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A proteção constitucional à liberdade

religiosa

Manoel Jorge e Silva Neto

Sumário
1. Justificativa do artigo. 2. Objetivos. 3. Bre-
ve histórico sobre a proteção à liberdade reli-
giosa. 4. As Constituições brasileiras e a prote-
ção à liberdade religiosa. 5. Proteção à liberda-
de religiosa na Constituição de 1988. 6. Ques-
tões controvertidas sobre a liberdade religio-
sa. 6.1. A inclusão do nome de Deus no Preâm-
bulo do texto constitucional afasta a posição
laica do Estado brasileiro? 6.2. A expressão
“Deus seja louvado” em notas de Real – hipó-
teses de proselitismo religioso? 6.3. A polêmi-
ca sobre o dia da semana para a realização de
concurso público. 6.4. O caso do Dique do To-
roró (BA) e de Brasília (DF) – a exibição de ima-
gens de Orixás. 6.5. O sacrifício de animais nas
liturgias do Candomblé e Umbanda – um exa-
me à luz da Constituição e da legislação ordi-
nária. 7. A proteção constitucional da liberda-
de religiosa dos trabalhadores. 8. Conclusão.

1. Justificativa do artigo

Política, religião, futebol. Temas que des-


pertam discussões muitas vezes acaloradas,
implicando, portanto, aqui e ali, e incontro-
lável acirramento de ânimo.
E por quê? Simplesmente em face da cir-
cunstância de todos terem opinião formada
a respeito, nem que seja para não apreciar a
política, a religião ou o futebol.
Manoel Jorge e Silva Neto é Procurador do Já, agora mesmo, quando, no início de
Ministério Público do Trabalho (BA). Mestre e julho de 2002, extasiada com a conquista
Doutor em Direito Constitucional pela PUC/ do pentacampeonato na Ásia, a nação, qua-
SP. se em transe, entusiasticamente recebe os
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jogadores da seleção para a festa da chega- tituir em conquista relativamente nova na
da, assisto à entrevista na televisão do ex- história dos sistemas constitucionais, ain-
jogador argentino Diego Maradona, afir- da está, em larga medida, por ser consolida-
mando, em alto e bom som, que a Copa do da, especialmente em virtude da forma am-
Mundo fora medíocre e que não fora mereci- bígua como a questão é tratada no Brasil.
da a vitória da seleção brasileira. Roberto Pompeu de TOLEDO (2002, p.
Milhões de brasileiros devem ter-se irri- 114) explica: “(...) o Estado por aqui não tem
tado com a reação do ex-craque portenho... religião. Mas tanto a Câmara quanto o Se-
E a postura apaixonada de cada um de nós nado expõem um crucifixo na parede atrás
é a causa da legítima irritação! das respectivas mesas. Um candidato a pre-
Conquanto autêntico o entusiasmo pelo sidente, por mais ateu que seja, acaba re-
esporte bretão, reconheço que o convite foi zando na campanha e comungando no exer-
feito para escrever-se sobre a proteção cons- cício do cargo, como se comprovou ainda
titucional à liberdade religiosa, fato não há pouco. E – característica não só brasilei-
impeditivo de aproveitar para, a um só tem- ra – decreta-se, aqui, feriado em dias de fes-
po, homenagear a conquista e revelar que tas católicas. É verdade que ficamos todos
ambos os temas, religião e futebol, são inva- satisfeitos e corremos para a praia. Mas que
riavelmente cercados por grande e acesa têm a ver judeus e muçulmanos, umbandis-
polêmica (razão mais do que justificável tas, budistas e membros de outras comuni-
para incluir-se, nesta obra, trabalho especí- dades religiosas que convivem sob a juris-
fico sobre a liberdade religiosa). dição do Estado laico brasileiro com a Sex-
Firmo, por isso, nessas linhas iniciais, ta-feira Santa ou o dia de Corpus Christi?”.
que a justificação para dedicar-se artigo ex-
clusivo acerca da liberdade religiosa, tal 2. Objetivos
como posta em nível constitucional, guar-
da, ofuscantemente, relação apertada com o Apontadas as circunstâncias autoriza-
fato de o constituinte originário, no rol dos tivas (quiçá determinantes) à escolha do
direitos individuais, ter-se ocupado de li- tema para o artigo, cumpre apresentar, des-
berdade da espécie nos incisos VI (“é invio- de logo, os seus propósitos, a fim de que o
lável a liberdade de consciência e de crença, leitor se apresse a uma dessas três provi-
sendo assegurado o livre exercício dos cul- dências: fechar imediatamente o livro, pas-
tos religiosos e garantida, na forma da lei, a sar para outro artigo ou (quem sabe?) inici-
proteção aos locais de culto e a suas liturgi- ar a sua leitura.
as”), VII (“é assegurada, nos termos da lei, a No próximo item (3), há caminho a ser
prestação de assistência religiosa nas enti- necessariamente percorrido que é o relativo
dades civis e militares de internação coleti- ao exame da liberdade religiosa ao longo da
va”) e VIII (“ninguém será privado de direi- história da humanidade. Não será, entre-
tos por motivo de crença religiosa ou de con- tanto, longa a digressão, de modo preciso
vicção filosófica ou política, salvo se as in- porque, como afirmado em trecho anterior,
vocar para eximir-se de obrigação legal a o direito individual é vitória recente.
todos imposta e recusar-se a cumprir pres- Outro exame indeclinável: o estudo da
tação alternativa, fixada em lei”). liberdade de religião nas Constituições bra-
Sobremais, se é correto concluir que se sileiras. Para conhecer-se a realidade da
opera no contexto das liberdades as mais Constituição de 1988, é imprescindível sa-
acirradíssimas discussões (liberdade de in- ber o que se passou nos textos anteriores, o
formação jornalística X direito à intimida- que será realizado no item 04.
de, por exemplo), não menos é rematar a res- No item 05, tratar-se-á da liberdade reli-
peito de a liberdade de religião, por se cons- giosa da forma como positivada pela Cons-

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tituição de 1988, com ênfase à amplitude do época, à origem divina; era a consagração
direito individual. da Teoria da Origem Divina Sobrenatural
Se, como se afirmou no início do artigo, o do Poder, que, de um só golpe, consolidou o
tema se encontra marcado por indelével con- Absolutismo Monárquico (materializado na
trovérsia, nada mais lógico do que apresen- afirmação conhecidíssima de Luís XIV, se-
tar item distinto para a indicação de ques- gundo a qual “O Estado sou eu”) e transfor-
tões controvertidas, assunto para o qual será mou a Religião Católica na única, exclusiva
destinado o item 06. e aceitável fé a ser professada pelas pesso-
Outrossim, não se deve esquecer que os as.
trabalhadores representam categoria das Com isso, as perseguições se mantive-
mais tolhidas em sua liberdade de religião, ram, e até recrudesceram, especialmente a
o que enseja a análise de possíveis ofensas partir das incisivas contestações de Martin
no plano das relações de trabalho, notada- Lutero e João Calvino. O primeiro deles, fun-
mente em face da subordinação jurídica – dador do Luteranismo, conquanto ordena-
traço delineador mais nítido do vínculo de do padre agostiniano, denunciou, com vi-
emprego. O item 07 será reservado ao tema. gor, a prática reinante da venda de indul-
Por fim, e naturalmente, ao item 08 serão gências, afixando na porta da Igreja de Wit-
guardadas as conclusões de tudo (ou do tenberg as históricas 95 teses. Nessas teses
pouco...) que se expôs. e em escritos que se lhes seguiram, negou a
infalibilidade do papa, rejeitou as ambições
3. Breve histórico sobre a proteção políticas do papado, sustentando a consti-
à liberdade religiosa tuição de igrejas nacionais, além de investir
contra o instituto do celibato eclesiástico,
Consolidado o Cristianismo e a Religião tendo, inclusive, em 1525, se casado com a
Católica Apostólica Romana como a fé ofi- ex-freira Catarina de Bora, com a qual teve
cial do Estado, qualquer tentativa de cria- seis filhos. O segundo, João Calvino, con-
ção de novo segmento religioso ou manifes- verteu-se à doutrina da Reforma em 1533,
tação de culto de forma distinta dos rituais quando, acusado de heresia, refugiou-se em
sacralizados pelos procedimentos católicos Basiléia, importante cidade da Suíça, opor-
era considerada bruxaria ou heresia, e, por- tunidade em que escreveu “A Instituição da
tanto, duramente castigada. Religião Cristã”. Alguns anos mais tarde,
Não foram poucos os supostos hereges e mudou-se para Genebra, fundando as ba-
bruxos queimados vivos na fogueira da San- ses do Calvinismo, que, em síntese, consis-
ta Inquisição; ocorre que a Igreja Católica tiu na separação entre a Igreja e o Estado, na
chegou mesmo a utilizar os sacrossantos organização de sociedade suportada por
poderes inquisitoriais para, com a conde- princípios cristãos e imposição de rigorosa
nação de indivíduos abastados, aumentar disciplina aos indivíduos mediante o Con-
o seu patrimônio. Por isso que costumo de- sistório – órgão destinado a manter a disci-
nominar o processo inquisitorial de “Santa plina religiosa, que pressionava o povo a
Aquisição”, sem nenhum intento, todavia, freqüentar a igreja e policiava a vida moral
de macular a imagem das organizações ca- da cidade. Foi considerado o “gênio teoló-
tólicas, cujos erros cometidos naquela épo- gico da Reforma”.
ca já são reconhecidos por suas lideranças Arthur Conan DOYLE (19--?), muito em-
religiosas atuais. bora responsável pela criação do persona-
O predomínio da Igreja Católica, de con- gem Sherlock Holmes, retratou, com fideli-
traparte, bem poderia ser creditado à pró- dade, no romance Os fugitivos, o encalço aos
pria justificação do poder político dos mo- huguenotes, protestantes franceses seguido-
narcas, vinculado, segundo se pensava à res de Calvino. O governo católico francês

