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EDUARDO MELLO GUIMARÃES

OS IDIANTES
Como os idiotas-arrogantes
dominaram o mundo

2021
Copyright ©2021 by Poligrafia Editora
Todos os direitos reservados.
Este livro não pode ser reproduzido sem autorização.
OS IDIANTES
Como os idiotas-arrogantes dominaram o mundo
ISBN 978-65-5854-511-8

Autor: Eduardo Mello Guimarães Coordenação Editorial:


Marlucy Lukianocenko
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: Cida Rocha Revisão:
Fátima Caroline P. de A. Ribeiro
Imagem Capa: Licença Shutterstock/Valeryia Pekar

Poligrafia Editora
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exclusivamente pelo autor.
“Onde quer que a multidão vá, corra na outra direção. Eles
estão sempre errados. Por séculos estiveram errados e sempre
estarão errados.”

Charles Bukowski
– Meu filho, o mundo está cheio de idiantes – disse meu pai, por
trás do jornal que ele lia tão compenetrado.
– Idiantes, pai? – perguntei, deitado no sofá da sala.
– São os idiotas-arrogantes. Acabei de criar esse neologismo.
Dei uma gargalhada e levantei correndo para anotar no meu
caderninho mais um dos seus momentos iluminados.

Meu pai faleceu em 2007, mas assistiu, de onde está, ao rumo


que dei àquele seu momento de eternidade.
Este livro é para você, pai.
PREFÁCIO
2033. Você é apenas um figurante em Idiópolis, capital
mundial da nossa Terra, então inteiramente dominada pelos
Idiotas-Arrogantes – os Idiantes. Os SPAs de Emagrecimento
Cerebral já sugaram até a última gota de inteligência dos
excluintes – os excluídos-inteligentes.

O grande mérito das distopias é colocar o teatro social do


nosso tempo em uma lente de aumento, fazendo com que seus
cenários e scripts cotidianos, despidos do manto sagrado do
hábito, revelem seus traços bizarros, grotescos, trágicos e
cômicos.

O século XX teve suas grandes distopias. Aldous Huxley nos


fala de uma sociedade hipertecnológica na qual a “soma” logrou
eliminar todos os sentimentos “negativos” da humanidade. Seu
aluno George Orwell, com “1984”, nos põe dentro das
sufocantes fronteiras de um Estado totalitário paranoico ao qual
absolutamente nada escapa.

Como seria a distopia do século XXI? Numa deliciosa


narrativa que nos leva ao limite do cômico e do trágico da nossa
atual situação, Mister Guima, o último dos excluintes, nos
conduz por diversos cenários tão familiares de Idiópolis, como
acalorados debates políticos entre o PIT (Partido Idiante Total) e
PIT do M (Partido Idiante Total do Mesmo), eventos “culturais”,
o lançamento do mais novo aparelho i-diante, academias,
templos, festas, reuniões de condomínio… Haverá salvação?

Diogo Bogéa é Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Autor,


entre outros, de “Ensaios sobre a Pandemia: Ilusões de
Onipotência e o Desafio da Singularidade”.
SUMÁRIO
Capítulo I - A ERA DOS IDIOTAS-ARROGANTES
Capítulo II - O CASAMENTO
Capítulo III - A POLÍTICA IDIANTE
Capítulo IV - O SEQUESTRO
Capítulo V - “NÃO-PENSAR, NÃO-FAZER”
Capítulo VI - THE FURY OF PANACAS’ COVER
Capítulo VII - O TEATRO DOS IDIANTES
Capítulo VIII - O SHOPPING IDIANTE
Capítulo IX - ESCOLA LUGAR-COMUM
Capítulo X - ACADEMIA IDIANTE
Capítulo XI - DR. ENDOSCÓPIUS
Capítulo XII - O TEMPLO DOS IDIANTES
Capítulo XIII - ALMAS GÊMEAS
Capítulo XIV - O CONDOMÍNIO IDIANTE
Capítulo XV - A EMPRESA IDIANTE
Capítulo XVI - O I-DIANTE
Capítulo XVII - O GRANDE ENGODO
Capítulo Final - DR. ARROGANTUS MAXIMUS
Capítulo I
A ERA DOS IDIOTAS-
-ARROGANTES

Você já reparou que, quando chove, há


sempre velhinhas que teimam em andar com os guarda-chuvas
abertos debaixo das marquises? Isso parece ser totalmente
irrelevante para você, não é verdade? Mas, antes de falar das
velhinhas, preciso dar uma notícia bombástica: seu cérebro foi
apagado e você ainda não sabe.

Desculpe-me por dar essa notícia assim, de supetão.


É triste informar, mas todos os que vivem neste planeta já tiveram
os cérebros apagados ou isso nem foi necessário, se é que você me
entende. Saiba que você vive em Idiópolis e estamos em pleno ano
2033.

Idiópolis é a cidade escolhida para ser a capital do


Planeta Terra. Você não queria o fim das fronteiras? Eu também.
Mas não esperava que fosse dar nisso: uma gigantesca cidade
dominada pelos idiantes (idiotas-arrogantes) e o mundo inteiro
curvando-se diante do poder de tais seres. O velho conceito de
“aldeia global” tornou-se realidade com a globalização da idiotice e
da arrogância. E, além disso, todos os povos da Terra passaram a
falar a mesma língua, o arrogota, numa espécie de Torre de Babel
às avessas. Sei disso porque sou um prisioneiro. Meu nome é...
Bom, meus amigos, e também os
inimigos, me chamam de “Mister Guima”. Estou preso num SPA
de Emagrecimento Cerebral. Isso mesmo, você leu certo. Estou
num SPA cujo objetivo é deixar sarados e sequinhos os cérebros
dos excluintes (excluídos-inteligentes) para nos transformar em
figurantes. Antes que você tire conclusões politicamente corretas,
saiba que os inventores desse adjetivo, excluintes, foram os
próprios idiantes. Quem mandou a gente chamá-los de idiotas-
arrogantes? Na verdade, con- fesso: sou o criador desse
neologismo. Pense bem: idiante é mais simples que idiota-arrogante
e significa exatamente a mesma coisa.
Para os idiantes, eu sou o último dos excluintes. Confesso que
ficaria mais feliz se o elogio viesse de outro lugar. Ser considerado o
último dos excluídos-inteligentes por essa gente não é motivo
nenhum de orgulho. E os figurantes? Bom… Como o próprio nome
diz, não têm participação direta no rumo dos acontecimentos. Aliás,
assim como no cinema, servem apenas para compor o cenário da
cidade e dar mais realismo às cenas do dia a dia. Para os
figurantes, tanto faz. São apenas aqueles seres que andam de um
lado para o ou- tro, todos os dias, em qualquer lugar. Basicamente,
eles acor- dam, trabalham, pagam impostos, comem, fazem dívidas
e filhos e dormem. O único momento de revolta dos figurantes foi
quando se sentiram discriminados: “Por que só os excluintes tinham
o direito de frequentar os SPAs de Emagrecimento Cerebral?”.
Os excluintes, quando descobriram que aquilo era uma
armadilha, incentivaram o protesto dos figurantes em todas as redes
sociais, na Deep Web e até na Dark Web. Tudo na esperança de
atrasar o plano dos idiantes. Mas os idiantes agiram rápido. Para
conter a fúria dos figurantes, ordenaram que os SPAs aceitassem-
nos também, desde que pagassem. Orgulhosos, os figurantes
juntavam dinheiro cortando supérfluos, como arroz, feijão e o leite
das crianças, para conseguir entrar nos SPAs. Entravam e saíam de
lá com a certeza de que jamais teriam estresse, pânico ou
depressão.
O pior é que, dentro dos SPAs de Emagrecimento Cerebral,
recebiam apenas placebos dos insensíveis idiantes. Pois é. Os
idiantes são idiotas e arrogantes, mas não são nada burros, por
assim dizer.
Criaram uma super empresa de tecnologia no Vale do Cretinuus
(antigo Vale do Silício), a Inanis Caput Corporation, criadora dos
fatídicos SPAs de Emagrecimento Cerebral em Idiópolis e depois
em todas as cidades do planeta. Foram os SPAs de Emagrecimento
Cerebral que consolidaram o domínio dos idiantes. O CEO e criador
dos SPAs nunca foi visto em nenhuma tela da internet ou
pessoalmente. Os figurantes acreditavam que ele era um enviado
de Deus. Afinal, o misterioso CEO foi a celebridade do ano por sete
anos consecutivos. Todo idiante, idiantezinho ou figurante o tinham
como exemplo de winner. No início, aproveitando-se de uma
explosão mundial de casos de pânico e depressão, os SPAs
atraíram a todos com a promessa de “esvaziar e aliviar as mentes”.
Os excluintes de todas as raças, credos e continentes foram
sumariamente enganados por tal esquema ardiloso. Inclusive você,
que agora está lendo esta suposta obra de ficção. Os idiantes são
tão inteligentes que convenceram uma pessoa como você a
acreditar que tudo o que vemos no mundo é “o novo normal”. Em
menos de seis meses, mais de 99% dos excluintes de Idiópolis
tiveram seus cérebros apagados e foram transformados em
figurantes.
Aqui no SPA, cada vez que um excluinte bebe água de coco,
coloca sandálias ou morde uma maçã, um nano robô entra em sua
corrente sanguínea e vai até o cérebro, onde inibe as áreas da
empatia, gentileza, coragem e amor, de acordo com os princípios
idiantes. A potência vital é armazenada na área do esquecimento. É
como se pegássemos uma bela escultura e colocássemos de volta
todos os pedaços retirados cuidadosamente pelo artista. E tem
mais: cada movimento nas aulas de yoga significava um
conhecimento, um talento ou uma virtude a menos na cabeça. E o
golpe final era dado na aula de meditação: quando o instrutor dizia
“esvaziem suas mentes”, o fato era consumado. A partir daquele
momento, o excluinte passava a ser um figurante.
Confesso que só acredito nos atormentados e nos ilumi- nados.
Tenho muito medo dos figurantes felizes, com o per- dão da
redundância.
Segundo as últimas pesquisas da OMS e da ONU, sou o último
dos excluintes. Sim, estou em um SPA de Emagreci- mento
Cerebral, mas ainda não tive o meu cérebro apagado. Claro que já
pensei em desistir, porque as chances de virar o jogo estão cada
vez menores. Os idiotas-arrogantes gostaram do poder absoluto e
não querem mais largar o osso.
Capítulo II
O CASAMENTO

