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Introdução
As relações entre a Igreja e o Estado variaram de época para época mas do seu conhecimento
depende a compreensão perfeita da história e das forças profundas que orientam e explicam os
acontecimentos históricos. Os três primeiros séculos são dominados pelo Estado que persegue a
Igreja. Com a realização do Edito de Milão em 313 d.C, a Igreja conquista a sua liberdade e
entra a influir no Estado. Mais tarde, no Império Bizantino e também no Ocidente, o Estado
esforça-se por dominar e absorver a Igreja. Assim, a grande luta das investiduras, que domina
grande parte da Idade Média, é uma luta entre os dois poderes, o Sacerdócio e o Império e é a
partir deste período que pensadores como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho começam a
discutir o princípio da separação entre a Igreja e o Estado. Contudo, a Reforma protestante e o
liberalismo moderno tentaram dar ao grande problema novas soluções. Mas, a falência do
liberalismo com a sua política religiosa de separação, o estado liberal julgou resolver o problema
das relações entre o poder espiritual e o temporal com a separação, surgindo assim o princípio da
Laicidade do Estado que foi reforçado com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em
1948 ao defender a questão da liberdade de pensamento, consciência e religião.
Para desenvolver o argumento principal o ensaio, focaliza a análise em dois aspectos principais: I
- O princípio da laicidade do Estado a luz da Constituição de 2004, descrevendo-se a separação
da Igreja e do Estado em Moçambique; II – A liberdade religiosa a luz da Constituição de 2004,
destacando-se um breve historial da liberdade religiosa e Relações Igreja-Estado nas
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Mas, do outro lado considera Sarmento (2007, p.3), a laicidade também protege o Estado de
influências indevidas provenientes da parte religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o
poder secular e democrático.
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Do latim (regale+ismo). Trata-se de um sistema político que sustentava o direito que tinham os reis de interferir na
vida interna da Igreja.
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Esta íntima conexão entre a laicidade estatal e a liberdade de religião é sempre recordada na
riquíssima jurisprudência constitucional norte-americana sobre a matéria (Sarmento, 2007, p.4).
Por exemplo, no julgamento proferido no caso Engel v. Vitale, ocorrido em 1962, a Corte
ressaltou que “quando o poder, prestígio ou apoio financeiro do Estado é posto a serviço de
uma particular crença religiosa, é clara a pressão coercitiva indirecta sobre as minorias
religiosas para que se conformem a religião prevalecente oficialmente aprovada.”
Por outro lado, a existência de uma relação directa entre o princípio de laicidade do Estado e o
princípio da igualdade é também inequívoca. Em uma sociedade pluralista como a moçambicana,
em que convivem pessoas das mais variadas crenças e afiliações religiosas, bem como indivíduos
que não professam nenhum credo religioso, o princípio da laicidade conjugado a liberdade
religiosa converte-se em um instrumento indispensável para possibilitar o tratamento de todos
com o mesmo respeito e consideração de acordo com o princípio da universalidade e igualdade
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(como já fizemos referência) patente no Art.35 da CRM 2004 onde, “Todos cidadãos são iguais
perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres,
independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de
instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política”. Neste contexto de
pluralismo religioso, qualquer posicionamento religioso do Estado implica, necessariamente, em
injustificado tratamento desfavorecido em relação àqueles que não abraçam o credo privilegiado,
que são levados a considerar-se como “cidadãos de segunda classe”. Tais pessoas, como
membros da comunidade política, são forçadas a se submeterem ao poder heterônomo do Estado,
e este, sempre que é exercido com base em valores e dogmas religiosos, representa uma
inaceitável violência contra os que não os professam.
