dados revolucionários da física moderna levaram à ques-
tão de saber se as noções fundamentais da física clássica per-
deram seu funda mento , ou pelo menos seu funda mento na
esfer a do fen ômen o atômico. No caso da lei da causalidad e,
essa dúvida parece absolutamente necessária. . ."22.
Mesmo Heisenberg, que, pela primeira vez, estabeleceu a
rela ção dos indet ermina dos, chegou a essa conclusão. A teoria
quântica "conduz necessariamente a formular leis, exatamente

21
G. Hennemann,  Das Verhältnis der Quantenmechanik zur Klassis-
chen Physik,  Bonn, 1947, p. 16-7.
22
A. Lukowsky,  Uber die Entwicklung des Kausalbegriffes,  in  Kant-
Studien,  1955/1956, vol. 47, p. 362.

.237
 

em sua qualidade de leis estatísticas, e a rejeitar o determinis-


mo de forma categórica" . 23

Paulette Fevrier classifica a teoria quântica de indetermi-


nista, porque não pode "indicar medidas tais que, a partir de
seu resultado, possamos prever com certeza o resultado de
qualquer medida anterior" . 24

Todos esses raciocínios sobre a impossibilidade de aplicar


o princípio de causalidade ao micromundo vêm do fato de
que a essência desse princípio é a questão da possibilidade
de predizer com uma certeza unívoca o comportamento futuro
do objeto, partindo de suas coordenadas e de sua impulsão
 presentes. En tr et an to , isso nã o é ve rd ad e. A essência do
 princíp io de cau salidade, na rea lidade, é o reconhecimento do
fato de que todo fenômeno pode ser condicionado de forma
causal e de que o laço de causa e de efeito é necessário. A
 previ são do co mpor ta ment o fu tu ro do objeto é a con seqüên cia
do reflexo mais ou menos completo do laço de causa e efeito
na consciência, assim como nas teorias elaboradas, e a eviden-
ciação de toda uma série de momentos que marcam de forma
suficientemente exata o estado inicial do objeto e o caráter de
sua interação com o meio ambiente, no processo do movimento.
A mecânica quântica, no estado atual de seu desenvolvimento,
não dá nem um nem outro. É por isso que ela só pode expri-
mir, no momento atual, o laço de causa e efeito, no domínio
do micromundo, sob a forma de lei estatística.
Focalizamos aqui os pontos de vista que negam o caráter
necessário do laço de causa e efeito no micromundo e consta-
tamo s que eles nã o resistem a uma análise . Mas , ao lado desse
 pont o de vista, há outros que negam co mple tame nte o laço
necessário da causa e efeito e que o consideram contingente,
mesmo no que concerne ao macro mundo . Ent re esses autores,
encontramos particularm ente Rober t Hav eman n. Ele explica
a tese do laço necessário de causa e efeito como uma sobrevi-
vência do materialismo mecanicista.
"No mecanicismo clássico, escreve ele, a causalidade
designou a ligação como absolutamente necessária entre causa
e efeito. Na conce pção do mun do mecâ nico clássico, uma

W. Heisenberg,  Das Naturbild der heutigen Physik,  Hamburgo,


23

1955, p. 28.
24
P. Fevrier,  Determinisme et indeterminisme,  Paris, 1955, p. 9.

.238
 

causa, em condições correspondentes, só pode ter um efeito,


ou seja, aquele que ela produ z. Ent ão, 'X engendra necessa-
riamente Y'. Nessa fórmula, encontramos a antiga concepção
material ista mecanic ista da causalida de. Noss a conce pção da
causalidade deve ser o u t r a . . . De uma causa nasce apenas um
efeito, entretan to, cada causa pode ter várias possibilidades. E
aquele dos efeitos possíveis que se manifesta é objetivamente
contingente"25. Ele escreveu mais adian te   que:  "Se uma causa
engendra um certo efeito sem necessidade e pode produzir toda
uma série de efeitos diferentes , então um desses efeitos será
sempre contingente"26.
Assim, segundo Havemann, a causa está ligada a seu efeito
de forma contingente, engendra-o, mas não poderia absoluta-
mente engendrar um outro.
A idéia do autor, segundo a qual uma mesma causa, em
condições semelhantes, pode engendrar não apenas um efeito,
mas uma grand e quan tida de de efeitos diversos, é inexata e
contradiz o estado real das coisas.
De fato, o hidrogênio reunido ao oxigênio na proporção
de 2 por 1, em condições adequadas, sempre resulta em água;
a água a 100°C e sob pressão normal transforma-se em vapor;
um elétron que entra em interação, nas condições requeridas,
engendra, com um pósitron, um par de fótons; um fuzil carre-
gado sempre atira se pressionarmos o gatilho. Se, em um dos
casos, o efeito esperado não se produz, por exemplo, se a água
não ferve a 100°C, se um fuzil não dispara depois de apertado
o gatilho, isso mostra não que o laço de causa e efeito é
contingente, mas que uma das condições foi violada, que a
causa necessária não agiu e que uma outra causa entrou em
ação, produzi ndo um outr o efeito, que nã o o esperado. Na
análise desses casos, podemos desembaraçar a causa da não-
reali zação do efeito espera do e, assim, demo nstr ar o caráter
necessário do laço de causa e efeito.
Quando Havemann escreve que toda causa tem uma
grande quantidade de possibilidades diferentes e pode engendrar
uma série de efeitos, ele está identificando manifestamente a
causa ao objet o, à coisa. O objet o (coisa, proc esso ) tem

23
R. Havemann,  Dialektik ohne Dogma? Naturwissenschaft und
Weltanschauung , Reinbeck, Hamburgo, 1964, p. 99-100.
2S
R. Havemann, op. cit., p. 86.

.239
 

efetivamente uma grande quantidade de possibilidades de mu-


danças e de trans forma ções. Mas o objeto e a causa são coisas
muito diferentes. A identi ficação da causa com o objeto ca-
racteri za apenas o materialismo metaf ísic o. O materialismo
dialético não entend e por causa o obje to, a coisa, mas a
interação dos objetos, das coisas ou dos elementos e dos as-
 pectos que fo rm am o objet o, a coisa; e, po r efeito, as mudanças
surgidas nos corpos, nos elementos e nos aspectos em interação.
Uma mesma interação, em condições apropriadas, não acarreta
muda nças diferentes, mas apena s idênticas. Po r exemplo, o
hidrogênio, aquecido e sob a pressão de 5.000 atmosferas, mis-
tura-se com o ozônio para formar o gás amoníaco   ( N H 3 ) .  O
objeto pode efetivamente engendrar diferentes mudanças (efei-
tos), mas isso deve-se ao fato de que ele entra em diferentes
interaçõ es. Assim, o hidro gênio em inte raçã o com o oxigênio
forma a água, em interação com o flúor, produz o gás
fluorídrico (H F) , em interação com o cloro, produz o gás
clorídrico, em interação com o carbono, a uma temperatura de
1400/1800°C, produz o etilênio   ( C 2 H 4 )  e a uma temperatura
superior a 1800°C, produz o acetileno   ( C 2 H 2 )  etc. Embo ra
em todos esses casos figure sempre uma mesma substância, o
hidrog ênio, as causas são nele diferentes. No primeir o exemplo,
a causa é a interação do hidrogênio com o oxigênio, no segundo
com o flúor, no terceiro com o cloro, no quarto com o carbono.
Assim, embora cada objeto tenha a possibilidade de acar-
retar uma grande quantidade de efeitos diferentes, isso não
significa absolutamente que todos esses efeitos serão engendra-
dos por uma mesma causa. Cad a um deles terá sua pró pria cau-
sa, ou seja, a interação concreta à qual está necessariamente
ligado o aparecimento de um efeito preciso. A prese nça de uma
grande quantidade de possibilidades diferentes nas formações
materiais não exclui, portanto, o laço necessário de causa e
efeito.
Mas, se todo fenômeno está ligado a uma causa que o
engendra, então a existência do contingente e do acaso não
estaria sendo post a em dúvida? É prec isam ente com base
nisso que os representantes do materialismo metafísico negavam
a existência objetiva do acaso.
O reconhecimento do caráter de necessidade de todo laço
de causa e efeito acarreta a negação da existência objetiva da
contingência somente quando perman ecemos em posição no

.240
 

materialismo mecanicista na compreensão da causalidade, isto


é, quando entendemos por causas os próprios corpos, quando
um corpo desempenha o papel de suporte da causa e um outro
corpo é o suporte do efeito.
Se, por causa, entendemos a interação dos corpos ou dos
elementos que constituem um único e mesmo corpo, e por
efeito, entendemos as mudanças que se produzem nos corpos
ou nos elementos, em decorrência de sua interação, o reconhe-
cimento do laço necessário de causa e efeito não conduz à
negaçã o da contingênci a. Com efeito, os corpos ou os elemen-
tos que os constituem podem entrar em interação, mas eles
 po de m igu almente nã o o fazer; se eles entram em interação,
essa acarretará necessariamente, neles, as mudanças correspon-
dentes. Por exemplo, o hidrog ênio pode ou não entrar em
interação com o flúor, mas se ele entra nessa interação, a for-
mação do ácido fluorídrico é inevitável, em condições apro-
 priadas.
Assim, a esfera de existência da contingência não é a
correlação de causa e efeito, mas a dos elementos que causam
a interação dos corpos e dos elementos que os constituem.

.241
 

IX. O NECESSÁRIO
E O CONTINGENTE

1. OS CONCE ITOS
DE NECESSIDADE E DE CONTINGÊNCIA

Há várias definições diferentes das categorias de necessário


e de contingente.
Robert Havemann esforça-se em tirar da dialética, da pos-
sibilidade e da realidade o conteúdo das categorias de "neces-
sidade" e de "con ting ência ". Seu raciocínio é o seguinte:
quando, nos manuais teóricos falamos dessa ou daquela ne-
cessidade ou lei, descrevemos não o que é na realidade, não o
que se passou, mas o que deve produzir-se de acordo com a lei.
E não pode ser diferente, ele prossegue, porque apenas as
 possib ilidad es sã o definidas com necessidade. A tr an sf or ma çã o
das possibilidades em real idad e está ligada às contingênci as.
Elas podem transformar-se em realidade e podem não se trans-
formar. " ( . . . ) Se uma coisa é definida apenas como possível,
segundo a lei e com a necessidade, ela só pode aparecer na
realidad e de fo rma contingent e. Sendo apenas possível, ela
 po de aparecer ou nã o e, se ela aparece, isso se pr od uz sem
necessidade, somente de forma contingente*.
A idéia segundo a qual a necessidade existe apenas como
 pos sib ili dade é falsa, con tradiz o est ado rea l das coisas. Os
aspectos e as ligações necessárias existem não somente na pos-
sibilidade, mas igualment e na realida de. A prese nça de oito
 prótons no nú cleo atômico do oxigênio e de um pr ót on no

1
R. Havermann:  Dialekik ohne Dogma? Naturwissenschaft und
Weltanschauung , p. 90.

.242
 

átomo do hidrogênio é inevitável, necessária não somente para


os átomos do hidrogênio e do oxigênio que aparecerão, mas
igualmen te pa ra aqueles que já aparec eram e existem. É abso-
lut amen te a mesm a coisa no que concer ne às relações dos
átomo s de sódio e de cloro na molécula do sal de cozinha.
Ê necessário para todas as moléculas do sal, tanto para as que
existem atualmente, como para as que ainda não existem, mas
que podem aparecer.
Reunindo a realização da possibilidade necessária à con-
tingência, Havemann deforma igualmente o conteúdo da cate-
goria de "possibilidade", identificando-a à categoria de "contin-
gente". Efetivam ente, a possibilidade é definida por ele como
o que pod e ser e o que pode não ser. Mas esse traço específico
não é o da possibi lidade, e sim o da conting ência. A possibi-
lidade designa não o que pode surgir ou não, mas o que acon-
tecerá em certas condições.
O elo intermediário entre a possibilidade e a realidade não
é a contingência, como pensa esse autor, mas as condições con-
cretas. Se elas são reunid as, a possibilidade não po de deixar
de se transformar em realidade, ela realiza-se necessariamente
e torna-se realidade. Isso se produzirá em qualquer lugar e
sempre, desde que haja possibilidade e as condições correspon-
dentes. "Sabe mos, diz F. Engels, salientando a inevita bilidad e
da realização dessa ou daquela possibilidade, quando do apare-
cimento de condições que lhe correspondem, que o cloro e o
hidrogênio, em certos limites de temperatura e de pressão e
sob a ação da luz, iuntam-se em uma explosão para formar o
gás clorídrico e, tendo consciência disso, sabemos também que
isso se dá  sempre  e em  qualquer lugar,  desde que as condições
citadas estejam re un id as .. . " . 2

Se a realização da possibilidade real, em presença das con-


dições correspondentes, não fosse necessária, o homem não
 pode ri a organ izar a prod ução , po rq ue nã o con seguiria faz er
com que certas ações produzissem mudan ças rigorosamente
determinadas.
A existência e o desenvolvimento da produção, da ativi-
dade laboriosa dos homens demonstram que a possibilidade, em
condições apropriadas, realiza-se com necessidade e que certas

2
F. Engels,  La dialectique de la nature,  p. 236.

.243
 

.ações não produzem quaisquer mudanças, mas apenas aquelas


muit o precisa s. Em outros termos, a ativi dade práti ca mostra
a existência objetiva e real da necessidade. Os clássicos da
filosofia marxista e, em particular, Engels, mais de uma vez
cham aram a aten ção par a esse aspecto do prob lema . Criticand o
Hume, que acreditava que fosse impossível demonstrar a exis-
tência objetiva da necessidade, ele escreveu que: " ( . . . ) A
 pr ova da necessidade está na ati vidade hu ma na , na experiência,
no trabalho: se eu posso  produzir   o  post hoc,  ele torna-se
idêntico ao  propter hoc"3.
Havemann ignora tudo isso e, fiel a seu ponto de vista,
crê que a atividade prática dos homens não se fundamenta
na necessidade, mas na contingência, na probabilidade, que
exprime esse ou aquele grau de possibilidade de um aconte-
cimento contingente determinado. Por isso a atividade prática
e a vida humana, em geral, segundo ele, estão constantemente
ligadas a algum risco, porque na prática o resultado esperado
é contingente e não necessário, isto é, ele pode ter ou não ter
lugar. Tam bém o homem, antes de empreender uma ação,
deve medir todas as chances que podem assegurar seu sucesso.
Todas as pessoas são incapazes de determinar o grau de pro-
 babi li dade do resultado de suas ati vid ades, que é passivo e não
ativo. "Noss a vida, salienta Have mann, é sempre um risco.
A cada nova empreitada, esforçamo-nos numa estimativa de
nossas chances. E há mesmo alguns que nã o chegam jamais
a cometer qualquer ato, já que são incapazes de fazer as contas
exatas de suas chances" . 4

Se fosse efetivamente assim, como prevê o autor, se todos


os homens baseassem sua atividade na contingência, no acaso,
a sociedade humana teria deixado de existir em razão da im-
 possibilidade de organizar a pr od uç ão contínua dos bens ma -
teriais. Mas na da de semelhante a isso aconte ce, unica mente
 po rq ue o ho me m, em sua atividade, apóia-se nã o no acaso,
mas na necessidade, guia-se não pelo que pode acontecer ou
deixar de acontecer, mas pelo que acontecerá necessariamente,
sob certas condições.
Certos autores identificam as categorias de "necessidade"

3
F. Engels,  La dialectique  cit., p. 232.
4
R. Havemann, op. cit., p. 100.

.244
 

e de "cont ingen te" às categorias de "ger al" e de "singul ar". O


geral, segundo eles, sempre tem um caráter necessário, pelo fato
de que é determinado por leis internas, pela essência interna dos
fenôm enos . O singular, como mani fest ação do geral, depende
das condições exteriores e por isso ele possui necessariamente
aspectos contingentes.
A idéia segundo a qual o geral, determinado por leis
internas, pela essência interna dos fenômenos, é necessário, é
uma idéia em si justa. Mas disso não se segue absolutamente
que tod o geral é necessári o. O geral pod e manifestar-se ao
mesmo tempo sob a forma de necessário e sob a forma de
contingente, porque a repetição é condicionada não apenas
 pela pre sença de uma grande quan ti da de de formações mate-
riais, de fenô menos tend o uma ess ência comum, submetidos
às mesmas leis internas, mas igualmente pelo fato de que as
diferentes formações materiais, os diversos fenômenos surgem
e existem freqüentemente em condições semelhantes, que im-
 primem neles suas impressões. Po r exe mpl o, a análise de
várias gotas de água pode mostrar em todas elas a presença
do sal. Ent ão, a prese nça deste, em toda s as gotas de água,
representa uma propriedade geral. Mas será essa uma pro-
 priedade necessária da água? É lógico que nã o, po rque ela
não decorre da natureza interna dos elementos que constituem
a água, mas é condicionada por um concurso de circunstâncias
e, em particular, pelo fato de que a água, antes de surgir da
terra , transp ôs uma cama da salina. O fat o de que a água tenha
 passado através dessa camada salina e te nha também dissolvido
o  sal é contingente, porque  ela teria podido igualmente ter
deixado de atravessá-la.
Mas se o geral não é idêntico ao necessário, se ele pode
existir tanto como contingente quanto como necessário, se-
gue-se que o contingente também não é idêntico ao singular;
A essência específica do singular consiste no fato de que ele
é único, enquanto que o contingente, como vimos, pode-se
repetir.
Além disso, um traço específico do contingente é o de
ser condicionado pelas circunstâncias exteriores, enquanto que
o singular pode ser o efeito da interação dos aspectos internos,
das tendências, da manifestação de leis internas do desenvol-
vimento desse ou daquele processo, de uma formação material.
Por exemplo, a vitória da revolução socialista na Rússia, em

.245
 

1917, há muito tempo constitui um fenômeno único, mas ela


deve sua explosão não a causas exteriores, mas interiores; ela
foi o efeito necessário do desenvolvimento de processos inter-
nos, o que explica que ela seja considerada como necessária
e não como um fenômeno contingente.
O necessário traz, portanto, em si mesmo a causa de seu
aparecimento e de sua existência e também se produz, inevita-
velmente, nas circunstâncias adequadas, enquanto que a razão
de ser do contingente não está nele mesmo, mas em uma outra
coisa . 5

A definição das categorias de "necessário" e de "contin-


gente", a partir da categoria de causalidade, é em nossa opinião,
 justa, po rq ue os con cei tos de "n ec essá rio" e de "contingente"
estão geneti cament e ligados à causalidade, deco rrem dela e
representam o grau seguinte, depois da causalidade, do apro-
fundamento do conhecimento humano do mundo dos fenô-
menos.

2. A CRÍ TIC A
DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFÍSICAS
DA CORRELAÇÃO DA NECESSIDADE
E DA CONTINGÊNCIA

O problema da necessidade e da contingência foi objeto


de estudos filosóficos ao longo de toda a história da Filosofia
e as soluções apresentadas para ele, pelos mais diferentes filó-
sofos, são variadas.
Os idealistas subjetivos negaram a existência objetiva da
necessidade, que eles situavam unicamente na esfera da cons-
ciência, do pensamen to. Por exemplo, o filósofo norte-ameri-
cano Santayana tem uma concepção subjetivista da necessidade:
ele não a vê na realida de objetiva. A realidade apresenta-se,
 pa ra ele, como um a "cor rent e de contingência". Segun do seu
 pont o de vista, o qu e os ho me ns consideram ha bitu alme nte co-
mo necessidade é "um complô de contingências" . Segundo o6

G. W. F. Hegel,  Werke. Vollständige Ausgabe,  v. 6, p. 288.


5

6
G. Satayana,  The realm of matter,  New York-Londres, 1930.

.246
 

filósofo inglês contemporâneo Wittgenstein, apenas as contin-


gências existem no mundo.
O sociólogo alemão-oriental Walter Theimer nega a ne-
cessidad e na história . Segundo ele, várias contingências agem
na história e excluem completamente o determinismo, assim
como toda necessi dade. É por isso, afirm a ele, que tudo na
vida depende das próprias pessoas, de sua vontade, de suas
aspirações subjetivas . 7

Günter Jacobi esforça-se bastante em sua argumentação


sobre a ausênci a da necessi dade na natur eza. Segund o ele, os
sistemas ontológi cos e os elementos que os consti tuem são
 basead os un s nos out ros. E são des pro vidos de qualquer iden-
tidad e de ligação . E sem essa identi dade, nen hum a necessidade
é concebíve l. Segund o Jacobi , a necessid ade só po de ser lógica,
 psico cognitiv a. El a resid e na sistemática lógica, na identidade
do sistema dos conceitos mediante os quais esforçamo-nos para
refletir e abarcar o sistema ontológicos.
Johannes Hessen fundamenta à sua maneira a concepção
idealista da necessidade. Ele faz dessa concepção um postu-
lado, uma hipótese que os homens admitem como tese inicial
 pa ra conhecer a realidade, mas aos qua is nad a corresponde
na natu reza . Seu raciocínio é o seguinte: os home ns, em
razão de sua organização particular, da natureza humana, não
 pode m explicar o mu nd o a nã o ser mediante o reconhecimento
das ligações necessárias de um fenô meno com outro . Mas a
natureza não tem, absolutamente, nenhuma razão para condu-
zir-se da maneira como nos é conveniente, como nós lhe pres-
crevemos .9

Com uma tal concepção da realidade, o homem não


 pode ri a exp lic ar ne nh um dos fenômenos da realid ade ambiente
e muito menos poderia modificá-la no curso de sua atividade
finalista, porque baseia-se na evidenciação de sua ligação ne-
cessária com sua causa e com outros fenômenos, e sua mudança
orientada para uma meta precisa baseia-se nessas ligações ne-
cessárias e em sua utilização. A existência e a evoluç ão da

7
W. Theimer,  Der Marxismus. Lehre-Wirkung-Kritik,  Berna, 1957,
 p. 49- 51.
s
Bruno, Baron von Freitag-Löringhoff, Zum Problem des Zufalls,
in  Philosophia Naturalis,  t. 2, v. 7, p. 163.
9
J. Hessen,  Das Kausalprinzip,  Augsburg, 1928, p. 228.

.247
 

ciência e da produção testemunham, de forma evidente, que


a necessidade existe na realidade e que ela é concebida e utili-
zada pelo homem com sucesso em suas ações.
Contrariamente aos idealistas, os materialistas, como de
regra, reconhecem a existência objetiva da necessidade e
consideram-na como uma das propriedades fundamentais da
natureza. Estan do de acordo sobre a questão do reconheci-
mento do caráter objetivo da necessidade, os materialistas,
entretanto, divergem fundamentalmente na resolução de outras
questões e, em particular, no que concerne ao caráter objetivo
da contingência. Alguns representante s do material ismo pré-
marxista, como Demócrito, Spinoza, Holbach, negavam total-
ment e a existência objetiv a da contingênc ia. Eles acreditavam
que o homem inventou a contingência para disfarçar sua igno-
rância, sua falta de conhecimentos nesse ou naquele domínio
dos fenômenos. Segundo Demócrito, os homens inventaram o
mito do acaso para que servisse de pretexto para disfarçar sua
 pr ópri a inconseqüência. Spinoza dizia qu e: "Mas uma coisa
só pode ser chamada de contingente relativamente à nossa falta
de conhecimento" . 10

Entre os filósofos burgueses contemporâneos, esse ponto


de vista é desenvolvido pelo filósofo francês Henr i Berr. Ele
classifica o reconhecimento do acaso como uma "sobrevivência
do antropomorfismo primitivo" . E acredita que essa sobre-
11

vivência encontra-se "exatamente quando o jogo da causalidade


nos escapa, nós falamos facilmente do acaso como de coisa
r e a l . . . " De fato, "o acaso é alguma coisa de puramente
subjetiva, de relativa a nós, ao estado de nossos conhecimen-
t o s " . Segundo Berr, pelo fato de que não conhecemos um
12

certo domínio da realidade, também não podemos prever, nesse


domínio, o aparecimento desse ou daquele fenômeno e, então,
inclinamo-nos a acreditar que esse fenômeno dado é contin-
gente. Para ele o acaso não é mais do que um "capricho im-
 previsto" que desapar ece com o des envolvimento do conheci-
mento.

10
Oeuvres  de Spinoza,  Ethique,  Paris, 1872; t. 3, p. 187.
"H. Berr   La synthèse en histoire,  Paris, Ed. Albin Michel, 1951,
 p. 57.
1 2
H. Berr, op. cit., p. 57.

.248
 

O filósofo alemão Bruno Baron von Freitag-Lõringhoff


declara igualmente que a contingência é o fruto da atividade
consciente do homem. "Qua ndo agimos de forma consciente
e planificada, nós a provocamos inevitavelmente" - . Ligando
1 3

o aparecimento do acaso à atividade consciente do homem, o


autor a considera como o resultado do caráter limitado de nosso
saber. "No quadr o de nosso conhecime nto, seja ele grande ou
 pequeno, ele dec lar a, a categoria de "a ca so " exp rim e de fo rm a
curta e insuficiente o caráter fundamentalmente limitado de
toda explicação" . 14

Para negar a existência objetiva da contingência, a maioria


dos autores parte do caráter universal do princípio de causa-
lidade . O seu raciocíni o é o seguinte: t odo fenômeno tem sua
causa independentemente do fato de que nós a conheçamos
ou não . A causa está sempre necessaria mente ligada ao efeito.
Sendo assim, não há fenômenos contingentes, eles são neces-
sariamente engendrados por sua causa.
A afirmação de que todos os fenômenos têm sua causa e de
que toda causa está necessariamente ligada ao seu efeito é justa.
Mas disso não decorre que eles sejam todos semelhantemente
necessários. A necessidade desse ou daque le fenô meno ê con-
dicionada não pela necessidade de sua ligação com a causa que
o acarreta, mas pela necessidad e da causa. E isso porq ue as
causas pod em ser necessárias ou contingentes. Sabemos que
as causas dos fenômenos estão em interação entre as formações
materiais ou, então, entre os elementos, os aspectos de uma
mesma formação material.
A interação das formações materiais ou de seus elementos,
de seus aspectos, pode tanto ser contingente, isto é, devido a
um concurso de circunstâncias, quanto necessária, em razão de
sua natu reza específica. Por exemplo, na sociedade capitalista,
o fato de que o operário venda ao empregador sua força de
trabalho e de que este seja explorado pelo último não é nem
contingente, nem devido a um concurso de circunstâncias exte-
riores, é necessário: isso ê necessariamente condicionado pelo
modo de produção dominante na sociedade capitalista e pela
situação econômica do proletariado e da burguesia, que é de-

"Bruno Baron von Freitag-Lõringhoff, op. cit., p. 166.


"Bruno Baron von Freitag-Lõringhoff, op. cit.

.249
 

terminada por esse modo de produção, isto é, pela própria


natureza dos aspectos em interação; e o fato de que o operário
trabalhe justamente para esse capitalista e justamente com esses
operários, e não com outros, é um fenômeno (mom ent o) con-
tingente condicionado por uma série de circunstâncias exteriores.
O caráter necessário da correlação da causa e do efeito
não exclui, portanto, a possibilidade da existência objetiva da
contingência, forma universal do ser, assim como a necessidade.
Somente que, ao contrário da necessidade, que se manifesta
no domínio da correlação dos elementos que constituem as
causas e no domínio do laço das causas com seus efeitos, a
contingência manifesta-se apenas no domínio das causas, no
domínio da interação das formações materiais (e nas forma-
ções materiais), acarretando as mudanças correspondentes.

3. A CONC EPÇÃ O MARX ISTA


DA CORRELAÇÃO
DO NECESSÁRIO E DO CONTINGENTE

A necessidade e a contingência não existem de forma


separada, uma ao lado da outra. Ela s encontram-se em ligação
orgânica e em interdependência e pertencem aos mesmos fenô-
menos. Cada fenômen o, cada form ação material é, ao mesmo
tempo, necessário e contingente. Algumas de suas proprie-
dades e ligações são condi ciona das pelas causas internas e
traduzem a natureza de seus elementos formadores, outras
são condicionadas por suas causas externas, por sim interação
com o meio ambie nte. Por exemplo, cada organis mo vivo,
no decorrer de seu desenvolvimento e de sua existência, ma-
nifesta uma série de propriedades que o caracterizam como
representante de uma certa espécie. Essas propriedades são
condicionadas por sua natureza, por seus aspectos e ligações
internos e são também programadas neles e constituem o ne-
cessário.
Por outro lado, surgem nesse organismo vivo, propriedades
quç são engendradas, pelas condições individuais de sua existên-
cia, por sua interação com outras formações materiais e com o
meio ambiente. Elas form am o contingente. As propriedade s
necessárias do organismo vivo existem nele, não ao lado das
 propriedades contin gen tes, mas nel as mesmas, e manifestam-se

.250
 

 por mei o delas. As propri edades e as ligações contingentes são


uma for ma de manifesta ção das propriedades e das ligações
necessári as. A necess idade cria seu caminho por meio de uma
massa de desvios contingentes que, exprimindo-a como uma
tendência, introduzem no processo o fenômeno concreto, e uma
grande quantidade de novos elementos que não decorrem da
necessidade, mas que são condicionados por circunstâncias
exteriores. Por exemplo, a dependência do preço da merca-
doria da quantidade de trabalho socialmente necessária, gasta
 para produzi-la, existe nã o ao lado da dependência do preço
com relação a outros fatores e, em particular, com relação à
correlação entre a oferta e a procura existentes no mercado,
mas manifesta-se nela, sob a forma de tendência, mediante
uma grande quantidade de desvios nesse ou naquele sentido,
que acompanham as operações de trocas.
Pelo fato de que a necessidade é condicionada pela natu-
reza da coisa e realiza-se necessariamente, enquanto a contin-
gência é chamada à vida por circunstâncias exteriores e pode
dar-se ou não, na prática, não devemos orientar-nos pela con-
tingência, mas sim pelas propriedades e ligações necessárias.
Segue-se igualmente que o conhecimento da necessidade é uma
tarefa funda men tal da ciência. Mas, como o necessário não
existe no estado puro e se manifesta mediante uma grande
quan tida de de desvios contingentes, seu conhe cimen to só é
 possível po r meio do estudo do conting ente e a colocação em
evidência, nele, das tendências necessárias.
A contingência, sendo uma forma da manifestação da ne-
cessidade é, ao mesmo tempo, seu complemento, porque ela
encerra não somente a natureza específica da formação material
estudada, mas igualmente as particularidades de outras forma-
ções materiais com as quais ela entra em interação. Enco ntra n-
do-se em correlação orgânica e em interdependência, o contin-
gente e o necessário passam um no outro no curso do movi-
mento e do desenvolvimento da formação material, do fenô-
meno, e mudam de lugar: o contingente torna-se necessário e
o necessário, contingente.
A passagem recíproca do contingente no necessário, e
vice-versa, no curso do desenvolvimento da matéria, pode ser
claramente observada quando da análise das mudanç as das
for mas animais e vegetais. Como testem unha, a Biologia, em
um passado distante, os organismos vivos existiam e desenvol-

.251
 

viam-se apena s na água. Mas, quando os mare s secaram, os


animais aquáticos tiveram, cada vez mais freqüentemente, de
viver em terra firme e algumas espécies de peixes, sob a forma
de desvios contingentes, foram dotados de órgãos que permi-
tiam que usassem o oxigênio do ar. Esses desvios, que per-
mitiram que os organismos vivos sobrevivessem em terra firme,
desenvolveram-se e transformaram-se em órgãos capazes de
absorver o oxigênio do ar. O resu ltado disso é que certos
animais aquáticos adotaram um modo de vida terrestre; e, por
essa razão, suas brânquias não tinham mais utilidade e desa-
 parece ram po uco a pou co, tr ansformando- se em alguma coisa
de contingente, totalmente desligadas da natureza interna das
formações materiais em questão.
Tom emo s um outro exemplo. Na socied ade primitiva a
economia natur al imperava. Cada comunidade assegurava seus
 próprios mei os de vid a. Em conse qüê nci a do baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas, tudo o que era produ-
zido na comu nida de era consum ido. Nessas condições, a
 perm ut a de um a pr od uç ão por outra pr od uç ão era um fenô-
men o conting ente. Mas, à medida que as força s produti vas
desenvolveram-se, tornou-se possível a produção de bens
materiais que excedessem o número necessário para assegurar
a vida de seus produtores diretos, então, a permuta de uma
 pr od uç ão co nt ra a outra expandiu -se e, com o surgimento da
 pr op ri ed ad e privada, transformou-se em um mome nt o neces-
sário do modo de produção escravagista, surgido das ruínas do
regime da comu nida de primitiva. Assim, no processo de desen-
volvime nto, o contingen te tra nsfo rma- se em necessário e o
necessário em contingente.
Pelo fato de que o contingente pode transformar-se em
necessário e o necessário em contingente, se conhecermos as
condições em que essa passagem se efetua, poderemos recriá-las
artificialmente e transformar as propriedades contingentes em
necessárias e vice-versa, em função de interesses práticos.