Se há uma coisa
que Idiópolis tem aos montes são igrejas. Aliás, templos de todos os
tipos de crença. Se algum alie nígena algum dia aqui pousasse, diria
que este é o planeta mais religioso do universo. Vários cinemas,
teatros, bares e casas de show desapareceram. Em seus lugares,
foram er- guidos templos faraônicos. “Essa gente deve precisar
mesmo de muita oração”, pensaria o extraterrestre. Bom, mas o que
eu quero contar para você é a história do maior casamento realizado
até hoje na grande metrópole. Afinal, você precisa de provas para
se convencer de que agora é um figurante, não é mesmo? Vamos
começar, então, por esse megacasório. Para conseguir entrar, usei
o disfarce de cinegrafista de casamentos e fui contratado para cobrir
o evento. O diretor da empresa Filma Tudo Por Dinheiro foi muito
claro antes que eu e os outros quarenta cinegrafistas
começássemos a filmar o casamento:
– Eu não quero que vocês percam nada, entenderam? Se um
convidado espirrar na igreja, eu quero ver isso no filme. Se, na
recepção, um convidado pegar uma empada eu quero um close e
várias tomadas diferentes da cena. E não importa se a empada
tenha ou não azeitona. Isso eu resolvo na edição. Se o noivo suar,
quero ver cada gota em slow motion! Quero a entrada da noiva em
vários planos diferentes. Vocês compreenderam?
Ninguém teve coragem de dizer nada. Concordamos com simples
gestos de cabeça.
– Ótimo! Estarei o tempo todo de olho em vocês. Podem ir. Ação!
Ação!
Depois daquela palestra contundente de direção cinema-
tográfica, saí com a minha microcâmera 28K de altíssima resolução
na mão e nenhuma ideia na cabeça.
Mesmo assim, saí filmando geral para não levantar suspeitas.
Não perdia nada do casório. A noiva entrou de maneira apoteótica,
horas após o horário previsto. E todos na igreja sorriam sem parar.
Mas o que mais me chamou atenção foi o padre – justamente o fato
de não haver padre. Quando a noiva chegou ao altar, um gigantesco
telão 3D a laser desceu do teto. Todos os convidados colocaram
seus óculos 3D. A música parou e apareceu na tela a imagem de
um velhinho sorridente. A explicação veio de um dos convidados,
que cochichou para sua mulher:
– É que a noiva bateu pé e disse que só se casaria se o Papa
fizesse a celebração.
– Mas é o Papa mesmo, meu bem?
– Vai saber? Eu acho que é mais um daquele programas piratas
de computador que criam clones holográficos de personalidades
famosas.
– Mas é igualzinho, meu bem!
Realmente, tenho que reconhecer que, embora um pouco
duvidosa, aquela imagem de Sua Santidade que estava no telão, ao
vivo e direto do Vaticano, era bem convincente e emocionou a
todos.
O Santo Padre abençoou os noivos e as legendas apareciam
simultaneamente, em arrogota. Meu acrobático diretor corria de um
lado para outro, para ver se estávamos filmando tudo.
Após a cerimônia realizada no templo da Igreja Sua Culpa, Sua
Grande Culpa, os três mil convidados foram para a recepção no
Petulant’s Country Club. Não há palavras para descrever a
decoração impecável da festa. Tudo do bom e do melhor. Ah, os
noivos. Os noivos eram das melhores famílias da cidade-planeta, é
claro. O rapaz, um loiro de quase dois metros de altura, pertencia à
família Pelasacos de Pinto, conhecida pelo enorme sucesso no
ramo de lavagem de roupa, cerebral e de dinheiro. Já a noiva, uma
linda morena de olhos azuis, tinha como pais o abastado prefeito,
Umseteum de Araújo Neto, e sua mulher, Primeira-Dama da Cidade.
Isso mesmo. O nome da primeira-dama era Primeira-Dama da
Cidade. Seus pais escolheram o nome após consultar uma
senadora que era numeróloga nas horas vagas. Realmente, o nome
provou-se profético. Por fim, línguas maliciosas diziam que o alcaide
e sua mulher tinham participação majoritária nos SPAs de
Emagrecimento Cerebral, onde lavavam dinheiro e cérebros. Enfim,
juntando tudo isso, ninguém tinha dúvida de que o amor imortal
explicava o apoteótico casório. Mas voltemos ao Petulant’s Country
Club. Naquele momento, a mãe da noiva conversava animadamente
com a mãe do noivo. Abri a câmera e dei um close nas duas.
– Obrigada, querida, obrigada pelos elogios.
– São sinceros, queridíssima! Que bom gosto! Tudo chi-que-ré-
simo!
A mãe da noiva suspirou, emocionada.
– Você viu as alfaces?
– As alfaces?
– Sim, querida, transgênicas e clonadas. Mandei vir da antiga
Ucrânia.
– Sério?
– Claro! E os chuchus vieram diretamente das Ilhas Maldi- vas,
antes delas afundarem, naturalmente.
– Que luxo! Que luxo!
– Ah, querida... Você acha que eu pouparia esforços pela
felicidade dos nossos filhos?
– Eu sei que não, querida.
– Pois é. A banda que vai tocar daqui a pouco é formada por
monges apagados do antigo Tibete.
– Que tudo!
– Ah! – puxou a amiga e disse baixinho: – O maestro da banda é
um clone do Dalai Lama que teve o cérebro apagado especialmente
para essa festa.
– Sério? É aquele senhor simpático ali que não para de sorrir e
dizer “namastê”?
– Exatamente.
– Nossa, querida! Que es-pe-tá-cu-lo!
– Obrigada... O que a gente não faz por amor, né?
Naquele momento, passaram por elas quatro senhoras
sorridentes, com vestidos estampados e passos firmes. Virei a
minha microcâmera e peguei em close o sorriso enigmático no rosto
daquelas misteriosas senhoras. Usavam óculos escuros, vestidos
estampados e seus inseparáveis guarda-chu- vas. As quatro foram
para o salão, onde dançaram anima- damente ao som da banda dos
monges apagados do antigo Tibete.
Filmei tudo com riqueza de detalhes e, para desespero do meu
diretor, esqueci totalmente as empadinhas! Enquanto isso, as duas
anfitriãs olharam estarrecidas para as velhinhas e se entreolharam,
enojadas. Porém, não comentaram nada. Por dentro, pensavam em
como a outra podia ter coragem de convidar aquelas velhinhas
robustas e pessimamente vestidas para um momento único como
aquele. O silêncio estava ficando constrangedor entre as mães do
noivo e da noiva quando foram salvas por duas outras socialites que
se aproximaram sorridentes.
– Olhem só – começou uma delas – a mãe da noiva e a mãe do
noivo.
– Nossa! As duas mulheres mais chiquerésimas de Idiópolis.
As duas, após um heroico esforço inicial, esticaram a pele e
conseguiram sorrir.
– Obrigada, queridas. Vocês estão lindas também – disse a mãe
do noivo.
– Lindíssimas! Obrigada por terem vindo, queridas.
– Ah! A gente não perderia essa por nada.
– Que bom que vocês estão se divertindo.
– Se estamos... Por falar nisso, vocês nos dão licença? Va- mos
passear por aí, porque esta festa está cheia de milioná- ri... Quero
dizer, gente interessante! – as três sorriram e se afastaram,
deixando as anfitriãs sozinhas mente.
Coitadas – disse a mãe do noivo, suspirando e balançan do a
cabeça.
– Coitadas por que, querida?
– Ai! Você não soube?
– Não! Conta!
– Um dia, eu pedi para o King Arthur, meu motorista dos
sábados, dar uma paradinha com a nossa limusine em frente à
Galeria Trivial.
– E aí?
– Aí que estava chovendo muito e vi essas duas... Sabe onde?
– Onde?
– Entrando numa loja de departamento de calcinhas reci- cláveis.
– Que horror!
– Pois é querida, um horror! Mas deixa isso para lá... Você já viu
os tomates?
– Os tomates também?
– Da antiga Letônia, minha querida. Cultivados com banho
matinal de raios gama.
– Nossa!
Quando a festa acabou, pensei melhor e resolvi dar o fora sem
entregar minha gravação para o meu “vou enfartar daqui a dois
minutos” diretor. Não queria que as velhinhas fossem perseguidas.
No entanto, soube por meio de um colega de filmagem que as
velhinhas haviam pego uma carona na van da banda dos
sorridentes monges apagados do Tibete.
Capítulo III
A POLÍTICA IDIANTE