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promoveu violenta repressão aos estafetas O art. 5º dá a noção precisa dessa reali-
da Reforma, como aconteceu na sangrenta dade: “A Religião Catholica Apostolica Ro-
Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de mana continuará a ser a Religião do Impe-
1572), quando se estima que 50.000 calvi- rio. Todas as outras Religiões serão permit-
nistas foram massacrados impiedosamen- tidas com seu culto domestico, ou particu-
te. lar em casas para isso destinadas, sem fór-
Ainda que a questão religiosa tenha per- ma alguma exterior de Templo”.
durado na França até meados do século O art. 106, ao disciplinar o juramento do
XVII, é correto afirmar que a tolerância à di- Chefe de Estado e de Governo, inclui, entre
versidade de opção religiosa somente foi outras obrigações a ele cometidas, manter a
guindada ao plano de liberdade pública com Religião Católica Apostólica Romana.
a Declaração dos Direitos do Homem e do Com a ruptura institucional ocorrida a
Cidadão, de 1789, ao prescrever o art. 10 que partir da Proclamação da República, a Cons-
“ninguém deve ser molestado por suas opi- tituição de 1891 modificou substancialmen-
niões, mesmo religiosas, desde que sua ma- te a proscrição para a qual eram remetidos
nifestação não perturbe a ordem pública os demais segmentos religiosos.
estabelecida pela lei (“nul ne doit être in- Para tanto, nota-se a redação do art. 11,
quiete pour sés opinions, même religieuses, 2º, ao determinar ser vedada ao órgão cen-
purvu que leur manifestation ne trouble pás tral e aos Estados-membros estabelecer, sub-
l’ordre public établi par la loi”). vencionar ou embaraçar o exercício de cul-
É a Declaração francesa de 1789, de con- tos religiosos.
seguinte, o marco divisório entre a proscri- Mas é no trecho pertinente aos direitos
ção da liberdade religiosa e o seu reconheci- individuais que mais se ressalta a preocu-
mento. pação do constituinte de 1891 a respeito da
liberdade religiosa, consubstanciada em al-
4. As constituições brasileiras e a guns parágrafos do art. 72: § 3º – “Todos os
proteção à liberdade religiosa indivíduos e confissões religiosas podem
exercer e livremente o seu culto, associan-
Os ventos transformadores da Revolu- do-se para esse fim e adquirindo bens, ob-
ção Francesa não balançaram os estandar- servadas as disposições do direito com-
tes da monarquia absolutista brasileira, ao mum”; § 4º – “A República só reconhece o
menos no que se refere à liberdade religiosa. casamento civil, cuja celebração será gratui-
Se a Carta Constitucional de 1824 – ou- ta” (como efeito da separação entre a Igreja
torgada, portanto, por ser “Carta” –, impos- e o Estado, não se poderia assumir outra
ta por D. Pedro I, já que dissolvera a Assem- conduta que não o reconhecimento exclusi-
bléia Constituinte em 1823, chegou a prever vo do matrimônio civil, em detrimento do
diversos direitos individuais, consoante se milenar casamento religioso, tornando-se
nota nos incisos I/XXXV do art. 179, isso emblemático o dispositivo constitucional de
revela que o monarca resolvera adequar os um novo período da história da civilização
princípios iluministas ao absolutismo, com brasileira, com menor interferência – e, por-
o que pode ser reputado como seguidor do tanto, com redução de poderes – das autori-
despotismo esclarecido. dades eclesiásticas); § 5º – “Os cemitérios
Mas, no contexto da liberdade de reli- terão caracter secular e serão administrados
gião, nada se alterou. pela autoridade municipal, ficando livre a
Se bem que não houvesse perseguição todos os cultos religiosos a pratica dos res-
aos que professassem outra fé, apenas a Igre- pectivos ritos em relação aos seus crentes,
ja Católica era reconhecida pela Constitui- desde que não offendam a moral publica e
ção de 1824. as leis”; § 6º – “Será leigo o ensino ministra-

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do nos estabelecimentos publicos” (inician- Outros significativos avanços da Cons-
do-se um novo período na educação brasi- tituição de 1946 são os seguintes: i) a recu-
leira, já, a partir de então, completamente sa, por convicção religiosa, quanto ao cum-
liberta, ao menos no domínio dos estabele- primento de obrigação a todos imposta não
cimentos oficiais de ensino, de todo e qual- implicaria perda de qualquer direito, exceto
quer patrulhamento ou vinculação de cará- se o indivíduo se eximisse também de satis-
ter religioso); § 7º – “Nenhum culto ou igre- fazer obrigação alternativa prevista em lei,
ja gozará de subvenção official, nem terá e, por outro lado, ii) direito à prestação reli-
relações de dependencia ou alliança com o giosa nos estabelecimentos de internação
Governo da União, ou o dos Estados” (a coletiva, como os presídios.
previsão constitucional tem destinatário Quanto aos Textos Constitucionais de
certo: a Igreja Católica que, na Constituição 1967/1969, cumpre apontar que a única
de 1824, era a religião oficial do Império); § novidade presenciada, e assim mesmo per-
28 – “Por motivo de crença ou funcção reli- tinente ao último deles, refere-se à inclusão
giosa, nenhum cidadão brazileiro poderá do credo religioso como gênero, tal qual o
ser privado de seus direitos civis e políticos sexo, raça, trabalho e convicções políticas
nem eximir-se do cumprimento de qualquer (§ 1º, art. 153), impedindo-se a consumação
dever cívico”; e, finalmente, o § 29 – “Os que de desequiparações fortuitas fundadas
allegarem motivo de crença religiosa com o igualmente na opção religiosa.
fim de se isentarem de qualquer onus que as
leis da Republica imponham aos cidadãos, 5. A proteção à liberdade religiosa
e os que acceitarem condecorações ou titu- na Constituição de 1988
los nobiliarchicos estrangeiros perderão to-
dos os direitos políticos”. Nenhum curioso das coisas da Consti-
A Constituição de 1934 segue a linha tuição se sentiria à vontade em demonstrar
separatista iniciada pelo texto republicano, como se operou a proteção à liberdade reli-
cuja vedação para relacionamento entre Igre- giosa sem consultar os Princípios Funda-
ja e Estado se encontra firmada no art. 17, mentais.
II/III, ao passo que restou consagrada a li- Se vou à casa de alguém, se não for pa-
berdade religiosa como direito individual, rente muito próximo (pai, mãe, irmãos),
no art. 113, itens 4, 5, 6 e 7, quadro inaltera- muito dificilmente entrarei pela porta da
do pela Constituição de 1937. cozinha, mas sim pela da sala.
O Texto Constitucional de 1946 traz uma Costumo utilizar a figura de linguagem
nova dimensão a respeito do relacionamen- para dizer que os Princípios Fundamentais
to entre a Igreja e o Estado. Sim, porque ul- são a “porta da sala” da interpretação cons-
trapassado o período de desconfiança do titucional e, sendo assim, o procedimento
Estado para com a Igreja Católica pelo que interpretativo de qualquer domínio do Tex-
esta poderia representar de perigo para ri- to de 1988 deve pressupor a análise dos re-
valizar com o poder político estatal, trata- feridos princípios.
va-se, naquele instante, de admitir a colabo- No art. 1º, dois fundamentos despertam
ração dos segmentos religiosos em prol da atenção pela pertinência à liberdade religi-
prevalência do interesse público. Não à toa, osa: a dignidade da pessoa humana (art. 1º,
portanto, a dicção do art. 31, III, segundo o III) e o pluralismo político (art. 1º, V).
qual era vedado aos entes da Federação bra- Fácil é concluir acerca da associação
sileira “ter relação de aliança ou dependên- existente entre dignidade da pessoa huma-
cia com qualquer culto ou igreja, sem preju- na e liberdade religiosa. “O valor-fonte de
ízo da colaboração recíproca em prol do in- todos os valores”, como esclarece judiciosa-
teresse coletivo”. mente Miguel REALE (19--?, p. 3), inspira o

