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RELIGIÃO E ESTADO

Estado laico é diferente de Estado


antirreligioso
21 de março de 2012, 9h30 Imprimir Enviar

Por Paulo Henrique Hachich De Cesare

Há poucos dias foi noticiado que o Conselho da Magistratura do TJ/RS,


em decisão unânime, acatou pedido da Liga Brasileira de Lésbicas e de
outras entidades sociais sobre a retirada dos crucifixos e símbolos
religiosos nos espaços públicos dos prédios da Justiça gaúcha[1]. E
prosseguia a notícia: Disse o magistrado que resguardar o espaço público
do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado é o
único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos
de um Estado laico, devendo ser vedada a manutenção dos crucifixos e
outros símbolos religiosos em ambientes públicos dos prédios.

A decisão acima citada, segundo entendemos, subverteu o conceito de


Estado Laico e mais particularmente do Estado brasileiro, como
delineado pela Constituição Federal de 1988.

Como é de sabença trivial, Estado laico, secular ou não confessional é


aquele que não adota uma religião oficial e no qual há separação entre o
Clero e o Estado, de modo que não haja envolvimento entre os assuntos
de um e de outro, muito menos sujeição do segundo ao primeiro.
Portanto, de plano se verifica que Estado laico não é sinônimo de Estado
antirreligioso.

Antes de prosseguir, convém repisar a diferença entre dois


conceitos: laicidade e laicismo.

De modo bastante sucinto, a laicidade é característica dos Estados não


confessionais que assumem uma posição de neutralidade perante a
religião, a qual se traduz em respeito por todos os credos e inclusive pela
ausência deles (agnosticismo, ateísmo). Já o laicismo, igualmente não
confessional, refere-se aos Estados que assumem uma postura
de tolerância ou de intolerância religiosa, ou seja, a religião é vista de
forma negativa, ao contrário do que se passa com a laicidade.
A Constituição Federal de 1988, como de resto a maioria das anteriores,
não permite nem mesmo que se cogite ou suspeite de laicismo no Estado
brasileiro. Com efeito, qualquer ideia de laicismo é repudiada ab ovo,
pois já no preâmbulo de nossa Carta é solenemente declarado:
“promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil” (g.n.). Obviamente, um Estado que se
constitui sob a proteção de Deus pode ser tudo, menos um Estado ateu
ou antirreligioso.

Decerto, porém, que o apreço e o reconhecimento dos valores religiosos


não ficaram somente no preâmbulo. Longe disso, a Constituição de 1988
foi bastante zelosa ao dispor sobre estes valores. Confira-se:

Art. 5º ...

(...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo


assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa


nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou


de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei;

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.

§ 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço


alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem
imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de
crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem
de atividades de caráter essencialmente militar.

§ 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar


obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei
lhes atribuir.

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é


vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...) VI - instituir impostos sobre:


(...) b) templos de qualquer culto;

Art. 210. ...

§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina


dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Art. 226. ...

(...) § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.»

E o apreço é tal pela religião que até o art. 19, que define a laicidade de
nosso Estado, não deixa de conferir garantias religiosas:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos


Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-


lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a
colaboração de interesse público; (g.n.)

Note-se que as vedações deste art. 19 são claríssimas: não estabelecer


cultos religiosos nem igrejas, não subvencioná-los e não manter com eles
ou seus representantes relações de dependência ou aliança. É certo que
este dispositivo deve ser interpretado taxativamente, pois se trata de
norma restritiva. Assim sendo, surge naturalmente a pergunta: de que
forma um crucifixo na parede incorreria em alguma das vedações do
art. 19, inc. I da Constituição Federal? A resposta é óbvia: de forma
nenhuma. E se não incorre nas citadas vedações não há nada que
justifique sua proibição. Acreditamos que esta razão baste para
demonstrar o equívoco da decisão gaúcha, mas há mais.

Partindo de outro enfoque, abstraindo a conclusão do parágrafo anterior,


podemos ir direto ao ponto e indagar: a existência de algum símbolo
religioso em prédio público macula a laicidade do Estado brasileiro?