Idiópolis tem um
Congresso eleito pela maioria idiante e figurante. Existem dois
partidos: o PIT, Partido Idiante Total, que é o da situação, e o PIT do
M, Partido Idiante Total do Mesmo, da situação radical. Mas se você
quer mesmo saber, algumas coisas curiosas acontecem por lá.
Certa vez, na Câmara da Máxima Arrogância (CMA), onde os
eminentes legis- ladores votam os projetos mais importantes para o
povo de Idiópolis, um acontecimento bastante inusitado ocorreu, por
assim dizer. O ambiente solene e formal reforçava a impressão de
que algo inesquecível estava para acontecer. Todos os deputados
da casa, por mais surpreendente que possa pare- cer,
compareceram ao plenário. Nas galerias lotadas, o povo idiante e
figurante gritava palavras de ordem. E é claro que eu estava ali, de
terno, gravata e um ar compenetrado. Ou seja, com o meu disfarce
insuperável: meio figurante, meio idiante. Fiquei o mais próximo
possível da tribuna, pois não queria perder de maneira nenhuma os
discursos que estavam por vir.
Tudo bem que o fato de termos um monte de idiantes decidindo o
futuro da humanidade não era nada assim de tão novo, mas eu
tinha um interesse especial pela pauta daquele dia. Olhei para a
parte superior das galerias e estremeci. Lá estavam elas. Quatro
senhoras de idade avançada que tam- bém usavam disfarces de
figurantes. Não tive nenhuma dú- vida: eram as quatro velhinhas
que teimam em andar com os guarda-chuvas abertos debaixo das
marquises em dias de chuva. Usavam óculos escuros e, mesmo
sem os seus inseparáveis vestidos estampados, eram
inconfundíveis, pelo menos para mim.
Porém, os sorrisos enigmáticos das robustas e excelentes
senhoras passavam despercebidos para os demais. Mesmo assim,
desviei meu olhar, com medo de que algum idiante percebesse. Os
figurantes não me preocupavam, pois, como disse antes,
infelizmente vivem apenas para compor cená- rios, eleger idiantes,
pagar impostos e esperar as recompen- sas da outra vida.
Foi então que um deputado, magérrimo e curvilíneo, subiu à
tribuna. O sujeito suava rios com afluentes, embora o ar-
condicionado da Casa estivesse no máximo.
– Senhor presidente, Vossa Arrogância tem de ser alertado para
o que é realmente importante para Idiópolis. Não podemos deixar
que nada popular fique em segundo plano. É preciso acelerar as
votações dos projetos prioritários e urgentes.
– Concordo. Vossa Arrogância tem cinco minutos para ex- por o
que pensa.
– Desculpe, senhor presidente, mas Vossa Arrogância me ofende
quando pede para eu dizer “o que penso”.
– Perdão. Vossa Arrogância está com a razão. Não houve dolo
da minha parte. Continue, por favor.
– Obrigado, senhor presidente. Quero conclamar a todos desta
Casa para votar o Projeto de Lei das Velhinhas Egoístas.
Precisamos de mecanismos e políticas públicas para combater com
extrema urgência este mal que assola nossas ruas. Quem essas
velhinhas pensam que são? Todo dia de chuva é a mesma coisa:
elas, impávidas e atrevidas, andando com seus guarda-chuvas
abertos debaixo das marquises.
Todos aplaudiram, entusiasmados. O homem
empolgou-se.
– A lei que impede que as velhinhas de Idiópolis andem com os
guarda-chuvas abertos debaixo das marquises em dias de chuva
precisa entrar em vigor já, senhor presidente!
– Não é mais possível a gente ver esse abuso de poder, esse
vilipêndio! Diria mais: é um crime hediondo o que essas senhoras
estão cometendo nas ruas.
– Vossa Arrogância está coberta de razão. A maioria da
população que, com certeza, já esqueceu seu guarda-chuva em
algum lugar e precisa das marquises tem que ficar desviando das
velhinhas e acaba tendo de andar na chuva. Muitos ficam gripados e
quem paga a conta somos nós. Creio que nem precisamos abrir
votação para esse projeto. Teremos, como sempre, a unanimidade
desta Casa 100% idiante.
– Obrigado. Vossa Arrogância realmente é um homem do povo.
Um dos grandes nomes do nosso tempo idiante.
– Vossa Arrogância está quase exagerando um pouquinho.
– Não! Ninguém pode esquecer que foi Vossa Arrogância que
criou a lei que mudou a cor da tinta de azul para preto no prazo de
validade dos iogurtes de baunilha diet!
– Obrigado, mas não foi uma obra só minha, e sim de centenas
de idiantes.
– Não seja modesto! É preciso dizer que é uma honra ter Vossa
Arrogância como presidente desta Casa!
– Vossa Arrogância é muito gentil e ajudou muito na aprovação
da mudança dos rótulos. Vale lembrar que em apenas 281 sessões
conseguimos votar o projeto.
– É verdade! Por isso vou agora me encontrar com o nosso líder
no Senado para aprovar logo a Lei das Velhinhas Egoístas lá.
– Claro! Isso é extremamente urgente! Fale com o líder do PIT do
M também.
– Com certeza. O pessoal do PIT do M quer derrubar to- das as
marquises de Idiópolis para resolver o problema das velhinhas.
– É brilhante, mas não é preciso tanto. Basta puni-las com o rigor
da lei.
– Concordo 100% com Vossa Arrogância.
– Fique tranquilo, senhor presidente. Essas velhinhas infames
vão pagar caro por não seguir a nova ordem do “não-
-pensar, não-fazer”. Por isso, devemos criar um novo imposto
para acelerar a construção de mais SPAs de Emagrecimento
Cerebral.
– Excelente ideia! Todos precisam dar sua cota de sacrifício para
o bem de Idiópolis.
– Nada que um aumento de 25,33% sobre a aposentadoria das
velhinhas não resolva.
– Por que os 0,33?
– Fica um número mais técnico, Vossa Arrogância.
– Perfeito! Se elas querem andar com os guarda-chuvas abertos
debaixo das marquises em dias de chuva, que pa- guem mais por
isso!
– Exatamente! Mesmo que elas parem de andar com os guarda-
chuvas abertos debaixo das marquises em dia de chuva, devem
pagar por todos esses anos que fizeram isso impunemente!
– E para os dias de sol?
– Hummm... Vamos criar uma emenda na próxima sessão
extraordinária.
– Projeto aprovado, não é, pessoal?
– Sim! Sim! Sim! – gritaram todos os deputados do plenário ao
mesmo tempo. As galerias explodiram em aplausos e todos
cantaram o Hino da Internacional Idiantista com olhos marejados.
Enquanto também aplaudia, percebi que as ve- lhinhas haviam
desaparecido sorrateiramente mais uma vez.
Capítulo IV
O SEQUESTRO
Se os idiantes achavam que a filosofia do “não-pensar, não-fazer”
traria menos problemas para o mundo, precisavam ter visto o que
eu vi. Certa vez, cheguei em casa e escutei um estranho diálogo na
varanda do apartamento vizinho.
– Cabeção, não me venha com essa de diminuir o resgate.

– Mais vale um pássaro na mão do que dois voando,


Zé Ruela. Não é assim?
– Nem sempre. O chefe mandou faturar um milhão.

– Pois é, mas os caras não têm essa grana toda.

– Como não? Quem hoje não tem um milhão de


arroguetas? Mas, se ficarem de gracinha, azar o deles... Ou melhor,
dessa menina aqui.
Estiquei-me todo na varanda e vi o que se passava.
O tal Zé Ruela apontou para uma menina amarrada
com cordas a laser numa velha cadeira de madeira do século XX.
Os três estavam naquela devassada varanda e os vilões pareciam
não se importar com a possibilidade imensa de serem vistos, ainda
mais com toda a luz daquele lindo dia azulado. A garota devia ter
quinze anos, no máximo, e para o meu espanto, parecia não estar
nem um pouco assustada.
– Mas, Zé... A garota já tá definhando. Vai que ela vira co- mida
para os nano rôbos?
– Calma, Cabeção... Ela tá bem de saúde. Essa aí comeu bem a
vida inteira.
– Sei não... Dizem que rico sempre come mal.
– Tô falando. Essa menina é capaz de viver que nem came- lo no
deserto. A família dela é a mais cheia da grana de Idió- polis. Acho
que tem até mais grana que a família do prefeito Pelassaco.
– Será, Zé?
– Sim. Por isso tá na hora de ajudar os mais necessitados.
– Tu é cínico mesmo, hein, Zé?
– Cínico não, idiante!
– Eu estou mesmo de dieta, seus manés! Nem tô ligando! – a
menina parecia confiante.
– Cala essa boca, garota! Tu já tá parecendo uma escova de
dentes e ainda fica tirando onda?
– Estou ótima! Ótima! Mais uns três dias sequestrada e meus
vestidos vão todos entrar em mim! Minhas amigas vão morrer de
inveja!
– Ahhh! Deixa para lá! Se você quer virar faquir, o proble- ma é
seu.
– Vou virar uma top model, seus manés!
– Faz essa pirralha calar a boca, Cabeção. Já tô de saco cheio
de ficar nesse pardieiro escutando essa magricela mimada falar. E,
para piorar, tudo o que temos para passar o tempo é essa TV 8K de
180 polegadas com oito mil canais.
– Vai melhorar, Zé...
– Droga!
– Ok, Zé Ruela. Vou sair para comprar o rango da garota e o
nosso.
– Eu quero bife com fritas.
– De novo?
– E daí? Eu adoro bife com fritas. Faz lembrar a comida da
mamãe.
– Mas você nunca teve mãe, Zé.
– Não interessa. Mesmo assim me lembra.
– Tá bom... Fui!
Cabeção saiu da casa olhando para os dois lados da rua. Era um
profissional e não podia se deixar surpreender. Meia hora depois,
voltava com as quentinhas.
– Finalmente, hein?
– Pô... O pé-sujo tava lotado.
– Pé-sujo? Vai me dizer que comprou ovo rosa? Porra, eu quero
bife com fritas!
– Mas eu trouxe bife com fritas, só que do pé-sujo.
– É inacreditável! Em pleno 2032 e ainda existe pé-sujo!
– Calma, Zé... O rango tá na responsa.
– É bom mesmo! Tô morto de fome. Só não coloco a pirra- lha no
espeto porque só tem osso.
– Isso, Zé! Se você não gostar do rango, dá para ela.
– Nem morta eu como isso aí! Sabia que não devemos misturar
carboidratos? Arroz com batata? NE-VER!
– Cala essa boca, garota! Me dá essa merda aqui, Cabeção! O
bandido abriu o pacote e fez cara de nojo.
– Porra! Nem meu cachorro come isso!
– Mas você também não tem cachorro, Zé...
– Tira essa droga daqui! Vai no restaurante da outra es- quina.
– Mas lá é caro, Zé...
– E daí? O chefe paga. Traz a nota.
– Tá bom...
– Eu quero Ceasar Salad Diet Clonada!
– Tá de sacanagem, garota?
– Ué? É uma delícia, seu bobão! E não engorda naaada!
– Cala essa boca! Você vai comer o que a gente mandar!
Vaza, Cabeção!
Cabeção saiu de novo. Dessa vez, resolvi segui-lo. Ele não
precisou andar muito para chegar ao tal restaurante. Como o
sistema do mesmo era a quilo, teve que fazer três quentinhas
diferentes. Entrou na fila para pagar. E, quando virou-se para sair,
esbarrou em alguém e deixou as quentinhas caírem no chão.
– Merda! Olha para onde anda! Olha isso! O bife com fritas do Zé
Ruela no chão! Ele vai me matar! E ainda quebrou a droga da gema
do ovo! O Zé só come ovo com a gema inteira!
– Desculpe... – a velhinha com um guarda-chuva estampa- do
nas mãos estava constrangida.
– A senhora é cega, vovó?
– Mesmo se fosse, não tem como não enxergar esse seu
cabeção.
– Dane-se, sua velha imbecil. E ainda quer fazer gracinha, né?
– Além disso, já pedi desculpas, rapaz. Seja mais educado. O
homem do caixa tentou intervir.
– O Sr. tem toda a razão. Pode fazer outro prato que a ve- lhota
paga, não é, vovó?
– Cala essa boca, que eu não falei com você, palhaço.
– Perdão, senhor Cabeção, é que...
– Que porra é essa? Como sabe que meu apelido é Cabe- ção?
– Bom... Foi a vovó que te chamou de Cabeção.
– Cala essa boca! Me dá logo outra quentinha ou vou pas- sar o
rodo geral nessa porra!
Da minha mesa, eu assistia a tudo, incrédulo. O tal Cabeção
devia ter, no mínimo, o triplo do tamanho da velhinha. Mesmo
sabendo que poderia ser descoberto, levantei-me e resolvi intervir.
– Um momento, seu covarde cabeçudo!
O facínora virou-se rapidamente na minha direção e foi aí que
cometeu seu grande erro. Ao virar-se, tropeçou ou foi derrubado
pelo guarda-chuva da velhinha e caiu espalhafa- tosamente no
chão. Nisso, a arma a laser que carregava nas costas disparou,
arrancando parte de suas nádegas. O infe- liz vilão gemia no chão,
enquanto a velhinha sorriu de forma enigmática para mim, pegou
seu guarda-chuva e retirou-se com aquele mesmo andar
cadenciado e sereno. Tentei abordá-la, mas a multidão que se
formou rapidamente na porta me impediu.
– Espere, vovó! – gritei, mas a velhinha não ouviu ou fingiu
não ouvir.
– Olhei pela janela do restaurante e a vi entrando
rapidamente num táxi onde as outras três velhinhas a
esperavam. Enquanto a esperta senhora desaparecia, os
figurantes do restaurante começaram a socorrer o tal Cabeção.
O idiante do caixa chamou a polícia e uma ambulância. Quando
o patife já estava na maca, gemendo de dor, um policial
aproximou-se, sorrindo.
– Ora, ora, ora... Se não é o Cabeção, sequestrador e ladrão.
– Não sou eu, não! Sequestrador tudo bem, mas nunca roubei
sequer uma velhinha na minha vida! Mas devia ter roubado! Maldita
velha!
– Não adianta tentar desviar do assunto... Vamos ver o que você
carrega aí.
Cabeção começou a socar o chão quando viu que, na sua
carteira, estavam o endereço do esconderijo, a foto da menina
sequestrada e o telefone do pai dela.
Os policiais se entreolharam. Aparentemente, parecia ser um
caso de fácil solução. Foram até o endereço e libertaram a garota,
que chorou emocionada, mas pediu para ficar mais três dias no
cativeiro para emagrecer mais um pouquinho. Como os pais não
deixaram, a ela teve que sair à força.
– Eu quero ser uma top model! Eu quero ser uma top model! –
gritava ela, desesperada, esperneando.
Zé Ruela foi preso enquanto assistia a um reality show de serial
killers na velha TV 8K de 180 polegadas com oito mil canais.
Capítulo V
“NÃO-PENSAR, NÃO-FAZER”