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sistema do direito positivo de uma maneira leiro”, em face da “residência” constitucio-
geral a adotar soluções que aclamem o di- nal do postulado; ii) “tendente a viabilizar
reito à vida, à incolumidade física (banin- a coexistência pacífica”, porquanto o ideal
do-se a tortura), à intimidade, à vida priva- pluralista reflete a regra de ouro do livre ar-
da, à imagem e à liberdade, compreendida bítrio: a liberdade de um indivíduo termina
em sua multifária acepção, inclusive a de quando começa a liberdade do outro (Spen-
contextura religiosa. cer); iii) “de centros coletivos”, porque não
Algumas perguntas são mais esclarece- se presta o pluralismo político a assegurar
doras sobre a ligação entre a dignidade da a liberdade de manifestação de pensamen-
pessoa humana e a liberdade de religião do to da pessoa individualmente considerada,
que eventuais considerações a fazer-se em direito assegurado pelo fundamento concer-
torno ao tema: Preserva-se a dignidade da nente à cidadania e consubstanciado, por
pessoa quando o Estado a proíbe de exercer exemplo, no art. 5º, IV; iv) “irradiadores de
a sua fé religiosa? Conserva-se-lhe no mo- opiniões, atitudes e posições diversas”, sen-
mento em que o empregador, nos domínios do certo que, ali onde se verificar diversida-
da empresa, “convida” o empregado para de quanto à opção política, ideológica, se-
culto de determinado segmento religioso? xual e religiosa, deve ser conduzido esforço
Reveste-se de alguma dignidade o procedi- à respectiva e imprescindível harmoniza-
mento por meio do qual alguns segmentos ção.
religiosos investem contra outros, não des- Conseqüentemente, ao decompor o con-
cartado até o recurso à violência? ceito de pluralismo político, deixei clara (ao
Sem dúvida, a opção religiosa está tão menos tentei fazê-lo...) a relação entre o Prin-
incorporada ao substrato de ser humano – cípio Fundamental e a liberdade religiosa:
até, como se verá mais adiante, para não se se é indiscutível que a liberdade em questão
optar por religião alguma – que o seu des- é daquelas que as pessoas exercitam em con-
respeito provoca idêntico desacato à digni- junto, surge a necessidade de se organizar
dade da pessoa. ente coletivo destinado a congregar e forta-
Outrossim, percebe-se que o fundamen- lecer a crença específica dos que professam
to do Estado brasileiro atinente ao pluralis- uma dada fé religiosa.
mo político também conduz à concretiza- E mais: quando o pluralismo político
ção da liberdade religiosa. E como? Precisa- aparece como fundamento a autorizar a exis-
mente porque pluralismo político não deve, tência de diversos órgãos forjados no alti-
em primeiro lugar, ser confundido com plu- plano de idéias e posições as mais varia-
ripartidarismo – princípio vinculado à or- das, termina por reforçar um aspecto desse
ganização político-partidária no Brasil, direito individual sob investigação: a liber-
conforme acentua o art. 17, caput. Pluripar- dade de organização religiosa.
tidarismo significa sistema político dentro E a referência à liberdade de organiza-
do qual se permite a criação de inúmeros ção religiosa traz à tona a obrigatoriedade
partidos. Mais abrangente, e, por isso, de de indicar os demais desdobramentos do
conceituação um pouco mais difícil, é o plu- direito individual. Assim, além de estar ga-
ralismo político. A despeito de sua maior rantida pela Constituição de 1988 a plena
amplitude, pode-se arriscar um conceito: liberdade para instituir-se segmento religi-
pluralismo político é o fundamento do Es- oso (art. 19, I), de modo semelhante, encon-
tado brasileiro tendente a viabilizar a coe- tram-se nela asseguradas a liberdade de
xistência pacífica de centros coletivos irra- culto e de crença. Ambas correspondem ao
diadores de opiniões, atitudes e posições enunciado do art. 5º, VI: “é inviolável a li-
diversas. Esquadrinhando-o, temos que re- berdade de consciência e de crença, sendo
presenta: i) “fundamento do Estado brasi- assegurado o livre exercício dos cultos reli-

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giosos e garantida, na forma da lei, a prote- crer em absolutamente nada, assim como de
ção aos locais de culto e a suas liturgias”. utilizar meios para a divulgação do seu ag-
A liberdade de culto somente admite as nosticismo.
contenções impostas pela já decantada re-
gra de ouro da liberdade. Por exemplo, não 6. Questões controvertidas sobre
se deverá aceitar como legítima expressão a liberdade religiosa
de tal liberdade o prosseguimento de cultos
ruidosos noite adentro, impedindo o silên- O assunto é controvertido por excelên-
cio indispensável ao sono e ao descanso da cia. A cada momento em que se pesquisa a
comunidade. Ou, pior ainda: admitir-se sa- respeito, mais se vai encontrando aspectos
crifício de vidas humanas em prol de su- bastante polêmicos em torno ao exercício da
posta liberdade de culto. Se, no passado, em liberdade religiosa.
tribos primitivas, homens, mulheres e, prin- Assim, muitas outras questões tão ou
cipalmente, crianças eram sacrificados para mais polarizadas do que as sugeridas nos
aplacar a ira dos deuses, hoje, em todos os próximos subitens certamente serão desco-
sistemas jurídicos contemporâneos, sem bertas por quem se propuser à apreciação
exceção, a conduta tipificaria ilícito penal. mais detida; todavia, o objetivo, aqui, é apon-
Ocorre que à liberdade não se admitirá a tar, de modo exemplificativo, situações en-
oposição de barreiras com lastro na idéia de sejadoras de razoável grau de controvérsia
“bons costumes”, cumprindo frisar que o que se submeteram à reflexão, e, portanto,
sistema constitucional brasileiro abando- são todas, indistintamente (e não poderia
nou regra análoga antes mencionada, por ser mesmo de outra forma...), conclusões ao
exemplo, na Constituição de 1891, cujo art. confronto, ao cotejo.
72, § 5º, promovera referência ao critério
“moral pública” como dado legitimamente 6.1. A inclusão do nome de Deus no
restritivo à liberdade de culto. Preâmbulo do texto constitucional afasta a
Mas a proteção constitucional à liberda- posição laica do Estado brasileiro?
de de culto, nos termos do art. 5º, VI, está Repita-se, mais uma vez, para enfatizar
condicionada ao estabelecido em lei (em sen- um dos desdobramentos da liberdade reli-
tido formal, é claro), razão suficiente para giosa: a Constituição garante ao indivíduo
entender-se que o enunciado em questão é a liberdade para crer e não crer em nada,
norma constitucional com eficácia relativa assim como para expressar a sua crença ou
restringível: enquanto não demarcados os descrença.
limites ao exercício do direito individual, O Preâmbulo expressa o seguinte: “Nós,
exerce-o o indivíduo plenamente. No caso representantes do povo brasileiro, reunidos
da liberdade de culto, até no tocante aos em Assembléia Nacional Constituinte para
horários para as reuniões se mostra neces- instituir um Estado democrático, destinado
sário reverenciar aqueles fixados pelo Mu- a assegurar o exercício dos direitos sociais e
nicípio1, e, quanto à liturgia, isto é, o ritual individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
utilizado pelo segmento religioso, o próprio estar, o desenvolvimento, a desigualdade e
Código Penal brasileiro descreve as condu- a justiça como valores supremos de uma
tas que podem ser subsumidas em homicí- sociedade fraterna, pluralista e sem precon-
dios ou lesões corporais. ceitos, fundada na harmonia social e com-
A liberdade de crença, conjugada à de prometida, na ordem interna e internacio-
consciência, permite considerar que o indi- nal, com a solução pacífica das controvérsi-
víduo poderá crer no que quiser, e expres- as, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
sar publicamente a sua crença; mas não se seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
lhe interdita, contudo, a liberdade de não FEDERATIVA DO BRASIL”.