.252
 

X. A  LEI

1. O CON CEI TO DE LE I

Como já fizemos observar no capítulo precedente, a


necessidade existe sob forma de propriedades e ligações dos
fenôm enos. Algum as relações e ligações necessárias são cha-
mad as de lei. A lei é, port anto , o que se mani festa , necessa-
riamen te, nas condições apro priadas . Por exemplo, a lei do
valor, que exprime a dependência do preço da mercadoria da
quantidade de trabalho socialmente necessária para sua pro-
dução e que age necessariamente em qualquer lugar em que
haja uma produção mercantil. Tomemos um outro exemplo:
a lei física da dependência da resistência de um condutor e a
composição de sua substância, seu comprimento e sua secção,
que se manifesta necessariamente à cada passagem de corrente
elétrica, porque ela depende da natureza da substância, da
qual é fabricado o condutor, e das características objetivas que
lhe são próprias.
Indicando que a lei representa uma ligação necessária,
ainda não definimos totalmente sua especificidade. Efetiva-
ment e, nem todas as ligações necessárias são leis. Por exemplo,
ligações necessárias, singulares (individuais) não podem de-
semp enha r o papel de leis. A lei é unic amen te uma ligação
necessária geral, isto é, uma ligação própria a vários fenômenos.
Por exemplo, a lei do período de radioatividade, segundo
a qual, em um certo intervalo de tempo, próprio a cada subs-
tância, a metade da substância decompõe-se, qualquer que seja
a quantidade de substância considerada, manifesta-se não em
um processo radioativo qualquer, mas em todos os processos
análogos, e é própria a todas as substâncias radioativas, isto é,

253

Zfíseu Savérío Sposito


 

uma ligação geral. Isso concerne a qua lque r lei da naturez a,


da sociedade e do pensamento.
Sendo uma ligação geral e iterativa, a lei é, ao mesmo
tempo, uma ligação estável. Ela existe enqu anto dura a forma
do movimento da matéria (ou de um estágio dado de seu
desenvolvimento) ou do p ensamento e permane ce enquanto
existem os fenômenos que representam essa forma de movi-
ment o. Por exemplo, a lei do condicio name nto da consciência
dos homens, por seu ser social, surgiu com o nascimento da
socied ade hum ana e existirá enq uant o esta últim a existir. Um
outro exemplo: a lei do valor entrou em ação com o desmoro-
nar da comunidade primitiva e permaneceu efetiva nas socieda-
des escravagista e feudal, é ainda efetiva na sociedade capitalista
e continua a existir inclusive nas condiçõe s do socialismo. Essa
lei só será afastada com a construção do comunismo no mundo
inteiro, quando a necessidade da prod ução mercantil tiver
desaparecido completamente.

2. AS LEIS DIN ÂMIC AS


E ESTATÍSTICAS

Manifestando-se como ligações (relações), as leis apare-


cem em uma grande quantidade de fenôm enos. Entret anto, a
fo rm a de sua manifestação varia. Alg uma s leis agem em cada
um dos fenômenos (ou formações materiais) que representam
esse ou aquele domínio da realidade, enquanto que outras agem
apenas na massa dos fenômenos. As primeiras leis, habitual-
mente, são denominadas leis dinâmicas, e as segundas, leis
estatísticas.
Como exemplo de leis dinâmicas, podemos citar a lei de
Ohm, que exprime a dependência da resistência do condutor,
da composição de sua substância, da superfície de sua secção
e de seu compriment o. Essa lei concerne um a grande quanti-
dade de condutores diferentes e age em cada condutor particular.
Um outro exemplo de lei dinâmica pode ser fornecido pelo laço
descoberto por Fara day entre a substância que aparece nos
elétrodos e a eletricidade que atravessa o eletrólito, essa lei
exprime a dependência proporcional da massa da substância
descarregada sobre o elétrodo e da quantidade de eletricidade
que atravessou o eletrólito. Ess a lei é um a característica de

.254
 

todos os casos de passagem da corrente através de um eletrólito


e manifesta-se em cada um deles.
A correlação das mudanças de pressão do gás e seu volume
a uma temperatura constante, evidenciada por Mariotte e Boyle,
tem um caráter estatístico. Ess a lei é concer nente apenas à
massa das moléculas que se deslocam de maneira caótica e que
constituem esse ou aquele volum e do gás. Uma molécul a
isolada não é submetida a essa lei. Entret anto, chocando-se
com outras moléculas, a molécula modifica a direção de seu
movim ento e sua veloci dade. Em conseqü ência, a força com
a qual essa ou aquela molécula de gás atinge a parede do reci-
 piente é contingente , depende de uma quantidade infinita de
circunstâncias. Mas, mediante essas inúmeras mudanças da
velocidade do movimento e, portanto, da força de impacto
sobre a par ede do recipien te das di ferent es moléculas que
constituem esse volume, nasce uma lei determinada: a pressão
do gás é inversamente proporcional a seu volume.
As leis da mecânica quântica, relacionando-se com o mo-
vimento das micropartículas são igualmente estatísticas; não
 pode m definir o movimento de cada um a das partí culas, mas
determinam o movimento dos grupos de partículas dessa ou
daquela multiplicidade.
As leis dinâmicas têm a particularidade distintiva de per-
mitir a previsão, de forma bastante precisa, do surgimento do
fenômeno correspondente e a modificação de suas propriedades
e estados. Por exemplo, apoiando-se na lei da dependência
 proporcion al da massa da substância que se desprende sobre
o elétrodo com relação à quantidade de eletricidade que atra-
vessa o eletrólito, podemos prever com exatidão a quantidade
de substância que será desprendida em um caso preciso.
Ao contrário das leis dinâmicas, as leis estatísticas não
 permitem que se pr evej a com exatidão, o apa recimento ou o
não-aparecimento de algo denominado concreto, nem a direção
e o caráter da mudança dessas ou daquelas de suas caracterís-
ticas. Basead os nas leis estatísticas, não podemos definir o grau
de probabilidade, nem o do surgimento ou da modificação do
fenômeno correspondente.

.255
 

3. AS LEIS GERAI S
E AS ESPECIFICAS, SUA RELAÇÃO

Embora todas as leis sejam ligações (relações) gerais, nem


todas agem nos mesmos círculos de fenômenos. Alguma s
dentre elas abarcam um grande círculo de coisas e, outras,
um círculo mais restrito.
As leis que agem em um grande círculo de fenômenos são,
com relação às leis que agem em um círculo mais restrito, leis
gerais, enquanto que as segundas são as leis específicas ou
 parti cul ares.
Por exemplo, a lei da dependência das propriedades dos
elementos químicos, em relação à carga do núcleo atômico, que
é aplicada a todos os elementos químicos, é geral em relação à
lei do deslocamento de Soddy-Fajans, que concerne unicamente
aos elementos radioativos.
O conceito de lei geral e, em conseqüência, o de lei par-
ticular são relativos. Uma mesma lei, em diferentes condições,
 pode ser geral ou particular. Com relação à lei que é con-
cernente a um grande círculo de fenômenos, esta será particular,
e com relação à lei que age em um círculo mais restrito, esta
será geral. Por exemplo, a lei do valor , com relação à lei da
correspondência do caráter das relações de produção ao nível
de desenvol vimento das forç as produti vas, é particu lar, pelo
fato de que ela não age em todas as sociedades, como a pri-
meira, mas apenas onde existe uma pro duç ão mercantil. Mas,
em relação à lei da mais valia, ela é geral, pelo fato de que
essa última manifesta-se em um círculo mais restrito de fenô-
menos: a ação da lei da mais valia está ligada não a toda a
 prod uç ão merca ntil, mas somente à pr od ução mercantil capita-
lista.
Ao lado dessas leis que, em função de relações concretas,
 podem agir como gerais ou como par ticul are s, há outras leis
que, sob qual quer rela ção, são gerais. Essas leis são chamada s
universais. E são própr ias a todo s os domínios da realida de.
Em relação a elas, todas as outras leis são particulares, pelo
fato de que elas só estão ligadas a alguns domínios da realidade.
As leis universais são estudadas pela Filosofia. E as leis
ligadas a essa ou àquela forma de movimento, de matéria, são
estudadas pelas ciências particulares.

.256
 

Como agem as leis particulares e as leis gerais? As leis


gerais podem agir de forma autônoma e manifestar-se por meio
das leis particulares quando tanto umas, quanto as outras são
concernentes às mesma s ligações (rel açõ es). Qua ndo as leis
gerais e particulares concernem a ligações diferentes (relações),
elas agem e existem lado a lado.
Tomemos como exemplo a lei do deslocamento de Soddy-
Faian s. Segundo essa lei, um átomo de um elemento radio ativo ,
submetido a uma desagregação, sofre as seguintes transforma-
ções: pela emisssão de uma partícula alfa, a carga do núcleo
do elemento inicial diminui de duas unidades . Em conseqüê n-
cia, o elemento é deslocado duas colunas à esquerda, no quadro
 periódico dos eleme ntos, em rel ação ao elemento inicial. Com
a emissão de uma partícula beta, aparece um novo elemento,
que é deslocado de uma coluna à direita, em relação ao elemento
inicial, de acordo com o aumento da carga do núcleo e em
conseqüência do aumento de uma unidade no número atômico.
Essa lei, sendo geral, existe mediante as leis esoecíficas, seu
conteú do constitui apen as um momen to ou um aspecto do
conteúdo das leis específicas. Por exemplo, o rádio, qu and o
desagrega-se, tra nsfo rma- se em radôni o. É uma lei específi ca
 para o rádio. Ela fixa a transformação do rádio em ra dôni o.
Mas um dos momentos dessa transformação é o deslocamento
de duas colunas à esquer da no quad ro periódico. Esse momen-
to, o deslocamento de duas colunas à esquerda, é repetido por
todos os outros elementos radioativos, quando da emissão de
uma partícul a alfa pelos núcleos de seus átomos. Out ros mo-
mentos, como, por exemplo, a transformação, quando da desa-
gregação alfa, do rádio precisamente em radônio, e não em
um outro elemento químico qualquer, não se repetem entre
todos os outros elementos radioativos, eles são próprios unica-
mente aos átom os do rádio. O urânio nos forn ece um exemplo
análogo. Quando da desagregação alfa, o urânio transforma -
se em tório que se encontra, por sua vez, duas colunas mais à
esquerda, no quadro periódico, isto é, o tório possui uma carga
atômica duas unidades inferior à do urânio. A transf ormaçã o
em tório é uma lei válida unicamente para o urânio, mas, na
qualidade de momento no conteúdo dessa lei, encontramos o
deslocamento de duas colunas à esquerda, que é comum a todos
os elementos radioativos.

.257
 

Essa manifestação da lei geral por meio das leis específicas


não se deve ao acaso: ela é concernente à mesma ligação da
mesma relação. Out ro exempl o: a lei geral da constância da
composição química age por meio de leis particulares que in-
dicam quais os elementos e em qual correlação constituem essas
ou aquelas associações (combina ções ). Isso se produz porque
a primeira e as segundas concernem às mesmas ligações, às
mesmas relações.
Descobrimos também outra coisa na correlação da lei geral
de Mariotte-Boyle, concernente a todos os gases ideais e que
indica que, para uma massa dada, à temperatura constante, a
 pressão do gás é inversamente proporcional a seu volume, e
descobrimos também que a lei particular de Dalton, que se
relaciona não a todos os gases ideais, mas unicamente àqueles
que estão presentes na mistura com outros gases ideais, deter-
mina a ligação entre a pressão particular do gás constituinte
dessa mistura. Essa s duas leis existem lado a lado, mas seu
conteúdo absolutamente não coincide.
Aqui, as leis gerais e particulares são concernentes às dife-
rentes relações e ligações. Se a prime ira lei, a de Mari otte-
Boyle, caracteriza a correlação entre a pressão e o volume do
gás em condições determinadas, a segunda, a de Dalton, define
a correlação entre a pres são geral da mist ura e a pr essão
 particular dos diferen tes gases que constitu em essa mistura.
Encontramos uma situação análoga a essa na correlação
da lei da correspondência do caráter das relações de produção
com o nível do desenvolvimento das forças produtivas (lei geral)
e a lei fundamental econômica do socialismo que exige a sa-
tisfação máxim a das necessi dades materi ais e culturais dos
homens, graças ao desenvo lvimen to da pro duç ão socialista,
 baseada em um a técnica alta ment e des env olv ida (lei pa rt ic ul ar ).
A primeira caracteriza o laço entre o nível de desenvolvimento
das forças produtivas e as relações de produção, e a segunda,
o laço entre o crescimento contínuo da produção e as necessi-
dades dos homen s. O conteúdo da primeir a lei indica a neces-
sidade de mudar as relações de produção na medida em que
se processa o desenvolvimento das forças produtivas, o conteúdo
da segunda indica a finalidade da produção e os meios de
atingi-la. No que concerne às diferent es relações e ligações,
essas leis não podem manifestar-se uma por meio da outra e
agem de forma totalmente autônoma, uma ao lado da outra.

.258
 

Embora autônomas, não estão isoladas, mas, pelo contrário,


estão organicamente ligadas; essa interdependência distingue-se,
entretanto, radicalmente da manifestação de algumas leis por
meio de outras.
A correlação que examinamos aqui, entre leis gerais e
específicas, decorre das leis universais do desenvolvimento da
matér ia. No proce sso do desenvol vimento realiza-se a neg açã o
de algumas for maç ões materia is e o aparecim ento de outr as
que representam um grau mais elevado. Toda forma ção ma-
terial de um estágio mais elevado de desenvolvimento inclui,
sob uma forma anulada (transformada), o que era próprio à
formação de um estágio inferior de desenvolvimento, isto é,
retém tudo o que era positivo, tudo o que foi obtido pela ma-
téria em sua evoluç ão anterior. Mas, ao lado disso, ent re as
formações materiais de um estágio mais elevado de evolução,
aparecem novas propriedades específicas que provêm do apa-
recimen to de novo s modo s de inter ação, de ligações e de
relações novas. Por exemplo, quando da passagem do átomo
à molécula, esta última, retendo tudo o que era condicionado
 pela interação das partículas "elementares", qu e const ituem
esse átomo, adquire novas propriedades específicas, condicio-
nadas pelas novas relações, pelo novo modo de interação —
interação dos átomos entre si. Quand o da passagem das
formas de vida não celular para os organismos celulares, estes
últimos conservam algumas relações e ligações próprias aos
 pri mei ros e, ao mesm o tempo, fo rm am um novo sis tem a de
ligações e de relaç ões. A mesm a coisa acontece qua ndo da
 passag em, na socie dad e, de um a fo rm ação econô mic a a ou tra.
Mas, pelo fato de que, quando da passagem da matéria
de um estágio de desenvolvimento a outro, relações e ligações
novas aparecem nas novas formações materiais, ao lado das
antigas leis que agiam nas formações materiais dos estágios
inferiores de desenvolvimento, leis específicas novas também
entram em jogo, com o nascimento de novas ligações e relações
específicas. Assim, na moléc ula, ao lado das leis que regiam
a relação das partículas "elementares", que constituíam os
átomos, começam a agir novas leis que regem a relação dos
átomos . Na soci edade socialista, ao lado de certas leis pró pri as
às formações precedentes (leis da correspondência das relações
de produção, no nível do desenvolvimento das forças produti-
vas, leis da produção em expansão etc.), começam a agir novas

.259
 

leis (lei fundamental do socialismo, lei da distribuição social,


segundo o tra bal ho etc.). Essas novas leis são específicas em
relação às antigas leis, que passaram para as novas formações
materiais com as antigas relações e ligações que sobreviveram.
As antigas leis são gerais, pelo fato de que as primeiras agem
unicamente nas formações materiais que representam o grau
superior dado do desenvolvimento, enquanto que as segundas
agem, além disso, nas formações materiais de todos os estágios
inferiores do desenvolvimento.
Sendo específicas, essas novas leis não podem ser a forma
de manifestação das leis antigas, porque regem relações quali-
tativamente novas, que refletem o novo grau, mais elevado de
desenvolvimento de uma classe dada de fenômenos.
Consideramos, aqui, a relação das leis gerais e específicas
estudada s pelas ciências particul ares. Mas o que acontece na
correlação das leis da dialética e das leis das ciências particula-
res? As leis da dialética são universais e só se manifestam por
meio de outras leis que são particulares em relação a elas.
Por exemplo, a lei da passagem das m udan ças quantitativas
 para as quali tativas nã o se manifesta fo ra das leis par ticul ares,
concretas, da correlação das mudanças qualitativas e quantitati-
vas, próprias às formas concretas do movimento da matéria e
aos fen ômen os concre tos, mas age somente por meio deles. A
lei da unidade e da luta dos contrários comporta-se de forma
análoga. Agi ndo em cada fenôm eno concreto, ela manifesta-
se por meio das leis gerais e específicas que caracterizam a uni-
dade e a luta dos aspectos opostos desse fen ôme no. E o
mesmo acontece com outras leis gerais que a filosofia marxista
estuda. As leis da dialética manifestam-se por meio das leis
 particulare s e específicas e estão organicamente ligad as com
todo seu conteúdo, mas elas têm, entretanto, seu conteúdo
 particu lar, que permite que se diga que elas são leis autônomas.
Seu c onte údo parti cula r é precisam ente o que se repete em
todas as leis e processos particulares corre spond entes. O que
é específico, particular para cada domínio concreto em que se
manifesta essa ou aquela lei da dialética, não entra no conteúdo
da lei universal.
Analisando a lei da negação da negação, Engels escreveu
que: " ( . . . ) Eu não digo absolutamente nada do processo de
desenvolvimento  particular   seguido, por exemplo, pelo grão de
cevada, desde a germinação até o enfraquecimento da planta

.260
 

que traz o fruto, quando digo que ele é a negação da negação.


Com efeito... o cálculo diferencial é igualmente negação da
ne ga çã o. .. Se eu disser de todos esses processos que eles são
a negação da negação, estou entendendo-os todos conjunta-
mente, sob essa única lei do movimento e, por esse fato, não
levo precisamente em conta as particularidades de cada processo
especial, tomado à parte" . O particular (espec ífico), o que
1

caracteriza esse ou aquele processo concreto, constitui precisa-


mente o conteúdo fundamental das leis específicas, particulares.
É exatamente por isso que o conhecimento dessa ou daquela
lei da dialética, é insuficiente para orient ar esse ou aquele
 proce sso concreto. É preciso, antes de tudo, conhecer as leis
específicas, particulares, que regem o processo concreto dado.
Assim, as leis da dialética, sendo leis universais, agem
em todas as esferas do movimento da matéria e têm seu con-
teúdo particular, que permite distingui-las das outras leis,
menos gerais. Entr eta nto , elas não agem de forma autônoma ,
mas somente por meio de outras leis que são, em relação a
elas, leis específicas.
Aqui, podemos encontrar a mesma lógica: as leis gerais
dadas manifestam-se por meio de outras, específicas, somente
 porq ue elas são con cernent es às mesmas rel ações e ligações.
Se as leis da dialética existem e se manifestam unicamente
 po r meio de leis específicas estuda das pelas ciências con cretas ,
o método geral de conhecimento e de ação elaborado a partir
delas deve ser aplicado, em cada caso concreto, de forma par-
ticular e somente por meio de leis específicas que estão a seu
serviço nos fenômenos estudados.
O método elaborado a partir das leis gerais descobertas
 pelas ciências concret as só pode ser apl icado ao conhecimento
de fenô meno s nos quais essas leis gerais agem. Por exemplo,
o método de conhecimento, elaborado com base na lei geral
(para todas as formações econômicas e sociais) da correspon-
dência do caráter das relações de produção e do nível de desen-
volvimento das forças produtivas, ou com base na lei do papel
determinante da base econômica em relação à superestrutura,
não pode ser aplicado ao conhecimento das leis do desenvol-
vimento e do funcionamento da língua, porque essas leis gerais

"F. Engels,  Anti-Dühring,  p. 171-2.

.261
 

nã o <se mani fes tam por meio dessas últi mas. Mas esse método
é sempre aplicável, por exemplo, ao conhecimento das leis
específicas da interação da base e da superestrutura na socie-
dade socialista, ou ao das leis específicas da correspondência
das relações de produção socialistas com as forças produtivas,
que existem na sociedade socialista, e que se manifestam, é
claro, por meio das leis específicas dessa formação.

.262
 

XI. O CONTEÚDO E A FORMA

1. OS CONCE ITOS
DE CONTEÚDO E DE FORMA

Os conceitos de "conteúdo" e de "forma" são definidos de


maneira diferente.
Certos autores consideram que o conteúdo, enquanto cate-
goria filosófica, designa o conjunto dos elementos, dos aspectos
que constituem uma coisa dada, um objeto dado . 1

Entretanto, vários outros autores opõem-se a essa defini-


ção de conteú do. Eles a consi deram como não-dial ética. E,
em nossa opinião, eles têm râzão. Com efeito, ela per de de
vista a atividade do conteúdo que é representado, aqui, como
inerte, em estado de repou so, desp rovi do de vitalidade. O
conteúdo não pode ser o simples conjunto dos elementos ou
aspectos que constituem a coisa, ele é um processo no qual
todos esses elementos e aspectos encontram-se constantemente
em interação, em movimento, mudam-se um no outro e mani-
festam às vezes uma, às vezes outra de suas propriedades.
A concepção de conteúdo como aspecto principal, funda-
mento da coisa, definindo o determinismo qualitativo e mani-
festando-se em todas as suas propriedades, é muito difundidas.
Definir o conteúdo como fundamento das coisas significa
identifi cá-lo com a essência, mas estes são coisas diferentes. A
essência é o que é estável, o que permanece na coisa, enquanto

O materialismo dialético e as ciências naturais contemporâneas,


 x

Mos cou , 1957, p. 340. Origin al em russ o.


2
F. T. Zunnurov,  Conteúdo e forma,  Vol gog rad o, 1957, p. 3. Ori-
ginal em russo.

.263
 

i o conteúdo é o que se desloca, o que é instável, em movimento


; perman ente, o que se reno va; a essência represe nta o geral na
\ coisa, no objeto, o conteúd o represen ta sempre o individual e
; inclui em si mesmo tanto o geral, co mo o singular; a essência
 j é o necessário na coisa, o cont eú do é a unidade do necessário
 j e do contingente.
Identificando o conteúdo com o elemento principal, fun-
damental da coisa, esses autores entendem, pela forma, a estru-
tura interna do conteúdo. Mas se o conteúdo é o fundamental
e o principal, na coisa, e sua forma é a estrutura interna do
conteúdo, então: primeiro, na coisa, no objeto, apenas o prin-
cipal, o fundam ental devem ter um a for ma, um conteúdo;
quanto ao acessório, ao não-fundamental, este deverá represen-
tar alguma coisa de informe, de amorfo, de indeterminado, vazio
de conteúd o; segundo, além do conteúdo e da form a, deve
haver na coisa algo que não seja nem o conteúdo, nem a forma.
Tanto o primeiro como o segundo pontos contradizem o estado
real das coisas. No objet o, tud o — o fund amen tal e o não-
fundamental, o principal e o acessório — tem seu conteúdo
e sua forma; sua estrutura; no objeto, não há aspectos, momen-
tos ou propriedades que não se relacionem nem ao conteúdo,
nem à forma. Mediant e as categorias de "conte údo" e de
"forma", o homem desdobra a coisa em dois aspectos contrá-
rios, organicamente ligados e que se mudam um no outro e
incluem o ser da coisa.
Definindo o conteúdo, salientamos, às vezes, que ele re-
 presenta o domínio do interior na coisa, que ele é o co nj un to
dos processos internos das propriedades.
Se o conteúdo constitui o domínio do interior que é,
vejamos bem, oposto à forma, a forma não pode ser a estrutura
interna do conteú do, ela deve ser sua expressão exterior. A
essas conclusões chegam inevitavelmente os autores das defini-
ções consideradas.
Refletir o interior não é a função específica da categoria
de "conteúdo", assim como refletir o exterior não é a função
específica da categoria de "f or ma". As categorias de "ext erio r"
e de "interior" são o reflexo da especificidade do exterior e
do interior . Além disso, o inter ior, enquan to necessário na
coisa e constituindo sua natureza, e o exterior, na qualidade
de manif estaçã o dessa mesm a nat urez a e desse necessário,

.264
 

mediante uma grande quantidade de desvios contingentes,


refletem-se nas categorias de "essência" e de "fenômeno".
A especificidade, para a categoria de "conteúdo", é a de
refletir o conj unto dos processo s própri os à coisa. Uma parte
dentre eles é concernente ao domínio interior e a outra parte
ao domínio exterior. Por exemplo, no conteúd o desse ou da-
quele organismo vivo entram não apenas os processos que se
desenrolam no interior do organismo, mas também todo o
comportamento do organismo, todas as ações que ele produz
em respos ta aos fato res exteriores correspo ndentes. O cont eúdo
do homem, na qualidade de ser social, será constituído não
somente pelos processos que se desenvolvem nele, como sujeito,
mas também por aqueles (e essencialmente por estes) que estão
ligados à ação finalista sobre o mundo exterior e à sua inte-
raçã o com outr os home ns. O conteúdo desse ou daquele objeto
é formado não somente pelas interações que existem entre os
elementos e os aspectos que o constituem, mas também pelas
ações que ele exerce sobre os outros objetos ao seu redor.
O específico para a categoria de "forma" é refletir o laço
entre os elementos, os momentos que constituem o conteúdo da
estrutura do conteúdo e não da manifestação, não da expressão
do interior no exterio r. Sendo uma estrutura do conteúdo que
inclui tanto os processos internos, como os externos da coisa,
do objeto, a forma penetra tanto no domínio interior, como no
domínio exterior, tanto na essência, como no fenômeno.

2 CRITICA
DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFÍSICAS
DE CONTEÜDO E DE FORMA

 Na his tória da Filosofia, alguns autores separam met afi si


camente o conteúdo e a forma e tentam fundamentar sua exis-
tência como autônoma e independente. Foi exatamente assim
que Aristóteles apresentou a correlação do conteúdo e da forma.
Segundo sua doutrina, o conteúdo e a forma existem primeira
mente em si, inde pend ente mente um do outro. E é apenas
depois, quando da formação de uma coisa determinada, que
eles se enco ntram em corre lação orgânica. Assim, um cont eúdo
 puro, des provi do de qualquer fo rm a será, para Ari stótel es, a

.265
 

"matéria primeira", a matéria que se encontra na base de todas


as coisas existentes. Ao mes mo tempo, Aristót eles prop õe uma
forma pura — Deus — que para ele desempenha o papel de
forma de todas as formas.
A separação entre a forma e o conteúdo é, na obra de
Aristóteles, a conseqüê ncia inevitáve l da tendê ncia idealista
que encontramos em suas concepções filosóficas e de uma
aprox imaçã o metafísica que coexiste em sua doutri na com
alguns elementos isolados da dialética.
O método idealista, que observamos na obra de Aristóte-
les, da resolução do problema da correlação do conteúdo e da
forma, foi desenvolvido na filosofia burguesa contemporânea.
Certos autores e sábios contemporâneos levaram ao extremo a
separação do conteúdo e da form a. Nã o somente eles reco-
nhecem a existência de uma forma pura, mas declaram-na,
também, a única forma do ser. Reconh ecer a existência real
do conteúdo é, na opinião deles, uma concessão ao materia-
lismo, porque esse reconhecimento pode conduzir ao reconhe-
cimento da existência da matéria.
Essa é a idéia que é defendida, por exemplo, pelo físico
contemporâneo Erwin Schrõdinger. Quan do ele "cria" sua
concepção idealista do mundo, que nega a existência objetiva
da matéria, do substrato material, ele declara que a forma não
 pode ser ind issol uvelm ent e ligada ao conteúdo, que ela pode
existir sem o conteúdo, no estado puro, que o conteúdo absolu-
tamente não existe, que as partículas "elementare s" que se
encontram à base do mund o repres entam uma form a pura. Ele
escreveu que: "Quando ouvimos pronunciar as palavras "figura"
ou "forma", o hábito da linguagem cotidiana nos induz ao
erro e parece exigir que seja a figura ou a forma de alguma
coisa, que haja um substrato materia l a essa forma . No plano
científico, essa atitude nos faz reaproximar de Aristóteles, de
suas  causa materialis  e  causa jormális.  Mas quando chegamos
às partículas elementares, que constituem a matéria, verifica-
mos que não há nenhum ponto de vista sobre elas, enquanto
formad oras da própr ia matéria. Elas são, e isso desde sempre,
uma forma pura, nada além de uma forma, o que nos remete
cada vez mais a um estudo aprofundado dessa forma e não ao
estudo de uma partícula individual da matéria" . 3

S
E. Schrõdinger,  Science and humanism. Physics in our time,  Cam-
 brid ge, 1952, p. 21.