Em época de eleição, os políticos de


Idiópolis praticavam subida de palanque com uma determinação de
fazer inveja a muito rato de academia. Certa vez, presenciei um
comício bombástico do Partido Idiante Total do Mesmo (PIT do M). A
multidão espremia-se na Praça das Antas, ansiosa para conhecer
as propostas e os inúmeros projetos que, certamente, o PIT do M
apresentaria. No palanque, havia uma gigantes- ca faixa com o
slogan do PIT do M: “Não-pensar, não-fazer – MESMO!”.

E todos os figurantes presentes estavam


entusiasmados, balançando as bandeirinhas do partido
animadamente. Procurei mais uma vez passar desapercebido, já
que a perseguição aos excluintes só aumentava. Soube que vários
haviam sido capturados e já estavam em SPAs de Emagrecimento
Cerebral. Nessa época, ainda achava que algum excluinte com
certeza descobriria uma forma de derrotar os idiantes e seus
fatídicos SPAs. Mal sabia eu que estaria mais envolvido do que
podia imaginar na missão de enfrentar o poder idiante em sua raiz.
Enquanto meus pensamentos voavam longe, um sujeito de terno
escuro e gravata laranja pegou o microfone e iniciou um discurso
inflamado.
– Povo de Idiópolis! – aplausos e mais aplausos. As
bandeirinhas foram sacudidas animadamente.
– Não podemos mais admitir esse governo que aí está! Eles são
idiantes liberais demais! São uns idiantes-idiotas, com o perdão da
aparente redundância! – delírio total na Praça das Antas.
– Precisamos de leis mais rígidas para que o nosso povo jamais
volte ao período sombrio das ideias excluintes! Temos que dar
comida, diversão e escola unificada para todos! – euforia apoplética
na Praça das Antas.
– Juntos, vencemos os excluintes e espalhamos a felicida- de
pela nossa gigantesca cidade!
– PIT do M! PIT do M! – gritava a massa eufórica. E o homem
continuou, ainda mais empolgado:
– Mas esse governo que está aí prometeu construir 23.445 SPAs
de Emagrecimento Cerebral e construiu apenas 23.441. Além disso,
o sistema é falho, porque vestígios de criatividade e simplicidade
ainda contaminam a nossa sociedade!
A multidão berrou, aplaudiu e odiou em grande euforia.
– Precisamos lutar contra tudo isso que está aí! Por isso, vamos
dar oportunidade a todos os nossos jovens com a Escola Lugar-
Comum, onde nossos idiantezinhos aprenderão a seguir
rigorosamente a nossa doutrina do “não-pensar, não-fazer –
MESMO!”, e assim serem cidadãos íntegros, totalmen te idiantes e,
consequentemente, mais felizes! – as bandeirinhas agitaram-se
animadamente mais uma vez.
– Meu amado povo, precisamos resistir! A generosidade só
diminui a nossa riqueza! A inteligência só traz sofrimento e dor!
Pensar faz mal à saúde. Quantos gênios do passado não sofreram
com alcoolismo, epilepsia, pânico, drogas e depresSões? Por isso,
prometo investir na nossa cultura, construindo centenas de
bibliotecas com ar-condicionado, bares, cafés e nenhum livro!
– PIT do M! PIT do M! – gritava a Praça das Antas em peso.
– Prometo construir estradas e mais estradas, mesmo que essas
não nos levem a lugar algum! Enfim, prometo que um dia, oxalá seja
breve, ninguém do nosso povo precisará pensar, criar ou fazer
qualquer coisa que fuja do nosso Idiante Way of Life!
– Além disso, precisamos acabar com a farra das velhinhas que
teimam em andar com os guarda-chuvas abertos debaixo das
marquises em dias de chuva! Se preciso for, vamos derrubar todas
as construções que tenham marquises ou toldos!
A plateia, em êxtase, começou a gritar:
– O povo idiante jamais será pensante! O povo idiante jamais
será pensante!
Diante daquela demonstração cabal de “domínio das mas- sas”
dada pelo PIT do M, resolvi sair dali rapidamente. Ao chegar a uma
rua que passava atrás da Praça das Antas, vi, com esses olhos que
os nano robôs hão de comer, as quatro velhinhas andando
lentamente, com seus guarda-chuvas abertos, debaixo da marquise
de uma grande Farmácia de Manipula- ção Mental. Rapidamente,
atravessei a rua e resolvi interpelar aquelas intrigantes senhoras.
Mas, quando cheguei debaixo da marquise, as abstratas
senhoras haviam sumido, como sempre. Fiquei ainda mais intrigado,
pois o andar delas era suave e seria humanamente impossível
perdê-las de vista. Será que as velhinhas eram mais um truque
idiante? Olhei em todas as direções, e nada. O fato mais estranho
era que as velhinhas sempre estavam nos mesmos lugares que eu.
Será só uma coincidência? Ou será que as velhinhas queriam me
dizer algo? Será que são loucas figurantes sem rumo? Ou será que
são as últimas excluintes ainda não apagadas? Sei lá...
Capítulo VI
THE FURY OF PANACA´S COVER

Todos de Idiópolis que gostam


de shows, ou quase todos, pelo menos, lembram-se da inesquecível
apresentação da melhor banda de rock que já existiu na cidade.
Lembra-se dela? The Fury of Panacas’ Cover era, e ainda é,
considerado mais que um simples conjunto musical, mas o porta-
voz da juventude idiante, sua trilha sonora. E o maior show,
verdadeiramente inesquecível, foi realizado no mês de abril de
2032, no Arrogant’s Hall.