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Persiste, então, a dúvida: invocar a 6.2. A expressão “Deus seja louvado”
proteção de Deus na norma preambular em notas de Real – hipótese de
induz à existência de um Estado brasilei- proselitismo religioso?
ro crente?
Não há qualquer novidade na discus- Porque se cogitou da inserção do nome
são, visto que, desde a Assembléia Nacio- de Deus no Preâmbulo da Constituição de
nal Constituinte, grassavam incertezas so- 1988, cuida investigar se o mesmo procedi-
bre se incorporar o nome Deus conduziria a mento implica proselitismo religioso em se
uma opção do constituinte originário, tor- tratando de moeda de curso forçado no País.
nando oficial o fato de se crer em uma ou em O padrão monetário brasileiro, o Real,
diversas divindades. não é rigorosamente novo. Em verdade, ele
Se isso fosse correto, como compatibili- retoma o nome da velha moeda, real, de plu-
zar tal invocação com as liberdades de cons- ral mil-réis, utilizada pelos nossos antepas-
ciência e de crença expressas no art. 5º, VI? sados, até 1942, quando foi substituída pelo
Haveria antinomia, contradição entre os cruzeiro por Getúlio Vargas.
dispositivos constitucionais? Dos muitos traços delineadores de uma
Logo no início do curso de direito cons- nação – que é um conceito sociológico, e não
titucional, na graduação, aprende-se que a jurídico –, tais como a língua, os acidentes
constituição não deve ser interpretada em geográficos mais conhecidos e os seus vul-
tiras ou filetes, devendo-se conferir, destar- tos históricos, a moeda igualmente se insere
te, prevalência ao seu sentido unitário. É o no conjunto dos elementos preservadores de
chamado princípio da unidade, vertido na uma identidade nacional.
atitude do intérprete tendente a prestigiar o Renato Janine RIBEIRO (19--?, p. 65-66)
sistema como um todo, e não apenas uma pondera que “uma das questões essenciais
norma em particular. da doutrina econômica é a da moeda como
Não é certo encontrar antinomias entre representação, no caso, de riquezas. Mas a
normas constitucionais, mas sim interpre- moeda também pode ter o papel de repre-
tá-las de tal modo que se evitem colisões. sentar – ou simbolizar – conteúdos menos
E é precisamente por essa razão que não tangíveis, não econômicos, em especial os
vislumbro qualquer incoerência entre inse- que constituem, por exemplo, uma naciona-
rir-se o nome de Deus no Preâmbulo e a li- lidade. Esse outro caráter representativo da
berdade preconizada no corpo dos direitos moeda, estreitamente ligado à sua denomi-
individuais. nação, mas que obviamente depende de sua
Observe-se como inicia o Preâmbulo: eficácia propriamente econômica, não cons-
“Nós, representantes do povo brasileiro titui, porém, tema da economia. Investigá-lo
(...)”. O recurso à personificação dá a exata cabe àquelas ciências humanas que lidam
idéia de que o nome de Deus fora menciona- com a significação das ações, o que é o caso
do para ressaltar a postura crente da maio- da antropologia – ou, se deixarmos de lado
ria dos parlamentares que atuaram na ela- a aspiração científica, para enfatizar o exa-
boração do vigente Texto Constitucional. São me dos pressupostos e significações, o da
os legisladores constituintes de competên- filosofia política. Aliás, para não ficarmos
cia originária que resolveram rogar à prote- na simples teoria, basta lembrar o papel que
ção divina, não sendo correto promover o marco alemão, moeda oficial da Alema-
contingente vinculação do Estado brasilei- nha Federal, desempenhou no orgulho na-
ro à crença religiosa, porquanto se recorre cional daquele país. Os alemães, tendo em
ao uso do pronome pessoal da primeira pes- sua memória do século XX a inflação talvez
soa do plural para reforçar a antedita per- maior da história, identificaram sua pros-
sonificação. peridade à capacidade de administrar uma

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moeda estável e invejada. Basta, por isso, ma planejadora apta e eficaz para a melho-
assinalar o receio que muitos deles sentem, ria da vida das pessoas.
de que a substituição de sua divisa pela
moeda comum européia acarrete o fim des- 6.3. A polêmica sobre o dia da semana
se período áureo de sua economia e de sua para a realização de concurso público
vida social”. É indiscutível que o art. 37, II, da Consti-
Na Alemanha, nos Estados Unidos e no tuição concretiza o postulado democrático
Brasil. Onde quer que se tente estabilizar a no tocante ao acesso a cargos e empregos
economia – especialmente quando se recor- públicos.
re a políticas econômicas monetaristas –, a Ocorre, entretanto, que muitos segmen-
moeda cumpre atribuições muito mais im- tos religiosos se abstêm completamente
portantes do que se converter em mero e quanto a qualquer atividade em determina-
simples instrumento facilitador das relações do dia da semana. É o caso, por exemplo,
de cunho econômico, máxime quando está dos adeptos da Igreja Adventista do Sétimo
completamente associada a um determina- Dia, que guardam o dia de sábado para o
do planejamento econômico. descanso e a organização de cerimônias re-
É sintomático que os mirabolantes pla- ligiosas.
nos econômicos urdidos nos escaninhos dos Surge, então, a dúvida: Pode o adventis-
gabinetes refrigerados em Brasília tenham ta se recusar à submissão à prova no dia
sido invariavelmente acompanhados da designado por recair em sábado?
mudança do padrão monetário brasileiro. Atente-se, de logo, para o seguinte: a
Cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro Administração Pública deve reverência ao
novo, real, cada moeda, enfim, foi apresen- princípio da impessoalidade, entre outros
tada como a solução de todos os nossos assinalados no art. 37, caput, da Constitui-
males... ção.
Explica-se: a economia, conquanto se Ora, se o conteúdo do princípio da im-
valha da matemática, estatística e cálculos pessoalidade retrata uma Administração
econométricos, não é, definitivamente, ciên- que não beneficia ou prejudica determina-
cia exata. Com isso, a norma econômica pla- dos indivíduos, impedindo-se, destarte, tra-
nejadora, para dar certo, necessita ser rece- tamento diferenciado2, como tornar aceitá-
bida como um “mito” pela comunidade des- vel que o Adventista do Sétimo Dia realize
tinatária. “Mito”, por sua vez, representati- prova de concurso público em data distinta
vo da coincidência das aspirações da maio- da fixada para os demais candidatos? Não
ria com as diretrizes econômicas propostas. haveria quebra do sigilo e vulneração de todo
E, portanto, perseguindo-se a visão mítica o certame?
do planejamento, lançam mão os governos Logicamente, se o(s) candidato(s) obteve
de todos os expedientes democraticamente (tiveram) autorização para realizar (em) a
legítimos, entre os quais a inclusão do nome prova em outro dia, é óbvio que não será a
de Deus, como vem acontecendo com bas- mesma avaliação a ser aplicada aos dois
tante habitualidade no Brasil, inclusive com grupos de candidatos.
as notas de Real. Embora represente um custo maior para
Insubsistente, nesse passo, a defesa de o órgão que disponibiliza as vagas a serem
qualquer entendimento que insinue vincu- preenchidas por via de concurso público, o
lação do Estado brasileiro à crença religio- direito individual à liberdade religiosa do
sa, porquanto a referência ao nome de Deus adventista não deve ceder espaço à comodi-
em notas de curso forçado cumpre simples- dade da Administração Pública.
mente o propósito de identificar os indiví- O Supremo Tribunal Federal, pelo seu
duos ao Plano Real, creditando-o como nor- Presidente, Min. Marco Aurélio Mello, in-

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deferiu, em 18/04/2002, o pedido de limi- no tocante ao exercício de sua fé religiosa,
nar na Suspensão de Segurança nº 2.144, tanto que emblemático da situação o fenô-
ajuizada pela União com o objetivo de cas- meno do sincretismo, pelo qual os antigos
sar a decisão concessiva de tutela antecipa- escravos africanos vinculavam uma divin-
da a um candidato de concurso público que dade da sua religião aos santos católicos.
impetrara mandado de segurança contra a O tempo passou e a manifestação religi-
Escola de Administração Fazendária, exa- osa do povo africano no Brasil deixou de
tamente em virtude de a data designada ter configurar mera opção por credo para evi-
recaído em dia de sábado3. denciar autêntico direito cultural da nossa
Elogiável a decisão do STF no particu- civilização.
lar, notadamente porque, pondo na balan- E, na condição de direito cultural, asse-
ça o valor “liberdade religiosa”, não o dei- gura-se no Texto Constitucional a sua frui-
xou parecer em prol da conveniência dos ção por todos, consoante enuncia o art. 215,
organizadores do concurso público. caput: “O Estado garantirá a todos o pleno
No âmbito do Congresso Nacional, o exercício dos direitos culturais e acesso às
Deputado Doutor Evilásio (PSB/SP) apre- fontes da cultura nacional, e apoiará e in-
sentou à Câmara projeto de lei que impede a centivará a valorização e a difusão das ma-
realização de exames vestibulares entre as nifestações culturais”.
18 horas das sextas-feiras e as 18 horas dos Se, reconhecidamente, na hipótese de
sábados. De acordo com o texto apresentado, exibição de imagens produzidas por artista
caso a instituição de ensino realize provas plástico, o que se vê não corresponde à ten-
nesses horários, deverá fixar períodos alter- tativa do Estado quanto a privilegiar ou fo-
nativos para os alunos que se ausentarem4. mentar a consolidação de um segmento re-
ligioso, mas, tão-somente, a difusão do pa-
6.4. O caso do Dique do Tororó (BA) e de trimônio cultural, deve ser rechaçado o sec-
Brasília (DF) – a exibição de imagens de tarismo que pugnava pela retirada das ima-
Orixás gens.
Um aspecto interessantíssimo e polêmi-
co a respeito da liberdade religiosa ocorreu 6.5. O sacrifício de animais nas
com a exposição de imagens de Orixás re- liturgias do Candomblé e Umbanda –
presentativos das divindades do Candom- um exame à luz da Constituição e da
blé e da Umbanda, no Dique do Tororó, na legislação ordinária
cidade do Salvador, e em Brasília. Mais uma questão controvertida cuja
Em ambas as exposições, as peças foram análise reconduz ao exame também dos dis-
produzidas pelo artista plástico baiano Tati positivos infraconstitucionais pertinentes.
Moreno. Viu-se que a liberdade religiosa se per-
Entretanto, muitos adeptos de Igrejas faz igualmente na liberdade de culto, repre-
Evangélicas, entre as quais a Igreja Univer- sentativo do ritual utilizado pelos adeptos
sal do Reino de Deus e a Assembléia de de uma fé para exteriorizar o seu sentimen-
Deus, protestaram contra a exposição pú- to religioso.
blica das imagens dos Orixás, argumentan- O art. 5º, VI, parte final, da Constituição,
do que a iniciativa representava recôndito protege os locais de culto e as liturgias, na
estímulo do Estado à expansão das religi- forma da lei. Evidentemente, embora o cons-
ões afro-brasileiras, e, portanto, ofensiva à tituinte originário refira a lei como instru-
liberdade religiosa. mento efetivador da liberdade de culto, pa-
Não entendo dessa forma. rece clara a conclusão no sentido de que a
Desde os primórdios da colonização bra- liberdade apontada não se condiciona à
sileira, os negros sempre foram cerceados existência de disciplina infraconstitucional;