.266
 

Todos esses raciocí nios contradizem a reali dade. No


mund o real não existe nenh uma form a pura . Toda forma, todo
sistema relativamente estável de ligações é um sistema de ligação
desses ou daqueles elementos da realidade objetiva, uma estru-
tura relativamente estável dos processos materiais. Em outros
termos, toda figura é organicamente ligada a um certo conteúdo,
do qual ela é a estrutura.
Grõbner, professor da Universidade de Innsbruk, apre-
senta um ponto de vista funda menta lment e idealista sobre a
relação do conteúdo e da form a. Caracterizando os fenôme-
nos observados no mundo, ele afirma que eles são considerados
"como estruturas" de dados que são organizados segundo certas
leis matem ática s e geomét ricas. Assim, o "elét ron não é, na
realidade, nada além do que uma estrutura, nascida dos resul-
tados das medi da s. .. " . 4

Mas se as partículas "elementares" não representam nada


mais do que forma s puras, as "estru turas" são construídas
 pelos home ns segundo as leis matemáticas, e se na realidade
objetiva tudo é constituído pelas partículas "elementares", então
a matéria, enquanto reali dade objetiva, desaparece. A cons-
ciência, que cria todas as estruturas lógicas possíveis — as
"formas puras" — e que as transfere para o mundo dos fenô-
menos observados, torna-se determinante.
O carát er ideali sta desses raciocí nios é evidente. Nã o há
nenhuma "forma" não material na realidade objetiva e nem
 po de haver. To da for ma exi stente no mu nd o exterior é a es-
trutu ra dessa ou daquela form ação material. Quanto às estru-
turas elaboradas e expressas por fórmulas matemáticas e lógi-
cas, essas também não são formas puras, mas encerram um
conteúdo determinado que reflete direta ou indiretamente a
correlação entre os elementos correspondentes do mundo exte-
rior. Estan do, de uma maneira ou de outra, ligadas às form a-
ções materiais, essas estruturas não somente não podem ser
introduzidas no mundo dos fenômenos, determiná-los e orde-
ná-los, mas ainda, elas próprias, são deduzidas do mun do
exterior e são determinadas por ligações e relações das forma-
ções materiais, pelas estruturas que lhes são próprias.
Assim, os raciocínios sobre a existência de formas puras
contradizem a realidade.

4
W. Grõbner,  Scientia,  ano 51, 1957, n. 1, série 6, p. 4.

.267
 

3. LEIS DA COR REL AÇÃ O


DO CONTEÚDO
E DA FORMA

 Na realidade, to da fo rm a está organicamente lig ada ao


conteúdo, é uma forma de ligação dos processos que o consti-
tuem. A forma e o conteúdo estando em correlação orgânica,
dependem um do outro, e essa dependência não é equivalente.
O papel determinante nas relações conteúdo-forma é desem-
 penh ad o pelo conteúdo.' El e "determina a fo rm a e suas mu-
danças àcaríeía~m "mudanç as correspon dentes da for ma. Por
sua vez, a forma reage sobre o conteúdo, contribui para seu
desenvolvimento ou o refreia.
Pelo fato de que o conteúdo representa o conjunto dos
 processos e das mudanç as que ele acarreta, próprias a uma
formação dada, ele está ligado ao movimento absoluto, que
é uma característica de toda forma ção material. A form a está
ligada ao repouso relativo, porque ela é um sistema relativa-
mente estável de ligações de momentos (elementos) do con-
teúdo. Esta ndo ligado a um movimento absoluto, o conteúdo
muda constantemente, enquanto que a forma, que deve seu
aparecimento e sua existência a um repouso relativo, perma-
nece imutável e estável durante um tempo mais ou menos longo.
Inicialmente, as mudanças que se produzem no conteúdo
não influem no sistema relativamente estável das ligações da
forma; elas instalam-se completamente em seu quadro e, por
esse fato, o cont eúdo evolui ráp ida e imperi osamen te. Mas há
um ponto em que as mudanças no conteúdo atingem um nível
em que os quadros desse sistema de correlação tornam-se muito
estreitos. O sistema relat ivamente estável começa a entravar
o desenvol vimento do conteúdo, a reprimi -lo. Nesse estágio
de desenvolvimento do conteúdo, a forma deixa, de corresponder
ao conteúdo, contrariamente ao primeiro estágio, em que ela
correspondia-lhe e dava-lhe toda possibilidade de desenvolvi-
mento. A não-cor respond ência da form a com o novo conteúdo,
à medida que esse se desenvolve, torna-se sempre mais aguda
e finalmente um conflito explode entre o conteúdo e a forma:
o novo conteúdo rejeita a antiga forma, destrói o sistema rela-
tivamente estável de movimento e, baseado em um novo sistema
relativamente estável de movimento (isto é, da forma), trans-
forma-se, passando a um outro nível qualitativo.

.268
 

Inicialmente, a nova forma corresponde a seu conteúdo,


dá-lhe toda possibilidade de se expandir, en tão o- conteúdo
começa a desenvolv er-se impetuos amente. Mas, no curso de
seu desenvolvimento, chega a um estágio em que a forma co-
meça novamente a comprimi-lo, a refrear seu desenvolvimento,
donde o aparecimento de uma discordância entre a forma e o
conteú do que, em decor rência do desenvolvimento, leva à
rejeição da antiga forma, inserindo-se nessa nova forma que,
em decorrência do desenvolvimento, conhece a mesma sorte.
E assim sucessivamente até o infinito.
A matéria desenvolve-se por meio da luta do conteúdo e
da forma, da rejeição da antiga forma e da criação de uma
forma nova.
Quando, na literatura, falamos da rejeição e da destruição
da antiga forma e da criação de uma forma nova, temos, em
geral, em vista as mudanças na forma que a adaptam ao desen-
volvimento do conteúdo no quadro da antiga forma . O resul-
tado disso é que o conteúdo da nova formação material e do
novo estado qualitativo, surgido em decorrência da substituição
da antiga forma pela nova, é criado inteiramente no seio da
antiga formação material ou do antigo estado qualitativo, e o
salto em decorrência do qual foi quebrada a antiga forma e
criada a nova não representa uma modificação qualitativa do
conteúdo, mas unicamente a aquisição, para ele, de uma nova
for ma. Tudo isso contra diz o estado real das coisas. Na reali-
dade, o processo da destruição da antiga forma é um processo
de transfor mação qualitativa radical do conteúdo. Quand o
dessa destruição, certas interações e processos são eliminados,
enquanto outros aparecem e outros ainda mudam de forma.
Por exemplo, quando é quebrado o sistema de ligação ca-
racterístico das moléculas do octano e das moléculas do oxigê-
nio, dura nte a c ombustão da essência, e que se for ma um
sistema de ligações próprio às moléculas do gás carbônico e
da água, em decorrência dessa reação química, produz-se não
somente uma mudança qualitativa do conteúdo, uma transfor-
mação não somente da estrutura das moléculas e das substân-
cias que participam da reação, mas igualmente das próprias
substância s. As moléculas de octano, quan do da combu stão
da essência, são submetidas ao choque das moléculas de oxigê-
nio e são destruí das ao mesmo tempo que as últim as. As
forças que unem, nas moléculas da essência, um ou dois átomos

.269
 

de carbono e um átomo de hidrogênio, assim como as forças


que unem dois átomos de oxigênio em um a moléc ula de
oxigênio, não podem opôr-se, como se diz na química, à afini-
dade mais forte entre os átomos de oxigênio, por um lado e
os átomos de carb ono e de hidrogênio, por outro. Por isso,
as antigas interações dos átomos das moléculas (conteúdo) são
destruídas e os átomos reagrupam-se e criam novas formações
estáveis com um novo sistema relativamente estável de ligações
(forma) e um novo conteúdo, ou seja, moléculas de gás car-
 bônico e de água. As subst ância s que aparecem em decorrênc ia
dessas mudanças possuem, assim, não somente as novas estru-
turas (forma), mas igualmente um conteúdo novo, qualitati-
vamente diferente daquele das substâncias iniciais.

4. PAR TE E TODO,
ELEMENTO E ESTRUTURA
Quando analisamos a coisa do ponto de vista de seu
conteúdo, este aparece como um todo, como o conju nto de
todos os processos que lhe são próprios e que incluem um
sistema relativamente estável de ligações, no quadro do qual
esses proces sos se desenvol vem. É exat amen te nessa for ma
global, nessa totalidade, que o conteúdo se relaciona com a
forma. Mas, à medida que se dá o desenvolvimento do conhe-
cimento do obje to, a característica global de seu cont eúdo
torna-se insuficiente e um estudo mais detalhado dos diferentes
momentos do conteúdo, assim como dos processos e relações
que o constituem, torna-se necessário. O conteúdo decompõe-
se em partes qualitativamente isoladas, e a análise dessas partes
conduz à necessidade de colocar em evidência as leis de sua
correlação m útu a com o todo. Essas leis da correlação das
 partes iso ladas, com o to do que as contém, refletem-se nas
categorias de "todo" e de "parte"; as leis da correlação das
 partes ent re elas, no qu ad ro do todo, refletem-se na s cat egorias
de "elementos" e de "estrutura".
A parte é o objeto (processo, fenômen o, relaç ão) que
entra na composição de um outro objeto (processo, fenômeno,
relação) e que se manifesta na qualidade de momento de seu
conteúdo. O tod o represent a o objeto (processo e fen ôme no) ,
incluindo em si, na qualidade de parte constitutiva, outros obje-
tos organicamente ligados entre eles (fenômenos, processos,

.270
 

relações) e possuindo propriedades que não se reduzem às


 propriedades das part es que o constituem.
Cada formação material representa um todo constituído
de partes bem determinadas. Por exemplo, a molécula da
água, enquanto todo, é constituída por um átomo de oxigênio
e por dois áto mos de hidrogên io. Na moléc ula da água, ao
redor do núcleo de oxigênio, gravitam dez elétrons, sendo que
a primeira camada conta com dois elétrons e a segunda camada
com oito. De nt re esses oito elétrons, quatro gravita m unica-
mente ao redor do núcleo do átomo do oxigênio e os quatro
outros são comuns: dois com um átomo de hidrogênio,
dois com o outro; eles gravitam não somente ao redor do
núcleo do átomo de hidrogênio. Em decorrência disso,
na molécula da água, os átomos de oxigênio e de hidro-
gênio estão organicamente ligados e formam um todo úni-
co que possui uma nova qualidade distinta daquelas do
oxigênio e do hidro gênio . Cada átomo e cada elétron que
entra na molécula da água, sendo uma parte do todo, não se
 perde nesse to do , nã o se fu nd e com sua qualidade, mas conse rva
seu determinismo qualitativo específico, possui uma certa
autonomia e independência, o que lhe permite ocupar um
lugar determinado no todo e desempenhar um papel bem defi-
nido. A molécula representa, portanto , um todo desmem brado
complexo que inclui certas partes, tendo seu próprio conteúdo
específico. Mas seu conte údo específico, seu pap el específico
no todo é determinado não somente pela sua natureza especí-
fica, mas igual mente pela nature za geral do todo. É por isso
que eles não se manifestam no papel específico de forma inde-
 pendente, mas como uma part e do todo. Po r ou tr o lado, a
natur eza geral do todo , no caso da moléc ula, depe nde da
natureza específica de suas partes constitutivas e, em particular,
dos átomos.
Por isso, o desmembramento da formação material em
 partes é um a condição necess ári a de sua existência en quan to
todo, possuindo uma natureza e uma essência próprias, enquanto
que a correlação de suas partes com o todo é uma condição
necessária de sua existência enquanto partes, tendo uma essência
específica.
Assim, cada forma ção material manifesta-se ao mesmo
tempo como alguma coisa de dividido em partes e como um
todo organicamente ligado.

.271
 

A correlação do todo com a parte, que se exprime em


 particular na dependê ncia da qualidade do to do da naturez a
específica de suas partes constitutivas, e na dependência das
qualidades das partes da natureza específica do todo, é a con-
seqüência de uma certa correlação das partes, em seu conjunto,
que form a a estrutura do todo. É exatamente a correlação
desses ou daqueles elementos que condiciona o aparecimento
do tod o e sua tran sfor maçã o em p artes constit utivas deste
último . Sem estru tura não existe todo . Ela é a condição
 primordial pa ra a existência do to do.
O conceito de "estrutura" designa a forma de união e de
correlação dos elementos do todo. "Na categoria de estrutura,
escreve Igor Hrusovsky, evidenciando o conteúdo do conceito,
exprimimos, sob uma forma resumida, a unidade específica das
relações e das funções lógicas, as ligações causais e dialéticas
do objeto, a unidade de sua diferenciação interna"5.
O conceito de "elementos" designa os componentes do
todo que se encontram entre eles em uma certa correlação e
interdependência.
A correlação desses ou daqueles objetos (processos, fenô-
menos, relações), que forma o todo e torna-se sua estrutura,
transforma-os simultaneamente em partes do todo e em ele-
mentos da estrutura correspondente. Entr etant o, os conceitos
de "elem ent o" e de "pa rte " não são idênti cos. E isso já foi
observado por vários autores . Mas, em nossa opinião, os
6

autores não indicam toda a diferença real que existe entre esses
conceit os. L. Valt, por exemplo, vê essa dife rença no fato de
que o conceito de "parte" designa os objetos, os fenômenos,
os processos que constituem esse ou aquele todo, seja quando
eles se encontram unidos, seja quando estão em um estágio
anter ior a essa união . O conceito de "el eme nto " designa,
segundo ele, apenas os objetos, fenômenos e processos que se
encontram em correlação correspondente, formando um todo,
isto é no qua dro de uma estrutu ra dada . Essa ou aquela

5
I. Hrusovsky, Die Kategori e der Strukt ur, in   Wissenschaft-liche
 Zeitschrift der Martin-Luther Universität,  1960, t. 9, v. 2, p. 165.
6
G. A. Yugai,  A dialética da parte e do todo,  Alma-Ata, 1965,
 p. 93-4. Or ig in al em russo. L. O. Va lh t, Co rr el aç ão en tr e a es trut ura
e os elementos, in  Problemas de filosofia,  1963, v. 5, p. 45-6. Origina]
em russo.
 

 parte, seg und o Val t, torna-se elemento somente depois de sua


entrada em uma união determinada, que forma um todo, e
depois de uma certa mudança sob a influência dessa união:
antes disso, ela não é elemento, embora seja parte.
Dizer que esse ou aquele objeto (processo, fenômeno)
torna-se elemento somente depois de sua entrada em uma
ligação correspo ndent e que for ma um tod o é exato. Mas o que
não é exato é a concepção, segundo a qual, um objeto (pro-
cesso, fenômeno) já era parte antes de sua entrada nessa ligação,
nessa uniã o. Esse objet o tornou-se par te somente depois de
sua entrada na ligação dada, em decorrência da formação desse
todo . Antes desse todo, for a dele, o objet o não era parte .
É por isso que as noções de "elemento" e de "parte", nesse
caso, coincidem, já que elas designam objet os (fenô menos ,
 processos) que se encontram em correlação correspondente,
que formam um todo possuidor de sua especificidade qualita-
tiva e não se reduz às qualidades dos objetos que o constituem
(processos, fenômenos).
Também não podemos concordar com a afirmação, se-
gundo a qual o elemento distingue-se da parte, pelo fato de que
tudo o que faz o objeto, o que se relaciona com seus compo-
nentes, pode tornar-se elemento, enquanto que apenas os
componentes, nos quais reflete-se a especificidade do obieto na
qualidade de todo, podem tornar-se parte?. Cada elemento
que entra na estrutura correspondente exprime, de uma forma
ou de outra, a especificidade do todo, que possui essa estrutura.
Exprimir a especificidade do todo é, portanto, uma caracterís-
tica não apenas das partes, mas igualmente dos elementos.
Mas onde, então, está a diferença entre o elemento e a
 parte? Os elemen tos manifestam seu conteúdo específico na
relação com a estrutura, com um certo sistema de ligações que
se estabelece entre eles. Poss uindo uma certa autonomia e um
certo isolamento qualitativo, os elementos distinguem-se funda-
ment alme nte da correl ação na qual eles se encon tram. En-
quanto que o conteúdo específico das partes manifesta-se não
em sua relação com a ligação existente entre elas, mas em
sua relação com o todo, e é por isso que elas não podem ser

7
G. A. Yugai,  A dialética da parte e do todo,  p. 93. Original em
russo.

.273
 

opostas às ligações que constituem a estrutura do todo, pelo


fato de que essas ligações são, elas mesmas, partes do todo.
O conceito de "parte" é, portanto, mais extenso do que o de
"elemento". As partes do todo não são somente os elementos
que se encontram em uma certa correlação, mas as próprias
correlações entre os eleme ntos, isto é, a estru tura. No que
concerne ao conteúdo específico do conceito de "estrutura",
este é a designação do modo de ligação das partes (elementos)
no quad ro desse ou daqu ele sistema integral. É verd ade que,
nessa designação, o conceito de "estrutura" confunde-se com
o de "forma", mas esse fato é inevitável e absolutamente natu-
ral, porque apareceu com base no desenvolvimento do conceito
e representa sua concretização.
Sendo a concretização do conteúdo da categoria de "for-
ma", o conceito de "estrutura", entretanto, exprime não apenas
as leis da correlação do conteúdo e da forma quando ele se
manifesta em relação à categoria de "conteúdo", mas igual-
mente as leis da correlação dos elementos do conteúdo entre
eles, quando ele se manifesta em relação ao conceito de "elemen-
to". Essa última correlaçã o, em particular, caracteriza-se pelo
fato de que cada elemento, estando qualitativamente isolado,
 possuin do um a auto nomia relativa, uma independência relativa
no quadro do todo, depende essencialmente de outros elemen-
tos que constituem esse todo, do caráter de suas ligações com
eles. Essas ligações, em um certo grau, determinam seu lugar,
seu papel e sua importância no todo, além de suas caracterís-
ticas quantitativas e qualitativas.
Por outro lado, a mesma ligação entre os elementos de-
 pende de sua nature za, de suas carac ter íst ica s quali tat iva s e
quantitati vas. Po r exemp lo, as caracterí sticas qualitativas e
quantitativas do núcleon, elemento constitutivo do núcleo atô-
mico, estão estreitamente ligadas à natureza de toda uma série
de outras partículas "elementares", que entram no núcleo etc.
Por sua vez, as propriedades dessas outras partículas "elemen-
tares" dependem essencialmente dos núcleons. Por exemplo,
a transformação de um méson em próton e antipróton está
ligada à ação dos núcleons e dos antinúcleons, assim como ao
campo de forças existente ao redor dele, do qual os   quanta
são os núcleons. Por intermédio desse mesmo campo nucleô-
nico, a inte ração entre os próp rios mésons fica assegurada. O
fato de que o nêutron seja estável na qualidade de parte inte-

2.74
 

grante do núcleo atômico, enquanto que em estado livre ele


é extre mamen te instáve l e desagrega-se em um prót on, um
elétron e um neutrino, prova igualmente a dependência das
 propriedades do elemento da estrutura do todo, do qu al ele é um
componente.
A interdependência da estrutura e dos elementos foi intei-
ramente prov ada por V. Zveguintsev: "Ca da elemento da
estru tura, escreve ele, . . . esta ndo isolado da estru tura e sendo
considerado fora das ligações internas que existem nela, fica
 privado das qualidades que lhe são conferidas po r seu luga r
na estrutura dada, e é por isso que seu estudo isolado não
fornece uma justa represen tação de sua natureza real. Ent ran-
do na composição da estrutura, todo elemento adquire uma
'qualidade de estruturalidade'. . . " .
8

Assim, as propriedades dos elementos dependem da estru-


tura do todo que eles constituem e a estrutura desse todo
depende desses elementos, de sua natureza e de sua quantidade.
Em outros termos, os elementos que constituem esse ou aquele
objeto e a estrutura própria a esse objeto — o modo de ligação
dos elementos — encontram-se em uma interdependência ne-
cessária, em uma unidade dialética.
Todas essas leis que se refletem na categoria de "estrutura"
estão diretamente ligadas à categoria de "forma".

8
V. A. Zveguintsev,  Ensaios de linguística geral,  Moscou, 1962,
 p. 66. Or ig in al em russ o.

.275
 

XII. A ESSÊNCIA E O FENÔMENO

1. OS CONCEI TOS
DE ESSÊNCIA E DE FENÔMENO

À medida que explicamos, um após o outro, os processos


que constituem o conteúdo do objeto estudado, à medida que
colocamos em evidência os aspectos e as ligações necessários
que lhes são próprios, surge a necessidade de reagrupar esses
conhecimentos em um todo único, de os fundamentar em um
 princíp io úni co, de se representar todos os asp ect os e ligações
necessários em sua interdependência e sua correlação.
A resolução dessa tarefa leva à reprodução, na consciência,
da essência do fenômeno estudado, que representa precisamente
o conjunto de todos os aspectos e ligações necessários e internos
(leis), próprios do objeto, tomados em sua interdependência
natural. E o fenôm eno representa a manifest ação desses as-
 pecto s e ligações, na superfície, mediante um a gran de quan-
tidad e de desvios contingente s. Defi nind o a essência como o
conjunto das ligações e aspectos internos e o fenômeno como
a manifestação exterior da essência, isto é, como exterior,
devemos elucidar o conteúdo das categorias de "interior" e
de "exterior".
A designação do que está na coisa, do que é inseparável
dela, do que é, nela, necessário e específico para a categoria
de "int erio r". Se adot amos essa concep ção do interior, diri-
gido para o exterior, teremos, então, o que não é condicionado
 pela natureza interna da coisa, o que lhe é contingente.
Entretanto, ao lado dessa utilização dos termos "interior"
e "exterior", nós os vemos também ser utilizados para designar
o que é interior ou exterior espacialmente.

.276
 

Para caracterizar a essência enquanto interior, tanto uma


como a outra significação dessas categorias é válida, porque a
essência representa o interior, ao mesmo tempo, como cons-
tituinte da natureza da coisa, inseparável dela, como espacial-
mente interior, encontrando-se no interior da coisa e não em
sua superfície.
Salientando, com justa razão, que a essência constitui o
interior ou o aspecto interior — da coisa, certos autores con-
sideram que isso é um indício suficiente para a elucidação do
conteúdo da categoria estudada . Entret anto , isso não é exa-
1

tame nte assim. O aspecto interior da coisa não é somente a


essência, mas igualm ente a causa, a necessidade, a lei. Dizen do
apenas que a essência é o aspecto interior da coisa, não pode-
remos distingui-la dessas categorias. Certos autores, indic ando
que a essência é o aspecto interior da coisa, acrescentam que
ela é também o fundamento da coisa . 2

 Nã o podemos adm iti r a re dução da essência ao fu nd a-


mento da coisa. O fun dam ent o constitui uma par te da essência,
representa as ligações e os aspectos necessários e principais e
determinantes da coisa, enquanto que a essência inclui ainda
as ligações e os aspectos necessários não-fundamentais, não-
 princ ipais .
Certos autores, que se opõem à redução da essência ao
que é principal e determinante na coisa e, em particular, à lei
fundamental de funcionamento e de desenvolvimento do objeto,
definem a essência como o conjunto de todas as leis que agem
na coisa . Mas essa definição é igualmente insuficiente. Não
3

apenas as leis às quais estão subordinados seu funcionamento


e seu desenvolvimento relacionam-se à essência da coisa, mas
igualmente todos os aspectos próprios e necessários da coisa.
Embora haja divergências entre os filósofos na concepção
da essência, há uma quase unanimidade no que concerne à
concepção do fenôme no. O fenômeno é, habitualmente, defi-

1
0 . M. Chem anin , Possibilidade e realidade . Essência e fenôm eno,
in  Materialismo dialético,  Moscou, 1960, (Col.) Cad. 2, p. 46. Original
em russo.
2
S. T. Sebastianov, Conteúdo e forma, essência e fenômeno, in
 Problemas do materialismo dialético,  Voronej, 1958, (Col.) p. 138. Ori-
ginal em russo.
3
Coletânea de artigos sobre o materialismo dialético,  Moscou, 1959,
 p. 203 . Origin al em russ o.

.277
 

nido como o aspecto exterior , camb iant e do objet o e que


exprime sua essência. E isso está corre to. O fen ômen o é o
conjunto dos aspectos exteriores, das propriedades, e é uma
forma de manifestação da essência.

2. AS LEIS DE CORR ELAÇ ÃO


DA ESSÊNCIA E DO FENÔMENO

Embora sendo uma forma de expressão da essência, o


fenômeno não coincide com ela, mas dela distingue-se e chega
mesmo a deformá-la. A defo rmaç ão produz-se pelo fato de
que a essência do objeto manifesta-se mediante a interação
desse último com outros objetos que o rodeiam, que têm in-
fluência sobre o fenômeno, introduzem certas modificações em
seu conte údo e, exatamente po r isso, o enriquec em. Em de-
corrência disso, o fenômeno aparece como a síntese do que
vem da essência, do que é condicionado por ela e do que é
introduzido do exterior, do que é condicionado pela ação da
realidade que rodeia o objeto, isto é, de outros objetos que
lhe estão ligados.
Certos autores não levam em conta essa circunstância e
afirmam que nem todos os fenômenos deformam a essência,
e que há fenômenos que transmitem a essência assim como
ela êi.
Reconhecer a existência de fenômenos que não deformam
a essência pode conduzir a duvidar da universalidade da tese
do materialismo dialético sobre a não-coincidência do fenômeno
e da essência, sobre a diferença e a oposição entre a essência
e o fenômeno, e pode, inclusive, levar a afirmar que a essência
de alguns fenômenos pode ser conhecida por sua percepção
direta. Nã o é por acaso que esses autores, que reconh ecem
uma dessas teses, são obrigados, dessa ou daquela maneira, a
reconhecer a outra. Por exemplo, N. Vakht omin escreve que:
"Se um objeto dado é tal qual a essência, então é, nesse caso,
absolutamente natural que as sensações forneçam uma repre-
sentação exata do objeto" . E ainda : "Se os fenômenos de fo r 
5 :

 N . K. Va kh tom in ,  Sobre o papel das categorias de essência e fenô-


4

meno no conhecimento,  Mos cou , 1963, p. 52. Origi nal em russo .


 N . K. Va kh to mi n, op. cit., p. 52.
5

.278
 

mam a essência do objeto, as sensações fornecem uma falsa


representação deste; se os fenômenos não deformam a essência
do objeto, as sensações fornecem uma representação justa" . 6

O fenômeno não pode nunca ser "como a essência", já que


ele distingue-se sempre dela e, de uma forma ou de outra, a
deforma. É por isso que a percepção dos fenômenos não nos
fornece nunca um conhecimento verdadeiro da essência.
Pelo fato de que o conteúdo do fenômeno é definido não
somente pela essência — conjunto dos   aspectos  e das ligações
necessários intern os da coisa — mas igualmente pelas cond i-
ções exteriores de sua existência, por sua interação com outras
coisas — e essas últimas estão em constante mudança — o
conteúdo dos fenômenos deve ser flutuante, cambiante, en-
quanto que a essência representa alguma coisa de estável, que
se conserva em toda s as mudança s. Por exemplo, os preços
dessa ou daquela mercadoria mudam constantemente, enquanto
que seu valor perm anec e imutável durante um certo temp o. E
o mesmo acontece com as condições de vida dos homens e, em
 particular, com as condições de vida dos operá rios na sociedade
capitalista. Elas variam de um operário a outro, de um perío do
(ou fase) do desenvolvimento da produção a outro e, em par-
ticular, da reto mada da expansão, da crise à depressão. En-
tretanto, o conjunto das relações de produção (essência), que
determina a situação material dos homens, permanece relati-
vamente imutável, estável.
Exprimindo essa lei da correlação da essência e do fenô-
meno, Lenin escreveu que: " ( . . . ) O que não é essencial, o
aparente, o superficial, desaparece mais freqüentemente,   não é
tão 'sólido', tão 'firmemente instalado', como a 'essência'
Embora sendo estável com relação ao fenômeno, a essên-
cia também não perman ece totalmente imutável. Ela se
modifica, embora o faça mais lentamente do que o fenômeno.
Sua modificação é condicionada pelo fato de que, no processo
do desenvolvimento da formação material, certos aspectos e
ligações necessários começam a ser reforçados e a desempenhar
um grande papel, enquanto que outros são rejeitados para um
segundo plano ou desaparecem completamente. Um exemplo

 N . K. Va kh to mi n, op . cit.
6

7
V. Lenin,  Oeuvres,  t. 38, p. 124. Origi nal em russo .

.279
 

da modificação da essência no decorrer do desenvolvimento da


formação material pode ser fornecido pela passagem que se
efetua no capitalismo no estágio pré-monopolista para o estágio
imperialista. Se no perí odo pré-m onopo lista da existência do
capitalismo domina a livre concorrência a exportação das
mercadorias sem que os monopólios desempenhem um papel
considerável, no período do imperialismo, a livre concorrência,
embora ainda existente, é muito limitada pelo monopólio que
se torna, então, um fenômeno universal e que começa a desem-
 penh ar um pa pel determinante na vida da soc ied ade . A
exportação de mercadorias, nesse mesmo período, passa para
um segundo plano e o que se torna então dominante é a
expo rtaçã o de capitais etc. Tud o isso most ra que, com a
chegada do capitalismo ao estágio do imperialismo, sua essência
sofre certas mudanças, embora sua natureza tenha permane-
cido imutável.

3. O FUND AMEN TO E O FUND AMEN TAD O

O movimento do conhecimento a partir da evidenciação


do conteúdo e da forma do objeto estudado e de sua essência
 — a re pr od uç ão dos aspect os e das ligações (leis) necessários
internos que lhes são próprios, em sua correlação natural —
começa com o estabelecimento de seu fundamento, de seus
aspectos e relações fundamentais, determinantes.
O fundamento, como aspecto ou relação determinante,
repre senta o interior do tod o estuda do, é o mom ento mais
 pr of un do de sua essência; entretanto, o sujeito conhecedor
 pr ocur a a essência primeiramente no nível do ext eri or, do
fenômeno, para representá-la sob a forma de aspectos e de
traços determinados deste último. O funda ment o assim repre-
sentado é o fundamento formal e ele o é — nesse grau inicial
do conhecimento — porque é totalmente idêntico ao funda-
mentado, pelo conteúdo, do qual distingue-se apenas pela forma:
ele é considerado como alguma coisa de determinante e o fun-
damentado como alguma coisa de determinado.
A identidade do fundamento formal com o fundamentado
não exprime a identidad e real, necessa riament e próp ria ao>
fundamento e aos fenômenos condicionados por ele, mas a
expressão diferente de um único e mesmo conteúdo: o do

.280
 

fund amen tado . É por isso que o funda ment o forma l é, de fato,
tautológico, porque exprime-se aqui sob a forma de fundamento,
quando, em regra geral, ele é o que foi exprimido sob a forma
de fund amen tado . Por exemplo, na qualidade de funda mento
dos fenômenos elétricos, ele intervém como a "força elétrica",
como fundamento dos vegetais, como a "força vegetal", como
fun dam ent o do calor, como o "flogisto " etc. Por isso, seu
valor gnoseológico é medíocre, sua evidenciação não traz ne-
nhum novo conhecimento ao objeto estudado. E o que é
enunciado aqui sob a forma de fundamento é o que ele foi sob
a forma de fundamentado.
O caráter limitado e tautológico do fundamento desse tipo
foi bem demonstrado por Hegel: "Uma tal indicação dos fun-
damentos, escrevia ele, analisando o tipo de fundamento con-
siderado, é acompanhado. . . pelo mesmo vazio que os enun-
ciados conformados à proposição sobre sua identidade . São 8

discursos tautoló gicos vazios. Com efeito, pross egue ele, de-
clarar fundamento de uma forma de cristalização, uma dispo-
sição part icul ar das moléculas, não é uma tautologia. Mas "a
cristalização em questão é precisamente essa mesma disposição
que chamamos de fundamento" . Uma coisa análog a se pro-
9

duz, segundo Hegel, no raciocínio de um lógico que, conferindo


ao fundamento da lei toda a razão, declara que nossa faculdade
de pensar é feita dessa maneira e que nós somos obrigados a
inquirir sobre os fundamentos de qualquer coisa: seja junto
ao médico, quando este explica que a morte do afogado deve-se
ao fato de que "o homem é feito de uma determinada maneira,
e por isso não pode viver sob a água", seja junto ao jurista
quando este explica a necessidade de punir o criminoso pelo
fato de que "a sociedade civil é feita de forma que os crimes
não podem permanecer impunes"* . 0

Em todos esses casos, declara Hegel, o fundamento é um


cont eúdo que temos imediatamente diante de nós "e toda a
diferença reside simplesmente no fato de que o conteúdo é então
transferido para a forma do interior" . 11

8
G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in  Sämtliche Werke,
Sttutgart, 1928, v.  4,  p. 570.
9
G. W. F. Hegel,  Werke, Vollständige Ausgabe,  v. 6, p. 244-5.
10
G. W. F. Hegel,  Werke  cit., p. 246,
U
G . W. F. Hegel, Wissenschaf t der Logik, in  Sämtliche Werke,  cit.,
 p. 570.