A casa estava completamente lotada. Fui ao show


mais uma vez disfarçado de figurante. Dessa vez, usei uma
camiseta temática com o nome da banda e seu maior sucesso,
Pensar, eu dispenso. Um hit bombástico que não saía do primeiro
lugar entre as músicas mais tocadas. Várias marcas famosas
usaram a canção em suas campanhas publicitárias. Assim, quando
a música tocava, todo mundo lembrava-se logo de shampoos,
bancos, remédios etc. Mas vamos direto ao show, antes que eu me
perca em devaneios. Assim como qualquer um, achei que seria
muito difícil encontrar as velhi- nhas naquele local, mesmo sabendo
da enorme capacidade que aquelas simpáticas senhoras tinham de
driblar o cerco idiante. Nunca fui muito supersticioso, mas algo me
dizia que os nossos caminhos ainda se cruzariam naquela noite.
Além disso, como ia dizendo, as velhinhas sempre davam um jeito
de surpreender.
Mas voltemos ao show. O Arrogant’s Hall já estava lotado.
Mesmo assim, centenas de cambistas ainda tentavam vender
ingressos personalizados: dedos polegares clonados com di- gitais
de pessoas famosas. Mas a segurança avisava que não entraria
mais ninguém, nem mesmo com ingresso de corte- sia, pois o local
estava mais do que lotado. Na porta, havia um aviso enorme com os
dizeres: “É proibida a entrada de menores de dois anos sem os
responsáveis e de velhinhas que teimam em andar com os guarda-
chuvas abertos debai- xo das marquises em dias de chuva”. A
multidão de jovens idiantes e figurantes gritava alucinada de
ansiedade e outras drogas menos pesadas. Os técnicos de som
faziam os últimos ajustes. Algumas meninas mais eufóricas
desmaiavam, numa cena patética que lembrava os shows das
grandes bandas do distante século XX.
Inclusive uma dessas garotas foi parar no posto médico, toda
arranhada e encharcada de cerveja e refrigerante. O médico de
plantão socorreu rapidamente a menina assim que essa entrou,
eufórica.
– Que dia é hoje, minha filha?
A garota olhou-o, quase com nojo.
– Como assim?
– Quantos anos você tem?
– Não te interessa!
– Qual é seu nome?
– Fala sério!
O médico olhou para os enfermeiros.
– Podem liberá-la. Não vejo nada de errado com essa ga- rota.
E, virando-se para a menina:
– Vá se divertir, filhinha. Você está ótima!
A garota levantou-se e saiu andando com seu lindo nariz
arrebitado ainda mais em pé.
Bom, mas o que importava para todos ali era o show. A banda
The Fury of Panacas fez o show de abertura.
Ah! Já ia me esquecendo de explicar. A banda The Fury of
Panacas’ Cover fazia muito mais sucesso que a The Fury of
Panacas original. Por isso, foi gentilmente convidada para abrir o
show da sua banda cover. Tocaram durante 15 minutos e saíram
rapidamente, sendo até aplaudidos. Enquanto isso, os bares do
Arrogant’s Hall, lotados, vendiam refrigerantes, energéticos e
cerveja aos litros. E quando o sistema de ar-condicionado da casa já
parecia falhar, as luzes acenderam-se no palco, entre brumas
artificiais. O público gritou, eufórico, quando finalmente os Panacas’
Cover entraram. Foi uma apoteose apoplética. E, de saída, os
Panacas’ Cover resolveram tocar o seu maior sucesso, Pensar, eu
dispenso, um hit que puxou as vendas do quadragésimo oitavo
álbum da banda. Foi realmente impagável ver a multidão cantar
empolgadíssima o refrão vencedor:
“Eu sou eu e se você não é o problema é seu/ Pensar, eu
dispenso, baby, ou você já me esqueceu?/Se esqueceu, o azar é
todo seu”.
Foi um show idiante como há muito tempo não se via. Centenas
de jovens eram clones dos rapazes da banda e ainda carregavam
cartazes com os nomes de cada integrante do grupo.
Vi muitos chorando, numa mistura de desespero e emo- ção.
Olhei para um dos camarotes e levei mais um daqueles sustos que
curam soluço. As quatro velhinhas estavam dançando
animadamente, sem ter ninguém por perto. É claro que você deve
estar querendo saber não apenas como elas haviam entrado, mas
como conseguiram o melhor camarote do evento. Também fiquei
curioso e tentei me aproximar da entrada do camarote, mas fui
barrado por um dos seguran- ças.
– Aqui só entra quem tem pulseirinha VIP-top-prime-plus--
premium-platinum-exclusive.
– Mas eu tenho uma pulseira, olha!
– Essa aí é só vip-top-prime, meu caro.
Voltei resignado para o lugar de antes e olhei de novo para o
camarote das velhinhas. Elas continuavam lá, dançando conforme a
música. Porém, como conseguiram entrar e burlar o rígido sistema
de segurança continuava me deixando intrigado. Aproximei-me do
mesmo segurança que havia me barrado.
– Amigo, por favor, como aquelas quatro senhoras conseguiram
entrar, hein?
O segurança me olhou de cima a baixo antes de respon- der,
rispidamente:
– Elas disseram que eram as avós do pessoal da banda e
entraram.
– Só isso?
– Só isso.
– Mas elas não estão com a pulserinha vip-top-prime...
Como é mesmo?
– E daí? Parentes dos rapazes da banda não precisam usar
pulserinha vip-top-prime-plus-premium-platinum-exlusive. Não é
para qualquer um, se é que você me entende.
Entendi. Fui para o meu canto e assisti ao show sozinho mesmo.
Não consegui acompanhar aquela alegria incontida e procurei um
lugar onde pudesse observar melhor as velhinhas, que continuavam
“arrasando” na dança no camarote dos vip-top-prime-plus-premium-
platinum-exclusive.
Após 45 minutos de show e do bis do bis que, obviamente, foi a
impagável “Pensar, eu dispenso”, o vocalista da banda pediu
silêncio e falou com a rapaziada.
– Galera, em primeiro lugar, quero agradecer aos caras da The
Fury of Panacas original. Pelo menos 0,02% do nosso gigantesco
sucesso devemos aos caras pela parte criativa e pensante, mas não
assim tão menos importante!
A plateia aplaudiu loucamente. O vocalista continuou:
– Em segundo lugar, faltam-me palavras para descrever esta
noite. Aliás, sempre me faltam palavras! Fui!
A multidão explodiu em aplausos intermináveis. Só quem estava
lá sabe. Foi mesmo sem palavras.
Capítulo VII
O TEATRO DOS IDIANTES

Meu caro amigo ou amiga de cérebro


apagado, andei muito tempo sem saber para onde ir. Meus
amigos excluintes sumiam sem deixar vestígios. Não havia
lugar seguro. Foi então que resolvi assistir a uma peça para
tentar relaxar um pouco. Estava ficando cansado de fugir e um
pouco de distração pareceu-me ser uma ótima opção. O teatro
até que não estava cheio e me sentei para assistir à peça
"Fétida Traição". Com esse título sugestivo, quem sabe poderia
apreciar ali uma obra-

-prima dos idiantes?


O pano abriu e a peça começou. Vou tentar resumir a trama
para você.

(Primeiro ato: casa/banheiro)


Marco Antônio e sua mulher, Cleópatra, uma linda morena de
1,70m e cabelos negros escorridos, cuja beleza não cabe em
nenhum adjetivo, moravam num espetacular apartamento no
bairro mais nobre de Idiópolis. Tinham muitos amigos e davam
festas fabulosas.
Marco havia se tornado um empresário bem-sucedido do
setor de engenharia civil e Cleópatra trabalhava como jornalista
freelancer, embora estivesse há anos sem conseguir publicar
nem texto de obituário. O casal contrariava as leis de Idiópolis,
mas confirmava a tendência masoquista das mulheres para
escolher seus pares. Marco Antônio, um grande idiante, e
Cleópatra, uma legítima excluinte. Devido à influência da família
e às súplicas de Cleópatra, ela ainda não tinha sido apagada. O
casamento, que já tinha completado longos seis meses,
causava admiração, indignação e inveja. Porém, Marco,
embora fosse um idiante completo, foi seduzido pela beleza,
inteligência, estilo, educação, elegância e simpatia de
Cleópatra. Em outras palavras, apaixonou-se perdidamente
pela bunda da moça. Um dia, Marco Antônio entrou correndo e
foi para o quarto em completo estado de euforia.
– Cleopatrazinha, meu amor! – gritou Marco Antônio, ao
entrar em casa. – Cadê você, minha paixão?
– Estou aqui no banheiro, amor...
– Preciso muito falar com você! Eu ganhei! Ganhei! Ganhei a
concorrência da construção do novo Fórum de Idiópolis! Ouviu?
Eu ganhei! Estamos ricos!
Silêncio do outro lado da porta que separava o quarto do
banheiro.
– Ouviu, Cléo?
– Ouvi, meu amor! Estou acabando de fazer o número dois.
Marco Antônio empalideceu.
– O quê?
Barulho de descarga e Cleópatra sai do banheiro.
– Que bom, amor! – disse ela, abraçando o marido, que,
ainda pálido, livrou-se do abraço caloroso e aproximou-se da
porta do banheiro. Parecia que sua euforia tinha descido pela
descarga.
– Cleópatra! Você faz cocô... Não posso crer nisso!
A mulher ficou mais vermelha que tomate banhado em raios
gama.
– O que foi, Marco Antônio? Ficou louco?
Marco Antônio não deu nenhuma importância às palavras da
mulher. Já estava dentro do banheiro.
– Que mau cheiro! Não acredito! O que saiu de dentro de
você?
Cleópatra passou do vermelho a um branco-pálido. A
vergonha e o embaraço a sufocavam. Seus lindos seios subiam
e desciam numa velocidade espantosa. Levou as mãos ao rosto
na hora em que uma lágrima fugidia pensou em cair. Mas ou-
tras explodiram silenciosamente quando seu marido disse,
amargurado, angustiado, sinceramente surpreso e perplexo:
– Você faz cocô... A minha mulher faz cocô!
E saiu do quarto correndo e repetindo a mesma frase. O
homem passou voando pela sala.
– Marco Antônio! Espere!
Mas ele não ouvia os gritos soluçantes de sua linda mu- lher.
Saiu de casa e foi parar no primeiro restaurante que viu pela
frente.

(Segundo ato: restaurante/noite)