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a alusão à lei apenas remarca a eficácia re- os integrantes da facção religiosa aqueles
lativa restringível do dispositivo constitu- que estariam legitimados a concluir a res-
cional em questão5. peito, mas sim a sociedade de uma forma
Significa dizer o seguinte: a eficácia res- geral, o que se consuma como o exame da
tringível do enunciado constitucional faz situação pelo juiz.
com que, desde logo a sua vigência, venha a
produzir todos os efeitos que lhes são ínsi- 7. A proteção constitucional da
tos e co-naturais, assemelhando-se, por essa liberdade religiosa dos trabalhadores
razão, aos preceitos dotados de eficácia ple-
na. A distinção que se opera está relaciona- O problema referente ao desrespeito ao
da ao fato de que os preceptivos restringí- direito fundamental à liberdade religiosa
veis podem vir a ter a sua amplitude encur- recrudesce no campo das relações de traba-
tada pela atuação judicial ou legislativa. No lho.
caso, sem dúvida, em face da literalidade Quando não é o empregador quem su-
do art. 5º, VI, suposta contenção à liberdade gestiona os seus trabalhadores à participa-
de culto somente poderia ser legitimada pela ção em culto religioso, são os próprios em-
previsão, no ordenamento jurídico, de lei em pregados que não impõem limites à sanha
sentido formal limitativa do direito. para converter novos adeptos à sua fé...
É absolutamente decisivo para entender- Recentemente tomei conhecimento de um
se a liberdade de culto – e, no particular, a fato inusitado ocorrido em audiência na Jus-
liberdade de sacrifício de animais no ritual tiça do Trabalho: determinada empresa dis-
do Candomblé e Umbanda – situar o art. 5º, pensou uma empregada por justa causa em
VI, no contexto da teoria da aplicabilidade virtude de tentar, a todo tempo, converter os
das normas constitucionais, como se reali- seus colegas à fé religiosa que abraçara. Em
zou no momento, sob pena de equivocada audiência, após a contestação, a juíza do
compreensão da sua amplitude. trabalho que a presidia dispensou a produ-
Assim, torna-se impositivo percorrer o ção de qualquer prova porque a reclamante
sistema normativo, de lá retornando com a tentou também convertê-la...
conclusão a respeito da existência ou não Transcreva-se, de início, os dispositivos
de regra limitativa do sacrifício de animais. constitucionais assecuratórios da liberda-
E a resposta é positiva: há, sim. É preci- de religiosa, no caso o art. 52, IV (“é inviolá-
samente o art. 64 da Lei das Contravenções vel a liberdade de consciência e de crença,
Penais, cuja conduta caracterizada como sendo assegurado o livre exercício dos cul-
fato típico é “tratar animal com crueldade tos religiosos e garantida, na forma da lei, a
ou submetê-lo a trabalho excessivo”. proteção aos locais de culto e a suas liturgi-
Inegavelmente, uma vez ocorrido o sa- as”), o inciso VIII (“ninguém será privado
crifício de animais, não há como se desven- de direitos por motivo de crença religiosa
cilhar do fato típico descrito no art. 64 da ou de convicção filosófica ou política, salvo
LCP. se as invocar para eximir-se de obrigação
Poder-se-ia argumentar que o termo “cru- legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
eldade” é caracterizado por fortíssimo com- prestação alternativa, fixada em lei”), garan-
ponente ambíguo, porque aquilo que seria tia fundamental que se completa com a dic-
considerado cruel por um indivíduo não o ção do art. 19, I, que estabelece: “É vedado à
seria por outro, e, assim, os adeptos dos seg- União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
mentos religiosos afro-brasileiros ou qual- Municípios: I – estabelecer cultos religiosos
quer outro que se utilizasse da prática litúr- ou igrejas subvencioná-los, embaraçar-lhes
gica certamente não reconheceria a “cruel- o funcionamento ou manter com eles ou seus
dade” em tais sacrifícios. Mas não seriam representantes relações de dependência ou

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aliança, ressalvada, na forma da lei, a cola- (inauguração de novas instalações da em-
boração de interesse público”. presa ou de filiais, festas de final de ano,
Para Léon DUGUIT (1925?, p. 451), todo etc.)? III) Pode o empregador, nos domínios
indivíduo tem incontestavelmente o direito físicos da unidade empresarial, construir
de crer no que quiser em matéria religiosa. templo representativo de segmento religio-
Essa é propriamente a liberdade de consci- so? IV) Podem as organizações religiosas
ência, que não é apenas a liberdade de não contratar exclusivamente empregados que
crer, mas também a liberdade de crer no que professem a fé por elas abraçada?
quiser. Nem de fato, nem de direito poderá o As questões trazidas, necessariamente,
legislador penetrar nas consciências indi- reconduzem a um exame da temática den-
viduais e lhes impor uma obrigação ou proi- tro de um contexto de ordem supra-indivi-
bição qualquer. dual, visto que, conquanto integrado ao ple-
A conquista da liberdade religiosa em xo de garantias individuais do art. 5º, a li-
todos os países é algo ainda a ser realizado, berdade religiosa, em substância, é um fe-
máxime porque “apesar de as Constituições nômeno comunitário, as pessoas vivem-no
atuais a consagrarem normalmente e de em em conjunto, prestam culto em conjunto e
1981 as Nações Unidas terem aprovado uma sentem mesmo que a religião implica uma
Declaração sobre a Eliminação de todas as relação de umas com as outras (MIRANDA,
Formas de Intolerância e de Discriminação 1993, p. 359).
Baseadas na Religião ou na Convicção, fal- Mas, para responder adequadamente às
ta ainda percorrer um bem longo caminho indagações formuladas, é indispensável
até se alcançar, por toda a parte, uma efeti- examinar a amplitude da liberdade religio-
va liberdade e igualdade religiosa”, como sa, que, segundo a doutrina, converte-se em
ensina Jorge MIRANDA (1993, p. 358-359). três formas diferenciadas: liberdade de cren-
Acompanhando a conclusão do consti- ça, culto e de organização religiosa (SILVA,
tucionalista português, digo que a liberda- 19--?, p. 241).
de religiosa enfrenta problemas quanto à sua A liberdade de crença corresponde ao
elevação ao patamar de garantia fundamen- livre arbítrio outorgado ao indivíduo para
tal em muitos sistemas normativos, mas crer – e manifestar a sua crença – e também
acrescento para pôr em destaque um fato: para não crer, divulgando o seu agnosticis-
mesmo nas constituições contemporâneas mo. “Na liberdade de crença entra a liber-
que a consagram, viceja desconfortável he- dade de escolha da religião, a liberdade de
sitação quanto à efetiva aplicabilidade do aderir a qualquer seita religiosa, a liberda-
direito relativamente a inúmeras situações. de (ou direito) de mudar de religião, mas
E a relação contratual trabalhista é uma de- também compreende a liberdade de não
las... aderir a religião alguma, assim como a li-
Para se ter uma idéia do que se propõe berdade de descrença, a liberdade de ser
em termos de busca de maior compreensão ateu (...)” (SILVA, 19--?, p. 242).
da liberdade religiosa dos trabalhadores, Outrossim, desde as sociedades mais
concretizando-a, coloco os seguintes ques- primitivas, o homem adota maneiras de ado-
tionamentos: I) É possível, sob o manto da rar deuses e divindades, que terminam por
liberdade de crença, admitir que emprega- conformar uma peculiar expressão de cul-
dos façam proselitismo de determinado seg- to. Modernamente é o que se convencionou
mento religioso no âmbito interno da em- chamar de liberdade de culto.
presa? II) É facultado ao empregador con- O direito de celebrar cultos da forma que
vocar os seus trabalhadores para participa- melhor se adapte às tradições e às particu-
rem de culto vinculado a certa religião, como laridades do grupo social configura garan-
habitualmente ocorre em datas especiais tia fundamental prevista na Constituição de