Ademais, os que não pertencem à confissão religiosa favorecida pelo Estado, recebem do mesmo
a mensagem subreptícia, doptada de forte carga excludente, de que as suas crenças são menos
dignas de reconhecimento (Machado, 1996, p.352) isto é, qualquer comportamento do Estado
que favoreça alguma religião envia uma mensagem aos não-aderentes de que eles são
“outsiders”, e não plenos membros da comunidade política, acompanhada de outra mensagem
aos aderentes, de que eles são “insiders”, membros favorecidos da comunidade política (Ibid.,
1996, p.352). Esta atitude seria praticamente um desvio por parte do Estado naquilo que são os
seus objectivos fundamentais patentes na CRM de 2004: a consolidação da unidade nacional; a
edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de
qualidade de vida dos cidadãos; a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos
cidadãos perante a lei; o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da
harmonia social e individual; a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura
de paz e, a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-
culturais (alíneas b), c), d), e), f), g) e i) respectivamente do Art.11 da CRM 2004.
Importa também referir que o princípio da laicidade do Estado Estado não é um comando
definitivo, mas um mandamento constitucional prima facie2. Trata-se de um típico princípio
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Conceito proposto por Sir David Ross, em 1930. Ele propunha que não há, nem pode haver, regras sem exceção. O
dever prima facie é uma obrigação que se deve cumprir, a menos que ela entre em conflito, numa situação particular,
com um outro dever de igual ou maior porte. Um dever prima facie é obrigatório, salvo quando for sobrepujado por
outras obrigações constitucionais simultâneas.
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Trata-se de um sistema de governo em que as ações políticas, jurídicas e policiais são submetidas às normas de
alguma religião.
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“Na República popular de Moçambique o Estado é laico e nela existe uma absoluta separação
entre o Estado e as instituições religiosas. Na República Popular de Moçambique, a atividade
das instituições religiosa devem seguir as leis do Estado” ( Art. 19 da CRPM 1975)4.
“Os cidadãos gozam da liberdade de praticar ou de não praticar uma religião” (nº 1 do Art.78
da CRM 1990) e no nº 2 do mesmo artigo advoga que “As confissões religiosas gozam do direito
de prosseguir livremente os seus fins religiosos, possuir e adquirir bens para a materializaqão
dos seus objectivos”.
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Importa sublinhar que, nesta Constituição não aparece à semelhança da Constituição de 1990 e de 2004 de forma
clara as relações entre a Igreja e o Estado.
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O conflito entre os novos detentores do poder de estado e as instituições religiosas dá-se num
quadro de uma luta pelo poder. A FRELIMO considerava que sendo o representante legitimo de
todo o povo não admitia desafios as suas leis e orientações por isso, no Art.4 Da CRPM o
objectifo fundamental da República Popular de Moçambique consistia na “eliminação das
estruturas de opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhe está
subjacente ...”. Neste contexto da eliminação da tal estrutura a religião não escapou.
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As palavras destacadas demonstram os princípios orientadores da nova constituição que consagra o princípio da
igualdade e da democracia numa perspectiva da consagração da dignidade humana.
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Julgamos deste modo que a Constituição Moçambicana de 2004 em linhas gerais acolhe e
regulamenta de modo adequado os três princípios fundamentais que sustentam as relações Igreja-
Estado. Respeita-se claramente o princípio de autonomia das confissões religiosas ao afirmar que
“As confissões religiosas são livres na sua organização e no exercício das suas funcões e de culto
e devem conformar-se com as leis do Estado” ( nº4 do Art.12 da CRM 2004) conjugado ao nº3
do Art.54 da CRM 2004 que defende que “As confissões religiosas gozam do direito de
prosseguir livremente os seus fins religiosos, possuir e adquirir bens para a materialização dos
seus objectivos”; defende-se o direito à liberdade religiosa nas suas dimensões individual
“Ninguém pode ser discriminado, perseguido, prejudicado, privado de direitos, beneficiado ou
isento de deveres por causa da sua fé, convicção ou prática religiosa” (nº2 do Art.54 da CRM
2004) e social “Os cidadãos gozam da liberdade de praticar ou de não praticar uma religião” (nº1
do Art.54 da CRM 2004); mantém-se a devida atenção ás comunidades religiosas, afastando-se
do laicismo do período da República Popular de Moçambique (1975) e da República de
Moçambique (1990), para entrar num campo de aberta cooperação onde, “O Estado reconhece e
valoriza as actividades das confissões religiosas visando promover um clima de entendimento,
tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o bem-estar espiritual e material dos cidadãos e o
desenvolvimento económico e social” (nº4 do Art.12 da CRM 2004).