– Me dá um uísque duplo!
Marco Antônio bebeu um grande gole e fixou o copo com um
olhar perdido. Foi então que outro homem entrou em cena.
– Marcão! Fala, amigão! Você por aqui?
Marco virou-se espantado, mas logo tentou sorrir. Um ho-
mem de cerca de 45 anos, alto, elegantemente vestido,
chegava todo sorridente.
– Oi, Lorpa...
Lorpa franziu as sobrancelhas.
– Que cara é essa, Marcão? Aconteceu alguma coisa?
– Aconteceu. Ganhei a concorrência da construção do novo
Fórum de Idiópolis...
– Poxa, cara! Parabéns!
– Obrigado...
– Mas que cara é essa, amigão? Você devia estar dando
pulos de alegria!
Marco continuava com aquele olhar perdido, procurando
respostas no fundo do copo.
– Talvez... Mas aconteceu uma coisa terrível, Lorpa.
– Fala, cara! Tô ficando preocupado.
– É minha mulher...
Lorpa empalideceu. Pegou um copo de uísque também.
– O que tem a Cleópatra? Não vai me dizer que... Não... A
Cleópatra não faria isso.
– Faria não, ela faz!
– O que, Marco? Fala logo, cara. Eu sou seu amigo.
Desabafa, vai... Ela está te traindo, né?
Marco Antônio continuava com o olhar fixo na bebida. Aquele
líquido amarelo, caro e envelhecido lembrava algo que o
irritava.
– Não é nada disso, Lorpa...
Lorpa aproximou-se e falou bem baixinho, quase dentro do
ouvido de Marco.
– Pode se abrir comigo, cara. Você não é o primeiro a ser
traído... A minha mulher, a Pascácia...
– Porra, Lorpa! Não é nada disso! – Marco interrompeu
bruscamente. – Não é isso.
– O que é, então?
– Eu descobri, cara... Não posso acreditar!
– Fala logo!
– Ela... Faz cocô... A minha mulher caga! É isso!
Lorpa deixou o copo cair no chão. O barman olhou assustado
para a dupla. Mas logo tudo voltou ao normal, menos as feições
de Lorpa.
– Você tá de sacanagem?!
– É sério! Cheguei em casa e ela estava no banheiro...
– E daí?
– Daí que ela me disse em alto e bom som que estava fa-
zendo cocô.
– Isso é impossível!
– Sério! Minha mulher faz cocô! Aquela gostosa que todos da
praia queriam e eu conquistei! Aquela gata que tinha a bunda
mais desejada da praia... Deus do céu! Aquela deusa caga,
Lorpa, caga!
– Eu não posso acreditar nisso, Marco! Só pode ser
brincadeira!
– Brincadeira? Não tem graça nenhuma! E você não sabe o
pior...
– O que foi?
– Fede! O cocô dela fede!
– Jura? Não é possível! Aquela bundinha linda... Isso é
impossível!
Marco franziu o cenho.
– Veja lá como fala da minha mulher, Lorpa...
– Desculpe, cara. Mas você sabe que ela era a mais bonita
da turma da praia.
Marco suspirou estarrecido, pálido.
– Sei... Mas eu não sabia! Eu sempre achei que mulher
bonita não... Você entende, né?
– Claro! É terrível saber disso. A gente sempre acha que
nunca vai ver uma cena dessas.
– Pois é! A minha mulher, aquele avião, fazendo cocô.
Cocô, cara! O mais patético dos momentos humanos.
– Merda!
– Literalmente!
– Calma, Marcão. Veja o lado bom da coisa. O momento do
cocô é o nosso contato diário com a humildade.
– Bela filosofia... Mas é porque você não viu, Lorpa! E nem
sentiu...
Lorpa insistiu, penalizado.
– Calma, amigão! De repente foi apenas uma indisposição...
– Que indisposição, o quê? Ela é naturalista! Só come salada
e peixe.
Lorpa deu um sorriso triunfal.
– Então? Só pode ter sido o peixe! A culpa é do peixe!
Marco bebeu mais um grande gole. Suas feições estavam
distorcidas e marcadas pelos traços sóbrios da decepção.
– Não sei, não...
– Sabe o que eu acho, Lorpa?
– Desabafa, cara, desabafa... Sei o que você está sentindo!
Isso é uma traição! E das fétidas!
– Pois é! No tempo de namoro, isso não acontecia. Acho que
ela foi desonesta comigo. Se eu soubesse...
– Fica frio, cara. Você supera esse momento. Lembre-se de
que ela é uma excluinte, né?
– Tem isso também! Talvez ela deva ir para um SPA de
Emagrecimento Cerebral ou então que se mudem as leis do
casamento.
– Eu sou advogado, cara, você sabe como as leis me
interessam.
– Acho que o casamento não deveria ser com separação de
bens, mas sim com separação de banheiros... É isso! Vou
começar a pedir para os arquitetos de Idiópolis criarem suítes
com dois banheiros. Vai vender pra caramba! Com certeza, os
excluintes nunca pensaram nisso!
– Mesmo que tenham pensado, estamos ricos! – os olhos de
Lorpa brilhavam com uma clarividência futurística. – Quero ser
seu sócio nesta empreitada.
– Claro, Lorpa, claro. Mas, antes, preciso me mudar! Pre-
ciso de uma suíte com dois banheiros para hoje ou não volto
para casa.
– Calma, meu amigo.Vai ver que, a essa hora, sua mulher já
está toda cheirosinha, te esperando.
Marco Antônio balançou a cabeça negativamente.
– Não adianta, Lorpa. Eu nunca mais vou esquecer. Aquele
cheiro! Quando eu olhar para ela, vou lembrar. Mesmo que ela
esteja usando o mais maravilhoso dos perfumes.
Lorpa suspirou e bebeu todo o uísque que restava no copo.
– É... Difícil esquecer... Mas acho que você supera essa.
– Ou a gente separa os banheiros ou se separa. Agora que
sei da verdade, preciso tentar esquecê-la...
– Tragédia, cara! Tragédia! – Lorpa olhou para o relógio.
– Bem... Preciso ir. A gente se vê depois para combinar o
negócio, tá? – Lorpa esfregou as mãos. – Suítes com dois
banheiros! Essa é a saída! – disse, eufórico.
– Tudo bem. Já tenho o projeto todo na cabeça.
– Ótimo! Um abração e olha: vai com calma em casa, tá?
– Pode deixar. Só vou beber mais um aqui e... (Último ato:
casa/quarto de casal)
Marco entra em cena com passos cambaleantes e trôpe-
gos. Vê Cleópatra deitada na cama sobre lindos lençóis de
seda, lendo um livro. Ela está com os cabelos soltos e veste
uma linda camisola branca.
– Amor, o que houve? Você está todo molhado! – pergunta
ela, apreensiva, com o rosto ainda úmido pela cascata de
lágrimas que tinha derramado por ele. Havia, naquelas
lágrimas, toda a acidez do passado imutável.
Marco voltou-se para ela e falou, com voz pastosa:
– Nada... Comi muito petisco no bar. Tô com dor de barriga...
Cleópatra sorriu estranhamente e disse, suavemente:
– Quando sair do banheiro não se esqueça de dar a
descarga, amor. Você sempre esquece...

(Cai o pano.)

Após a peça, vários casais saíram do teatro aos tapas.


Soube depois que a peça foi censurada, porque o número de
separações quadruplicou em Idiópolis.

Saí do teatro com uma única certeza: a escatologia era a


única ideia dos humoristas de Idiópolis.
Capítulo VIII
O SHOPPING IDIANTE

Está convencido de que


seu cérebro foi apagado? En- tão vamos às compras. O shopping
principal de Idiópolis vive lotado como todos numa véspera de Natal.
E daquela vez foi um caso sério. Mas o fato que chamou mesmo a
atenção de todos aconteceu numa grande loja de pijamas feitos à
base de algodão e ansiolíticos para estressados insones do tipo 1.
O alarme que colocam nas saídas das lojas para evitar furtos
começou a tocar. Um rapaz negro, magro e de óculos parecia ser o
grande responsável. Assustado, deu um passo atrás e voltou para o
interior da loja.
– Vai abrindo a mochila aí, espertinho! – o segurança já chegou
mostrando que não estava para brincadeira.

Constrangido, o rapaz mostrou que não havia nada


que não fosse dele nos bolsos e na mochila. O segurança mandou o
jovem dar um passo para trás e tentar passar de novo. Po- rém, o
alarme soou novamente. Um foco de luz ultravioleta caiu sobre o
rapaz. Uma sirene disparou. Vários outros seguranças chegaram já
sacando suas pistolas a laser. O garoto já não sabia onde enfiar o
rosto de tanta vergonha. Afinal, as pessoas que passavam por perto
olhavam com reprovação para aquele que já consideravam um
jovem vilão. Seguranças e funcionários da loja não ficavam atrás.
Fuzilavam o rapaz com olhares de chumbo – se é que alguém
consegue imaginar o que é isso. Até o Papai Noel que estava na
porta da loja beijando criancinhas olhou com a cara feia para o
garoto. Depois de terem praticamente despido o pobre coitado em
público, mandaram-no tentar novamente. Para desespero do
menino, o troço disparou de novo. Dessa vez, além da luz
ultravioleta, a infravermelho e os raios de alfa a ômega também
caíram sobre o pobre jovem. Um segurança balançou a cabeça
negativamente e disse que o rapaz teria que ir lá para os fundos do
estabelecimento para tirar toda a roupa. É lógico que ele, já quase
chorando, recusou-se a sujeitar-se a tal humilhação. A coisa
começou a esquentar e funcionários e clientes da loja pareciam
querer linchar o pobre-coitado.
O rapaz mostrava as mãos, esvaziava a mochila e os bol- sos
várias vezes, mas não adiantava. O maldito alarme tocava toda vez
que ele passava. Um dos seguranças coçou a cabeça, intrigado.
– Onde é que você escondeu o produto?
– Deve ter engolido – disse um dos vendedores, triunfal.
– Será?
– Só pode.
– Mas um pijama?
– E daí? Não tem gente que engole espadas? O rapaz tentou
uma saída desesperada.
– Mas, meu amigo... Essa loja só vende pijamas de ansiolítico
para estressados insones tipo 1.
– E daí?
– Daí que eu ainda sou um estressado do tipo 3, por que roubaria
um pijama que não serve para mim?
– Vai saber? Pode ser para vender ou dar para o seu pai.
– Meu pai morreu antes de chegar ao tipo 2...
– Ok! Mesmo assim, não vamos tirar conclusões precipitadas. O
fato é que o alarme tocou e ele nunca mente.
– Meu amigo, se eu tivesse engolido estaria dormindo sob o
efeito do ansiolítico para estressados insones do tipo 3!
– Talvez. Mas, mesmo assim, como você explica o alarme, hein?
– Sei lá! Essa porcaria deve estar com defeito.
– Porcaria? Você sabe com quem está falando?
– Por quê? O alarme entende o que eu falo?
– Esse alarme, meu filho, é a última palavra da tecnologia idiante!

O rapaz sentiu uma estranhíssima sensação de impotên- cia


total.
Quando seguranças, vendedores e clientes já falavam em
chamar a polícia, resolvi, mais uma vez, intervir. Apontei para os pés
do rapaz.
– Cuidado onde pisa, rapaz.
E me afastei rapidinho para o meio da multidão.
Todo mundo olhou atentamente para os pés do garoto.
– Boa! – disse um dos seguranças. – Vai que ele fez do pijama
uma meia, hein?
O rapaz rapidamente tirou o tênis e mostrou que não ha- via nada
dentro. Mas foi justamente o tênis que causou enorme espanto. Não
que o rapaz tivesse chulé ou coisa parecida em razão de o tênis ser
velho e desbotado. O negócio é que, quando mostrou os calçados
para os seguranças, lá estava ele: um velho e obsoleto código de
barras grudado na sola do calçado. Houve um momento de
perplexidade. Os seguran- ças olhavam incrédulos para o alarme.
– Rápido! Alguém chame um técnico ou um médico! Esse alarme
não pode morrer ou o chefe me mata! – gritou um deles.
Os vendedores idiantes afastaram-se, decepcionados com o fim
da emoção. Um cliente disse, encolhendo os ombros:
– Essas coisas acontecem.
Mas o rapaz pareceu não escutá-lo. Arrancou aquele troço do
seu tênis, pegou suas coisas e passou tranquilamente pela saída da
loja. O implacável alarme começou a tocar canções natalinas. O
garoto gostou tanto que repetiu o gesto várias vezes, como se
estivesse se divertindo. Ninguém mais olhava para ele. Olhou em
todas as direções, me procurando, mas tratei de cair fora.
Quando olhei para uma escada rolante, lá estavam elas. As
quatro velhinhas descendo e olhando sorridentes para mim.
Carregavam sacolas do brechó de informática. Como sempre, saí
correndo, tentando atravessar a multidão para chegar até elas, mas
tudo o que consegui foi esbarrar em vá- rios figurantes sem pedir
desculpas para não ser descoberto.
Capítulo IX
ESCOLA LUGAR-COMUM

Continuei intrigado com as velhinhas. No


meu tempo de ensino fundamental, havia uma professora muito
parecida com elas. Aliás, não tinha aula mais cheia do que a dela.
Eu e meus colegas, por incrível que possa parecer, jamais matamos
suas aulas. Até que, um dia, para nossa surpresa e desgosto,
mandaram a professora embora. Mais tarde, soubemos que o
motivo foi um piquenique da turma. Quando chegamos ao local do
evento, fazia um frio siberiano. Vendo que todos estavam tremendo,
a professora mandou que pe- gássemos as apostilas idiantes e
fizéssemos uma fogueira.