.281
 

O fundamento formal está ligado aos graus iniciais do


desenvolvimento do conhecimento, quando o sujeito conhecedor
evidencia e fixa as características, propriedades e relações
singulares e gerais, qualitativas e quantitativas, e as considera
como coexistentes. Com a passagem do conhecimento da coe-
xistência à causalidade e à evidenciação das causas dos fenô-
menos estudados, modifica-se sensivelmente a concepção do
fundamento que, então, aparece como fundamento real.
Como o fundamento real reflete a causa real que condi-
ciona o aparecimento do fundamento, podemos então, partindo
dele, explicar e destacar o fund amen tado . Extr air o fun da-
mentado de um fundamento real dado, nada mais é do que
estabelecer a identidade entre o fundamento e o fundamentado.
O fundamentado é idêntico ao fundamento porque é a forma
de manifest ação e de existência de seu conteúd o. Entr etant o,
nem tudo no conteúdo do fundamentado é extraído do funda-
mento, alguns de seus momentos são condicionados, não pela
causa evidenciada, mas por circunstâncias exteriores. É por
isso que, entre o fundamento e o fundamentado, há não apenas
identidade, mas também diferença.
O conteúdo do fundamentado, determinado pela causa
que o engendra e deduzido, de uma forma ou de outra, dessa
causa, como real, é considerado como essencial, enquanto que
o conteúdo do fundamentado que é introduzido no exterior e
condicionado por circunstâncias exteriores é considerado como
não essencial.
Mas, desde o que é considerado não essencial no conteúdo
do fundamentado tem igualmente sua causa e, portanto, seu
funda mento , pod e ser considerado como essencial. Enq uant o
que tudo o que não decorre desse fundamento será considerado,
em relação a ele, como não essencial, condicionado por circuns-
tâncias exteriores.
O resultado disso é que o fundamentado possui, ao mesmo
tempo, uma grande quantidade de fundamentos reais diferentes,
ou seja, com ple tam ente opostos. É por isso que cada coisa
concreta pode receber muitas definições diferentes e, partindo
do "fundamento real", é impossível determinar qual é a essen-
cial. O fund ame nta do não contém, em si, nada que indique
qual dessas muitas definições do objeto deve ser considerada
como essencial. Dess a manei ra, a escolha de um a delas, assim
como a característica desse ou daquele aspecto, que entra no

.282
 

conteúdo do fundamentado, enquanto necessário ou contingen-


te, dependerá não da natureza objetiva da coisa, mas da posição
subjetiva do sujeito conhecedor.
Foi Hegel quem, pela primeira vez, chamou a atenção
sobre essa carência do fundamento real. "Isso pe rm an ec e. ..
indeterminado, escreveu ele, ou seja, qual, dentre as numerosas
definições do conteúdo de uma coisa concreta, deveria ser
admitida como essencial e qual como fundam ento . É por isso
que a escolha entre elas permanece livre" . 12

Assim, a descoberta das causas do fenômeno estudado,


de um ou de outro de seus aspectos e ligações necessários,
condiciona a passagem do fundamento formal ao fundamento
real que, contrariamente ao primeiro que é fictício, representa
o fundamento real, determinando e explicando o fundamentado
não em toda sua diversidade, em toda a riqueza de seu con-
teúdo, mas somente no nível de algumas de suas propriedades.
 No que concerne às outras propriedades, elas explicam-se à
medida que há a descoberta de outros laços de causa e efeito,
assim como de aspectos e de ligações necessários, que aparecem
sob a forma de novos fundamentos reais, autônomos do todo
estudado. O crescimento do número de fund amen tos diferentes
e contrários de uma coisa cria condições para escolher arbitra-
riame nte uns e ignorar outros. Torna-se , então, necessário
reunir todos esses fundamentos e as propriedades que eles con-
dicionam em um todo único e explicá-los a partir de um
 princípio único, isto é, passar a um no vo fu nd am en to , mais
apro fund ado. Esse novo fundam ento, que constitui um todo
único, e que explica todo o conteúdo do fundamentado, é um
fundamento completo.
O fundamento completo é constituído pelos aspectos
(rel açõe s) essenciais do todo estud ado. Desd e que os aspectos
e as relações essenciais determinem a formação, a mudança e
a correlação de todos os outros aspectos da formação material,
se nós os separarmos e adotarmos como princípio de partida,
 pode re mos exp lic ar to do s esses asp ectos, evi denciar sua corre-
lação e determinar o lugar, o papel e o alcance de cada um
deles.

1 2
G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in  Sämtliche Werke,  cit.,
 p . 5 7 7 .

.283
 

Se consideramos um elemento químico, seu "fundamento


com plet o" será a carga do núcle o atômico. Part indo deste,
 pode mos explicar as propriedades e as ligações mais ou menos
fundamentais do elemento químico, incluindo os "fundamentos
reais", que determinam algumas de suas propriedades, notada-
mente a estrutura do envólucro eletrônico e a presença de uma
certa quantidade de elétrons na camada eletrônica externa etc.
Para a sociedade em geral, o papel desse fundamento é desem-
 penh ad o pelo mo do de prod ução, e pa ra a socieda de capitalista,
em particular, pela mercadoria, as relações comerciais etc.
O "fundamento completo", ao contrário do "fundamento
real", determina não somente a identidade do fundamento e do
fundamentado, mas igualmente sua diferença; ele encerra, sob
uma forma anulada, todos os fundamentos reais da coisa, todas
as suas determinações, assim como sua corre laçã o. A categoria
de "fundamento completo" exprime, de maneira mais ou menos
adequada, o fundamento do objeto estudado.
O movimento do conhecimento do fundamento, que vai
do "fundamento formal", que é idêntico ao fundamentado e
não é nada mais do que uma outra expressão de seu conteúdo,
ao "fundamento real", que exprime a identidade e a diferença
entre fundamento e fundamentado, revela a grande quantidade
de fundamentos do fundamentado, que se excluem mutuamente
e que, finalmente, chegam ao "fundamento completo", que de-
termina e explica todos os aspectos do fundamentado e sua
correlação, traduz a tendência histórica real do desenvolvimento
do conhecimento.
 Na Antigüidade, por exempl o, consideravam a eletricidade
(matéria elétrica), que se encontrava no âmbar e que se ma-
nifestava por fricção, como o fundamento dos fenômenos elé-
tricos. Temos aqui uma identificação completa do fundamen to
e do fund ament ado. Depois, foi estabelecido que os fenômenos
elétricos são engendrados pela fricção de duas substâncias, pelo
contato de diferentes materiais colocados em uma mesma solu-
ção, pelo contato de diferentes metais possuindo temperaturas
diferentes, pelo deslocamento de um condutor encerrado em um
campo magnético, pela irradiação dos condutores metálicos etc.
O fund amen to e o funda menta do nunca coincidem. Descobri-
mos diferentes fundament os em um mesmo fundamen tado. E
ainda mais, manifestaram-se propriedades que não decorriam
desses fun dam ent os. Por exemplo, estabelecemos que a eletri-

.284
 

cidade desprende uma centelha, eleva a temperatura do objeto,


decompõe os líquidos e os gases, provoca um movimento
mecânico, atravessa alguns corpos e não atravessa outros, atrai
certos corpos e repud ia outros. Tudo isso nã o decorria do
fato de que ela foi engendrada pela fricção, nem porque ela
surgiu em um circuito constituído por diferentes materiais co-
locados em uma solução alcalina, nem mesmo do fato de que
ela surgiu em decorrência do deslocamen to de um condu tor
encerrado em um campo magnético, ou ainda como conse-
qüência da irrad iação dos corpos ou de seu aqueci mento. Essas
 propriedades fo ra m explicadas a part ir de outros fundamento s.
Mas, quando foram descobertos os elétrons e as leis de sua
interação com os prótons, e entre eles, começamos a explicar
todos esses fundamentos e propriedades dos fenômenos elétri-
cos e de sua correl ação a partir de um princí pio único: a estru-
tura eletrônica da substância. Esse princípio desempenhou,
então, o papel de fundamento completo determinante, em últi-
ma análise, das propriedades dos fenômenos elétricos e de sua
correlação.
Tendo atingido a compreensão do fundamento, que se
manifesta sob a forma de fundamento completo, o sujeito co-
nhecedor, apoiando-se sobre ele, pode explicar todos os outros
aspectos e ligações necessários, que constituem a essência do
objeto estudado e reproduzir na consciência, no sistema dos
conceitos abstratos, a interdependência necessária, que existe
entre eles.

.285
 

XIII. A CONTRADICÃO.
A LEI DA UNIDADE
E DA LUTA
DOS CONTRÁRIOS

1. A CONT RADI ÇÃO


COMO UNIDADE E LUTA
DOS CONTRÁRIOS

Para extrair do fundamento todos os outros aspectos e


ligações necessários que caracterizam a essência do objeto
estudado, é necessário considerar o fundamento (o aspecto
determinante, a relação)" e a própria fo rma ção mater ial, em
seu apar ecim ento e em seu desenv olvime nto. Isso supõe a
evidenciação da fonte do desenvolvimento da força motora,
que faz avançar e condiciona sua passagem de um estágio do
desenvolvimento a outro. Essa font e é a contradição, a unida-
de e a "luta" dos contrários. Assim, o conhecime nto choca-se,
em seu desenvolvimento, com a necessidade de descobrir as
contradições, os aspectos e as tendências contrários próprios
de todas as coisas e fenômenos da realidade objetiva.
O que represent am esses cont rários e essa contr adição?
São os cha mado s contrá rios, os aspectos cujo s sentidos de
transformação são opostos e cuja interação constitui a contra-
dição ou a "lu ta" dos contrários. Por exemplo, os aspectos
que constituem o singular e o geral nas formações materiais
 particulares sã o contr ários, pelo fa to de qu e eles possuem ten-
dências diretamente opostas: o singular tem a tendência de
não se repet ir, o geral repete- se sempre. O conteú do e a for ma
também são contrários. A muda nça perma nente , a flutuaç ão
são uma tendência do conteúdo; a imutabil idade relativa, a
estabilidade, uma tendência da forma.
Possuindo tendências opostas em seu funcionamento, sua
mudança, e seu desenvolvimento, os contrários excluem-se reci-

.286
 

 pr oc am en te e encontram-se em estado de luta permanente;


entretanto, eles não são divergentes e não se destroem mutua-
mente; existem juntos e não apenas coexistem, mas estão ligados
organicamente, interpenetram-se e supõem-se um ao outro, o
que equivale dizer que eles são unidos e representam a unidade
dos contrários.
Com efeito, o singular não existe em si mesmo, indepen-
dentemente do geral, mas unicamente em ligação orgânica, em
unidade com o geral; não há fenômeno, ou forma sem conteúdo;
cada forma possui um conteúdo, cada conteúdo, uma forma,
 port anto , o conteúdo e a fo rm a exi stem sempre em ligação
indissolúvel.
A unidade dos contrários é, portanto, antes de tudo, seu
estabel eciment o recíp roco, isto é, os aspectos ou tendênci as
contrários não podem existir uns sem os outros. Mas, para-
lelamente, a unidade exprime igualmente uma certa coinci-
dência dos contrários, nesses ou naqueles momentos ou ten-
dências. Pelo fato de que os contrários caracterizam uma
única e mesma formação, uma única e mesma essência, eles
devem necessariamente ter muitas coisas em comum, coincidir
em toda uma série de propriedades essenciais porque, em caso
contrário, sua interação não poderia criar uma contradição
dialética viva, não poderia tornar-se o fundamento da existên-
cia do fenômeno qualitativamente determinado correspondente.
Mostrando o que é comum aos contrários que são recipro-
camente ligados e que constituem essa ou aquela contradição
dialética, Karl Marx escreveu que: " . . . o pólo Nort e e o pólo
Sul são igualmente  pólos,  sua  essência  é idêntica, e o mesmo
acontece com o sexo feminino e o sexo masculino, que formam
uma única e mesma espécie, uma única essência — a essência
huma na. O Norte e o Sul são determinações contrárias de uma
única e mesma essência, são diferenças da mesma essência que
alcanç ou o estágio suprem o de seu desenvolvimento. Eles
repr esen tam uma essência difer encia da. São o que são,   unica-
mente  como determinação diferenciada e precisamente como
essa determinação diferenciada da essência"!.
Os contrários, sendo aspectos diferentes de uma única e
mesma essência, não apenas excluem-se uns aos outros, mas

'K. Marx e F. Hengeis,  Oeuvres  ed. russa, t. 1, p. 321.

287
 

também coincidem entre si, e exprimem não apenas a diferença,


mas també m a identidade. E é unic amen te graças a uma certa
coincidência  de sua natureza, graças à identidade que trans-
 parece pel a sua dif ere nça, que eles interpenetram-se e supõem-
se uns aos outros, e que eles const ituem u ma contra dição
dialética. Assim, a iden tida de dos contrários é um momen to
da contradição, que é tão necessária, quanto sua diferença.
A equivalência dos contrários é uma das formas de sua
identida de, de sua coincid ência que apare ce no estágio de
desenvolvimento da contradição em que se estabelece um certo
equilíbrio de forças opostas, em que estas parecem tornar-se
equivalentes. Um exemplo da equivalência dos contrários pode
ser fornecido pela relação das forças da revolução e da contra-
revolução na Rússia de 1905. Ana lisa ndo essa situação, Lenin
escreveu que: "Balanço realizado nesse dia (30 [17] de outu-
 bro, se gu nd a-fe ir a): equilí brio de fo rç as: . . . o czarismo   não
tem mais  a força necessária para vencer, e a revolução   ainda
não a tem" . Uma situação análoga a essa foi criada na Rússia
2

de 1917, depois da revolução de Fevereiro, quando o governo


de Kerensky passou abertamente para a repressão do proleta-
riad o revolucio nário. Nesse mome nto, os Sovietes, submetidos
à direção dos democratas pequeno-burgueses, eram impotentes,
e a burguesi a ainda nã o era suficientem ente forte para li-
quidá-los.
A equivalência dos contrários exprime o estado de matu-
ridade da contradição e caracteriza-se por uma exasperação da
luta de forças contrárias. " ( . . . ) Lon ge de excluir a luta, o
equilíbrio das forças a torna, ao contrário, particularmente
aguda" . 3

A identidade (coincidência) dos contrários encontra sua


expressão, a mais comple ta, no momento da passagem dos
contrári os um no outro. Esse moment o da luta dos contrários
ganha uma importância particular pelo fato de que ele designa
a resolução da contradição e a passagem do objeto a um novo
estado qualitativo, o que quer dizer que ele é um ponto nodal
do desenvolvimento. Levan do em conta a importância par-
ticular desse momento, no desenvolv imento da c ontradi ção,

2
V. Lenin,  Oeuvres,  t. 9, p. 429.
3
V. Lenin, op. cit., p. 464.

.288
 

dessa for ma de mani fest ação da identidade dos contrários,


Lenin definia a dialética como a teoria da identidade dos con-
trários, das leis da passage m de um no outro. "A   dialética  é a
teoria da forma pela qual  contrários  podem ser e habitualmente
são (porque assim eles se tornam)  idênticos  — condições nas
quais eles são idênticos mudando-se um no outro — razões
 por que o espírito hu ma no nã o deve tomar esses contrários
 por mortos, fixos, mas por vivos, condicionados, móveis, mu-
dando-se um no outro"4.
Assim, a contradição é a unidade dos contrários e a luta
de contrários que se excluem e se supõem mutuamente.
Sendo um momento necessário da contradição, a unidade
e a luta dos contrários não ocupam, entretanto, a mesma po-
sição. A uni dade dos contr ários é sempre relativa, enquanto
que a "lu ta" deles é absoluta. O caráter relativo da uni dad e
dos contrários exprime-se antes de tudo no fato de que ela é
tempor ária, aparece em certas condições apropr iadas, existe
durante um certo tempo e, em deccorrência do desenvolvimento
da "luta" dos contrários que a constituem, é destruída e subs-
tituída por uma nova unidade que, sob a pressão da "luta" dos
contrários que lhe são próprios, a um certo estágio de desen-
volvimento da contradição, encontra-se igualmente excluída e
substituída por uma outra, melhor adaptada às novas condições.
Essa última, depois de existir um certo tempo, é igualmente
eliminada e substituída por uma nova, e assim sucessivamente
até o infinito.
Além de sua existência temporária, o caráter relativo de
cada unidade concreta manifesta-se igualmente na coincidência
incompleta dos contrários, na ausência de um acordo total no
funcionamento e no desenvolvimento desses últimos, assim co-
mo no caráter transitório de sua equivalência.
O absoluto da "luta" dos contrários está no fato de que
ela está presente em todos os estágios da existência dessa ou
daquela unidade, de que é o elo que faz a ligação entre ela
mesma e a outra, que a substitui, e também no fato de que é
 preci sam ent e baseados nela que se produzem o aparecimento, a
mudança, o desenvolvimento de toda a unidade concreta e sua
 passagem pa ra uma no va unidade.

4
V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 107.

.289
 

Lenin unia o caráter relativo da unidade dos contrários ao


repouso relativo e o caráter absoluto da luta dos contrários ao
movimento absoluto . 5

2. CONT RADIÇ ÃO E DIF ERE NÇA

Dizendo que a contradição representa a unidade e a luta


dos contrários, temos em vista a contradição que já chegou
à maturida de e já está complet amente for mada . Mas ela não
está ligada somente aos contrários, como pensam alguns autores.
Unir a contradição unicamente aos contrários significa consi-
derar estes como dados, sob uma forma já pronta, enquanto
que eles aparecem e desenvolvem-se a partir de outras formas
do ser.
As diferenças constituem a forma geral do ser, a partir
da qual desenvolvem-se as contradições. É por isso que con-
cordamos com os autores que relacionam as primeiras fases da
existência da contradição com a diferença . Alguns desses
6

autores ultrapassam os limites e cometem um grave erro, quando


declaram que toda diferença é contradição. Esse ponto de
vista é expresso, por exemp lo, por Ai Sy-tsi: "As. diferenças
são uma forma de manifestações das contradições, as diferenças
trazem nelas mesmas esses elementos da contradição, e é por
isso que não podemos dizer que as diferenças não são contra-
dições'" .
7

Se toda diferença se apresentasse como uma contradição


ou uma forma de manifestação da contradição — e as diferen-
ças existem em todo lugar, entre outras formações materiais e
aspectos de uma mesma formação material — não poderíamos
distinguir na reali dade outr as ligações e relações além das
contradições, que representariam a única forma de correlação
dos objetos e de seus aspect os. A divers idade das ligações e
das relações que existem na realidade objetiva está longe de

5
V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 344.
6
B, D, Morozov, As contradições internas e seu papel no desenvol-
vimento, in  O Caráter contraditório do desenvolvimento,   Minsk, 1961,
(Col.) p. 18-41. Original em russo.
7
Ai Sy-Tsi,  Lições de materialismo dialético, Moscou, 1959, p. 175.
Original em russo.

.290
 

reduzir-se às contradições. O caráter contraditório é universal,


mas ele não é a úni ca fo rm a de ligação. Na reali dade objet iva,
existem também relações de harmo nia, de concordância, de
correspondência.
O ponto de vista que decreta que toda diferença é uma
contradição não permite a elucidação da natureza da contradi-
ção, pelo fato de que deixa na obscuridade, precisamente, os
elementos que constituem a essência desta última e concentra
a atençã o sobre o aspecto exteri or. Alé m disso, esse po nt o de
vista pode desorientar os homens em sua atividade prática e
cognitiva, porque confunde as relações mais diferentes e, exata-
mente por isso, entra o discerniment o das contra dições reais
que determinam a vida interior, o movimento autônomo e o
desenvolvimento do todo estudado.
Emb ora perceben do a divergência manifesta entre esse
 po nt o de vista e a real idade, alg uns autores esforçam-se pa ra
limitar o círculo das diferenças consideradas como contradições.
Alguns registram como contradições apenas as diferenças fun-
damentais , outros, as diferenças internas . Entret anto, nem
8 9

o fato de pertencerem ao domínio interno dos fenômenos nem


o caráter essencial permitem distinguir a simples diferença da
diferença-contradi ção. Na realidade, há diferenças essenciais e
internas que não são contraditórias, e vice-versa, há diferenças
não -essenciais e externas que são contrad ições. Por exemplo, as
diferenças entre os órgãos dos sentidos do homem são internas,
essenciais e, ao mesmo tempo, não são contraditórias e funcio-
nam de maneira coorde nada. Da mesma forma, as diferenças
entre as seções particulares da produção socialista são internas e
fundamentais; entretanto, quando os organismos de planejamen-
to da economia funcionam normalmente, não pode haver contra-
dições entre as diversas seções da pro duç ão. Por outro lado, a s
diferenças entre alguns capitalistas, que são, por seu caráter,
externas e não essenciais, desempenham o papel de contradi-
ções. As diferen ças entre os part idos burgueses são igua lment e

e
E. B. Chur,  Problemas de filosofia,  1956, v. 4, p. 71. Original em
russo.
9
V. P. Rojin,  A dialética marxista-leninista como ciência filosófica,
Leningrado , 1957, p. 52-3. Original em russo. B. C. Ucraint sev, A. C.
Kovalhtchik, V. P. Tchertkov,  A dialética da transformação do socialis-
mo em comunismo,  p. 26-7. Original em russo.

.291
 

não-essenciais, externas, mas manifesta m-se, como é preciso,


mediante essas ou aquelas contradições.
Tudo isso mostra que pertencer ao domínio interno do
fenômeno, assim como ter caráter essencial, não são os traços
determinantes que transformam a simples diferença em contra-
dição.
 Não é ne m o fa to de pertencer ao domín io interno nem
o caráter essencial das diferenças que faz delas contradições
(porque as contradições não são somente internas, mas também
externas, não somente essenciais, mas também não-essenciais),
mas sim o fato de que essas diferenças podem relacionar-se a
tendências opostas da mudança desses ou daqueles aspectos em
intera ção. Ape nas os aspectos diferentes que têm tendê ncias
e orientaç ões de mud anç a e de des envolvimento diferen tes
encontram-se em contradiç ão. Por exemplo, as contradições
entre certas seções da produção socialista que surgem, às vezes,
em decorrência do trabalho insuficientemente exato das orga-
nizações do planejamento aparecem não porque essas seções
sejam diferentes, mas porque no desenvolvimento dessas seções
aparecem diferentes tendências e uma discordância. Isso tam-
 bém explica o aparec imento de contr adições ent re certo s Esta -
dos socialistas, embora a comunidade de seu regime socio-
 políti co faça com qu e eles te nh am a mesma perspectiva de
desenvolvimento, voltado para o socialismo e o comunismo.
Essa comunidade acarreta, é óbvio, uma concórdia e uma har-
monia necessárias em suas relações. Entreta nto, há momentos
em que, na aproximação dessa ou daquela questão do movimen-
to comunista, desse ou daquele problema econômico ou político,
divergências ou tendências diferentes surgem entre certos Es-
tados socialistas. Nesse caso, pode mos falar do surgimento de
contradições, que encontram sua solução em ações coordenadas,
na elaboração de uma aproximação comum do problema em
questão.
Assim, toda diferença é apenas contradição, mas ela o é
quando concerne a tendências do desenvolvimento, e orienta-
ções das mudanç as desse ou daqueles aspectos. Ape nas os
aspectos diferentes desse tipo estão em estado de "luta" e, no
curso de seu desenvolvimento, estão, inclusive, prontos para
transformar-se em contrários, isto é, eles constituem o estágio
inicial da existência de contradições.

.292
 

3. OS GRAU S DO DESE NVOL VIME NTO


DA CONTRADIÇÃO

A contradição começa a partir de uma diferença não-


essencial e passa em seguida ao estágio de diferença essencial.
 Nas condiçõe s ad equadas, as dif erenças essenciais to rn am -s e
contrári os. A parti r desse estágio e em seu desenvo lviment o,
as contradições chegam ao estágio dos extremos, em que os
contrários entram em conflito, passam um no outro, tornam-se
idênticos e, exatamente por isso, condicionam a resolução das
contra dições . Um a vez as contradições resolvidas, a for maç ão
material chega a um novo estado qualitativo, incluindo um novo
grupo de contradições.
Tomemos um exemplo concreto, o do desenvolvimento da
contradição entre o proletariado e a burguesia. Essa contradi-
ção tem suas raízes em um passad o longínq uo, apare ceu no
 período da pr od uç ão artes ana l e manif est ou-se nes se estágio,
 primeiramente sob a fo rm a de uma dif erença não-e ssencial entre
o contramestre (patrão), por um lado, e os ajudantes e apren-
dizes, por outro lado. De fato , no começo, entre o cont ra-
mestre que dirigia o  atelier   e os ajudantes e aprendizes que exe-
cutavam suas ordens, a diferença não era essencial, porque,
nessa época, em virtude do estatuto do aprendizado, o aluno,
depois de ter passado por um círculo de formação, tornava-se
automaticam ente um aju dante, e o ajudante, depois de ter
adquirido uma certa experiência, podia tornar-se contramestre
(pa trã o). Isso significa que os ajudantes e os aprendizes eram
contramestres em potencial, e que entre eles a única diferença
era proveniente do tempo e da experiência.
Mas, no curso do desenvolvimento da produção em um
atelier,  essa ordem das relações mútuas entre contramestre,
ajudantes e aprendizes foi substituída por uma nova ordem,
segundo a qual os aprendizes e os ajudantes não podiam mais
tornar-se automaticamente contramestres e permaneciam sempre
na situação de subordinados, de assalariados. A diferença não-
essencial entre aprendizes, ajudantes e contramestres transfor-
ma-se, então, em uma diferença essencial. Depoi s que o
artesanato foi substituído pela manufatura , essa contradição
 passou do estágio das diferença s essenciais ao dos contrários.
Se anteriormente, na produção artesanal, o proprietário do
atelier   trabalhava ainda com seus aprendizes e alunos, na ma-

.293
 

nufatura, o patrão fica à parte e não participa diretamente da


 produção , vive inteiramente às cus tas do tr abalho dos assala ria-
dos, graças a sua exploração.
Desd e entã o, os interesses do p atr ão e dos operári os
tornam-se radicalment e opostos. Mas esse ainda não é o fim
dessa cont radiç ão. À medi da que há o desenvolvimento da
 pr od uç ão cap italista , essa co ntra dição ace ntua-se, torna-se
mais aguda e, depois de ter atingido sua forma suprema, en-
cont ra sua resol ução na revo luçã o socialista. No curso dessa,
o proletariado de classe oprimida e explorada torna-se a classe
dominante, estabelece sua ditadura, enquanto que a burguesia
vê-se afasta da do poder e torna-s e a classe oprimida. Os con-
trários transformam-se um no outro, trocam suas posições e
torn am-s e como que idêntico s. Em decorr ência, o antigo estad o
qualitativo da sociedade — a antiga forma de relações — é
liquidado e o novo estado qualitativo forma-se, acompanhado
de novas contradições.
Vemos nesse exemplo como, depois de seu nascimento, a
contradição transpõe em seu desenvolvimento vários estágios,
desde as formas inferiores até as formas superiores de manifes-
tação . Mas esse movi ment o da contradi ção de um estágio a
outro realiza-se não somente no sentido indicado, isto é, das
formas inferiores para as superiores, mas igualmente em sentido
inverso, ou seja, das formas superiores e extremas para as
formas sempre mais inferiores, até o seu completo desapare-
cimento.
Essa orientação no movimento da contradição pode ser
observa da na resol ução, na U niã o Soviética, da contr adição
entre a cidade e o campo. Às véspera s da revolu ção socialista,
essa contr adiçã o atingira o estágio de oposiçã o extrema dos
contrá rios. À base dessa oposi ção estava a opressã o do cam po
(camponeses trabalhadores) pela cidade (burguesia urbana).
 No curso da revolução social ist a, com a lim itaçã o da bur gue sia
urbana, a cidade não podia mais explorar o campo que, na
 pes soa dos  Koulaks,  pôs-se a explorar a cidade, especulando
sobre os pro dut os agrícolas. No curso da coletivização da
agricultura, toda a base de oposição entre á cidade e o campo
desapareceu e essa contradição passou para o estágio de dife-
rença essencial. Com efeito, entre a classe operária soviética
e os  kolkhoziens  ainda há algumas diferenças essenciais, que
são concernentes, em primeiro lugar, às formas de propriedade

.294
 

(a classe operária está ligada à propriedade social socialista,


enquanto que os camponeses  Kolkhozianos  estão ligados à pro-
 priedade co leti va ), às condi çõe s de trab alho e às fo rm as de
remunera ção. Na URSS, com a elevação da proprie dade
kolkhoziana  ao nível de propriedade de todo o povo, com base
na mecanização progressiva da produção agrícola e da apro-
ximação das condições de trabalho nas cooperativas agrícolas,
com as condições das empresas do Estado, a contradição entre
a cidade e o campo, entre a classe operária e os camponeses,
 passará ao estágio de diferença não-essenci al. At in gind o o
estágio de diferença não-essencial, os aspectos da contradição,
assim como no estágio de oposição mais aguda, passam um no
outro, parecem tornar-se idênticos, porque eles são chamados
a ocupar, sob qualquer relação, a mesma posição e representam
um todo único: os trabalhadores de uma sociedade sem classe.
Assim, a contradição não é uma coisa fixa, imutável, mas
encontra-se em movimento incessante, em mudança permanente,
 passando das fo rm as inferiores às sup eriores, e vice-versa, en-
quanto os contrários passam um pelo outro, tornam-se idênticos,
e a formação material que os possui propriamente entra em um
novo estado qualitativo.