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1988 (art. 5º, VI), não podendo ser limitada ma, além de permitir-lhe divulgar a sua cren-
sob o fundamento de ofensa à ordem públi- ça ou descrença.
ca ou aos bons costumes. As contenções à Léon DUGUIT (1925?) adverte, todavia,
liberdade de culto são ditadas, por um lado, que o crente tem a certeza inabalável de que
pelo sistema penal, já que se não consentirá está em possessão da verdade e, ao fazer
se cometam crimes contra a pessoa (lesões proselitismo, muito provável que se tornará
corporais ou mesmo homicídio) a pretexto intolerante, já que a escolha religiosa e a to-
de salvaguarda de uma liberdade de culto; lerância são duas realidades que se exclu-
e, por outro, pela consagração da máxima em mutuamente.
de que a liberdade de alguém termina onde É exatamente com lastro na característi-
começa a liberdade de outrem, com o que ca intolerância conformadora da liberdade
não se poderá argüir a garantia para, por de crença que não admito o exercício da ga-
exemplo, impor à vizinhança de uma igreja rantia no ambiente de trabalho.
que suporte pacientemente celebrações rui- A empresa é o local para onde se diri-
dosas noite adentro. gem os trabalhadores com o propósito de
O derradeiro aspecto da liberdade reli- realização profissional e material, mas é in-
giosa – nem por isso menos importante – discutível se tratar de comunidade altamen-
sobre o qual cabe refletir é o relativo ao di- te heterogênea, mais ainda quando forma-
reito de constituir organizações religiosas, da por diversas categorias profissionais.
ou simplesmente, como dito, liberdade de A heterogeneidade latente no corpo de
organização religiosa. trabalhadores abre sério precedente ao se
O Estado brasileiro é laico – repita-se – , possibilitar a empregado faça proselitismo
tanto que o art. 19, I, da Constituição torna de uma religião dentro da empresa, já que
defeso às pessoas jurídicas de direito públi- muitos colegas podem eventualmente ter
co territorial (e todas as outras) estabelecer feito a opção – ou mesmo não ter consuma-
cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, do escolha qualquer, o que é garantido pela
embaraçar-lhes o funcionamento ou man- Constituição, como vimos –, criando-se, as-
ter com eles ou seus representantes relações sim, constrangimentos com imprevisíveis
de dependência ou de aliança, sendo corre- conseqüências, quer em virtude de a defesa
to enfatizar, destarte, que o sistema consti- de concepção religiosa perante quem já abra-
tucional positivou a separação da igreja do çou outro segmento significar grave ofensa
Estado. A liberdade de organização religio- à liberdade de crença, quer porque o traba-
sa materializa a separação consumada pelo lhador agnóstico pode não aceitar de modo
constituinte originário e, sem ela, não tería- passivo a investida do crente.
mos por completa, plena a garantia funda- Não obstante possa-se tratar de proble-
mental. ma ocasionado por um único empregado, o
Investigada a extensão da liberdade re- fato é que a situação leva à ofensa de inte-
ligiosa em toda a sua inteireza, posso já, a resses transindividuais dos trabalhadores,
esta altura, apresentar as respostas que re- no caso a liberdade de crença e também o
velam o entendimento que defendo. meio ambiente do trabalho, pois as atitudes
Quanto ao primeiro quesito, que versa voltadas à obtenção de adeptos e conversão
sobre a possibilidade de empregados per- de agnósticos causam profundo mal-estar,
suadirem colegas de trabalho ao ingresso mais ainda quando provêm de superior hi-
em segmento religioso, fazendo-o dentro da erárquico.
empresa e durante o horário de trabalho ou Sendo assim, uma vez ocorrida a cir-
no intervalo intrajornada, é certo que a li- cunstância, abre-se ao empregador a facul-
berdade de crença outorga ao indivíduo a dade de extinguir por justa causa a relação
garantia de crer ou não crer em coisa algu- contratual de todos os que se utilizam de tal

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prática, diante da incontinência de condu- por lei? A rigor, nada impede que ele, medi-
ta (art. 482, b, CLT). ante comunicação prévia ao empresário, in-
Além disso, poderão também o sindi- forme-o a respeito da impossibilidade de com-
cato profissional ou o Ministério Público parecimento naquele dia, desde que compen-
do Trabalho conduzirem a questão ao se a ausência em data a ser estipulada.
Poder Judiciário, pleiteando a adequação Se o empregador não atende ao pleito
da(s) conduta(s) do(s) empregado(s) que formulado, aberta está a via para requerer
incorre(m) no equívoco diante da transgres- judicialmente a rescisão indireta do contra-
são a interesse individual indisponível dos to de trabalho (art. 483, b, CLT), além de ou-
trabalhadores. tras providências que podem e devem ser
Outra questão interessantíssima e que adotadas com o fim de salvaguardar a ga-
comumente ocorre no trato das relações en- rantia fundamental dos trabalhadores à li-
tre empregado e empregador se refere aos berdade religiosa.
eventos organizados na empresa quando, Outrossim, um dos caracteres mais mar-
não raro, são convocados os trabalhadores cantes para a configuração do vínculo em-
para participar de culto de um dado seg- pregatício é a subordinação jurídica. Pode-
mento religioso. ria ser dito que tal elemento caracterizador
Inaugurações de filiais e festas de fim de da relação de emprego determina o obedeci-
ano muitas vezes se convertem em velada mento irrestrito do empregado às diretrizes
ofensa à liberdade religiosa dos trabalha- traçadas pelo empregador para o desenvol-
dores, quando o empresário escolhe a cele- vimento da prestação de trabalho, e nada
bração de culto de sua preferência. mais. Seria assim? Parece-nos que a subor-
Ora, da mesma forma do Estado, a em- dinação expande o seu raio de ação para
presa está obrigada a assumir uma postura fazer com que o trabalhador se insira de tal
imparcial quanto aos segmentos religiosos; forma à realidade empresarial que até mes-
a empresa, enfim, não tem religião. O pro- mo a escolha por uma religião seja consu-
prietário pode ter; os trabalhadores também, mada pelo empregador, de modo ostensivo
mas a empresa, como coletividade destina- ou subliminarmente.
da à satisfação material e profissional de E o empregado se integra, hoje, tão in-
todos a ela vinculados, está proibida de abra- tensamente à vida da empresa que passa a
çar uma dada seita religiosa, exceção feita ser conhecido como o João da firma tal, che-
às organizações religiosas. gando ao cúmulo de o seu crachá valer mui-
Por isso que o “convite” endereçado aos to mais do que a própria carteira de identi-
trabalhadores a fim de que participem de dade quando se dirige ao comércio para
culto por ocasião do Natal é flagrante des- aquisição de bens por crediário.
respeito à liberdade de religião. A propósi- Maria Aparecida Rhein SCHIRATO
to, a inexistência de atividade empresarial (1999, p. 11-13), em entrevista concedida à
durante feriados religiosos – como o Natal Revista VEJA sob o título Empresa não é mãe,
– não contradiz a afirmação feita no parágra- adverte para as seqüelas irreversíveis que
fo anterior, à vista do fato de que a lei proíbe a podem comprometer, por definitivo, a iden-
abertura do estabelecimento em tais dias. tidade do cidadão-trabalhador. Para ela, a
Um fato interessante que não deve esca- empresa como grande mãe gera filhos de-
par à nossa apreciação com referência a tra- pendentes, trabalhadores inseguros e sem
balho executado em dias religiosos concerne vida pessoal, quando, inclusive, foi consta-
à seguinte pergunta: Pode o empregado exi- tado que vários empregados nunca haviam
mir-se quanto à sua presença na empresa em controlado a sua própria conta bancária
data tida por inadequada por sua facção reli- porque o salário era depositado a cada quin-
giosa, mesmo não sendo feriado reconhecido ze dias. Ademais, boa parte das contas pa-