A resposta nos parece de uma clareza solar, podendo ser facilmente


encontrada a partir de outras singelas indagações, com base nos
dispositivos constitucionais acima transcritos. Algo assim: o fato de o
Estado ...
a) assegurar o livre exercício dos cultos religiosos e garantir a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias, fere a laicidade do Estado?

b) assegurar a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e


militares de internação coletiva, fere a laicidade do Estado?

c) permitir que alguém oponha validamente sua crença religiosa ao


cumprimento de obrigação legal a todos imposta, mediante prestação
alternativa, fere a laicidade do Estado?

d) eximir do serviço militar obrigatório, mediante serviço alternativo,


quem alegar imperativo de consciência decorrente de crença religiosa,
fere a laicidade do Estado?

e) isentar do mesmo serviço obrigatório os eclesiásticos, compromete a


laicidade do Estado?

f) conceder imunidade de impostos aos templos de qualquer culto, não


fere a laicidade do Estado?

g) prever o ensino religioso facultativo como disciplina dos horários


normais das escolas compromete a laicidade do Estado?

h) conferir efeito civil ao casamento religioso, na forma da lei, não fere


seu caráter laical?

i) impor a si mesmo a proibição de embaraçar os cultos religiosos, não


compromete seu caráter laico?

A resposta a todas as indagações acima é necessariamente negativa, pois


o contrário corresponderia à negação do Estado laico, e sem esta
premissa não subsistiria a presente questão.

A próxima pergunta, então, é óbvia e certamente já está na mente do


leitor: se nada disso compromete o caráter laico do Estado, pois tudo está
previsto na Constituição, como seria possível que algo muito mais
singelo, como um simples crucifixo na parede, pudesse malferir a
laicidade do Estado?

Com todas as vênias, nos parece absurdo supor que a mesma


Constituição que abre mão de cifras milionárias com a concessão de
imunidade aos templos de qualquer culto (templo este que é considerado
em sentido lato pela jurisprudência), e que se desdobra para tutelar os
valores religiosos, conforme visto nos dispositivos acima transcritos,
possa proibir, implicitamente(!), a permanência de símbolos religiosos
que tradicionalmente se encontram em alguns prédios públicos.

Com efeito, quem pode o mais, pode o menos, não há como fugir deste
truísmo. Assim, se a Constituição admite o mais no campo religioso,
sem que se possa considerar o Estado menos laico por conta disso, é
evidente que também admite o menos (o crucifixo na parede).

Outro ponto que muito nos preocupa neste tema – e que vem se tornando
lamentavelmente comum – é a utilização repetitiva de sofismas. Trata-se
de afirmações vazias que procuram transformar o absurdo em lógica, é o
caso noticiado do Conselho da Magistratura gaúcha, segundo o qual
“resguardar o espaço público do Judiciário para o uso somente de
símbolos oficiais do Estado é o único caminho que responde aos
princípios constitucionais republicanos de um Estado laico, devendo ser
vedada a manutenção dos crucifixos e outros símbolos religiosos em
ambientes públicos dos prédios”.

Ora, nada mais equivocado. Nada além de uma frase bonita, mas sem
conteúdo: resguardar do quê? De algo vedado pela Constituição? Já se
viu que não. Único caminho para onde, para quê? Para a intolerância. Ao
contrário do afirmado pelo referido Conselho, acreditamos que o que
responde aos princípios constitucionais republicanos de um Estado laico
se chama respeito, e compreensão acerca da herança cultural e religiosa
de um país. Portanto, a presença de um símbolo religioso numa
repartição pública, só por si, não tem o condão de nem mesmo arranhar a
laicidade do Estado.

Argumenta-se ainda (incansavelmente), que os símbolos são cristãos e


nem todos o são, daí a inconstitucionalidade. Este tipo de argumento traz
à memória um fato noticiado há algum tempo, uma pós-adolescente,
mulher de um jogador de futebol, se negara a entrar no carro de sua mãe
por haver nele uma pequena imagem religiosa, doutra fé que não a da
garota. Ou seja, intolerância religiosa pura. E não é nada além desse tipo
de intolerância que o Judiciário tutela quando determina a retirada de
objetos religiosos tradicionais das repartições públicas, sob a alegação de
estar agindo em defesa da laicidade ou de qualquer outro princípio
republicano.

Não se perca de vista que o Brasil é um país eminentemente cristão,


logo, qual o tipo de imagem religiosa que se supõe encontrar
disseminada? Haveria aí alguma concessão do Estado em prol de uma
religião e em detrimento das outras? De modo algum, pois ou tais
imagens estão por tradição nos referidos prédios, algumas há séculos, ou
são miudezas carreadas pela fé e tradição dos que laboram no local, nada
além.

E o não-cristão? E o ateu e o agnóstico? Como ‘ficam’? Esses não terão


sua esfera jurídica atingida em absolutamente nada, pois, se não forem
cristãos, basta ignorar o crucifixo ou considerá-lo como um penduricalho
na parede. Ou assim ou teremos um Judiciário que premia a intolerância
e se vocaciona ao acolhimento das pretensões mais mesquinhas que
insistem em acompanhar a humanidade através dos séculos.

[1] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI151274,21048-
Determinada+a+retirada+dos+crucifixos+dos+predios+da+Justica+gauc
ha

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