4. A CONT RADI ÇÃO


COMO FORMA UNIVERSAL
DO SER
Os metaf ísico s, como era inevitável, nega m o carát er
contraditório da natureza das coisas, de sua essência, acredi-
tando que as coisas não podem contradizer-se a elas mesmas.
Assim, Kant declarava que a "coisa em si" não encerra nenhu-
ma contradição, que as contradições encontram-se unicamente
no pensamento, quando este esforça-se para captar a incognos-
cível "coisa em si", o que testemunha a fraqueza da razão
humana e sua incapacidade de sair do quadro do fenômeno.
Max Hartmann defendia um ponto de vista análogo, quan-
do afirmava que "o que é contraditório não é o que existe em
si, não é a razão em si, mas a exigência de que a razão englobe
o existente em sua totalidade"io.

10
M. Hartmann,  Die philosophischen Grundlagen der Naturwissen-
 schaften,  Jena, 1948, p. 36.

.295
 

O filósofo norte-americano Sidnay Hook nega a existencia


objetiva das contradições. Segundo ele, o termo "contra dição"
é inaplicável às coisas. Ape nas os pens amen tos e os juízos
 po de m ser contraditórios, nã o as coisas. Sidnay escreveu que:
"A tese fundamental de todas as leis da dialética é a convicção
de que a contradição está 'objetivamente presente nas coisas e
nos processos'. Isto é, no mínimo, uma utilização estranha
do termo "contradição", e principalmente na medida em que,
desde Aristóteles, o fato de que as proposições, os juízos ou
as afirmações são contraditórios, e não as coisas ou os aconte-
cimentos, tornou -se um laço comum da teoria lógica"*!. Ho ok
 justi fic a da seguinte maneira seu po nt o de vista: "Se tudo que
existe é co nt ra di tó ri o. .. e se todo pensamento correto é uma
imagem ou um reflexo das coisas, a conseqüência disso seria
um caráter infalíve l do falso. E as ciências que consideram
a conseqüência como uma condição necessária da verdade não
 pode ri am pr og redi r" . Prosseg uindo, ele diz qu e: "Se tudo o
que existe é contraditório, então Engels não tinha o direito de
dizer que o pensamento, sendo um produto da natureza, deve
'corresponder' à natureza, em vez de contradizê-la" . 12

A cont radi ção, assim como a incons eqüênci a do pensa-


mento, só é efetivamente própria ao pensamento quando ele é
incorreto. Sendo um dos traços de um pensamento incorreto,
essa forma de contradição não é a conseqüência do reflexo, na
consciência, da contradição das coisas, e também não pode ser
um princípio lógico do pensament o correto. Se a contradição
só existisse sob a forma de inconseqüência do pensamento, de
contradição dos enunciados, dos juízos e das afirmações, Sidnay
Hoo k teria uma certa razão. Mas a contradiçã o existe não
apenas sob a for ma de inconseqüência do pensamento, ela
existe, e antes de tudo, sob a forma de aspectos e de tendências
contrárias, próprias às coisas e aos fenômenos do mundo exte-
rior e a seu refle xo no conhec iment o. Como conseqüência,
um pensamento justo tem por meta reproduzir na consciência,
sob a forma de sistema de imagens ideais, a realidade objetiva
das coisas, as ligações e relações reais do objeto estudado, e
não pode ignorar esse caráter contraditório das coisas, a pre-

"S. Hook,  Dialectical Materialism and Scientific Method,  Manches-


ter, 1955, p. 7.
S. Hook, op. cit.
12

.296
 

sença nelas de aspectos e tendência s contrár ios, da mesma


maneira como também não pode ignorar uma certa conse-
qüência dos fenôm enos. É por isso que, entre os princípios
lógicos do pensamento, ao lado da exigência de conseqüência
deve estar presente a exigência do desdobramento necessário
do objeto do pensamento em aspectos contrários, assim como
o conhecimento de sua natureza contraditória. O reconheci-
mento da contradição das coisas e da necessidade de levar isso
em conta no processo do conhecimento, do pensamento, não
somen te nã o contr adiz a exigência de que os pens amentos
correspondam à verdade, mas, pelo contrário, é uma das con-
dições mais importantes para atingir essa correspondência.
O filósofo inglês contemporâneo Philip Spratt defende um
 po nt o de vista aná log o àquele de Sidnay Ho ok . Ele declar a
que: "se reconhecemos que, em determinados casos, um mesmo
 juí zo é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso, segue-se de ma -
neira simples e rigorosa que todos os juízos são verdadeiros e
que suas negações são verdadeiras ta mb ém " . Em outros
13

termos, se reconhecemos como verdadeiros dois juízos contra-


ditórios, seremos obrigados a reconhecer como verdadeiros to-
dos os juízos, mesmo se eles se contradizem. E isso não é
nada mais do que "uma confusão linguística" ^. 1

O erro do raciocínio de Spratt é evidente. O reconheci-


mento, como verdadeiro, de dois juízos contrários, como, por
exemplo, "um corpo em movimento encontra-se em um ponto
dado", e "um corpo em movimento não se encontra em um
 po nt o dado ", nã o implica absolutamente a neces sidad e de
recon hecer como verdadeiros dois juízos contra ditóri os. A
exatidão dos juízos depende não do fato de que eles se encon-
trem ou não em contradição, ou em concordância, mas do fato
de que eles refl itam ou não a situação real das coisas. E, pelo
contrário, qualquer que seja o grau das contradições entre os
 juízos, eles ser ão ver dadeiro s se corresponderem à situação rea l
das coisas, se refletirem a natureza contraditória do objeto do
 pensamento .
Par a o metafísi co que nega o caráter contra ditório das
coisas e do conhecimento, o reconhecimento da exatidão desses

Ph. Spratt,  A new look at Marx, Londres, 1957, p. 19.


13

"Ph. Spratt, op, cit.

.297
 

ou daqueles juízos contraditórios assemelha-se efetivamente, a


uma confusão de linguagem: o espírito metafísico não é efeti-
vamente capaz de captar o processo real em toda sua com-
 plexidade e em to da sua contradição e ta mbém nã o po de
representar a coisa como a unidade dos contrários.
Johann Fischl , teólogo alemão contemporâneo, assim
15

como o filósofo inglês Herbert Wood e outros tentaram igual-


mente refutar a tese do materialismo dialético, sobre a contra-
dição das coisas e dos processos, a partir da lei da lógica formal
sobre a contradição (não-contradição).
Uma tendência análoga nasceu entre certos filósofos mar-
xistas. Os teóricos poloneses Kazimier Ajdukiewicz, Ada m
Schaff e outros negam, como sendo incompatível com as leis
da lógica formal sobre a contradição o caráter contraditório do
movimento mecânico (por exemplo: um corpo em movimento
encontra-se em um único e mesmo lugar e não se encontra).
Kazimier Ajdukiewicz, por exemplo, escreve que: " ( . . . )
O enunciado, segundo o qual um objeto em movimento encon-
tra-se em cada momento de seu movimento em algum lugar e,
ao mesmo tempo , não se encontra nesse lugar, poder ia ser
compreendido no sentido de que, a cada momento de seu mo-
vimento, esse corpo em movimento chega a um certo lugar, mas
não perman ece aí. Se aceitamos essa interp retaçã o da tese. . .
não poderemos encontrar nela a confirmação da afirmação,
segundo a qual, o movimento inclui a contrad ição. Porqu e
não é menos contraditório afirmar que, a cada momento de seu
movimento, o corpo encontra-se em algum lugar e, ao mesmo
tempo, não se encontra nesse lugar, se o termo "encontrar-se
em algum lugar" na primeira metade da frase é utilizado em
um outro sentido do empregado na segunda parte dessa mesma
frase" . Ele conclui dizendo que: "Assim, devemos refu tar a
16

 premi ssa essencial na demonstração pr oc ur ada, qu e dev eria


mostrar que a mudança inclui a contradição" . 17

Ada m Schaff, no decorrer de seus raciocínios, chega a


uma conclusão análoga. Depois de ter precisado os termos

15
J. Fischl,  Die Weltanschauung des sowjetrussischen Materialismus,
Vort rag im Katho lis chen Bildungswerk in Linz a. d. Don au, 1953.
18
K. Ajdukiewicz, Uber Fragen der Logik, in   Deutsche Zeitschrift
 für Philosophie, 1956,  v. 3,  p.  318-38.
K. Ajdukiewicz, op. cit.
17

298
 

que traduzem a presença e a não-presença, em um ponto dado,


de um corpo em movimento, ele declara que: "O objeto que
se move transpõe um ponto dado do espaço, e é unicamente
nesse sentido que ele 'é' e que ele 'enc ontr a-se ' nele. Se dize-
mos que um corpo em movimento encontra-se em um ponto
qualquer do espaço e, ao mesmo tempo, não se encontra nesse
 pont o e, se entendemos por isso que esse corpo atravessa esse
 po nt o e, ao mesmo tempo, nã o o atravessa, emi tim os, então,
um juízo que se contradiz, que é evidentemente inexato, porque
um corpo que se desloca atravessa certos pontos do espaço"! . 8

Mais adiante, para mostrar a incompatibilidade do caráter con-


tradi tório do movi mento com as leis da lógica for mal , ele
 prossegue dizendo qu e: "Se nós a reconhecemos (a lógica fo r-
mal — A. Ch.), não podemos conciliar esse reconhecimento
com o reconhecimento do caráter contraditório lógico, disso
decorre necessariamente da adoção do caráter contraditório do
objeto encerrado no movimento material. Porqu e senão, ou é
a lógica formal que é falsa ou, então, a tese sobre o caráter
contradit ório objetivo do movimento está errada. Não estamos
 preservados da nec ess ida de de resolver esse pr ob le ma , nem
 pelas frases 'dial ética', nem pel as acu saç ões de rev isioni smo
A verd ade científica está acima de tudo . Eu estou convencido
de que uma tal posição corresponde inteiramente ao espírito do
marxismo"i9.
Toda a argumentação da negação do caráter contraditório
do movimento está baseada na lei da lógica formal sobre a
contradição (a não- cont radiç ão). Para os autores, o que é
decisivo não é a concordância dos juízos que negam e fixam
o caráter contraditório do movimento com a situação real das
coisas, mas sua concordância com a lei lógica da contradição.
Entretanto, essa lei, exprimindo a exclusão recíproca e a in-
compatibilidade de certos fenômenos e propriedades, na reali-
dade objetiva, não pode exprimir a unidade da exclusão e do
estabelecer recíprocos, da interpenetração e da intercorrelação
dos contrári os. É por isso que, exatamen te no pon to em que
essa unidade contraditória se reflete, ela é insuficiente.

18
A. Schaff, Über Fragen der Logik, in   Deutsche Zeitschrift f HI- 
 Philosophie,  1956, v, 3, p, 338-52.
19
Studie Philozoficzne,  1957, v. 1, p. 210.

299
 

Ao contrário do materialismo metafísico, o materialismo


dialético não somente reconhece a existência das contradições,
mas acredita que a contradição é uma condição universal da
existência da matéri a, uma for ma univers al do ser. Segundo
o materialismo dialético, qualquer que seja a formação material
considerada, quaisquer que sejam os domínios que focalizamos,
descobrimos necessariamente a presença de aspectos e de ten-
dências contrários, a unidade dos contrários, e a presença de
contradições. Em particular, para toda sociedade, a contradi-
ção entre a produção e o consumo é um fato, para a sociedade
de classes, há também a contradição entre as diferentes classes;
 pa ra o pensamento , há a interação da análise e da síntese; pa ra
a atividade nervosa superior, há a excitação e a inibição, a irra-
diaçã o e a conce ntra ção dos estímulos. No organism o vivo
desenvolvem-se permanentemente processos contraditórios de
absorção e de rejeição, de hereditariedade e de mutações; na
molécula, há processos de atração e de repulsão; no átomo, há
a interação dos elétrons e dos prótons, dos elétrons e dos pósi-
trons, dos prótons e dos antiprótons; a própria partícula "ele-
mentar" representa igualmente a unidade dos contrários e, em
 particular, o elétr on é caracterizado como unidade de onda e
do corpúsculo, e assim também é o caso do fóton, unidade de
energia luminosa. Na mecânica, encontram os a ação e a re-
tro açã o; na eletricidade, a carga negativ a e a positiva; no
magnetismo, o pólo Norte e o pólo Sul; na matemática, o mais
e o menos etc. Logo, não há fen ôme nos em que não possam os
descobrir contradições, não há formação material ou ideal que
não represente uma unidade dos contrários.
Sendo uma for ma universal da existência da matéria, a
contradição — unidade e luta dos aspectos contrários — é a
lei fundamental da realidade objetiva e do conhecimento, assim
como uma das leis fundamentais da dialética.

5. A CON TRAD IÇÃO COMO ORI GEM


DO MOVIMENTO E DO
DESENVOLVIMENTO

O reconhecimento da contradição, da unidade e da luta


dos contrários, enquanto condição universal da existência da
matéria, enquanto lei universal da realidade, permite ao ma-

.300
 

terialismo dialético resolver cientificamente a questão da origem


do movimento e do desenvolvimento.
Os metafísicos, negando a existência objetiva das contra-
dições, fecharam para si mesmos o caminho de uma resolução
mais ou menos satisfatória do problema da origem do movi-
mento, da força motriz da matéria, e foram obrigados a se virar
 para a imp ulsão inicial com o já o fizera Newton, ou, então,
recorreram a Deus, com o fizeram Aristóteles e Wetter, filósofo
idealista alemão contemporâneo ou, ainda, negaram a realidade
do movimento, classificando-o de aparente, como fez, em sua
época, o filósofo grego Zenon.
O materialismo dialético, ao contrário do materialismo
metafísico, considera as contradições, a luta dos aspectos e das
tendências próprios da formação material como a origem do
movimen to e do desenvol vimento. A idéia da contr adiçã o
como origem do movimento foi enunciada, sob uma forma
geral, pelo filósofo grego Heráclito e posteriormente desenvol-
vida e generalizada por Hegel que a aplicou ao conhecimento.
"A contradição, escrevia Hegel, é o que realmente move o mun-
do e é ridículo dizer que não podemos pensar a contradição" . 20

"A contradiç ão. . . é a raiz de todo moviment o e de toda vita-


lidade"^.
Essa tese foi cientificamente criada e desenvolvida, com
uma base materialista, por Marx e Engels, depois por Lenin,
isto é, apenas pelo materi alismo dialético. "O que constitui o
movimento dialético é a coexistência de dois lados contraditó-
rios, sua luta e sua fusão em uma nova   c a t e g o r i a " 2 2 .  o movi-
mento, declara Engels, seguindo Marx, faz-se "pela oposição
dos contrários que, por seu conflito con st an te .. . condicionam
 precisamente a vid a da natureza" . "O desenvolvimento, diz
23

Lenin, é a 'luta' dos contrários" ^. 2

Com efeito, a contradição representa a interação dos as-


 pectos e das tendências contrárias. Essa interaç ão con dicion a

G.
2 0
W. F. Hegel,  Werke, Vollständige Ausgabe,  v. 6, p. 242.
21
G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in   Sämtliche Werke,  v. 4,
 p. 546.
22
K. Marx,  Misere de la philosophie,  Paris, Editions Sociales, 1961,
 p, 122.
F.
2 3
Engels,  La dialectique de la nature,  p. 213.
24
V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 344.

.301
 

sempre, e ainda mais fortemente, quando ela se realiza entre


os contrários, as mudanças constantes nos aspectos ou entre os
corpos em interação.
Por exemplo, a interação da produção e do consumo, que
são aspectos contrários da sociedade, condiciona uma mudança
incessante neles mesmos e nos domínios correspond entes. da
vida social. Com efeito, pela produ ção de bens, os home ns
aperfeiçoam-se e suas necessidades modificam-se. As novas
necessidades que aparecem fixam novos, objetivos para a pro-
dução. Par a satisfazer essas necessidades, a produ ção desen-
volve-se necessariamente e os homens aperfeiçoam-se no
decorrer de seu desenvolvimento. Adqu irem novas necessi-
dades, que fixam a produção de novos objetivos e assim
sucessivamente. A produç ão em desenvolvimento acarreta o
desenvolvimento das necessidades, sua mudança, e as necessi-
dades que se modificam trazem certas mudanças na produção.
À medida que se acumulam as mudanças na produção, à me-
dida que se aperfeiçoam as forças produtivas, estas últimas
ultrapassam sensivelmente, em seu desenvolvimento, as relações
de produção, que começam, então, a refrear o desenvolvimento
das forças produtivas e acarretam suas mudanças que, por sua
vez, acarretam mudanças correspondentes nos órgãos do poder,
na política, no direito, na ética etc.
Tudo isso deixa evidente que a luta dos contrários condi-
ciona necessariamente mudanças correspondentes nos aspectos
em interação da formação material e naqueles que lhes estão
ligados e, ao mesmo tempo, condiciona seu desenvolvimento,
sua passagem para um estado novo, qualitativamente mais
elevado, isto é, a luta dos contrários é a origem do movimento
e do desenvolvimento, a impulsão da vida.

6. AS LEIS DO CONHE CIMEN TO


DA CONTRADIÇÃO

Ainda que a necessidade do desdobramento do "um" em


aspectos contrários, da evidenciação da natureza contraditória
do objeto estudado, tenha surgido no estágio da reprodução, na
consciência, de sua essência, o conhecimento das contradições
começa muito mais cedo. Os prime iros passos nessa direção

.302
 

foram dados praticamente no estágio da colocação em evidência


das características qualitativas e quantitativas.
O momento primeiro, inicial, do conhecimento da con-
tradição é a descoberta, no objeto estudado, de fenômenos
diferentes e contrários que, no começo, são considerados, fora
de sua correlação e de sua interdependência, como completa-
mente autônomos e coexistindo independentemente.
 No cur so do des env olv ime nto posterior do conhe cim ento,
estabeleceu-se sua ligação recíproca, sua colocação mútua e sua
 passage m recíproca de um pelo outro, e isso levou a con sid erá -
los como aspectos indissoluvelmente ligados de um mesmo
fenômeno, como a unidade dos contrários.
A história do conhecimento da eletricidade ilustra muito
 bem essa lei do moviment o do conhecimento.
Sabemos que os primeiros fenômenos elétricos foram obser-
vados na Antigüidade com o âmbar, graças a sua faculdade de
atrair outro s corpos, qua ndo fric ciona dos. Em seguida, foi
descoberta essa mesma propriedade na ágata, no diamante, no
cristal de rocha , no enxofr e e em outr os corpos. Na segunda
metade do século XVII, Guericke descobriu que, ao lado do
fenômeno de atração existia também o da repulsão elétrica e
concluiu que a atração elétrica manifesta-se quando há a inte-
ração de um corpo eletrizado com um corpo não eletrizado,
enquanto que a repulsão produz-se entre dois corpos ele-
trizados.
A atração e a repulsão elétricas são consideradas, aqui,
como dois fenômenos autônomos não ligados entre si, embora
eles sejam produzidos por uma única e mesma força elétrica.
Logo depois, Du Fay estabeleceu que nem todos os corpos
eletrizados se repudiam e que há mesmo alguns, dentre eles,
com o a resina e o vidro, que se atrae m. Est uda ndo esse fe-
nômeno, ele concluiu que há dois tipos de eletricidade que se
atraem mutuame nte e repudia m seus semelhantes. Ao primeiro
tipo, ele deu o nome de eletricidade de vidro e, ao segundo, o
nom e de eletricida de de resina . O prime iro aparece (depois
de friccionado) no vidro (daí o nome), nas pedras preciosas,
nos cabelos etc.; o outro aparece no âmbar, na resina, na
seda etc. A diferença essencial entre esses dois tipos de
eletricidade está no fato de que cada um deles repudia a
eletricidade do mesmo gênero que a dele e atrai a de gênero
diferente.

.303
 

 Nesse nível do conhecimento dos fenômenos elétricos, es-


ses dois gêneros de eletricidade parecem ser independentes um
do outro e ligados de forma exterior, isto é, contingente.
Benjamin Franklin, em 1747, procurou explicar a atração
e a repulsão elétricas a partir de um princípio único e de
apresentá-las sob a forma de diferentes manifestações, ou esta-
dos, de um mesmo tip o de eletricidade. Ele pensava que
existisse uma matéria elétrica única (fluido), que penetrava
todo s os corpos. As partí culas dessa matéria repelem-se entre
si, mas são atraídas pelas partícu las de um corpo. Quan do o
corpo encerra tanta matéria elétrica quanto ele pode conter,
não manifesta propriedades elétricas, não é eletrizado, e quando
aparece nesse corpo uma sobrecarga de matéria elétrica, ele
torna-se eletrificado positivamente (eletricidade de vidro).
Mas há casos em que o corpo encerra menos matéria elétrica
do que pode conter, então, ele é eletrificado negativ amente
(eletricidade de resina).
Franklin explicava a eletrificação dos corpos da seguinte
maneira: por friccionamento, a matéria elétrica passa de um
corpo para outro, assim, um deles possui mais matéria elétrica
do que a regra geral, enquanto que o outro possui menor
quantidade dessa matéria. A repulsão recíproca dos corpos
 pos iti vam ent e carregados era explicada pel a propri edade de
repulsão das partículas da matéria elétrica e a atração recíproca
dos corpos carregados diferentemente, pelo fato de que os
corpos portadores de uma carga positiva tendem a transmitir
suas sobrecargas, enquanto que os corpos carregados negativa-
mente tendem a preencher sua insuficiência com partículas da
matéria elétrica. A tend ência da eletricidade de se repart ir
de maneira igual servia de explicação à atração de um corpo
eletrifi cado e de um corpo não eletrificado. A teoria de
Franklin da eletricidade fornece um certo fundamento teórico
 para os fenômenos elétricos observados com a garrafa de Leyde.
Embora tendo explicado alguns fenômenos elétricos, a
teoria de Franklin não pode, entretanto, explicar de forma
satisfatória o fenômeno da repulsão recíproca dos corpos car-
regados negativ amente. A hipótes e de que as partícu las que
não possuem uma quantidade normal de matéria elétrica são
repulsivas parece extremamente artificial e não consegue con-
vencer ninguém.

.304
 

Por isso, essa teoria não pode suplantar o ponto de vista


da existência de dois gêneros de eletricidade, que continua a
ser desenvolvida por vários estudiosos.
Uma explicação científica lógica da contradição que está
à base dos fenômenos elétricos, só se tornou possível no fim
do século XIX, depois da descoberta do elétron — vetor de
uma carga negativa — e do próton, de carga positiva, cujas
interações permitem elucidar as contradições que condicionam
os fenômenos elétricos, tais como "unidade" e "luta" dos con-
trários que, em condições adequadas, passam um pelo outro.
Assim, o desenvolvimento do conhecimento da eletricidade
mostr a que o conhe cimen to das contradições efetua-s e po r
meio da descoberta, no objeto estudado, dos diferentes fenô-
menos contrários e de sua correlação e interdependência orgâ-
nicas.
Uma lei análoga pode ser encontrada no desenvolvimento
do conhecimento do calor e, em particular, da irradiação
térmica.
 No curso do estudo do calor, observamos que cer tos
corpos emitem raios térmicos e que outros os absorve m. A
irradiação térmica era ligada ao processo de combustão ou de
aquecimento dos corpos, enquanto que a absorção do calor era
ligada aos corpos, cuja temperatura era inferior àquela dos
corpos que emitiam o calor. No começo, os fenôm enos con-
trários eram considerados como autônomos, independentes um
do outro e divididos entr e vários corpos. Depois, no fim do
século  XVin,  procuraram estabelecer a ligação necessária entre
esses fenômen os. Assim, em 1791, o físico genovês Pierr e
Prévost emitiu a idéia de que a irradiação e a absorção térmicas
são próprias de todos os corpos e que cada corpo emite e
absorve os raios térmico s. Segundo esse ponto de vista, a
quantidade dos raios emitidos e absorvidos depende da tempe-
ratu ra do corpo e do estado do meio ambiente, Se o corp o
emite tanto calor quanto recebe dos corpos que o rodeiam,
estabelece-se entre eles um equilíbrio térmico. Se um certo
número de corpos revela-se mais aquecido, estes emitirão uma
quantidade maior de raios térmicos do que aquela que absorvem,
enquanto que os corpos menos aquecidos absorverão uma
quantidade maior de raios do que aquela que emitirão.
Assim, segundo Prévost, a irradiação térmica e a absorção
de calor não intervêm isoladamente, como afirmavam anterior-

.305
 

mente, mas em correlação, e essas propriedades não pertencem


a corpos diferentes, mas são as propriedades de cada corpo.
Possuindo tendências contrárias, os corpos, segundo Prévost,
estão em interação e, no curso desta, a tendência dominante
será às vezes uma , às vezes outr a. Logo, ele considera a irra-
diação e a absorção como a unidade dos contrários, que estão
em "luta" permanente entre eles.
O sábio escocês John Leslie procedeu a um estudo mais
detalhado do laço entre a irradiação e a absorção dos raios
térmicos. Em particu lar, ele desco briu que os corpos que têm
uma forte capacidade de irradiação possuem, igualmente, uma
forte capacidade de absorção, e vice-versa.
O fundamento teórico da unidade da capacidade de irra-
diação e de absorção foi dado por Gustav Robert Kirchhoff em
1854. Ele formu lou a lei que tra z o seu no me e que pode ser
resumida da seguinte maneira: para todos os corpos, indepen-
dentemente de sua natureza, a relação do poder emissivo es-
 pectral ao poder absorvente espec tral é a fu nção do com pri -
mento da onda e da temperatura e é igual ao poder emissivo
de um corpo negro nessa temperatura.
Assim, o desenvolvimento do conhecimento da contradi-
ção ligada à irradiação térmica passou para a fixação dos
fenômenos contrários, o estudo de cada um deles fora de seus
laços com os outros, o estabelecimento de seu condicionamento
recíproco e de sua "luta" e a tomada de consciência de sua
unidade, de sua identidade, enquanto que os contrários excluem-
se e estabelecem-se mutuamente.
A questão dos graus do conhecimento da contradição foi
colocada sob uma forma geral por F. Vikkerov que, correta-
mente, indicou os pontos de partida do movimento do pensa-
men to rum o às contradiçõe s. Segundo ele, o conhecimento da
contradição objetiva subdivide-se em "dois graus": no começo,
colocamos em evidência as diferenças essenciais e os aspectos
contrários existentes no seio do fenômeno, depois a contradição
que se esconde por trás deles, e cujas formas de existência são,
 justamente, a diferença e o co nt rár io^ .

F. F. Vikkerov, Sobre o problema dos degraus do conhecimento


25

da contradição objetiva, in  Problemas de teoria do conhecimento,   Perm,


1961, (Col.) p. 49. Original em russo.

.306
 

B. Kedrov, em seu livro  A Unidade da dialética, da lógica


e da teoria do conhecimento  (orig. em russo) , forneceu uma
26

formulação mais completa dessa lei do movimento do conhe-


cimento.