Ficamos bem mais animados e


começamos a cantar em volta do fogo até a hora do ônibus da
escola vir nos buscar. Só que, no dia seguinte, nossa querida
professora foi demitida e nunca mais a vimos. É claro que a direção
não ia deixar a gente sem ninguém. A título de urgência, chamaram
o len- dário professor Hipócritus Marrentaço, considerado o maior
catedrático da Escola Lugar-Comum. O grande nome daquele
revolucionário método de ensino, segundo alguns diziam. E olha
que isso tudo foi bem antes dos fatídicos SPAs de Emagrecimento
Cerebral.
O professor lecionava diversas disciplinas para aqueles
privilegiados que conseguiam pagar a gorda mensalidade. Eu tinha
bolsa de 98% e, mesmo assim, ouvia meu pai reclamar que aquela
escola cobrava os olhos da cara. A primeira aula do ilibado mestre
foi antológica. Eu e meus colegas não tirávamos os olhos do grande
docente.
– Quero todos prestando atenção. Vamos começar pelo capítulo
1 da apostila queimada pela insana ex-professora de vocês. Mister
Guima, pode começar a ler.
Observei em volta e vi os olhares debochados dos meus
colegas. Mesmo assim, tentei ler da melhor maneira possível:
– O ciclo menstrual das borboletas-azuis está diretamente
relacionado à umidade perene das florestas tropicais. É claro que
não podemos deixar de levar em consideração a rejeição dos
machos nesse momento de instabilidade da borboleta-azul fêmea. É
importante ressaltar que a borboleta-azul fêmea vive 36 horas, 30
minutos e 7 segundos, enquanto o macho, apenas 18 horas. Logo, o
mesmo não quer perder tempo com a crise existencial da sua
parceira. Esse insofismável caso leva-nos a analisar com mais
atenção o arcabouço de ideias dicotômicas e comportamentos
antagônicos nos quais essas incríveis criaturas aladas estão
inseridas.
Terminei de ler e olhei para o garboso mestre como se tivesse
entendido tudo. Porém, o figurantezinho que se sentava à frente
levantou o braço e ferrou tudo:
– Fessor, e daí?
O professor abriu os braços e explodiu num patético es- cândalo.
– E daí? Como e daí?
O garoto afundou na cadeira, enquanto o professor con- tinuou.
– Vamos supor que você queira ser um médico. Como vai cuidar
das pessoas se não sabe como as borboletas-azuis comportam-se
nos momentos de crise? Como você quer curar doenças se não
compreende os fundamentos da an- gústia desses curiosíssimos
seres alados?
São as borboletas-azuis, e não as vermelhas que interessam. Se
você quer ser um médico de verdade, não pode deixar escapar
nada. Ainda mais algo assim tão fundamental. O futuro de Idiópolis
depende de você. Aliás, essa sua pergunta me deixa muito
preocupado com o porvir. Os jovens não querem mais aprender
nada importante. Por acaso, vocês não respeitam o dinheirão que
os pais de vocês pagam nesta es- cola? Sabe por que eles pagam?
Porque acreditam que aqui vocês vão receber a melhor educação
para serem cidadãos idiantes exemplares de Idiópolis.
Esforcei-me para manter os olhos abertos. Depois do al- moço,
sempre batia um sono irresistível.
– Eles acreditam na nossa tradição de formar cidadãos 100%
idiantes! – continuou o professor Marrentaço. – Portanto, não
desperdicem essa oportunidade que só privilegiados como vocês
podem ter.
Os outros alunos da sala ficaram olhando com ironia e
começaram a tirar sarro do garoto que havia feito a pergunta.
– Silêncio! Só porque essa coisinha que se senta aqui na frente
fez uma pergunta completamente inoportuna, tosca e vazia não é
motivo para vocês tumultuarem a minha aula.
Todo mundo ficou congelado nas cadeiras. Confesso que eu
agora estava distraído, olhando para um passarinho que ciscava de
galho em galho na árvore perto da janela. O professor continuou.
– Na verdade, todos vocês ainda têm muito o que desaprender
nesta escola. A cultura excluinte ainda está impregnada em vocês.
Mas, um dia, vocês verão que o que importa de verdade saiu da
humilde boca deste que vos fala.
Prendi um bocejo com as correntes de ar que vinham da janela
aberta.
– Abram o livro na página 123 e vamos ler a definição do
Professor-Doutor-PHD-MBA-MD-ETC. Ernest Soufodão sobre as
implicações e influências do ciclo menstrual das borboletas-azuis
sobre a vida deste planeta, do sistema solar e de todo o universo.
Pode continuar a ler alto, Mister Guima. Per- cebi que o senhor
boceja quatro vezes por minuto durante esses momentos de
eternidade que são as minhas aulas. Além disso, ouvi na rádio-
corredor da escola que o senhor costuma dormir nas aulas de
História das Amebas que, obviamente, segundo seus ultrapassados
princípios excluintes, considera inócuas. Estou de olho no senhor!
Fui forçado a sair do meu devaneio depois da crítica-incen- tivo
do professor Hipócritus. Bocejei e continuei a ler aquela infindável
definição. Quando terminei, o inabalável professor Hipócritus
encerrou a aula com sua famosa, original e definitiva frase:
– Um dia, vocês ainda vão me agradecer por tudo isso.
Capítulo X
ACADEMIA IDIANTE

Ironicamente, antes de cair no grande


engodo que é o SPA de Emagrecimento Cerebral, fui tentar perder
uns quilinhos numa academia. E, já que era para malhar, resolvi
fazer bem feito: procurei logo a melhor academia de Idiópolis. Não,
não encontro adjetivos pertinentes que possam definir o lugar. Um
espetáculo de tecnologia fitness não é exagero. Após os exames e
testes de rotina, um dos professores da casa enca- minhou-me até
uma esteira virtual a laser.

– Corra por pelo menos duas horas para começar.


Depois, é só me chamar que eu vou fazer uma série especial de
exer- cícios de emergência para você.
– Exercícios de emergência?
O rapaz me olhou dos pés à cabeça.
– Quer que eu seja mais específico?

Respondi que não precisava. Comecei a minha


interminá- vel corrida de duas horas naquela esteira que mais
parecia uma nave espacial. Tinha um monte de botões, luzes
piscando e até um monitor 3D passando filmes humilhantes de
seres irreais com corpo perfeito e sorriso permanente. Algo parecido
com os vídeos de influenciadores de redes sociais. Atrapalhei-me
um pouco, mas logo um estagiário que estava ali por perto veio em
meu socorro. Foi então que comecei a perceber o movimento da
academia. Havia gente de todas as idades, tipos e tamanhos. A
música ambiente só podia ser do grupo The Fury of Panacas’ Cover,
aquele interminável fenômeno musical. Embora o som estivesse no
volume máximo, todos usavam players cerebrais que também
tocavam as músicas dos Panacas. Foi então que vi uma mulher
bonita, que devia ter uns 55 anos, passar com vários professores
atrás. Estes digitavam tudo nas suas pranchetas a laser. Eram
quatro professoras e dois professores. Cheguei a pensar que a
mulher devia ser a dona da academia ou a chefe dos professores
ou, ainda, uma daquelas celebridades-relâmpago recém eliminada
do BBB. Quando terminei de correr, matei a minha curiosidade
perguntando ao estagiário que havia me ajudado.
– Ela é apenas uma aluna. Mas todo mundo que malha aqui é
uma celebridade!
– Mas então para que tantos professores? Ela paga mais? O
garoto me olhou quase como se eu fosse um alienígena.
– São alguns dos personais que ela contratou.
– Mas sete?
– Só sete, né? Um é personal-panturrilha e tem também o
personal-glúteos, o personal-língua, o personal-braços, o personal-
dedos, o personal-pernas e o personal-seios.
– Seios também?
– Claro! Não é porque ela tem silicone reciclado que não vai
cuidar do visual.
– Mas e o personal-dedos?
– É para não ter vergonha de dar adeus!
– Claro... Claro...
– E amanhã é dia dos personais-bochecha-esquerda e direita,
pés, orelhas, umbigo e o nosso grande mestre, que é o personal-
lábios.
– Personal-lábios?
– Mas é óbvio! É preciso trabalhar os lábios para ter um sorriso
mais sarado.
– Muito interessante.
– Lógico, né? Um sorriso sarado é tudo!
– Sem dúvida, deve dar para rir muito mais, né?
– Lógico! Até quando estamos de saco cheio de ficar expli- cando
tudo.
Senti que o professor já estava perdendo a paciência comigo.
Algo no tom da sua voz me dizia isso.
Bom... Por onde começo?
– Olha só, vou te acompanhar nos aparelhos hoje, mas o senhor
entende que preciso dar atenção para todo mundo, né?
– Mas todos parecem ter, no mínimo, três personais...
– E daí? Se depois você precisar de um, posso indicar uns
nomes. Aliás, com certeza, é uma ótima opção para quem quer
fazer um trabalho individualizado, personalizado, efi- ciente e com
resultados imediatos.
– Vou pensar.
– Como?
– Nada! Disse que então tá...
– Ok, mas corra, porque a disponibilidade de horários dos
professores está cada vez menor. O verão tá chegando.
– Entendi.
– Vamos começar a sua série pela máquina extensora do
dedinho mindinho da mão esquerda.
– Dedinho mindinho da mão esquerda?
– Por que? Ele não faz parte do seu corpo?
– Sem dúvida...
– Agora, vou dar atenção aos outros alunos, ok?
– Mas você não é um estagiário?
– E daí? Em breve serei um professor também, entendeu?
– Sem dúvida.
– Estou quase terminando o 1º período e em breve serei o melhor
personal-sobrancelha-direita de Idiópolis!
– Eu não tenho dúvida quanto a isso. Mas me diz quanto tempo
eu fico aqui?
– Pelo menos meia hora. Depois, faça mais meia hora com o
dedinho mindinho da mão direita!
Enquanto malhava intensamente o meu dedinho mindi- nho da
mão esquerda, olhei pela janela da academia e levei um susto. Lá
fora, estavam as quatro velhinhas, impávidas e inconfundíveis,
olhando para mim. Senti uma forte cãibra no dedinho. Não tenho
certeza, mas acho que as quatro estavam muito próximas de uma
explosão de riso.
Capítulo XI
DR. ENDOSCÓPIUS