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gas em débito automático e com diversos be- Não relutamos em concluir que, diante
nefícios administrados pela empresa, o em- da ocorrência, torna-se imperiosa a conver-
pregado vai-se distanciando da vida. E o são do templo em espaço ecumênico, cuja
maior perigo desse distanciamento é ele ser resistência do empregador não leva a outro
confundido com a empresa; é ele começar a resultado que o seu fechamento ou mesmo
acreditar que é tudo aquilo que os inúmeros demolição, por mais radicais que possam
adereços empresariais e benefícios corpora- transparecer as soluções aqui trazidas, que
tivos lhe proporcionam: passar na frente da perseguem, todavia, a proteção à liberdade
fila do check-in, ter preferência para ocupar religiosa dos trabalhadores.
mesa em restaurante, o cheque especial. Ele Outrossim, as entidades religiosas, com
passa a se movimentar como instituição, o escopo de atingimento dos seus propósi-
como organização. O trabalhador não tem tos institucionais, necessitam contratar tra-
mais posse de si mesmo, não sabe mais quan- balhadores. E, nesse momento, é óbvio que
to ele custa, quanto vale, e até não sabe a não poderão restringir o universo dos even-
respeito do que pode oferecer ao mercado. tuais contratados àqueles que professam a
Em um quadro delineador de tamanha fé religiosa abraçada pela organização.
alienação, está aberto o espaço para que se Nem mesmo em questionários ou entre-
perpetre contra os empregados toda gama vistas para admissão de trabalhadores é
de sortilégios, entre os quais os direciona- possível indagar a respeito de crença do
dos à supressão de sua liberdade religiosa. candidato ao posto de trabalho (proibição
O empregador não pode “convidar” que se estende a todo e qualquer procedi-
empregados para a participação em cultos mento admissional).
de segmento religioso, ainda que seja um sim- E, assim, cremos ter respondido às qua-
ples “convite”, especialmente porque, no tro indagações formuladas no início do su-
âmbito das relações de trabalho, a expressa bitem, buscando, com isso, convergir a aten-
recusa ou ausência ao evento por parte do ção dos operadores e do aplicador do direi-
trabalhador poderá soar não como um ato to do trabalho para este assunto ainda não
representativo da sua liberdade religiosa, mas suficientemente explorado pela ciência do
sim como demonstração explícita de rebeldia. direito e que versa sobre a garantia funda-
Por conseguinte, à exceção dos cultos mental da liberdade religiosa no plano das
ecumênicos, que funcionam como elemento relações de trabalho.
integrativo das confissões religiosas, qual- Concluindo o exame do tema no recinto
quer outra celebração na empresa está ve- da relação de emprego, oportuno trazer hi-
dada pelo sistema constitucional, competin- pótese concreta de atuação do Ministério
do precipuamente ao Ministério Público do Público do Trabalho. Refiro-me ao Termo de
Trabalho, por conta da sua vocação institu- Ajustamento de Conduta celebrado no Rio
cional, atuar no sentido de impedir a reali- de Janeiro, por iniciativa do Procurador
zação dos eventos, instando, para isso, o do Trabalho, Marcelo José Fernandes da
Judiciário Trabalhista para a proteção do Silva:
interesse transindividual.
De uma certa forma, ao definirmos que a Termo de compromisso de ajustamento
empresa não pode ter religião (exceto as or- de conduta nº 83/02
ganizações religiosas propriamente ditas),
já acenamos para a proibição quanto a ser O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABA-
construído na unidade empresarial um tem- LHO – PRT DA 1a REGIÃO, representada,
plo representativo de confissão religiosa, neste ato, pelo Procurador do Trabalho
pois a edificação seria paradigmática do en- MARCELO JOSÉ FERNANDES DA SILVA,
volvimento do ente coletivo com certa seita. resolve tomar o presente Termo de Compro-

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misso de Ajustamento de Conduta da Em- 02846756-1 IFP/RJ, CPF nº 267.954.347-53,
presa NEVER INDÚSTRIA E COMÉRCIO residente e domiciliado na Av. Meriti, nº
LTDA, CNPJ nº 31.199.029/0001-78, com 2907, apto. 202, Vila da Penha, Rio de Janei-
sede na Estrada de Vigário Geral, 371, Vigá- ro, nos seguintes termos:
rio Geral, Rio de Janeiro, neste ato, repre- CONSIDERANDO que segundo o Cen-
sentada por Senhor Luiz Carlos de Sá, CI so de 1991:

Variável = População residente (Habitante) – Ano = 1991


Religião Brasil, Região Geográfica e Unidade da Federação
Brasil 121.812.771
Católica romana Sudeste 49.552.235
Rio de Janeiro 8.538.220
Brasil 553.949
Outra cristã tradicional Sudeste 240.834
Rio de Janeiro 78.630
Brasil 4.388.281
Evangélica tradicional Sudeste 1.882.841
Rio de Janeiro 592.978
Brasil 8.179.706
Evangélica pentecostal Sudeste 4.035.995
Rio de Janeiro 954.462
Brasil 621.298
Cristã reformada não
Sudeste 313.410
determinada
Rio de Janeiro 77.863
Brasil 8.179.706
Neo-cristã Sudeste 4.035.995
Rio de Janeiro 954.462
Brasil 1.644.355
Espírita Sudeste 1.048.273
Rio de Janeiro 253.921
Brasil 648.489
Candomblé e umbanda Sudeste 437.018
Rio de Janeiro 248.874
Brasil 86.416
Judaica ou israelita Sudeste 70.960
Rio de Janeiro 26.190
Brasil 368.578
Oriental Sudeste 290.478
Rio de Janeiro 52.137
Brasil 94.556
Outra Sudeste 51.494
Rio de Janeiro 14.610
Brasil 6.946.221
Sem religião Sudeste 3.910.508
Rio de Janeiro 1.759.364
Brasil 595.979
Sem declaração Sudeste 417.631
Rio de Janeiro 114.314
Fonte: IBGE (1991?).

CONSIDERANDO que as diversas reli- CONSIDERANDO que o CENSO de


giões professam princípios de fé diversos e 1991 conseguiu dimensionar as seguintes
possuem livros sagrados ou não; religiões:
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Afro-tradicionais – “religião tradicional como princípios: Deus, a imortalidade da
do continente africano. Tem como principal alma, a mediunidade, a reencarnação e a
característica a ausência de um livro sagra- pluralidade dos mundos habitados. Para os
do, baseando-se em mitos e rituais que são espíritas, Jesus é o modelo de conduta moral.
transmitidos oralmente”. No Brasil encon- Hinduísmo – “religião professada pela
tramos o CANDOMBLÉ com seus rituais e maioria dos povos da Índia. Cultua um gran-
ordem de orixás e outras divindades, que de número de deuses e deusas e seus segui-
variam de acordo com a região africana de dores acreditam na reencarnação e na união
origem, e o UMBANDISMO de origem afri- com Deus supremo – Brahma – pela liberta-
cana, mas que é resultado de um forte sin- ção espiritual. Os hinduístas têm rituais di-
cretismo e também com seus cultos e orixás. ários obrigatórios e também os não-obriga-
Budismo – “religião fundada por Si- tórios, mas de enorme valor para eles, como
ddharta Gautama – o Buda – na Ásia Cen- a peregrinação a lugares sagrados: rio Gan-
tral, por volta de 563-483 a.C.”, baseada, em ges, por exemplo”.
síntese, em cinco princípios: a vida é sofri- Judaísmo – religião do povo hebreu fun-
mento; o sofrimento é causado pelo desejo; dada na aliança com Deus feita por Abraão
para se libertar do sofrimento é preciso ex- e no Torah. “Os judeus não acreditam que o
tinguir o karma, “ensinando como o ser Cristo era o Messias (filho de Deus) e ainda
humano pode escapar do ciclo nascimento esperam pela sua vinda. Existe também um
e morte (reencarnação), por meio da con- outro tipo de judaísmo – judaísmo alexan-
quista do mais alto conhecimento. drino – que é fortemente influenciado pelo
Confucionismo – “doutrina ética e políti- pensamento grego. Moisés, que libertou o
ca, fundada por Confúcio (551-479 a.C.), que povo hebreu da escravidão no Egito, é con-
por mais de dois mil anos constituiu o siste- siderado seu profeta maior”.
ma filosófico dominante da China. Seu pen- Taoísmo – filosofia religiosa desenvolvi-
samento consiste em definir as relações hu- da principalmente pelo filósofo Lao-tse (sé-
manas individuais em função das institui- culo VI a.C.). A noção fundamental dessa
ções sociais, principalmente da coletividade. doutrina é o Tao – o Caminho – princípio
Cristianismo – “conjunto das religiões sintetizador e harmônico do Yin (feminino)
cristãs (catolicismo, protestantismo e religi- e Yang (masculino). O acesso ao Caminho
ões ortodoxas orientais), que se baseia nos se dá pela meditação e pela prática de exer-
ensinamentos de Jesus Cristo”. O CATOLI- cícios físicos e respiratórios.
CISMO tem como chefe o papa, baseia-se nas Maometismo – “religião fundada por
Escrituras, na Infalibilidade da Igreja e na Maomé (570-652 d.C.); do islã, muçulmana.
Tradição, seu livro: a Bíblia, que possui seis Afirma a existência de um único Deus – Alá
livros a mais que a Bíblia Protestante, cujo – e acredita que o Cristo foi um grande pro-
Antigo Testamento possui apenas 39 livros. feta. Maomé, no entanto, não é cultuado em
Os cristãos ortodoxos não reconhecem a si mesmo nem considerado um intermedia-
autoridade do papa. O protestantismo abri- dor entre Deus e os homens. Para os muçul-
ga as religiões cristãs reformistas, baseia-se manos, sua vida é o ponto máximo da era
na Bíblia, cuja autoridade é soberana, rejei- profética, sendo as leis do islamismo o cum-
ta a missa, o culto aos santos, a autoridade primento das revelações anteriores feitas
papal. As igrejas dividem-se em tradicio- pelos profetas das religiões reveladas, como
nais, pentecostais e neopentecostais. o cristianismo e o judaísmo”. O Alcorão é o
Espiritismo – doutrina organizada por livro único em que estão contidos os seus
Allan Kardec com base no ensino dado pe- princípios e crenças.
los espíritos. Não tem livros sagrados, nem FONTE: Censo Demográfico 1991 (IBGE,
liturgias, nem rituais, nem sacramentos. Tem 1991?).
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CONSIDERANDO, ainda, os sem reli- ma como é feita a seleção dos candidatos a
gião; vagas na empresa, uma vez que a condição
CONSIDERANDO que a República Fe- de evangélico é por demais aferida pela com-
derativa do Brasil, que tem como fundamen- promissária;
to a dignidade da pessoa humana, art. 1º, CONSIDERANDO que na inspeção rea-
IV, como objetivo promover o bem de todos lizada verificou-se que mais de 90% dos tra-
sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, balhadores internos estavam no CULTO;
idade e quaisquer outras formas de discri- CONSIDERANDO que a alta taxa de
minação (art. 3º, IV), bem como elevou à ca- adesão ao CULTO se explica pela própria
tegoria de direito e garantia fundamental a forma com que os trabalhadores são admiti-
inviolabilidade à liberdade de consciência dos, ou seja, com privilégio para os protes-
de crença, art. 5º, VI, assim como a garantia tantes;
de ninguém será privado por motivo de cren- CONSIDERANDO, ainda, que as pesso-
ça religiosa, art. 5º, VIII, todos da Constitui- as não podem ser discriminadas no acesso
ção da República Federativa do Brasil; ao emprego, pelo simples fato de serem fu-
CONSIDERANDO que os dados verifi- mantes;
cados pela compromissária, quando das A pessoa Jurídica Never Indústria e Co-
entrevistas para vagas em seu estabeleci- mércio Ltda compromete-se, doravante, a
mento e anotados em uma agenda, atinen- satisfazer e cumprir fielmente as seguintes
tes à opção religiosa, Igreja que o candidato obrigações:
freqüentava, bem como que os havia indica- a) Não mais se utilizar, no processo sele-
do na igreja, representam verdadeira discri- tivo, de indagações, perguntas ou qualquer
minação; outra forma de aferição das opções, crenças
CONSIDERANDO que a referida aferi- e militâncias religiosas;
ção não encontra amparo, ou melhor, é re- b) Não discriminar quer candidatos,
pudiada pelo Sistema Jurídico vigente, con- quer os atuais e futuros empregados, quer
forme acima apontado; com relação à admissão, quer com relação
CONSIDERANDO que o CULTO reali- às promoções e outras vantagens legais ou
zado todos os dias na sede da empresa (no estabelecidas pela empresa ou normas cole-
auditório) tem nítido caráter religioso pro- tivas;
testante, uma vez que se louva a Jesus Cris- c) Não mais realizar CULTOS em seu
to e lê-se a Bíblia protestante; estabelecimento ou em qualquer de suas
CONSIDERANDO como acima aponta- dependências, dentro do horário de trabalho;
do que o ensinamento de Jesus não é funda- d) Que a participação em qualquer ato
mento de muitas das religiões existentes e de caráter religioso não pode ser impingi-
professadas no Brasil; da, nem exigida, nem haverá qualquer for-
CONSIDERANDO que a Bíblia Protes- ma de assédio ou coação, por mais dissimu-
tante não partilha alguns livros existentes lados que sejam, para os trabalhadores par-
na Bíblia Católica; ticipem desses cultos;
CONSIDERANDO que a Bíblia não é li- e) Que durante o período destinado ao
vro sagrado para muitas religiões; culto não serão cumpridas quaisquer obri-
CONSIDERANDO que no ambiente de gações de natureza contratual, como: assi-
trabalho não pode ser criado qualquer tipo natura de presença, assinatura de contra-
de constrangimento que atinja as opções cheques, cartões de ponto, entrega de docu-
religiosas dos trabalhadores, principalmen- mentos, ou outro qualquer ato decorrente do
te porque a subordinação se presume; contrato de trabalho;
CONSIDERANDO ainda que a coação à f) A compromissária pagará a multa de
participação no culto se presume, ante a for- R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por ato discri-