7. OS TIPOS DE CONTR ADIÇÕE S


E SUA IMPORTÂNCIA
PARA A PRÁTICA

Já observamos que cada formação material encerra uma


contradição e que ela é a unidade dos aspectos contrários.
Mas isso não significa que toda fo rmaç ão material contém
apenas uma única contradição . Possuindo uma quantida de
inumerável de aspectos e de propriedades, cada formação ma-
terial particular encerra uma multidão de contradições que
estão longe de desempenhar o mesmo papel em seu desen-
volvimento.
Todas as contradições, próprias a essa ou àquela formação
material, podem ser divididas em internas e externas, essenciais
e não essenciais, fundamentais e não-fundamentais, principais e
secundárias.
As interações das tendências ou dos aspectos opostos de
uma única e mesma formação material são contradições inter-
nas. As interações de tendências e aspectos opostos própri os
a formações materiais diferentes são contradições externas. Um
exemplo de contradições internas nos é fornecido pelas contra-
dições entre o consumo e a produção, próprios a essa ou àquela
sociedade, a contradição entre a excitação e a inibição, próprias
à atividade nervosa, a contradição entre a onda e o corpúsculo,
que aparece no movi ment o de part ículas elementares, assim
como o elétron ou o fót on. Um exemplo das contradições
externas pode ser fornecido pela contradição entre a URSS
e um país capitalista, a contradição entre um elétron e um
 pósitron etc.
As contradições internas e externas não têm a mesma
importância no desenvolvimento das formações materiais. As

20
B. M. Kedrov,  A unidade da dialética, da lógica e da teoria do
conhecimento,  Mosco u, 1963. Original em russo.

.307
 

contradições internas desempenham nessas formações materiais


o papel decisivo, porq ue condicionam a autolocomoção do
objeto e é precisamente seu desenvolvimento e sua solução que
 provoc am a passagem de um fenôme no de uma qualidade a
outr a e a um novo estágio de desenvolvimento. Qua nto às con-
tradições externas, sua influência é sempre exercida mediante
as contradições internas e sua importância concreta depende de
sua correspondência ou de sua não correspondência às contra-
dições inter nas dessa ou daqu ela for maçã o material. Se elas
correspondem de uma forma ou de outra às contradições inter-
nas, sua influência é positiva, e em caso contrário, ela é negativa.
As interações entre aspectos e tendências contrários, ca-
racterísticos da essência da formação material, são contradições
essenciais; as interações entre aspectos e tendências contrários,
 próprios de um domínio do fenômeno, de ligações e rel ações
continge ntes, não são essenciais. As contrad ições entre as
relaç ões contin gentes, não são essenciais. As contr adiçõ es
entre as relações de produção e as forças produtivas da so-
ciedade socialista, que aparecem, periodicamente, à medida
que há o desenvolvimento das forças produtivas, são essenciais,
 porq ue relacionam-se com a essência do modo de pr od uç ão ,
cujo conteúdo (forças produtivas), modificando-se continua-
mente, condiciona o caráter contraditório da relação recíproca
com a for ma. É igual mente essencial a contr adiçã o entre as
cargas elétricas positivas e negativas, porque ela é uma das
caracter ísticas da essência da eletricidade. Uma contradi ção
não-essencial é, por exemplo, a não correspondência do desen-
volvim ento de alguns domínios da indústria socialista, que
resulta, às vezes, do trabalho impreciso de alguns organismos
de planejamento, porque ela não decorre da natureza do regime
socialista, da essência da indúst ria socialista. As contr adiçõ es
entre os diferentes partidos políticos burgueses são igualmente
contradições não-essenciais. Toda s essas contradições não
alcançam a essência das formações materiais consideradas, mas
são concernentes aos aspectos exteriores, às ligações e às rela-
ções não-essenciais.
As contradições essenciais desempenham, sem nenhuma
dúvida, um papel fundamental e decisivo no desenvolvimento
dessa ou daqu ela for maç ão material. Com efeito, se as con-
tradições essenciais relacionam-se ao domínio da essência de
uma formação material, seu desenvolvimento e sua resolução

.308
 

repercutem-se obrigatoriamente sobre a própria essência da


formação material, acarretando para essa última mudanças cor-
respond entes. As contradições não-essenciais são concer nentes
às ligações e às relações contingentes, portanto, seu desenvolvi-
mento e sua resolução podem não afetar a essência da formação
material . É por isso que seu papel no desenvolvimento das
formações materiais não é importante.
As contradições essenciais caracterizam a natureza das
formações materiais e, por sua vez, subdividem-se em funda-
mentais e não-fund amentai s. As contradições fundame ntais
são aquelas que determinam o estado e o desenvolvimento dos
aspectos mais ou menos essenciais da formação material e de-
sempenham esse papel em todas as etapas de sua existência e
de seu desenvolvimento. As contradições não-fu ndamen tais
são aquelas que caracterizam um dos aspectos da formação
material, condicionam o funcionamento e o desenvolvimento
de um domínio qualquer dos fenôme nos. Por exemplo, a con-
tradição entre o caráter social do trabalho e a forma privada
de apropriação na sociedade capitalista, a interação entre a
absorção e a rejeição ocorrida nos organismos vivos, entre os
 processos de exc ita ção e de inibição na ativi dade nervosa
superior, a correlação entre a análise e a síntese no ato cogniti-
vo relacionam-se às contradições fundamentais porque, de uma
maneira ou de outra, elas marcam, com suas pegadas todos
os outros aspectos característicos do domínio correspondente
dos fenôm enos. Assim, as contradiç ões características de alguns
domínios da vida da sociedade capitalista ou de alguns aspectos
da atividade cognitiva també m não são fundam enta is. Por
exemplo, a contradição entre o desenvolvimento planificado da
 produç ão em alg uma s empresas capitalistas e a anarquia no
conjunto da sociedade; a contradição entre a tendência à ex-
 pansão ili mitada da pr od uç ão capitalista e o consumo limit ado
das massas populares que há nesses regimes; a contradição entre
a quantidade de germes produzidos pelo organismo e a quanti-
dade de germes que subsistem etc. são contradições não-fun-
damentais, porque caracterizam apenas alguns aspectos de
objetos determinados.
Além da contradição fundamental que age em todas as
etapas da existência e do desenvolvimento da formação ma-
terial, distinguimos ainda uma contradição principal que deter-
mina igualmente todos os outros aspectos da formação material

.309
 

e deixa nesta uma marca determinada, mas que só age em um


estágio dado do desenvol vimento e no quadro deste. A con-
tradição principal está organicamente ligada à contradição
fundamental e é, habitualmente, um dos aspectos desta, uma
 parte con sti tut iva ou um a fo rm a concreta de sua man ifestação,
Da resolução da contradição principal depende o desenvolvi-
mento da for maç ão materia l e sua passage m par a o estágio
seguinte.
Todos os tipos de contradições consideradas são univer-
sais, isto é, produzem-se em todas as formas de existência da
matéria.
As contradições que se manifestam em todas as formas do
movimento da matéria apresentam, entretanto, outras particula-
xidades, ao lado daquelas já observadas, que são condicionadas
 pela esp eci ficidade do domínio dos fe nômenos e pela form a de
movimento da maté ria nos quais elas apare cem. Por exemplo,
alguns traços característicos são próprios das contradições da
natureza inanimada, outros são próprios ao mundo vegetal e
animal e outros, ainda, são próprios à vida social.
Levando em conta a especificidade da manifestação e da
resolução das contradições na sociedade, todas as contradições
que concernem à vida social podem ser divididas em antagônicas
e não-antagônicas . São antagônicas as contradições entre as
classes e outros grupos sociais que têm interesses opostos. São
não-antagônicas as contradições entre as classes ou outros gru-
 po sociais que têm int eresse s comuns em que stões fund amen ta is
da vida e interesses opostos ou diferentes em questões não-
fundamentais, particulares.
Assim, as contradições entre os escravos e seus donos,
entre os senhores feudais e seus servos, entre a burguesia e o
 proletariado, entre os paíse s imper ial istas e os povos coloniais,
entre o mundo socialista e o mundo capitalista etc. são contra-
dições antagôn icas. As contra dições entre a classe operá ria e
os camponeses na sociedade socialista, entre as forças produti-
vas e as relações de produção socialistas não são antagônicas. .
Um traço particular das contradições antagônicas é que
sua resolução acarreta no desaparecimento e na destruição da
unida de, do estad o qualita tivo ao qual elas são própr ias. Por
exemplo, com a resolução da contradição entre os escravos e
seus donos desa pare ce a escra vatur a. A resolução da contra-
dição entre o proletariado e a burguesia é acompanhada igual-

.310
 

mente pela extinç ão da unid ade constituída pelas classes. O


modo de produção capitalista caracterizado por essa contradição
é substi tuído pelo mod o de prod ução socialista, pel a nova
unidade.
Ao contrário das contradições antagônicas, as contradições
não-antagônicas não têm essa propriedade . Sua resolução não
somente não destrói a unidade ou o estado qualitativo mas, em
vez disso, refo rça- os. Por exemplo, a resolução dessa ou
daquela contradição, surgida entre as forças produtivas e as
relações de produção no curso do desenvolvimento da socie-
dade socialista, não destrói o modo de produção socialista, mas
acarreta seu reforço e seu aperfeiçoamento.
As contradições antagônicas caracterizam-se por uma ten-
dência a tornar mais agudos e, a transformar seus aspectos cons-
titutivos ao extremo. Essa tendência é condicionad a pela
 própria na ture za dessas contrad ições e pel o car áter inconciliável
dos interesses de classe, no qual estão basea das. É po r isso que
os socialistas de direita e os revisionistas estão errados quando
afirmam que, com a transformação do capitalismo em capita-
lismo monopolista de Estado, as contradições antagônicas,
 próprias da sociedade cap ita lista , desaparecem e que a socie-
dade envereda pelo caminho de um desenvolvimento planifi-
cado, har mon ios o e sem crises. O capitalis mo mono poli sta
de Estado não modifica a natureza das contradições próprias
ao capitalismo e é por isso que ele não pode evitar que essas
contra dições ten dam a tornar- se mais agudas. Além disso,
sendo a expressão máxima da natureza reacionária do imperia-
lismo, o capitalismo monopolista de Estado apenas reforça essa
tendência, aprofundando ainda mais as contradições sociais, e,
exatamente por isso, aproxima o momento de sua resolução.
"O poderio enorme dos monopólios internacionais torn ou a
conco rrênci a aind a mais impiedosa. Os governos dos países
capitalistas fazem sucessivas tentativas para suplantar a crise.
Mas a natureza do imperialismo é de tal ordem que cada um
 pr oc ura obter vantagens às custas dos outros e impôr sua
vontade. Os desentendimentos manifestam-se sob novas for-
mas, e as contr adiçõ es explodem com uma for ça cada vez
maior" . 27

0 XXV Congresso do PCUS. Documentos e resoluções,   Moscou,


í7 

Edições da Agência de Imprensa Novosti, 1976, p. 35.

.311
 

Diferentemente das contradições antagônicas, as contradi-


ções não-antagônicas não encerram tendências à exacerbação,
 po rq ue baseiam-se em interesses comun s, nas questões fu nd a-
mentais, o que faz com que os grupos sociais que constituem
as diferentes partes dessa ou daquela contradição não-antagô-
nica, estejam fundamentalmente interessados em ultrapassá-la
e no desenvolvimento do domínio correspondente do fenômeno.
Entretanto, isso não significa que a contradição não-antagônica
nunca se torne mais acentuada. Se não tomamos medidas
oportunas para resolvê-la, os aspectos que a constituem podem
transformar-se em extremos.
O que é específico para a sociedade socialista e o período
de construção do comunismo é que o desenvolvimento engendra
e destrói as contra dições não-an tagôn icas. A resolução dessas
contradições produz-se sem conflitos de classe, com base na
unidade moral e política de toda a sociedade. O partido co-
munista desempenha, aliás, na resolução desse caso, um grande
 papel . É ele que toma as medidas nec essárias para resolver
essas contradições em tempo oportuno: revela as causas dessas
ou daquelas contradições, define os caminhos e os métodos
 pa ra resolvê-las e mobiliza os recur sos hu ma no s e materiais
 pa ra executar as tarefas que res ult am disso.

.312
 

XIV. A NEGAÇÃO
DA NEGAÇÃO

1. A NEG AÇÃO DIAL ÉTI CA

Como já fizemos observar, em um estágio dado do de-


senvolvimento da contradição, os contrários mudam-se seja
um pelo outro, seja pelas formas superiores, condicionando a
resolução da contradição e, ao mesmo tempo, a eliminação do
antigo estado qualitativo e o aparecimento de um estado novo.
O aparecimento deste resulta, portanto, da negação do antigo
estado qualitativo que já está anulado. O resu ltado disso é
que a negação é um momento necessário do desenvolvimento.
Mas, mediante a negação de uma formação material (ou
de um estado) por uma outra, produz-se não somente o desen-
volvimento do inferior ao superior, do menos perfeito ao mais
 perfeito, mas igualm ente um movimento circul ar e uma re-
gressão — passagem do superior ao inferior, do mais perfeito
ao menos perf eito . Portant o, é necessári o distinguir a negaçã o
em decorrência da qual realiza-se a passagem do inferior ao
superior, da negação que se produz no curso do movimento
circular ou de regressão.
Em decorrência da evidenciação das partículas da negação
ligada à evolução surgiu a noção de negaç ão dialética. Distin-
guir a negação dialética entre a massa de negações observadas
na realidade objetiva não significa, entretanto, que na realidade
objetiva, ao lado da negação dialética submissa às leis da
dialética, exista uma negação metafísica que escapa às leis da
dialética. A dialética estuda as leis gerais do movimento e,
 portanto, de um movimento que nã o é evolutivo, que nã o é
acompanhado pela passagem do inferior ao superior, mas que

.313
 

representa mudanças regressivas ou um movimento circular —


repetição do passado sobre a mesma base.
Por que chamamos de dialética a negação ligada à evolu-
ção, qua ndo a nega ção ligada à regressão e ao movim ento
circular é classificada de não-dialética?
Essas denominações são convencionais e ligadas às par-
ticularidades históricas do aparecimento e do desenvolvimento
da teoria da dialética. O apar ecim ento da dialética como
ciência está ligado ao reconhecimento do desenvolvimento do
mundo exterior, da realidade objetiva. Enq uan to que a me-
tafísica nega a evolução, o movimento do inferior ao superior,
reconh ece o movime nto regressivo e circu lar. A teori a do
desenvolvimento, de suas leis e de suas formas partiu essencial-
mente da dialética. Designar como dialética a negaç ão em
decorrência da qual realiza-se a passagem do inferior para o
superior, ou seja, a evolução, é exprimir novamente essa par-
ticularidade da dialética que a distingüe da metafísica e que
constitui seu cont eúdo principal. É exatame nte essa idéia que
devemos ter em vista quando analisamos o conceito de nega-
ção dialética. Quais são os traços funda ment ais da negação
dialética que a distinguem da negação dita não-dialética?
Como traço distintivo da negação dialética, citamos fre-
qüentemente a objetividade, a realidade de sua existência e o
fato de que ela é uma conseqüência da luta das forças e ten-
dências contrárias internas, próprias à formação material (ou
ao estado qualitativo) negado, isto é, ela é uma autonegação.
 No que concerne a esses mome ntos, eles são incon testa-
velmente próprios à negação dialética, mas não constituem sua
especifici dade. O que é objetivo e o que se pro duz realm ente
é não somente a negação característica dos processos evolutivos,
mas igualmente a negação característica do movimento circular
e das mud anç as regressivas. Alg uma coisa análoga produz-s e
com o condicionamento da negação dialética pela natureza con-
traditória interna da formação (ou do estado) que é negado.
O resultado da luta dessas forças internas, da interação das
tendências contrárias internas pode ser não somente a passagem
do inferior para o superior, mas igualmente a passagem do
superior para o inferior, assim como o movimento em círculo.
Por exemplo, a morte por velhice de um organismo vivo, ou
a desagregação dos átomos dessa ou daquela substância radioa-
tiva, ou ainda a pulsação das estrelas que é acompanhada por

.314
 

modificações da temperatura de sua superfície são produzidas


com base e em decorrência da luta de forças e de tendências
contraditórias, mas esses processos não constituem uma negação
dialética, porque eles não condicionam a passagem do inferior
ao superior.
Alguns autores consideram como um traço específico da
negação dialética a passagem de uma coisa negada pelo seu
contrário.
A passagem da coisa em seu contrário é característica da
negação dialética, mas nem toda negação dialética significa a
 pas sag em de um fe nômeno neg ado em seu contrário; po de acon-
tecer que, no curso da negação dialética, o fenômeno transfor-
me-se ou não em seu contrário, ou em qualquer outra coisa,
superi or em rela ção ao estado qualitativo anterior. Por exem-
 plo, quando da passa gem, em decorrência da negação dialética,
do lítio para berilo e do berilo para bório etc. não se produzem
transformações da formação material negada em seu contrário.
A negação da propriedade escravagista dos meios de produção
 pela prop ried ade privada feudal, e a negação desta última pela
 pr op ri ed ade cap ita lis ta etc. não constituem um a passagem para
o contrário.
Ao mesmo tempo, essa lei (passagem do fenômeno em seu
contrá rio) pode ser observada nos casos de negação não-
dialética. Por exemplo, as passagens do vivo par a o morto,
da substância orgânica em substância inorgânica, de partículas
elementares possuidoras de uma massa em repouso a partículas
elementares que não possuem massa etc. constituem diferentes
casos de passagem de fenômenos em seu contrário; entretanto,
nenhum deles está ligado à negação dialética.
Uma característica da negação dialética que a distingüe da
negação não-dialética é o fato de que a primeira desempenha
o pape l de elo de ligação entre o inferi or e o superior. E isso
se dá, porque a negação dialética, sendo uma conseqüência da
evolução e da resolução das contradições próprias à formação
material negada, não é uma simples destruição desse ou daquele
determinismo qualitativo, mas representa uma negação no curso
da qual tudo o que havia de positivo no estado negado, en-
contra- se retido e tran spla ntado para um est ado qualitativo
novo.

.315
 

2. A NEGAÇ ÃO DIAL ÉTIC A


E O MOVIMENTO DO ABSTRATO
AO CONCRETO

Se no curso da negação dialética de algumas formações


materiais (ou estados qualitativos), por outras, conserva-se e
se desenvolve todo o positivo atingido no curso do desenvolvi-
mento precedente, então toda formação material (ou estado
quali tativ o) surgida no proces so da negaç ão dialética deve
 pos sui r um conteúdo mai s rico, po rq ue encerra sob uma fo rma
anulada tudo o que era positivo e próprio às formações mate-
riais precedentes e possui como próprio alguma coisa específica
que surgiu quando da passagem da matéria a um novo estágio
de desenvolvimento. Em conseqüência disso, no processo da
negação dialética de algumas formações materiais por outras
 produz-se um movimento não somente do inferior ao superior,
mas do conteúdo menos rico, limitado e, em um certo sentido
abstrato,  para um conteúdo mais rico, diversificado e   concreto.
Ess a lei do desenvol vimento da maté ria foi assinalada
 pela primeira vez por Aristóteles . Co mo pri ncí pio primeiro de
desenvolvimento, ele tomava a matéria inicial que, sendo inde-
terminad a e informe, não possui quase nenhum conteúdo. Ela
nem mesmo tem prop ried ade de existência real. É apenas uma
 pos sib ili dade. A tr an sf or ma çã o da ma téria indeterminada em
matéria determinada realiza-se, para Aristóteles, pela união dela
com uma forma qualq uer. E dessa uni ão nascem as coisas e,
em particular a água, o ar e a terra, que já têm algum conteúdo
concre to. Assim, par a Aristóteles , e fetua-s e a passagem do
indeterminado ao determinado, do abstrato ao concreto. As
coisas que aparecem dessa forma podem, por sua vez, associar-
se a outras formas e constituir novas coisas, além de poder ser
apresentadas em seu conteúdo sob a forma de substrato geral
da matér ia. Essa s novas coisas têm uma essência mais rica do
que aquelas a partir das quais formaram-se, porque além da
essência das coisas anteriores, elas encerram, sob uma forma
anulada, os momentos e aspectos condicionados pela nova
for ma. Esta s últimas coisas, assim como as precedentes , po-
dem associar-se a uma nova forma e formar coisas novas, que
terão uma essência ainda mais rica, pelo fato de que elas
incluirão, sob uma forma anulada, tudo o que era próprio às

.316
 

coisas que serviram de ponto de partida ao seu aparecimento e


terão, além disso, o que for trazido pela nova forma.
Segundo Aristóteles, o aparecimento de formações novas
no conteúdo sempre mais complexo e mais rico se produzirá
enquanto todas as forma s não forem esgotadas. A forma
suprema e a mais perfei ta é Deus. El e repres enta o pont o
máximo da evolução.
Podemos facilmente observar que Aristóteles captou, em
traços gerais, o princípio do desenvolvimento, segundo o qual
 pro duz -se a negação de algumas formações materiais por outras,
assim como a retenção do conteúdo positivo do que é negado
e o movimento do abstrato ao concreto, do conteúdo menos
rico a um conteú do sempre mais rico. Aristóteles captou real-
mente-esses momentos, mas apresentou, entretanto, de maneira
deformada, o mecanismo e a origem da negação de certas
formaç ões materiais por outras. Segundo ele, essa negação é
o resultado da ação que uma forma existente fora e independen-
temen te desse ou daquel e ser exerce sobre ele. Ele não com-
 preendeu que a negação é o resultado da evolução e da res olu-
ção das contradições próprias à formação material negada.
A estreiteza da concepção aristotélica do desenvolvimento
do ser, através da negação periódica de um pelo outro, foi
suplantada pela filosofia de Hegel.
Como ponto de partida, Hegel apresenta o ser abstrato,
 puro, indet erminad o, colocando em evidência as tendências
contrárias que lhe são próprias e mostrando como, em decor-
rência da luta dessas tendências contrárias, produz-se a negação
de um e o aparecimento do outro, em um conteúdo mais con-
creto e mais rico.
Assim, tendo estabelecido o "ser puro" como princípio
 primei ro, Heg el o declara despr ovido de qua lquer conteúdo
determinado e equivalente ao "nada" . O "na da" e o "ser pur o"
constituem a unidade, o que engendra a vida, o movimento,
graças ao que o "ser puro" entra em seu vir-a-ser ou desempe-
nha o papel de vir-a-ser. A categoria de vir-a-ser já possui um
certo conteúdo, um certo concreto, embora ainda pouco impor-
tant e. O vir-a-ser leva ao apare cimento do "ser-aqu i" que,
ao contrário do ser puro, já é um ser determinado, isto é, já
 possui uma qua lidade.
A categoria de qualidade é ainda mais concreta do que a
categoria de vir-a-ser e possui um conteúdo mais rico. Não

.317
 

é mais o "nada" que se opõe à qualidade, mas um outro ser


determinado, uma outra qualidade. Um outro ser determinado
limita o ser dado, e apare ce a fina lidade. Sendo relaciona do
com ele mesmo, o ser dado transforma-se em ser por si, em
qualqu er coisa de único , em unid ade. A categori a de quanti-
dade aparece. A quanti dade manifesta-se primeiram ente como
indet ermina da e indif erent e à qua lidade da coisa. Depois,
sendo colocada em certos limites, ela torna-se uma quantidade
determinada. Relacio nando-s e com uma outra quantidade, ou
com ela mesma, a quantidade determinada coloca em evidência
sua qualidade. Observamos, então, u ma certa unidade da
quantidade e da qualidade. Aparec e a categoria de medida.
Uma certa mudança de qualidade conduz a uma mudança da
qualidade dada e ao aparecimento de uma nova qualidade e,
com esta última, de uma nova quantidad e. Um a medida é
destruída, uma outra aparece.
Mas, por trás de todas essas mudanças, esconde-se alguma
coisa estável e cons tant e: as categorias de substân cia e de
essência, que privam de autonomia as categorias de quantidade,
de qualidade e de medida; estas últimas transformam-se em
momentos das categorias indicadas, tornando, dessa forma, seu
conteúdo ainda mais rico, mais concreto. Existindo por meio
de suas propriedades, a coisa desaparece nelas e torna-se fenô-
meno. A unid ade da essência e do fen ôme no constitu i a
realidade. A realidade manifesta-s e no começo sob a forma
de possibilidade. A uni dad e da possib ilidade e da realid ade
manifesta- se sob forma de neces sidad e. É a part ir da necessi-
dade que se efetua a passagem à causalidade, ao laço de causa
e efeito. O laço entre a causa e o efeito transfor ma- se em
interação, enquanto à base da interação está o conceito.
Assim, Hegel passa ao "conceito do conceito". O con-
ceito constitui o verda deiro conteúdo da essência. A categoria
de conceito intervém aqui como generalizadora de todo o sis-
tema das categorias precedentes, as quais representam apenas
os estágios, momentos determinados do vir-a-ser do conceito,
e é essa a razão pela qua l as c ateg orias. citada s são contidas
nele, sob uma forma anulada.
"Em geral, diz Hegel, é preciso consid erar o conceito
como o  terceiro  elemento, tanto em relação ao  ser   e à  essência,
como em relação ao  imediato  e à  reflexão. O  ser e a essência
são, nessa medida, apenas instantes de seu vir-a-ser; mas o

.318
 

conceito é seu fundamento e sua verdade, enquanto identidade


na qual são criados e contidos. E eles são contidos no conceito
 porq ue este res ult a deles, mas nã o mais na qualidade de   ser   e de
essência-,  porque estes últimos só são definidos dessa maneira
na medida em que ainda não regressaram para essa unidade
que é a deles" , isto é, enquanto estiverem anulados pelo con-
1

ceito. Por esse fato, a categori a de conceito revela ser a mais


concreta com relação às categorias que a precedem.
Assim, à medid a que há o movi mento antes do pensa -
mento, à medida que o pensamento afasta-se do princípio pri-
meiro, aparecem as categorias sempre mais concretas, que en-
cerram, sob uma forma anulada, todos os momentos do caminho
 percorr ido.
Assim, torna-se óbvio que Hegel representou a evolução
como um movimento do abstrato ao concreto sempre mais
concreto, condicionado pelas contradições internas, que se reali-
za mediante a negação de um pelo outro e a manutenção, sob
uma forma anulada, do conteúdo positivo do que foi negado.
O movimento progressivo, escreve ele, caracteriza-se pelo
fato de que "começa a partir de simples determinações e de
que as determinações seguintes tornam-se sempre mais   ricas  e
concretas.  Porque o resultado contém nele mesmo seu próprio
começo e o desenrolar deste o enriquece de uma determinação
nova" .2

A resolução, feita por Hegel, dessa questão apresenta


o defeito de considerar essa lei somente como a lei do desen-
volvimento da idéia, do espírito, rejeitando sua aplicação
à nature za. A natu reza, segundo Hegel, é incapaz de evoluir.
Suas form as apenas coexistem no espaço. O desenvolvi-
mento é característico somente do conceito de natureza, que
está à base de todos os fenômenos que se desenvolvem
nela e os reúne . "Aqui , ele observa quanto à naturez a, nenhum
 pro ces so  natural,  físico é engendrado, isso se produz apenas
no seio da idéia interior que constitui o fundamento da natu-

1
G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in   Sämtliche We'ke,  v. 5,
 p. 5-6.
2
G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in  Sämtliche Werke,  cit.,
 p. 349.

.319
 

reza. Apenas o conceito, enquan to tal,  metamorfoseia-se,


 porque ape nas as muda nç as represen tam um dese nvol vi me nt o" . 3

A filosofia marxista é a única a dar uma concepção global


e a prosseguir na elaboração com uma base materialista e
científica dessa lei, que foi estudada com aplicação à natureza,
à sociedade e ao conheci ment o. A par tir daí, foi estabelecido
que o movimento (no processo da evolução), indo das forma-
ções de um conteúdo menos rico às formações de um conteúdo
mais rico, isto é, do abstrato ao concreto, é uma lei universal.
Ela manifesta-se em qualquer lugar, na natureza, na sociedade,
no conhecimento.
Tirando dessa lei uma conclusão relativa à atividade men-
tal do sujeito conhecedor, Karl Marx elaborou um método de
ascensão do abstrato ao concreto, no processo do conhecimento,
da intelecção da essência do objeto, de sua expressão em um
sistema de imagens , de conceit os ideais. Ante s de Marx, os
homens de ciências que estudavam esse ou aquele domínio dos
fenômenos aplicavam, em geral, o método da ascensão do con-
creto sensível ao abs tra to. Segun do esse méto do, o estud o de
um domínio dado dos fenôme nos devia começar pelo todo
concreto. Par a estudar esse todo, era necessário isolar os
aspectos, as propriedades e estudá-los enquanto tais, fora de
sua ligação com outros aspectos, e chegar, dessa maneira, aos
conceitos mais simples que refletiam algumas propriedades gerais
ou particulares. A elucidação das propried ades ou relações
gerais ou universais, mesmo das mais simples, era considerada
como suficiente para conhecer o todo estudado, para dele fa-
zer-se uma certa idéia.
Como exemplo de fundamento teórico desse método, po-
demos nos referir a Hobbes e a Locke que, em suas obras
filosóficas, dedicar am-lhe grande atenção. Como exemplo de
sua utilização, podemos recorrer aos economistas do século
XVII que, em seus estudos econômicos, sempre começavam
 pelo to do conc reto e, em pa rtic ular, pe la po pula çã o e, no de-
correr de um estudo posterior, iam dos conceitos sempre mais
simples, rumo às abstrações mais elaboradas, até que chegavam
às noções mais simples, como aquelas de "trabalho", "divisão

3
G. W. F. Hegel, System der Philosophie. 2 Teil. Die Naturphiloso-
 phi e, in  Sämtliche Werke,  Stuttgart, 1929, v. 9, p. 58.

.320
 

de  trabalho",  "valor de  troca" etc.  "Os economistas do século


XVII, por exemplo, dizia Marx analisando seu método de co-
nhecimento, começam sempre pelo todo vivo, pela população,
 pela na ção, pelo Esta do , vários Estados etc., mas ac ab am
sempre por uma análise que distingue algumas relações abstratas
universais e determinantes, assim como a divisão de trabalho,
de dinheiro, de valor etc.. ." . 4

Depois das propriedades e dos aspectos particulares do


todo serem conhecidos e traduzidos em noções gerais as mais
simples ("abstrações elaboradas"), só era preciso, de acordo
com esse método, reunir de forma mecânica esses conceitos e
abstrações mais simples, para conhecer a essência desse todo.
£ óbvio que não se chega a nenhum conhecimento da
essência orientando-se por esse princípio, porque a essência não
é uma totalidade mecânica, nem tampouco é a simples associa-
ção das propriedades e dos aspectos do objeto, mas sua unidade
dialética, um tod o dialético, cujos aspectos encon tram- se em
correlação e interdependência necessárias e naturais.
É por isso que, embora sendo necessário no estágio inicial
do desenvolvimento do conhecimento, no estágio da distinção
e da fixação das propriedades, dos aspectos e das ligações mais
simples do todo estudado, esse método não é absolutamente
aplicável ao conhecimento da essência desse todo, nem à repro-
dução, na consciência, do conjunto de seus aspectos e ligações
necessários (leis), em sua interação, em sua interdependência
natural.
De acordo com esse princípio do conhecimento, a pesquisa
deve ser começada não pelo concreto, mas pelo abstrato, pelos
conceitos que refletem os aspectos ou relações gerais ou univer-
sais os mais simples. Alé m disso, como elo inicial, como pont o
de partida, não se deve tomar qualquer aspecto (simples, uni-
versal), mas um aspecto que seja decisivo no todo estudado,
que determ ine todos os seus outros aspectos. Depo is de ter
distinguido o aspecto decisivo principal, devemos, de acordo
com esse princípio de pesquisa, tomá-lo em seu desenvolvimen-
to, isto é, observar como ele surgiu, quais os estágios transpos-
tos e de que mane ira, no curso desse desenvolvimento, ele
influi sobre todos os outros aspectos de uma formação material

4
  K. Marx e F. Engels,   Werke.

.321
 

dada, condicionando nela as mudanças correspondentes. Dessa


maneir a, r eprod uziremos, passo a passo , na consciência, o
 proce sso do desen volvimento da fo rm aç ão mat eri al estudada e,
ao mesmo tempo, o conjunto de seus aspectos e ligações neces-
sários, que lhe são próprios, isto é, de sua essência.
Ela bor and o seu qua dro de classificações periódicas dos
elementos químicos, Mendelev utilizou e spont aneamente algu-
mas exigências desse método de estudo como princípios direti-
vos da atividade gnoseológica. Est uda ndo os elementos quími-
cos, ele constatou que todos eles têm seu próprio peso atômico
e que, além disso, cada elemento é caracterizado por seu próprio
 peso atômico, rigorosamente específico. A partir disso, ele
chegou à conclusão de que as propriedades dos elementos quí-
micos dependem de seu peso atômico, e decidiu fazer desse
 peso o po nt o de pa rt ida do estud o das propriedades desses
elementos. Par tin do do peso atômico, como princípio geral ou
como fundamento geral da classificação de todos os elementos
químicos, e leva ndo em conta tod a a riquez a do part icular
 próprio a essa ou àquel a pa rt e desses elementos, ele criou
um sistema único, rigoroso, que não somente sistematizava os
elementos químicos já conhecidos e precisava suas propriedades
 parti cular es, mas que dava ainda a possib ilidade de prever a
existência de novos elementos químicos ainda não descobertos
e de jogar alguma luz sobre propriedades novas, ainda desco-
nhecidas. Mendelev escreveu a esse rspe ito: "Com apena s
algumas exceções, adotei os mesmos grupos de elementos aná-
logos de meus predece ssores. Mas fixei, como meu objetiv o,
estudar as leis das relações recíprocas dos grupos e, assim,
cheguei ao princípio geral citado mais acima (a dependência
 per iódica das prop riedad es dos ele men tos químicos em relação
a seu peso atômico — A. Ch.), que é aplicável a todos os
elementos e engloba várias analogias já mencionadas, mas que
admite igualmente conseqüências que, anteriormente eram
impossíveis"^.
Se analisarmos agora o processo do movimento do conhe-
cimento no caso considerado, podemos observar que ele está
essencialmente submetido aos imperativos do método do movi-