Parece-nos, porém, que e stas linhas de força – autonomia, liberdade e cooperação – poderiam
marcar-se ainda, em algum aspecto, de um modo mais vigoroso, por exemplo, em matéria de
manifestação pública da religiosidade do indivíduo ou grupo de indivíduos poderiam determinar-
se por lei de maneira positiva e prática limites da liberdade individual ou celectiva de
manifestação de crenças religiosas. Ora vejamos: a luz do nº 1 do Art.56 da CRM 2004 “Os
direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e
privadas, são garantidas pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis”
e no nº2 do mesmo artigo, refere-se que “O exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado
em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela constituição”. O que
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significa que, deve existir uma lei que regula a liberdade religiosa desde que essa lei salvaguarde
os casos expressamente garantidos na constituição pois diz-se no nº3 do Art.56 que “A lei só
pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
constituição”.
Perante a este processo, por exemplo, a decisão de mandar suspender a aluna Fátima Kalifa, que
frequentava a Escola Secundária Fraternidade, na cidade de Pemba, por usar burca (véu
islâmico) na sala de aulas pelo Ministro da Educação Zeferino Martins que na ocasião, defendia
que o Estado Moçambicano é laico sendo, por isso, proibidas todas as manifestações religiosas
em recintos escolares, é inconstitucional. É inconstitucional porque, a questão do uso do veu
islâmico em locais público como a escola, deve ser interpretada em função da liberdade religiosa
disposto no Art.54 da CRM e, numa perspectiva da dignidade humana que por sua vez,
concretiza o princípio da universalidade e igualdade disposto no Art.35 da CRM. Assim sendo,
de acordo o disposto no nº1,2 e 3 do Art.56 da CRM as liberdades individuais devem ser
limitadas por lei. Desta forma, na nossa jurisprudência não existe uma lei que regula a liberdade
religiosa, impondo os limites das liberdades.
Note-se, porém, que não há qualquer paralelo entre vedar-se que um cidadão ou cidadã exprima
a sua fé e identidade religiosa no espaço público – o que constitui uma violação à liberdade de
religião – e interditar que o Estado endosse, através de símbolos, qualquer crença ou confissão
religiosa. No primeiro caso, tem-se um atentado à liberdade e igualdade do indivíduo, e, no
outro, uma medida que visa, pelo contrário, a proteger e promover a liberdade e a igualdade de
todas as pessoas (Greenwalt, 2006, p.91). Por isso, seria constitucionalmente inadmissível a
aplicação em Moçambique de medidas adoptadas por países como a França e a Turquia - que, em
nome deste princípio da laicidade do Estado, restringiram certas manifestações religiosas dos
seus cidadãos em espaços públicos, com destaque para a proibição do uso do véu islâmico por
jovens muçulmanas em escolas públicas.
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Considerações Finais
As igrejas por sua vez, apesar de serem independentes, conformam-se com as leis do Estado de
acordo com o dispopsto no nº3 do Art.12 da CRM “As confissões religiosas ... devem
conformar-se com as leis do Estado” e têm desempenhado o seu papel no reforço da unidade
nacional, o bem-estar material e espiritual dos seus cidadãos bem como no desenvolvimento de
uma cultura de Paz entre os cidadãos.
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Bibliografia
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estúdios Constitucionales, 1993.
GREENWALT, Kent. Religion and the Constitution. Vol. 1; Princeton: Princeton University
Press, 2006.