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minatório reversível para o FAT e devida- nejadora apta e eficaz para a melhoria da
mente atualizado. vida das pessoas;
Rio de Janeiro, 09 de abril de 2002. Sendo certo que a liberdade de culto se
Marcelo José Fernandes da Silva encontra materializada em norma constitu-
Procurador do Trabalho cional com eficácia relativa restringível, po-
Never Indústria e Comércio Ltda dendo, portanto, ter a sua amplitude encur-
Luiz Carlos de Sá – Sócio da compromissária tada por atuação do legislador ordinário,
Diana Teresa Furtado Castro conclui-se que o sacrifício de animais no ri-
Advogada tual de Candomblé e Umbanda não tem
Mácia Costa Xavier amparo no sistema normativo em virtude
do tipo legal consubstanciado no art. 64 da
8. Conclusão Lei das Contravenções Penais;
Embora represente um custo maior para
Ainda que a questão religiosa tenha per- o órgão que disponibiliza as vagas a serem
durado na França até meados do século preenchidas por via de concurso público, o
XVII, é correto afirmar que a tolerância à di- direito individual à liberdade religiosa do
versidade de opção religiosa somente foi adventista – no caso, não se submetendo à
guindada ao plano de liberdade pública com prova em dia de sábado – não deve ceder
a Declaração dos Direitos do Homem e do espaço à comodidade da Administração Pú-
Cidadão, de 1789; blica;
Sem dúvida, a opção religiosa está tão Na hipótese de exibição de imagens pro-
incorporada ao substrato de ser humano, duzidas por artista plástico, o que se vê não
que o seu desrespeito provoca idêntico de- corresponde à tentativa do Estado quanto a
sacato à dignidade da pessoa; privilegiar ou fomentar a consolidação de
Se o pluralismo político aparece como um segmento religioso, mas, tão-somente, a
fundamento a autorizar a existência de di- difusão do patrimônio cultural;
versos órgãos forjados no altiplano de idéi- A heterogeneidade latente no corpo de
as e posições as mais variadas, termina por trabalhadores abre sério precedente ao se
reforçar a liberdade de organização religio- possibilitar a empregado faça proselitismo
sa; de uma religião dentro da empresa, já que
No Preâmbulo, o recurso à personifica- muitos colegas podem eventualmente ter
ção (“Nós, os representantes do povo brasi- feito a opção – ou mesmo não ter consu-
leiro”) dá a exata idéia de que o nome de mado escolha qualquer –, criando-se, as-
Deus fora mencionado para ressaltar a pos- sim, constrangimentos com imprevisíveis
tura crente da maioria dos parlamentares conseqüências, quer em virtude de a defe-
que atuaram na elaboração do vigente Tex- sa de concepção religiosa perante quem
to Constitucional. São os legisladores cons- já abraçou outro segmento significar gra-
tituintes de competência originária que re- ve ofensa à liberdade de crença, quer por-
solveram rogar à proteção divina, não sen- que o trabalhador agnóstico pode não
do correto promover-se contingente vincu- aceitar de modo passivo a investida do
lação do Estado brasileiro à crença religio- crente;
sa, porquanto se recorre ao uso do pronome O “convite” endereçado aos trabalhado-
pessoal da primeira pessoa do plural para res a fim de que participem de culto por oca-
reforçar a antedita personificação; sião do Natal é flagrante desrespeito à liber-
A referência ao nome de Deus em notas dade de religião;
de curso forçado cumpre simplesmente o A existência, na empresa, de templo re-
propósito de identificar os indivíduos ao presentativo de um dado segmento religio-
Plano Real, creditando-o como norma pla- so torna imperiosa a sua conversão em es-

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paço ecumênico, abrigando, assim, todas as Bibliografia
tendências religiosas;
As entidades religiosas, malgrado tal DINIZ, M. H. Norma constitucional e seus efeitos. 2.
condição, não podem restringir o universo ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
dos trabalhadores contratáveis àqueles que DOYLE, A. C. Os fugitivos. [S. l.: s. n., 19--?].
professam a fé religiosa abraçada pela or- DUGUIT, L. Traité droit constitutionnel. 2. ed. Paris:
ganização. Fontamoiny, [1925?]. v. 5.
IBGE. Censo demográfico 1991. Rio de Janeiro, [1991?].
MIRANDA, J. Manual de direito constitucional. Co-
imbra: Coimbra, 1993. v. 4.
Notas
REALE, M. O Estado democrático de direito e o conflito
1
Fixação de horário-limite para cultos religio- de ideologia. [S. l.: s. n., 19- -?].
sos é assunto referente a interesse local, com o que
RIBEIRO, R. J. A sociedade contra o social: o alto custo
incide a regra de competência do art. 30, I, da Cons-
da vida pública no Brasil. [S. l.: s. n., 2000?].
tituição.
2
É também expressão do princípio da impes- SHIRATO, M. A. R. Empresa não é mãe. Veja, São
soalidade a existência de Administração Pública Paulo, 14 abr. 1999. Entrevista cedida a Donit
não vinculada ao rosto do governante. Harazin.
3
Disponível em: <http://www.stf.gov.br/no-
SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positi-
ticias/imprensa/ ultimas>.
4
vo. [S. l.: s. n., 19- -?].
Fonte: Jornal A Tarde, Salvador, 3 jul. 2002.
5
A classificação utilizada é a proposta por TOLEDO, R. P. de. Não convocar o santo nome...
Maria Helena DINIZ (1992). Veja, São Paulo, n. 1759, p. 114, 10 jul. 2002.

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