5
D. I. Mendelev,  Obras escolhidas.  Leningrado, 1934, t. 2, p. 222.
Original em russo.

.322
 

mento do abstra to ao concreto . De fato , Mendélev tomo u,


como ponto de partida, o aspecto universal mais simples que,
segundo ele, era determinante em relação a todos os outros
aspectos ou proprieda des das formações materiais estudadas.
Em seguida, ele observou suas mudanças, o desenvolvimento
das manifestações inferiores para as superiores, a influência
dessas muda nças sobre a qualidade dos elementos químicos.
Seguindo as mudanças desse aspecto de um elemento químico a
outro, Mendelev ia, na realidade, do abstrato para o concreto,
de um cont eúdo menos rico para um cont eúdo mais rico.
Efetivamente, quando ele realizava a passagem de um aspecto
do  elemento  químico (peso atômico) para todos os seus aspec-
tos e para o conjunto de suas propriedades (ele deduzia essas
 propriedades e as explicava a partir do peso at ôm ic o) , o que
ele fazia era realizar a passagem do abs trato univers al (o peso
atômico é a pro pri eda de universal dos elementos químicos)
 para o concreto (o conj un to de propriedades de um elemento
químico dado), de um conceito com um conteúdo pobre para
um conceito com um conteúdo mais rico.
Depois, seguindo a mudança do peso atômico, e passando
de um elemento químico a outro, ele reconstituía, passo a passo,
e reproduzia na consciência, um depois do outro, os elos desse
sistema complexo dos elementos químicos e, assim, estabelecia
um quadro sempre mais completo dos objetos estudados, isto
é, ia rumo a um concreto sempre mais completo.
É preciso observar aqui que não é nada simples isolar e
definir o ponto de partida, o aspecto geral que será efetiva-
mente determinante nos fenômenos estudados e que desempe-
nha rá tam bém um pap el diretivo em seu desenv olvimen to. No
caso que analisamos, o que foi tomado como ponto de partida
e como aspecto determinante não era, na realidade, o aspecto
que possui essas qualid ades. O nível de desenvolvimento da
ciência naqu ela época não permitia isolar um tal aspecto. E
 pel o fa to de que esse aspecto determinante permanecia desco-
nhecido, não se podia dar uma explicação suficiente, nem che-
gar a nenhuma conclusão que comprovasse o conteúdo concreto
dos elementos, químicos e, portanto, do conhecimento de sua
essência. Par tin do do que se podia observar na superfície dos
fenômenos, Mendelev indicou o domínio ou o aspecto que
determina efetivamente as propriedades dos elementos, mas não
 podia explicar ne m po r que, nem de que man eira esse aspect o

.323
 

é determinante, poique há uma repetição periódica das proprie-


dades. Tam bém sua tese, segundo a qual as propr ieda des dos
elementos químicos são determinadas por seu peso atómico,
 baseia -se antes de tu do na simples observação do fe nôme no da
repetição e não no estabelecimento de um laço de causa e efeito.
Apesar disso, a classificação periódica dos elementos quí-
micos de Mendelev reproduzia de forma tão exata a ligação
real desses elemento s qu e, toda s as descobertas posteriores
quan to à estr utur a dos átomos dos element os químicos, que
levaram à definição dos aspectos reais que desempenham um
 papel decisivo na determinação do co nj un to das propriedades
dos elementos químicos (carga do núcleo atômico) não a
modi fica ram de for ma sensível. Mas, pelo contrár io, a classi-
ficação elaborada por Mendelev serviu de guia para os pes-
quisadores que trabalhavam na estrutura dos átomos, orientando
de maneira notável seus trabalhos.
A teoria mecanicista do calor, teoria que se deve a dois
físicos da segunda metade do século XIX, é um outro exemplo
de conhecimento por ascensão do abstrato ao concreto.
 No pe rí od o precedente, a atenção dos sábios estava voltada
 para o estudo de algumas propriedades do calor, de alguns
fenô meno s que se ligavam a isso. Em decorrência dessas
 pesquisas, fo ra m elaborados vár ios con cei tos gerais abs tra tos,
que refletiam certos aspectos e ligações dos fenômenos térmicos,
isto é, condutibilidade térmica, irradiação térmica, ponto de
fusão, ponto de ebulição, capacidade calorífera etc. Da mesma
forma foram descobertas algumas relações gerais e necessárias
 — leis própri as ao calor . Ass im, Boyle, em 1665, formulou
a lei de constância dos pontos de fusão dos corpos; Galileu
Galilei, em 1693, descobriu a lei de constância do ponto de
ebulição da água; e um pouco mais tarde, Newton descobriu
a lei de constância do produto das capacidades térmicas e dos
 pesos atômicos específicos; Fourier, em 1822, encontrou de
forma experimental a lei segundo a qual uma corrente de calor,
que atravessa uma camada dada, é diretamente proporcional à
diferença de temperaturas nos limites dessa camada, da super-
fície da camada e inversamente proporcional à espessura da
camada.
Mas, reunir todos esses conhecimentos em um todo uni-
ficado, fundi-los em um princípio único, só foi possível na
segunda metade do século XIX, quando foi estabelecido que

.324
 

o calor repres enta uma form a partic ular do movime nto da


matér ia, ou seja, o movimento das moléculas. Com a desco-
 berta da natureza do calor, foi estabelecido o elo fund am ental,
o princípio determinante, a partir do qual puderam ser explica-
dos todos os fenômenos condicionados pelo calor, além de
represe ntá-lo s em sua correla ção e em sua interde pendên cia
necessárias e naturais, isto é, reproduzir sua essência na
consciência.
A explicação dos fenômenos térmicos, partindo da idéia
de que o calor é uma for ma partic ular do movim ento das
menores partículas da matéria, foi fornecida pela teoria mecâ-
nica do calor. De acord o com essa teoria, o calor representa
um movimento caótico progressivo, rotativo ou de balanço das
menores partículas: moléculas, átomos, íons etc., que permutam
continuamente sua energia.
Partindo dessa concepção do calor, podemos facilmente
explicar todos os fenômenos que se ligam a ela e, em par-
ticular, a condutibilidade e a irradiação térmicas, assim como
a passagem de um estado de agregação a um outro, os diferentes
 pont os de fu sã o e de ebulição das diversas sub stâ ncias etc.
Com efeito, a condutibilidade térmica pode ser apresen-
tada da seguinte maneira: as moléculas das partes aquecidas
do corpo agitam-se e chocam-se com as coléculas das partes
vizinhas, transmitindo-lhes uma parte de sua energia e aumen-
tan do sua velocid ade. Essas outras moléculas, por sua vez,
agem da mesma mane ira sobre as moléculas vizinhas etc. Em
decorrência disso, a energia interna do corpo parece passar das
 partes com temp erat ura elevada pa ra as partes com temperatura
inferior.
A energia do movimen to térmico transmite-se de uma
 pa rt e do corpo, a outra, nã o ape nas mediante a interação das
moléculas, mas igualmente através da interação dos elétrons,
dos átomos e dos íons. Por isso, nã o é por acaso que os
metais possuem uma grande quantidade de elétrons livres capa-
zes de se deslocar em todo condutor, sejam eles bons ou maus
cond utor es de calor. Os elétrons que se deslocam livremente
em um sentido ou em outro chocam-se com os átomos e com
os íons do metal, trocam uma parte de sua energia e, assim,
aceleram o movimento da energia das partes mais aquecidas
do corpo, rumo às menos aquecidas.

.325
 

Ao lado da passagem de certas partículas para outras,


uma quantidade notável de energia interna do movimento tér-
mico é continuamente emitida para o exterior, sob a forma de
quanta  e essa energia é completada sem cessar pela absorção
de  quanta  emitido por outros corpos . Por isso, fala-se do poder
de irradiação e do poder de absorção de um corpo, e da trans-
missão, por irradiação, da energia de um corpo para outro,
quando estes .se encontram a uma certa distância dele.
Partindo do calor como forma particular do movimento
das moléculas e de outras partículas, podemos facilmente
explicar a presença de três estados de agregação e a passagem
dos corp os uns pelos outros. Assim, o estad o sólido dos
corpos deve-se à atração recíproca das moléculas, que é aqui
 part icularmente importante, o que faz com que as mol écu las
sejam solidamente ligadas entre si e operem um movimento de
 balanceamento, apenas em relação a certas pos ições de equilí-
 brio, ou seja, aos nós da re de cristalina. Qu an do há o aqueci-
mento de um sólido, as moléculas que se chocam recebem
uma energia suplementar e aumentam a amplitude e a veloci-
dade de seu bala nceament o. Em decorrência, o corpo se dilata.
À medida que prossegue o aquecimento, as moléculas aumen-
tam sua velocidade e afastam-se sempre mais umas das outras.
Finalmente a distância entre elas aumenta de tal forma que as
forças de atração não conseguem mais manter seu balancea-
mento per to da posiç ão constante de equilíbrio. Esse equilíbrio
é destruído e as moléculas, continuando a exercer uma certa
influência umas sobre as outras e a se atrair, começam a se
deslocar nesse ou naquele sentido, embora sendo acompanha-
das pelas molécu las vizinhas. Assim, o corpo perd e sua for ma
determinada e passa ao estado líquido.
As forças de atração entre as moléculas, sendo diferentes
segundo as substâncias, provocam a liquefação. destas últimas,
em diferentes temperaturas. Mas os sólidos representam uma
única e mesma substância e se liquefazem a uma única e cons-
tante temperatura. É verdade que, a pressão sob a qual o
sólido se enco ntra influi sobre esse pon to de fusão. Mas a
explicação, inclusive desse fenômeno, está ligada ao movimento
térmico das moléculas que acarreta uma mudança de volume.
Se é próprio ao corpo em fusão diminuir seu volume (gelo),
o aumento de pressão acarretará no abaixamento de seu ponto
de fusão, completando, dessa maneira, uma parte da energia

.326
 

do movimento molecular, necessário à reestruturação das liga-


ções e relações moleculares, no sentido da diminuição de volume.
Se o corpo em fusão se dilata (enxofre), o aumento de pressão
acarretará uma elevação de seu ponto de fusão, porque, aqui,
 pa ra a reestruturação das ligações e das rel açõ es moleculares
que são acompanhadas pela dilatação do corpo, isto é, pelo
aumento da distância entre as moléculas que o compõem, será
 pre cis o uma energia complementar pa ra ven cer as forças da
 pressão exterior que ent rav am o aumento do volume do cor po.
O fato de que a temperatura do corpo que recebe o calor
não mude no momento da fusão decorre de que essa energia
serve não para o crescimento da energia do movimento mo-
lecular, mas para vencer a resistência das forças de atração das
moléculas do sólido.
Quanto à transformação de um corpo sólido em gás, esta
desenvolve-se de forma análoga: com a elevação da temperatura
do líquido, a velocidade das moléculas e seu afastamento cres-
cem conti nuame nte. Fina lmen te a energia do movim ento das
moléculas aumenta a tal ponto que as colisões térmicas destroem
as ligações entre as moléculas e a substância começa a entrar
em estado gasoso. É preciso observ ar, entret anto, qu e a
transformação de uma substância em um estado gasoso está
igualmente ligada à pressão exterior exercida sobre o líquido,
que também se esforça para manter o conjunto das moléculas.
Por isso, o ponto de ebulição também depende não somente
das forças de atração recíproca das moléculas, que caracterizam
esse ou aquele líquido, mas igualmente da pressão exterior.
Quando a pressão aumenta, o ponto de ebulição eleva-se, e
vice-versa.
Assim, partindo do princípio único da noção geral e
abstrata do calor, como forma particular do movimento das
menores partículas, que está ligado à troca de energia entre
elas, efetua-se o movimento rumo a um concreto sempre mais
denso, no curso do qual explicam-se e reúnem-se em um todo
único, todo s os fenôm enos térmicos e, exat ament e por isso,
chegamos ao conhecimento da essência do objeto estudado.
Esse é o fundamento do princípio da lógica dialética da
ascensão do abstrato para o concreto.
 

3. A LE I DA NEG AÇÃ O
DA NEGAÇÃO

 No curso da negação dia létic a de alg uma s coisas, por


outras, observamos não somente a passagem das formações
materiais tendo um conteúdo menos rico, para as formações
materiais que possuem um conteúdo cada vez mais rico, mas
igualmente uma volta para trás, a repetição do que já foi
transposto, sobre uma base nova. A "volta aparente ao anti go" , 6

não é um fenômeno contingente, mas uma lei universal neces-


sária do desenvolvimento. Ess a volta é determinad a pelo fato
de que no processo da negação de certas formações materiais
ou estados qualitativos por outr os efetua -se a passagem dos
fenômenos (qualidades, traços, aspectos, propriedades) não
somente para um estado diferente, mais elevado (mais perfeito),
mas também em seu contrário. " ( . . . ) Não há   nenhum  fenô-
meno que não possa, em certas condições, transformar-se em
seu contrário" .
7

Depois de ter-se transformado em seu contrário, o fenô-


meno, no curso de outras negações, transforma-se novamente
em seu contrário e dá, assim, a impressão de voltar a seu estado
inicial. Ve m daí a repetiç ão do estado já trans posto , mas sobre
outra base, mais elevada, porque, no fenômeno que volta a seu
estado inicial, encontramos sob uma forma anulada, o conteúdo
 pos iti vo adq uirido no curso do desenvolvimento pos ter ior, em
decorrência da passagem do fenômeno por outros estados qua-
litativos mais elevados e em seu contrário.
A idéia de um laço entre a repetição dos graus já trans-
 postos no curso do desenvol vimento da matéria, po r um lad o, e
a trans forma ção dos fenômeno s em seu contrário, por outro
lado, foi claramente exprimida por Plekhanov: "No término de
seu vir-a-ser, todo fenômeno transforma-se em seu contrário,
escrevia ele, mas como esse novo fenômeno, antitético ao
 primeiro, transforma-se, po r sua vez, em seu contrár io, a ter-
ceira etapa da evolução apresenta uma analogia de forma com
a primeira" .
8

6
V. Lenin,  Oeuvres,  t. 38, p. 210.
7
V. Lenin, op. cit., t. 22, p. 332.
8
G. Plekhanov,  Ensaio sobre o desenvolvimento da concepção
monista da história,  Paris-Moscou, Editions Sociales, Ed. Progresso,
1973, p. 81-82. Origin al em russo .

.328
 

A repetição, sobre uma nova base, superior do que já foi


transposto no curso da negação dialética constitui a essência
da lei da negação da negaçã o. Em sua obra   Karl Marx,  Lenin
colocou em evidência o conteúdo dessa lei e chamou atenção
 precisamente pa ra esta particularidade da evo luç ão. El e indi-
cou que: "a negação da negação" é "uma evolução que parece
reproduzir os estágios já conhecidos, mas sob uma outra forma,
em um grau mais e lev ado .. . " . 9

A forma elementar de manifestação da lei da negação da


negação é o retorno ao ponto de partida, a repetição do que já
foi transposto, sobre uma base nova, por meio de duas nega-
ções. Isso produz-se quando a transf ormaçã o do fenômeno em
seu contrá rio efetua-se no curso de uma únic a negação. Em
decorrência da primeira negação, o fenômeno transforma-se em
seu contrário e, em decorrência da segunda, esse novo fenô-
meno, transformando-se, por sua vez, em seu contrário, repete
(sobre uma base nova) o primeiro, o inicial.
A repetição do que já foi transposto, sobre uma base mais
elevada, por meio de duas negações, não é uma coisa rara.
Encontramos casos desse tipo na natureza, na sociedade, no
conhecimento. Por exemplo, grão-planta-gr ão; borboleta-crisá-
lida-borboleta. Entret anto, na realidade, observamos, ao lado
dessa, uma outra lei. A volta par a trás, a repetição, sobre
uma nova base, do que já foi transposto, pode ser feita não
apenas por meio de duas negações, mas por três, quatro, cinco
ou mais. Isso se deve ao fato de que o fenô meno trans forma-s e,
no começo, em um estado qualitativo mais elevado e, somente
depois, em seu contrá rio. Em conseqüê ncia, para voltar à po-
sição inicial, é preciso mais de duas negações. Seu núme ro
depende da natureza específica das formações materiais.
Por exemplo, quando da passagem do lítio, cujas proprie-
dades metálicas são claramente definidas, ao berílio, observa-
mos a transformação do fenômeno, não em seu contrário, mas
em um outro estado qualitat ivo. O berílio apresenta muitos
traços comuns ao lítio e, em particular, às propriedades metá-
licas, embora essas sejam menos claras no berílio do que no
lítio. També m não há transfo rmação em seu contrário, quando
da passagem par a o bor o, que se segue à do berílio. O boro

9
V. Lenin, op. cit., t. 21, p. 49.

329
Tfiseu Savérío Sposito
 

 possui igualmente propriedades met álicas, embora ele já ma-


nifeste também as dos metal oides . Em seguida, quando da
 pas sagem ao carbono, ao ozôni o e ao oxigênio, as propriedades
metálicas desaparecem completamente, enquanto que as pro-
 priedad es metaloides acentuam-se, o que significa uma trans-
for maçã o gradu al do fenô meno inicial em seu contrário. Essa
 passagem só está def initiva mente termin ada qu ando chega ao
flúor, metaloide particularment e ativo. A passagem de um
elemento químico, cujas propriedades metálicas estejam nitida-
mente marcadas, em um elemento químico possuidor de pro-
 priedades não-metálicas, nitidamente marcadas, efe tua-se em
seis negações.
A volta no curso do desenvolvimento posterior ao ele-
mento dotado de propriedades metálicas é mais brutal e efetua-
se somente por meio. de duas negações — a negação do flúor
 pelo neô nio , gás ine rte des provido de propriedades dos metais
e dos metaloides, e a negação do neônio pelo sódio que, como
o lítio, possui propriedades metálicas nitidamente marcadas. A
volta para trás, a repetição da etapa já transposta, sobre uma
 base nova, realiza-se, po rt anto, po r meio de oito negações. Há
casos em que essa passagem se faz por meio de dezoito nega-
ções (do potássio ao rubídio), por meio de 32 negações (do
césio ao frâncio) e por meio de 4 negações (da propriedade da
comunidade primitiva à propriedade social socialista) etc.
Certos autores ignoram esse ponto de vista e ligam a lei
da negação a apenas duas negações . 10

A necessidade de duas negações para a repetição, sobre


uma nova base, do que já foi transposto, provém da concepção
da negação dialética como transformação do fenômeno em seu
contrári o. E desde que toda neg açã o dialética condicio na a
 pas sagem de um a coisa em seu contrário, pa ra que possa dar-se
a volta à posição inicial, são suficientes duas negações: no
curso da primeira, a coisa transforma-se em seu contrário e, no
curso da segunda, há uma volta ao ponto de partida e a repe-
tição do grau já transposto, sobre uma nova base . 11

10
G. M. Domratchiov, S. F. Efimov, A. V. Tmoíeev,   A lei da
negação,  Mos cou , 1961, p. 116. Orig inal em russo.
"V. Baguirov,  A lei da negação da negação,   p. 151. Original em
russo.
 

Esse raciocínio seria incontestavelmente exato se, na reali-


dade, cada negação dialética representasse a passagem do fenô-
meno em seu contrário. Entre tant o, sabemos que nem todas
as negações dialéticas constituem a passagem do estado quali-
tativo negado em seu contrário. Freqüente mente, no curso da
negação dialética, a coisa transforma-se não em seu contrário,
mas em qualquer outra coisa, em um outro estado qualitativo.
Desde que isso acontece, é absolutamente incorreto apreciar a
dupla negação como um traço característico da lei da negação
da negação. O aspecto necessá rio dessa lei não é a dupla
negação, mas a repetição dos graus da etapa já transposta sobre
uma nova base, mais elevada, repetição que é condicionada
 pela pas sagem do fe nôme no em seu contrário, no cur so da
negação de certos estados qualitativos por outros.
É evidente que os autores em questão percebem que seu
esquema contradiz a situa ção real das coisas. Eles têm cons-
ciência disso e esforçam-se para adaptar esse esquema aos fatos.
Por exemplo, compreendendo que nem toda negação dialética
condiciona a passagem de uma coisa em seu contrário, e que
 pa ra essa pas sag em são pre cisas várias negações, eles con sid e-
ram como uma única negação dialética toda a série de negações
necessárias para a passagem desse ou daquele fenômeno em seu
contrário. Eles privam de autonomia qualquer negação que
entre nessa série e consideram-na como uma etapa, uma fase,
um grau da mudança qualitativa da coisa ou de sua passagem
em seu contrário. Em decorrência de todas essas transf orma-
ções, a repetição de uma nova etapa, por meio de duas nega-
ções do que já foi transposto, transformou-se, segundo eles, em
uma lei universal.
Em nossa opinião, todas essas transformações não são
 justi ficad as. Como já sabem os, a negação dialética é a destrui-
ção da coisa condicionada por suas contradições internas, no
curso da qual o conteúdo positivo da formação negada é con-
servado e desenvolve-se no interior da formação material mais
 perfeita, surgida em decorrência dessa des truição. Por isso,
não há absolutamente fundamento para privar de autonomia
uma negação dialética, como, por exemplo, a transformação,
no decorrer do desenvolvimento histórico, da propriedade pri-
vada escravagista em proprie dade feudal e da propried ade
feudal em capitalista, porque ela contém todos os indícios
necessários da negaç ão dialética. O process o da negaç ão dia-

.331
 

lética é condicionado aqui pelo desenvolvimento das contra-


dições internas e é acompanhado pela manutenção e pela repe-
tição, em um estágio superior, do conteúdo positivo do estágio
inferior negado . É verd ade que aqui não há passagem do fe-
nômeno em seu contrário, mas, como já dissemos, isso não é
obrigatório par a a nega ção dialética. Os autores menci onados
acima erigem em absoluto esse caso particular e dele fazem uma
forma universal, a única forma possível de negação dialética e,
exatamente por isso, deformam a realidade.
Assim, na realidade, não é toda negação dialética que
constitui uma passagem da coisa em seu contrário e, portanto,
a repetição do que já foi transposto, sobre uma nova base, não
se realiza sempre por meio de duas negações; o número de
negações é extremamente variável.
Esforçando-se para justificar, a qualquer preço, a tese
segundo a qual a dupla negação é a única forma de manifes-
tação da lei da negação da negação, certos autores declaram
que toda passagem de uma formação material de um estado
qualitativo a um outro representa uma dupla negação, que é
acompanhada de uma volta ao ponto de partida de uma repe-
tição, sobre uma nova base, do que já foi transposto. Seu
raciocínio é o seguinte: o salto, em decorrência do qual realiza-
se a passagem da coisa de um estado qualitativo a um outro,
encerra dois momentos: a destruição da antiga qualidade e a
afirm ação da quali dade nova . A destruição da antiga quali dade
é a primeira negação, condiciona a passagem da coisa em seu
contrári o. A afi rmaç ão da nova quali dade é a segunda negação
 — negaç ão da ne gação. E con diciona a volta ao po nt o de
 partida, sobre um a no va base (rumo a uma nova   q u a l i d a d e ) 12.
A idéia de que o salto-negação encerra ao mesmo tempo
um momento de destruição e um momento de criação e repre-
senta a unid ade da negaç ão e da afirmação' é correta. O que
é incorreto é dizer que cada um desses momentos representa
uma fase particular e independente da transformação de um
fenômeno em outro, ou em seu contrário, e que cada um dentre
eles constitui uma negação dialética particular.

12
M. Vorobiov, Sobre o conteúdo e as formas da lei da negação da
negação,  Boletim da Universidade de Leningrado,  n. 23, 1956, Caderno 4,
 p. 60 (Sé rie Ec on om ia, Fi lo so fi a e Di re it o) . Orig inal em rus so.

.332
 

 No salto, a destrui ção e a criação não são moment os ou


fases isoladas, autônomas, mas representam dois aspectos,
organicamente ligados, e não podem existir um sem o outro,
de um mesmo processo de transformação de um fenômeno em
um outro, de uma qualidade em uma qualidade nova.
 Na realidade , nã o há negação que des trua sem criar, e
vice-versa, porque cada negação é ao mesmo tempo destruição
e criação — destruição de uma e criação de outra, porque a
negação nada mais é do que a transformação de uma formação
material ou de um estado qualitativo em outros.
Por isso, o salto não é duas negações, das quais uma seria
chamada a destruir a antiga qualidade e a outra a criar uma
nova qualidade, mas uma única negação que é chamada a
transformar a antiga qualidade em uma nova qualidade pela
eliminação dos aspectos e das ligações que não correspondem
às novas condições.
Se, no processo da evolução, as novas formações materiais
repetem periodicamente, em traços gerais e sobre uma nova
 base, mais ele vad a, os graus já trans posto s, então, é absoluta-
mente natural que o desenvolvimento não possa seguir uma
linha diretamente ascendente, mas dê-se segundo uma espiral,
em que cada volta dê a impressão de repetir a precedente, mas
sobre uma base mais elevada.

.333
 

XV. A POSSIBILIDADE
E A REALIDADE

1. AS CONCEP ÇÕES IDEALIST AS


E METAFÍSICAS
DA POSSIBILIDADE
E DA REALIDADE

Com a passagem do fenômeno à essência, o conhecimento


não pára nem cessa o seu movimento, mas penetra sempre mais
 pr of un da me nt e os obje tos estudados, col oca em evidência as-
 pec tos e ligações sempre novos, e pas sa, assim, da essência de
 prime ira ordem à essência de segunda ordem, e assim até o
infinito, Por esse fato, torn a-se necessário formar e utilizar
novas categorias.
Por exemplo, colocando em evidência a essência das for-
mações estudadas, o conhecimento volta-se para o passado,
segue a história do surgimento e do desenvolvimento dessas
forma ções materi ais. Depo is de atingir a essência e, apoi ando -
se nela, o conhecimento olha para a frente, para o futuro, e
descobre imediatamente novas formas e ligações universais do
ser, novos aspectos e relações universais. Com efeito, repro -
duzindo a essência dessas ou daquel as form ações materiais,
 podemos apr eciar nã o some nte o que representa essa ou aquela
coisa em um momento dado, em suas relações dadas, mas
igualmente qual será seu comportamento em um outro mo-
mento, em outras relações. E, ainda mais, se sabemos como
essa coisa surgiu, os principais estágios que transpôs em sua
evolução, podemos também prever com exatidão no que ela
vai se transformar e o que ela poderá se tornar no futuro, em
outras condições.

.334
 

Logo, se conhecemos a essência de uma formação ma-


terial, conhecemos tanto seus estados reais, como seus estados
 possíveis, os qu e ainda nã o existem, mas que surgi rão nec es-
sariam ente em certas condições. Mas, o estado real não é
idêntico ao estado possível, o que existe não é idêntico ao que
ainda não existe, ao que será unicamente em certas condições.
O alcance de um e do outro está longe de ser o mesmo para
a prática dos homens.
Por isso torna-se necessário separar, distinguir o real do
 possível, colocar em evi dência as particularida des de um e do
outro, compreender a dialética das transformações de um e do
outro e recorrer às categorias de "possibilidade" e de "realidade".
O problema da possibilidade e da realidade preocupa há
muito tempo os filósofos, inclusive os da Antigüidade. Platão ,
 por exemp lo, pr oc ur ou resolvê-lo distinguindo a existência
 possível e a existência real. Segundo ele, é o mund o das idé ias ,
das essências ideais que possui um ser real, e nquan to que o
mund o das coisas possui apenas um ser possível. Est an do no
estado de possibilidade, o mundo das coisas, para Platão, não
 pode tr ansf orma r- se em realidade, adq uirir um a existência
real. O ser real e o ser possível estão separados po r uma
fronteira intransponível. Ele diz, por exemplo, que o que
sempre existe não conhece o vir-a-ser, enquanto que o que está
sempre no vir-a-ser não conhece o ser.
Aristóteles, ao contrário de Platão, reconhece a existência
separada, independente da possibilidade e da realidade, e nega
que uma front eira intransponível as separe. Ele acredita que
o possível pode tornar-se real, assim como o real pode tornar-se
 possib ilidad e. Pa ra Ari stóte les , a possibili dade pu ra manifes-
ta-se como matéria primeira, a realidade pura é a forma que
se confunde, no final das contas, com Deus — forma de todas
as form as. A uni ão da forma e da matér ia faz surgir coisas
qualitativamente determinadas, que possuem um ser possível e
um ser real.
Aristóteles diz que as essências, as qualidades e os outros
aspectos do ser principal apresentam-se tanto como realidade,
quanto como possibilidade, ou sob uma forma ou sob outra,
ao mesmo tempo, enquanto que as mudanças em todos os do-
mínios do ser prod uzem- se de acordo com as determi nações
contrárias que existem em cada um deles.

.335
 

Para Aristóteles, a passagem da possibilidade à realidade


não se faz a partir das forças, das tendências internas, da coisa,
mas está ligada à ação de fato res exteriores, de uma força
exterior, isto é, a essa ou àquela coisa realmente existente,
" . . . porque, dizia ele, se é sempre do ser em potencial que vem
o ser em ato, é apenas graças à influência prévia de um ser
que este próprio ser torna-se igualmente em ato" -. 3

Apoiando-se nessa tese de Aristóteles, Tomás de Aquino


defendeu a necessidade da existência de uma realidade pura
que, por sua ação, acarrete a transformação dessa ou daquela
 possibilidade em realidade. Segundo ele, apenas Deus pode
representar uma realidade tão pura.
A ruptura metafísica entre a possibilidade e a realidade,
assim como sua criação em absoluto, leva necessariamente ao
idealismo , à pro cur a de um princípio ativo, capaz de unir a
 possibi lidade e a realidade e de criar, exatamente po r isso, a
diversidade das coisas e dos fenômenos que nós observamos.
Giordano Bruno opôs-se categoricamente à ruptura entre
a possib ilidade e a reali dade. Segundo ele, a possibi lidade não
 pode existir fo ra da reali dade, independentemente del a, já que
lhe está organicamente ligada. " ( . . . ) A possibilidade de ser,
escreve ele, existe na realidade junto com o ser e não o pre-
cede" .2

Thomas Hobbes desenvolveu essa mesma idéia; demons-


trando a correlação orgânica da possibilidade e da realidade, ele
destacou que elas são ambas da mesma natureza, concernem
aos mesmo s fenômenos. A possibilidade, ou o potenci al, e a
causa agente significam, no fundo, a mesma coisa mas,- exa-
minados em ligações diferentes: quando falamos da causa,
temos em vista a ação que já começou; quando falamos da
 pos sibili dade, temos em vista a ação que deve ainda pr od uz ir -s e . 3

Leibniz tratou da correlação dialética da possibilidade e


da realidade, pelo fato de que as possibilidades de todas as
mudanças das coisas estão contidas na coisa em si, em sua
natu reza inte rna. Ele dizia que a coisa não recebe do exterior
nada que já não esteja contido nela como possível, e que tudo

^ i s t ó t e l e s ,  Métaphysique d'Aristote, Paris, 1879, t. 2, p. 451.


2
G. Bruno,  Dialoghi italiani,  Sansoni-Firenze, 1958, p. 281.
3
T. Hobbes,  Hobbes Selections,  Chicago, 1930, p. 100.

.336
 

o que ela experimenta produz-se apenas porque o fundamento


encontra-se no seio dessa coisa . 4

Kant tinha um outro ponto de vista. Segundo ele, a


 possibilida de e a realidade nã o são próprias às coisas, ao
mundo exterior, mas são características da razão humana, de
suas facu ldade s cognitivas. "A distinção entre as coisas pos-
síveis e reais, diz ele, só tem sentido enquanto distinção subje-
tiva para a razão humana" . 5

Hegel criticou a aproximação subjetivista de Kant da pos-


sibilidade e da realida de. Desenvolvendo o pensa mento de
Leibniz sobre o laço orgânico da possibilidade e da realidade
imediata, ele mostrou não somente o condicionamento da pri-
meira pela segunda, mas igualmente a dialética da transforma-
ção de uma na outr a. Segundo ele, "a real idad e imediat a
contém um germe de alguma coisa compl etame nte diferente
dela. No começo dessa outra coisa, só há possibilidade, mas
depois essa for ma anula-se e trans forma -se em realid ade. Essa
nova reali dad e. . . é o interior autêntico da realidade imediata,
que absorve esta última. Assim, as coisas tom am uma outra
imagem, entretanto, nada de novo aparece, porque a primeira
realidade estabelece apenas sua essência" . 6

A realidade é, segundo Hegel, a unidade do interno e do


externo, da essência e da existência, o necessário e sua mani-
festação (sua existência) por meio do contingente.

2. A CONCEPÇÃ O DIA LÉTI CA


E MATERIALISTA
DA POSSIBILIDADE
E DA REALIDADE

As leis da correlação do possível e do real percebidas


 por Heg el fo ra m assimiladas de form a mat erial ista e fo ra m
também cientificamente fundamentadas no materialismo dialé-
tico. Do ponto de vista do materialismo dialético, a realidade

4
  L. Feuerbach,  Geschichte der Neuer. Philosophie.  Ansbach, 1837,
 p. 208 -9.
SKant's Werke,  v. 5, p. 402.
G. W. F. Hegel,  Werke. Vollständige Ausgabe,  v. 6, p. 292.
6

.337
 

é o que existe realmente e a possibilidade é o que pode produ-


zir-se quando as condições são propícias.
Podemos objetar que: "Se a realidade representa o que
existe realmen te, nã o pod emo s distingui-la da possibilid ade,
 porq ue a possib ilidade ta mb ém tem um a existência re al". A
 possibilidade tem, efetivamente, um a existência real, mas so-
mente como propriedade, capacidade da matéria de transfor-
mar-se em condições correspondentes, de uma coisa ou de um
estado qualitativo em um outro. Sob essa for ma, isto é, como
capacidade de transformar-se de um em outro, a possibilidade
é um momento da realidade, como existência real.
Quando falamos da possibilidade como de alguma coisa
que ainda não existe, que ainda não tem existência real, temos
em vista não a capacidade de uma formação material (ou de
um estado) de transfo rmar-se em outro, mas da capacidade
dessas outras formações materiais, ou estados, em condições
correspondentes, transformarem-se em uma formação material
ou um estado qualitativo dado. Eles não têm ser real, não
se encontram ainda na realidade, mas podem proauzír-se, ma-
nifestar-se.
Assim, por possibilidade, entendemos as formações mate-
riais, propriedades, estados, que não existem na realidade, mas
que podem manifestar-se em decorrência da capacidade das
coisas materiais (da matéri a) de passar umas nas outras.
A possibilidade, realizando-se, transforma-se em realidade,
e é por isso que podemos definir a realidade como uma possi-
 bil idade já realizada e a possibilidade como realidade potencial.
Ao lado dessa definição da realidade, encontramos outras,
segundo as quais a realidade não é tudo o que existe realmente,
mas somente o que ainda é necessário e lógico . 7

Procuramos justificar a identificação da categoria de rea-


lidade com as categorias de necessidade e de lei por meio do
argumento de que, nesse caso, poderíamos conhecer mais pro-
fundamente a realidade, isolar as tendências principais no
mundo ambiente e, assim, orientar-nos melhor em nossa ativi-
dade prática.

7
A. K. Sukhotin, Sobre o problema do conteúdo da categoria da
realidade e sua relação com a necessidade, in   Ciências filosóficas,  1960,
v. 4, p. 49.

.338
 

 Nã o há dúvid a de que isolar, na rea lid ade que rodeia os


homens, as grandes tendências, as ligações determinantes, se-
 parar o nec ess ári o, o essencial do contin gente, do não-e sse ncial,
tem uma importância de primeira ordem para o conhecimento
e a prát ica. Mas isso não exige absolutam ente a ident ifica ção
das categorias de rea lida de e de necessidade. A isso pod emo s
chegar pela intelecção da realidade, pelas categorias de "neces-
sário", de "contingente", de "lei", de "fundamental", de "não-
fundamental", de "essencial" e de "não-essencial".
Além disso, dizer que as ligações e as relações contingen-
tes não são reais, não impedirá a revelação de toda a riqueza
da realidade ambiente, nem de se ter nela uma boa orientação,
 porque, na prática, assim como na vida cot idiana e na história,
o contingente, as ligações e as relações contingentes desempe-
nha m igualme nte um pap el considerável. É preciso, na ativi-
dade prática, levá-los em conta como realidades efetivas.
Sendo uma forma universal de manifestação da necessidade,
eles são inseparáveis da realidade, da qual são o lado essencial.
Os autores desse ponto de vista referem-se a Engels que,
analisando a concepção hegeliana da realidade como necessi-
dade, teria expresso sua concordância com esse ponto de vista.
Entret anto, essa referênci a não está funda menta da. Primeira-
mente, indicando que, "para Hegel, tudo o que existe não é
absolutamente real logo à primeira vista", que "o atributo da
realidade só se aplica, para ele, ao que é ao mesmo tempo
necessário" , Engels tinha por objetivo esclarecer a essência
8

da concepção hegeliana dessa questão e não abordou, absolu-


tamente, sua resolução na filosofia marxista. Em segundo lugar,
 para Hegel, ao lado dessa concepção da realidade há um a ou tra,
que reconhece a realidad e e a contingência. "A realidade, de-
clara Hegel, é a unidade tornada imediata, da essência e da
existência ou do interior e do exterior"9. É prec isam ente a
contingência que constitui, em Hegel, o aspecto exterior da
realidade . "Consi derado de muit o perto , o exterior acima
10

mencionado da realidade, escreve Hegel, sobre a relação entre

8
K. Marx, F. Hengels,  Etudes philosophiques,  Paris, Editions So-
ciales, 1961, p. 16.
9
G. W. F. Hegel,  Werke  cit., p. 281.
10
G. W. F. Hegel,  Werke  cit., p. 287.

.339
 

a contingência e a realidade, mostra que a contingência, en-


quanto realidade imediata, é o que é idêntico a si mesmo; mas
ela é o essencial idêntico a si mesmo, unicamente como o
estabelecido que é, ao mesmo tempo, anulado — é o exterior
 pr es en te " . " ( . . . ) A contingência é um momento unilateral
11

da realidade" . 12

Assim, Hegel não exclui a contingência da realidade, não


a declara uma irrealidade, como pensam os autores que mantêm
esse pont o de vista, mas a consider a como seu mome nto, o
aspecto exterio r da realidade. Parec e-nos mais justo considerar
a realidade como a unidade realmente existente do necessário e
do contingente, do interior e do exterior, da essência e do
fenômeno.
A possibilidade transforma-se em realidade não em qual-
quer momento, mas somente nas condições determinadas, que
são um conjunto de fatores necessários à realização da possibili-
dade. Por exemplo, a transf ormação da possibilidade da
revolução socialista nos países capitalistas em realidade não
 pode dar -se em qualquer moment o, mas apenas nas condiç ões
determinadas, ou seja, quando for criada no país uma tal situa-
ção que "a base" não possa mais viver como anteriormente e
a "cúpula" não possa mais governar à maneira antiga, quando
"a miséria agravar-se e a atividade das massas ganhar uma
maior intensidade", quando "a classe operária tornar-se capaz
'de conduzir ações revolucionárias de massa'", quando "ela
 possuir um pa rt id o, e pu de r org ani zar e dirigir essas massas,
a fim de derrubar as classes decadentes" . 13

Se qualquer possibilidade só se transforma em realidade


quando existem condições determinadas, podemos, conhecendo
essas ou aquelas possibilidades, interferir no curso objetivo dos
acontecimentos e, criando artificialmente as condições requeri-
das, acelerar ou refrear sua transformação em realidade.
Toda atividade prática dos homens baseia-se exatamente
nessa lei. Com efeito, todas as operaçõe s do trab alho nada
mais são do que ações que visam criar as condições necessárias
 para a realização dessas ou daque las possibilidades conhe cidas,
 próprias aos objetos e aos fenômenos da natureza, introduzidas

"Hegel,  Werke  cit., p. 291.


Hegel,  Werke  cit., p. 290.
12

V. Lenin,  Oeuvres,  t. 21, p. 216-7.


13

.340
 

nos processos de pro duçã o. Se a atividade práti ca dos homens


 baseia-se na utili zaç ão consciente da tr ansf ormação da possibi-
lidade em realidade, torna-se indispensável analisar a fundo
essas leis e estudar as possibilidades sob seus diferentes
aspectos.

3. TIPOS DE POSSIBILIDADE
E SEU ALCANCE NA PRÁTICA

Pelo fato de que cada formação material constitui a


unidade de uma quan tida de infinita de diferentes aspectos e
tendências contrários, ela possui também uma quantidade infi-
nita de diferentes possibilidades, que estão longe de ter, todas,
o mesmo alcance na atividade prática.
 Na literatura fil osófica, é um a regra comum distinguir as
 possib ilidades reais das possibilidades forma is. Cham amos de
reais as possibilidades que são condicionadas pelos aspectos e
ligações necessários, pelas leis do funcionamento e do desenvol-
vimento do objeto; chamamos de formais as ligações que são
condicionadas pelas ligações e pelas relações contingentes.
Levando em conta o que vem do dito ser, compreendemos
facilmente, por exemplo, que a possibilidade da revolução
socialista nos países capitalistas é uma possibilidade real, por-
que decorre das ligações e das relações necessárias, próprias
a essa sociedade capitalista, condicionada pelas leis internas
do funcionamento e do desenvolvimento da formação capitalista.
É igualm ente real a possibilidade da gestão plan ific ada da
economia nos países socialistas, pelo fato de que ela decorre
inelutavelmente da propriedade social, que é o fundamento
econômico da sociedade socialista, que é condicionada pela lei
do desenvolvimento planejado e proporcional, que se manifesta
nesses países. É form al a possibilidade da tra nsf ormação do
operário em capitalista, assim como a possibilidade da introdu-
ção de uma economia planejada no quadro do capitalismo,
 porq ue isso nã o dec orre da natureza interna da sociedade
capitalista, não é necessariamente condicionado pelas leis de
seu funcionamento e de seu desenvolvimento, mas depende de
todo tipo de circunstâncias, isto é, da contingência. Do pont o
de vista da possibilidade formal, esse ou aquele fenômeno é

.341
 

tanto possível quanto impossível, porque a lógica da contingên-


cia é tal que ela (a contingência) pode produzir-se ou não.
Segue-se que a importância da possibilidade formal para
a atividade prática dos homens é fraca, porque a atividade
 prática bas eia -se inteiramente nas ligações e rel ações que se
repetem e se produzem necessariamente em condições determi-
nadas, isto é, sobre possibilidades reais.
Engendradas pelos aspectos e relações necessários da reali-
dade, as possibilidades reais distinguem-se entre si segundo suas
ligações com as condições necessárias para a sua realização.
E, segundo suas formas de ligação com essas condições, elas
dividem-se em possibilidades abstratas ou concretas.
Uma possibilidade concreta é a possibilidade para cuja
realização podem ser reunidas, no momento presente, as con-
dições correspondentes; a possibilidade abstrata é uma possibi-
lidade para cuja realização não há, no momento presente,
condições necessár ias. Pa ra que essa última se realize, a for-
mação material que a contém deve transpor vários estágios
de desenvolvimento.
Uma possibilidade concreta é, por exemplo, na época
contemporânea, a possibilidade da passagem ao socialismo de
todos os países capitalistas e dos países que estão no estágio
 pré -capi tal ista de desenvo lvimento. Um exe mplo de possibili-
dade concreta pode ser fornecido pela possibilidade de crises
econômicas na próp ria produ ção mercantil. Para transf ormar
essa possibilidade em realidade, não existem as condições ne-
cessárias na própria produção mercantil, por isso seria preciso
que a produção mercantil transpusesse muitos estágios de de-
senvolvimento e passasse por várias transformações qualitativas
e, em particular, que ela se transformasse em produção mercantil
capitalista e que essa última, por sua vez, atingisse um nível
determinado de desenvolvimento. Por tudo isso, não se pode
dizer que foi por acaso que a primeira crise econômica deu-se
apenas em 1825.
A distinção e a consideração das possibilidades concretas
e abstratas reais apresentam uma grande importância para a
atividade prática dos homens e, em particular, para realizar a
 planificação concreta e a planificação a longo prazo. A con -
fus ão dos diferentes tipos de possibilidades pode conduzir a
graves erros. Com o conseqü ência dessa conf usão , pode mos
citar os erros que foram cometidos durante a coletivização na

.342
 

União Soviética, quando os dirigentes locais decidiram passar


a pequena produção mercantil privada, não para os   kolkhozes,
mas diret ament e par a os comunistas. A passagem para a co-
muna é uma possibilidade real que decorre da natureza interna
do Estado soviético, e das leis do seu funcionamento e de seu.
desenvol vimento. Mas, naque la época, essa possi bilid ade era
abstrata, porque as condições necessárias para sua realização
não existiam; para que essas condições surgissem, a sociedade
soviética, sua economia e sua cultura deveriam, ainda, transpor
vários estágios de desenvolvimento e conhecer várias transfor-
mações qualitativas.
Segundo essas particularidades do processo de transfor-
mação dessa ou daquela possibilidade em realidade, as possibi-
lidades podem ser agrupadas em reversíveis ou irreversíveis.
Por exemplo, a possibilidade do movimento mecânico
transformar-se em calor é reversível, porque, com sua realiza-
ção, o que anteriormente era realidade (movimento mecânico)
torna -se possi bilida de. Com efeito, o calor encerra a possibi-
lidade de passag em ao movim ento mecânico. Mas é irrever -
sível a possibilidade da transformação da energia química do
carvão em eletri cidade. Realiza ndo-se, a reali dade inicial
transforma-se em impossibilidade: a eletricidade não tem possi-
 bilidad e de se tr an sf or ma r em car vão.
As diferentes possibilidades, próprias a uma mesma forma-
ção material, são correlativas e interdependentes. Leva ndo em
conta o caráter da ligação das possibilidades, podemos diferen-
ciá-las em coexistentes ou excludentes.
Chamamos de coexistente (com relação a uma outra pos-
sibilidade) uma possibilidade cuja realização não implica o
desaparecimento de outra; e chamamos excludente, uma possi-
 bilid ade cuja realização implica a exclusão de uma ou tr a.
Um exemplo de possibilidade coexistente é a possibilidade
do camponês tornar-se  koulak   (pequeno proprietário explora-
dor da terra), com relação à possibilidade de tornar-se adminis-
trador de terras. Quan do ele se torna um pequeno proprietári o
explorador de suas terras  {koulak),  não pode fazer frente à
concorrência, como conseqüência, vai à falência e torna-se um
operário agrícola assalariado (administrador de terra s). A
 pos sibili dade do camponês da URSS tornar-se   kolkhozien é
excludente com relação à possibilidade de tornar-se um pequeno
 proprietário expl orador de ter ras. Com a tr an sf or ma çã o da

.343
 

 pequena pr od uç ão privada em economia coletiva, socialista, a


exploração do homem pelo homem tornou-se impossível na
União Soviética.
A realização das diferentes possibilidades próprias a uma
formação material não age da mesma forma sobre sua essência.
A realização de algumas dentre elas não modifica a essência,
enquanto que a realização de outras acarreta mudanças na
formação material, leva à transformação desta em uma outra
form ação material. A possibilidade cuja realização não modi-
fica a essência da coisa é denomina da de possibil idade de
fenômeno; a possibilidade cuja realização está ligada à modi-
ficação da essência da coisa, com sua transformação em uma
outra coisa, é denominada possibilidade de essência.
Por exempl o, a possibilid ade de obter um aumen to de
salário que os operários têm, em decorrência da luta contra os
capitalistas, é uma possibilidade de fenômeno, porque sua reali-
zação não mod ific a a essência social desses operári os. Eles
 permanec em o qu e eram ant eri ormen te, privados da propriedade
dos meios de produção, afastados do poder, explorados pela
 burguesia. A pos sibil idade da revoluç ão socialista nos países
capitalistas é uma possibilidade de essência. Sua realizaç ão
acarreta a modificação da essência do regime social e a socie-
dade capitalista transforma-se em uma sociedade socialista.
As particularidades das possibilidades reversíveis e irrever-
síveis, coexistentes e excludentes, assim como as das possibi-
lidades de fenômeno e de essência, estão em relação direta
com a atividade prática humana e sua consideração permite
assegurar uma orientação mais justa, uma escolha mais correta
das vias e dos meios de chegar a esse ou àquele resultado prático.
Examinamos as particularidades das diferentes possibilida-
des e do processo de sua transform ação em realidade. Entre-
tanto, com a transformação da possibilidade em realidade, a
 possibi lidade nã o desapar ece enquanto tal , nã o é eli minada; o
aparecimento de uma nova realidade, em decorrência da reali-
zação dessa ou daquela possibilidade, é acompanhado pelo
apare cimen to de novas possibilidades. Passando de um estado
qualitativo a outro, a matéria não pode, portanto, jamais esgotar
suas possibil idades. Suas possibilidades são ilimitadas.

.344
 

XVI. DA RELAÇÃO DAS LEIS


E DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA

O que há de comum às leis e às categorias da dialética é


que tanto umas como as outras refletem as leis universais do ser,
as ligações e os aspectos universais da real idade objetiva . A
interpenetração dos contrários, a passagem recíproca entre a
qualidade e a quantidade, a repetição, sobre uma nova base,
do que já foi transposto, tanto os elementos refletidos nas
 pri ncipais leis da dialética, quanto os que são tã o universai s
como a relação, além da causa e do efeito, do necessário e do
contingente, da forma e do conteúdo, exprimidos nas categorias
correspondentes.
Ao mesmo tempo, as leis e as categorias apresentam dife-
renças importantes que são concernentes, antes de tudo, ao
obje to do reflexo. As leis da dialética reflet em as ligações e
as relações universais, enquanto que as categorias refletem,
além disso, as propriedades e os aspectos universais da reali-
dade objetiva, o que faz com que o conteúdo das categorias
revele-se mais rico do que o das leis. Por exemplo, a lei da
 pas sag em das mudanças quanti tativas reflete simplesment e a
corre lação da quan tidade e d a qualidade; as categorias de
qualidade e de quantidade, incluindo essa lei, refletem igual-
mente os aspectos que constituem a qualidade e a quantidade
e a ligação de uma característica qualitativa ou quantitativa
com uma outra.
A diferença entre as leis e as categorias concerne igual-
ment e às for mas do reflexo. As leis da dialética, assim como
as leis de qualquer outra ciência, são juízos, enquanto que as
categorias são uma forma particular de conceitos.
Certos autores pensam que as categorias refletem somente
os aspectos, as propriedades, mas não refletem as correlações

.345
 

desses aspectos entre si, que são, segundo esses autores, fixados
 pel as leis correspondentes. Entretan to , a realid ade está muito
longe de ser assim. Esses autores confu nde m o cont eúdo das
determinações dessas ou daquelas categorias com o conteúdo
das própr ias categorias. As determinaç ões das categor ias não
contêm, efetivamente, leis da correlação dos aspectos ou dos
momentos da realidade que são refletidos por essas categorias.
Elas fixam somente o específico e o essencial, que permitem
distinguir as categorias uma da outr a e das outras . Mas a'
determinação das categorias, como de qualquer outro conceito,
não esgota, nem pod e esgotar, tod o seu cont eúdo. Ele é mais
diversificado e mais rico do que as propriedades e os traços
englobados pela determinação. E encerra não somente os
aspectos, as propriedades correspondentes, mas igualmente a
correlação entre eles e os outros aspectos de formações ma-
teriais.
Em particular, o conteúdo da categoria de quantidade
está longe de ser esgotado pelo conjunto das propriedades que
tradu zem o volu me e as dimensões da coisa que figuram
habitualme nte nas determinações dessa categoria. Ele encerra
igualmente o fato de que a categoria está organicamente ligada
à qualidade, e de que em um estágio determinado de sua mu-
dança produz-se uma mudança de qualidade e que suas caracte-
rísticas depen dem das características qualita tivas. Em outros
termos, a categoria de quantidade inclui em seu conteúdo, ao
mesmo tempo, as propriedades que caracterizam a qualidade
e as leis da correlação da quantidade e da qualidade.
O mesmo ocorre com o que concerne à categoria de qua-
lidade, que tem por conteúdo não somente as propriedades que
indicam o que é a qualidade, mas ainda as propriedades que
traduzem sua correlação com a quantidade e, em particular, o
fato de que suas diferenças sejam determinadas pelas mudanças
quantitativas, que ela modifica sob a influência das mudanças
quantitativas etc.
Podemos observar a mesma coisa na análise da relação
entre o conteúdo da lei da unidade e da "luta" dos contrários
e o conteúdo de uma categoria como a de "cont radiç ão". A
lei da unidade e da "luta" dos contrários reflete e fixa o fato de
que há luta entre os contrários (contrários característicos dessa
ou daquela formação material) que se excluem e, ao mesmo
tempo, estão unidos, e que essa luta, em última análise, leva

.346
 

à solução da dita contradição e à passagem da coisa de um


estado qualitativo a um outro. A categoria de "contradi ção"
contém todos esses momentos e ainda vários outros, que entram
no conteúdo da lei da unidade e da "luta " dos contrários. De
fato, a categoria de "contradição" fixa o fato de que a contra-
dição é uma interação entre aspectos opostos ou uma luta dos
contrários. Além disso, a categoria de "con tradi ção" inclui
igualmente a necessidade de distinguir as contradições: inte-
riores e exteriores, essenciais e não-essenciais, fundamentais e
não-fu ndament ais, principais e acessórias; e fixa também os
momentos concernentes a seu papel e à sua importância no
desenvolvimento das formações materiais e, em particular, o
fato de que elas são a origem do movimento e do desenvolvi-
mento etc.
Assim, o conteúdo da categoria de "contradição" é
muito mais rico do que o da lei da unidade e da "luta" dos
contrários.
Encontramos um fenômeno análogo examinando as rela-
ções das outr as categorias e das leis que lhes corr espo ndem.
Tomemos as categorias de conteúdo e de forma e a lei que diz
que o conteúdo determina a form a. Essa lei diz unicamente
que o conteúdo é determinante na relação conteúdo-forma e
que a forma aparece e muda em resposta ao aparecimento e à
mud anç a do conteúdo . No que diz respei to às categori as de
conteúdo e de forma, estas refletem, além desse, vários outros
momentos. A categoria de conteúd o, por exemplo, quando
fixa o momento em que o conteúdo é determinante em relação
à forma, inclui a idéia de que o conteúdo é o conjunto dos
aspectos e processos internos do fenômeno ou da coisa, que
ele muda continuamente, "corre" e, em seu desenvolvimento,
ultrapassa a forma, e que a forma que lhe corresponde oferece-
lhe grandes possibilidades de desenvolvimento etc.
As categorias incluem em seu conteúdo as leis correspon-
dentes: o fato de que a maioria das leis da dialética não se
manifestem na qualidade de objetos de estudo autônomos, mas
sejam consideradas como momentos determinados do conteúdo
dessas ou daquelas categorias é uma prov a disso. Por exemplo,
a lei de causalidade não é estudada como tal, em si mesma, mas
somente em ligação com as categorias de causa e efeito, so-
mente como momento de seu conteúdo. O mesmo acontece
 pa ra a lei da correlação do nec essário e do con tingent e, estu-

.347
 

dada em ligação com a colocação em evidência do conteúdo


das categorias do necessário e do conting ente. Tamb ém não
são estudadas, isoladamente, a lei da passagem recíproca do
singular em geral e do geral em singular; a lei segundo a qual
a forma é determinada pelo conteúdo; a lei da ação ativa da
form a sobre o conteúdo. Essas leis são reproduzida s na cons-
ciência somente como elementos constitutivos das categorias de
singular e de geral, de forma e de conteúdo.
É verdade que algumas leis da dialética apresentam-se a
nós, não sob a forma de momentos do conteúdo dessas ou
daquelas categorias, mas como elas mesma s. Por exemplo, a
lei da transformação das mudanças quantitativas em mudanças
qualitati vas; lei da unid ade e da "luta " dos contrários; a lei
da negaçã o da negação. Essas leis são estudadas de maneira
autônoma, não porque seu conteúdo não entre no conteúdo
das categorias correspondentes, mas porque, ao contrário das
outras leis da dialética, essas são leis fundamentais que deter-
minam as outras leis e que, de uma maneira ou de outra, ma-
nifest am-se po r meio delas. Assim, por exemplo, a lei da
unidade e da "luta" dos contrários determina algumas leis da
correlação do singular e do geral, da quantidade e da qualidade,
da causa e do efeito, da forma e do conteúdo, do necessário
e do contingente, da possibilidade e da realidade etc. e, sob
uma forma ou sob outra, ela manifesta-se por meio delas.
Com efeito, o singular e o geral, a forma e o conteúdo, assim
como o necessário e o contingente, a possibilidade e a realidade
etc. são contrários que, em certas condições, mudam-se um no
outro, tornando-se idênticos.
O mesmo acontece na lei da passagem das mudanças
quantit ativas em mudan ças qualita tivas. Essa lei manifesta-se
em particular, de maneira determinada, na interação dos mo-
mentos ou aspectos, refletidos por todas as categorias duplas.
Por exemplo, a mudança da quantidade do singular transfor-
ma-o necessariamente em geral (nova qualidade) e, inversa-
mente, uma mudança quantitativa determinada do geral condi-
ciona sua transf orm açã o em singular. Em decorrênc ia do
acúmulo das mudanças quantitativas no conteúdo, haverá, cedo
ou tarde, uma mudança da forma, que é acompanhada pela
 pas sag em da fo rm aç ão mat erial pa ra um novo estado qualitativo.
Finalmente, um certo reforço desse ou daquele caráter contin-
gente, correspondente às condições de existência da formação

.348
 

material, leva a sua transformação em necessário, que é, pelo


caráter dado, um novo estado qualitativo etc.
Desde que essas leis da dialética são fundamentais e deter-
minam todas as outras ligações e relações universais, é abso-
lutamente normal e necessário distingui-las do conteúdo das
categorias correspondentes e dedicar-lhes mais atenção.

.349
 

ÍNDICE DE ASSUNTOS

Sobre o Auto r V 

Introduçã o - 1 

I. NATU REZ A DAS CATEG ORIAS 5 


II. O PROBLE MA DA CORR ELAÇ ÃO DAS
CATEGO RIAS DA DIAL ÉTI CA 19
1. Resolu ção do probl ema da corre lação das categorias
na filosofia pré-marxista 20
2. Do princípio de parti da e dos princípios de edificaç ão
do sistema das categorais da dialética 55
III. MAT ÉRI A E CONSCIÊNCIA 62 
1. A matér ia 62
2. Matéria e formaçã o material. Aspectos da matéria 73
3. Da substancialidade da matéria 76
4. O reflexo 78
5. O psíquico e o fisiológico 85
6. A consciên cia 88

IV. AS CATEGORIAS COMO GRAUS DO


DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO
SOCIAL E DA PRÁ TIC A 124
1. A relação entre as categori as da dialética enquanto
graus do desenvolvime nto do conhecim ento 12 5
2. Ordem de aparec imento e de aplicaç ão das catego-
rias da dialética no curso do desenvolvimento do
conhecimento científico 12 8

.351
 

3. A relaçã o das categorias como pontos centrais,


considerada sob o ângulo do desenvolvimento do
 pensam ento fi losófi co 13 3
4. As categorias enquant o graus do desenvolviment o
da prática social 13 7
5. O desenvolviment o das form as do pens amen to no
 pro ces so do mo vi me nt o do conhe cime nto de um a
categoria à outra 14 2

V. O PARTI CULAR, O MOVIM ENTO, A


RELAÇÃO 157 
1. O particular 15 7
2. O movimento 15 7
a) O conceito de movimento 15 7
 b) O movimento e o re pouso 16 3
e) O movimento e o desenvolvimento 16 5
3. A relação 17 6 
4. O espaço e o tempo 18 1

VI. O SINGULAR, O PAR TIC ULA R E O GER AL 191 


1. Crític a das concepções idealistas e metafísic as do
singular e do geral 19 1
2. A relaç ão dó singular e do geral 19 4
3. O geral e o particula r 19 6
4. A correla ção do geral e do parti cula r no mom ent o
do movimento da matéria do inferior para o superior 19 9

VII. A QUAL IDAD E E A QUAN TIDA DE 203  


1. Os conceitos de qualidade e de quantidade 2 03
2. O probl ema da multipl icidad e das qualida des das
coisas 208
3. Lei da passage m das mudan ças quantita tivas às
mudanças qualitativas e vice-versa 212
4. Salto. Tipos de saltos 216

VI II. A CAUSA E O EF EI TO 224 


1. A evolução dos conceitos da causal idade na filo-
sofia pré-marxista 224
2. A concepção marxista da causalidade 229
3. Causalidade e necessidade 232

.352
 

IX . O NECESSÁRIO E O CONTING ENTE 242 


1. Os conceitos de necessidade e de contingência . . . . 242
2. A crítica das concepções idealistas e metafísi cas da
correlação da necessidade e da contingência 24 6
3. A concepç ão marxist a da correla ção do necessário
e do contingente 250

X. A LEI 253 
1. O conceito de lei 252
2. As leis dinâmica s e estatísticas 254
3. As leis gerais e as específicas, sua relação 256

XI . O CONTEÚDO E A FOR MA 263 


1. Os conceitos de conteúdo e de form a 263
2. Crítica das concepções idealistas e metafísica s de
conteúdo e de form a 26 5
3. Leis da correlação do conteúdo e da forma 268
4. Parte e todo, elemento e estrutura 270

XII . A ESSÊNCIA E O FENÔ MENO 276 


1. Os conceitos de essência e de fenô meno 276
2. As leis de correl ação da essência e do fenôm eno .. 278
3. O fundam ento e o fundame ntado 280

XI II . A CONTRAD IÇÃO. A LEI DA UNIDADE


E DA LUTA DOS CONTRÁRI OS 286
1. A contradição como unidade e luta dos contrários 286
2. Contradição e diferença 290
3. Os graus do desenvolvimento da contradição . . . 2 93
4. A contradição como forma universal do ser . . . . 2 95
5. A contr adiç ão como origem do movimento e do
desenvolvimento 300
6. As leis do conhecimento da contradição 302
7. Os tipos de contrad ições e sua importânc ia para
a prática 30 7
XI V. A NEGA ÇÃO DA NEGAÇ ÃO 313 
1. A negação dialética 3 13
2. A negação dialética e o movime nto do abstrato ao
concreto 316
3. A lei da negaç ão da negação 328

.353
 

XV . A POSSIBILIDADE E A REAL IDAD E . . . . 334 


1. As concepções idealistas e metafísicas da possibi-
lidade e da realidade 334
2. A concepção dialética e materialista da possibili-
dade e da realidade 337
3 . Tipos de possibilidade e seu alcance na prática .. 341

XV I. DA REL AÇÃ O DAS LEIS E DAS


CATEGORIAS DA DIAL ÉTIC A 345 

.354

Você também pode gostar