É claro que não consegui ficar muito


tempo naquela academia. Na verdade, só fui aquela vez. Por isso,
resolvi procu- rar logo um médico. Indicaram-me um dos mais
brilhantes e reconhecidos endocrinologistas de Idiópolis, que tinha
um novo e revolucionário método de emagrecimento. A clínica mais
parecia uma sede de empresa multinacional de softwares de alta
tecnologia, ou algo assim. Fui recebido por uma re- cepcionista que
podia ser capa de qualquer revista masculina virtual ou impressa do
mundo.
– Olá! Como vai o senhor?
– Redondo! – respondi, com bom humor.

A beldade abriu um sorriso maravilhoso antes de


replicar.
– Que exagero! Essas gordurinhas horrorosas que transbordam
pela sua barriga patética, descuidada e disforme o doutor
Endoscópius resolve fácil.
– A senhorita é bastante direta e persuasiva. A
mulher continuou sorrindo.
– Anime-se! Em menos de vinte e quatro horas, o senhor estará
saradão.
– A caridade é mais forte que a verdade, não é? A mulher
ignorou a minha observação.
– O doutor Endoscópius é o melhor médico de emagrecimento de
Idiópolis.
– É mesmo? Serei, então, a sua versão masculina, menina? A
beldade sorriu do meu gracejo.
– Não se preocupe, meu querido! Ele trata todo mundo igual!
Pela primeira vez, senti um friozinho na espinha.
– Aguarde um pouquinho, que ele já vai atendê-lo.
– Claro! Obrigado.
A sala de espera estava lotada. Olhei para aquelas pessoas
magérrimas e ansiosas e levei um susto. O que diabos elas faziam
ali? Será que não tinham espelho em casa? Lembrei-me de
Napoleão em Waterloo: “Apenas a morte é magra”.
E, ao contrário do que a mulher havia dito, o meu caso parecia
ser mesmo, disparado, o mais grave. Fechei os olhos e tentei entrar
num estado de ignorância dormente para não desligar minha
esperança. Esperei uns 40 minutos para ser chamado. Durante esse
tempo, fui bombardeado pelos olha- res piedosos dos demais
pacientes. Ainda bem que a mulher voltou e me mandou entrar.
Entrei na sala do Dr. Endoscópius e caí das nuvens, o que
continua sendo melhor do que cair do terceiro andar. A sala era
maior que o meu apartamento. Tinha frigobar, hidromassagem e
uma cascatinha que caía num laguinho cheio de filhotes de
tartarugas aquáticas verdes fosforescentes geneticamente
modificadas. Bem no fundo, uma mesa e a cadeira do Dr.
Endoscópius. O médico mandou-me sentar sem olhar para mim.
Diante dele, estavam um monitor a laser 3D 42” e um
supercomputador holográfico. O homem tinha, no máximo, 40 anos,
pele branca e cabelos morenos penteados para trás, com algum tipo
de gel ou cera quase tão chamativo quanto as tartaruguinhas
fosforescentes.
– Tire a roupa – disse o doutor, sem olhar para mim. Fiquei um
pouco surpreso.
– Toda, doutor?
– Toda – respondeu, ainda sem olhar para mim.
Antes que eu começasse a despir-me, o médico apertou uma
campainha e outra enfermeira linda apareceu.
– Vim ajudá-lo.
Aquilo me pareceu estranho, mas, olhando bem para a
enfermeira, comecei até a ficar mais animado. O único problema era
que a moça parecia um androide, pois não alterou as feições em
nenhum momento, apesar de eu estar completamente nu diante
dela. Bom, mas, por outro lado, a ausência de espanto dela diante
do meu corpo nu não era tão ruim assim, se é que você me
entende. Depois, a jovem saiu com um cabide, levando toda a
minha roupa. O médico falou novamente, sem olhar para mim, é
claro:
– Fique de frente para essa câmera.
Obedeci. Depois, ele mandou ficar de costas e de lado. Confesso
que fiquei tenso e desejei muito que a enfermeira androide voltasse.
O médico digitou algumas coisas no teclado espacial flutuante.
Apertou outro botão e um gigantesco telão surgiu à nossa frente. Na
tela, apareceram as fotos que o médico acabara de fazer do meu
corpo.
– Como você pode ver, seu corpo está totalmente fora dos
padrões, um total desastre! Uma agressão à harmonia mínima que
se espera de um ser com o mínimo de autoestima.
Falava com certo nojo e tédio na voz. Poderia repetir que ele não
me dirigiu um mísero olhar, mas fiquei tão desapontado com a
imagem patética do meu corpo nu naquele telão gigante que nem
conseguia mais prestar atenção se o médico olhava ou não para
mim. Rezei para que ninguém entrasse e visse aquela cena bizarra.
Foi então que algo de extraordinário aconteceu. O Dr. Endoscópius
apertou outro botão e a imagem do telão mudou completamente.
Fiquei perplexo. Ainda era eu no telão, só que agora com um corpo
de fazer inveja a muito rato de academia. E o detalhe é que eu
estava até sorrindo. Não me lembro de ter sorrido na hora das
constrangedoras fotos e filmagem, mas o fato é que, agora, eu
sorria e parecia ter uns 20 anos a menos. Mas susto mesmo levei
quando aquele novo “eu” começou a falar comigo.
– Olá! Viu só como você vai ficar um espetáculo? Até a voz era
a minha!
– Tô vendo... – foi tudo o que consegui dizer. O meu “eu” virtual
continuou animadíssimo.
– É isso aí, meu amigo! Eu sou o seu espelho do futuro! Será
assim que você se verá todas as manhãs quando acordar! E, para
ficar assim, irresistível e maravilhoso, custa muito menos do que
você imagina!
– Jura?
– Claro! Eu jamais mentiria para mim mesmo. Pergunte ao
incomparável doutor Endoscópius e saiba mais! Encontramo-nos
num futuro imediato! Só depende de você!
O meu “eu” deus grego desapareceu da tela e olhei para o Dr.
Endoscópius. Ele tinha um sorriso de plástico nos lábios.
– E aí? Melhorou?
O Dr. Endoscópius devia ter algum senso de humor para fazer tal
pergunta.
– Está perfeito, doutor! Mas o que eu preciso fazer para ficar
assim?
O médico suspirou, entediado, e respondeu no meio de um
bocejo:
– O senhor vai para a linha de montagem.
– Linha de montagem? Mas “eu” não me disse nada disso... O
médico passou as mãos no rosto, impaciente. Continuava de olho
no monitor e digitava sem parar. Apertou outro botão e logo
centenas de corpos diferentes surgiram no te-
lão. Todos com a minha cabeça e sorrindo!
– Na linha de montagem, trocamos esse seu corpo disfor- me,
patético e horrendo por um novinho, com garantia de 6 meses
contra gorduras localizadas. E você ainda pode escolher. Temos
corpos para todos os gostos: brancos, negros, amarelos, altos,
baixos etc. Temos também corpos especiais para quem quer mudar
de sexo. E alguns seminovos de clones de modelos fotográficos,
também em ótimo estado.
– Isso é caro, doutor?
O médico contorceu o rosto de uma forma que parecia que ia
vomitar.
– Já que, pelo visto, o senhor não tem muito dinheiro para investir
na sua saúde, recomendo que entre na fila do Hospital Público de
Idiópolis. No máximo em 20 anos, o senhor consegue um corpo
“xing-ling” de terceira mão, se tiver sorte.
– Não tenho outra opção, né?
– Se escolher a nossa linha de montagem, podemos co- meçar
agora mesmo a mudar a sua vida para sempre.
Confesso que achei até interessante sentir na própria pele as
diferenças de cor, altura e sexo, mas aquele papo de “linha de
montagem” me deixou, no mínimo, intrigado.
– Posso pensar um pouco antes de decidir, doutor?
O médico, pela primeira vez, olhou para mim atentamen- te. Pela
expressão dos olhos, fiquei em dúvida se ele era real ou também
virtual.
– Você está parecendo um excluinte...
– Deus me livre, doutor! Sou um cidadão 100% idiante! Eu sou
feliz! Eu sou feliz!
– Ok... Ok... Faça como quiser. Marque outra consulta para o
próximo mês com a Dona Engodete.
O médico apertou um botão e, desta vez, surgiu um gigan- tesco
enfermeiro com cara de poucos amigos. O sujeito me arrastou para
um cubículo, onde jogou as minhas roupas em cima de mim. Vesti e
saí rápido dali, quase pisando numa das tartaruguinhas
fosforescentes. Peguei um táxi e só aí respirei. Pelo visto, minha
incompatibilidade com o mundo idiante era bem maior do que
imaginei. Definitivamente, algumas pessoas só ficariam bonitas se
existisse plástica na alma.
Enquanto ia perdido em pensamentos, notei a aproxi- mação de
um carro preto que emparelhou com o meu táxi. Lá estavam elas: as
quatro velhinhas, olhando enigmáticas para mim. Os óculos escuros
sempre disfarçavam o que só os olhos contam. Isso durou infinitos
cinco segundos. Logo o supercarro delas deixou o velho táxi
turbinado em que eu estava para trás.
Capítulo XII
O TEMPLO DOS IDIANTES

Geralmente, são as pessoas


que dizem acreditar em Para- íso que fazem desse mundo um
inferno. Certa vez, no famoso templo da Igreja Sua Culpa, Sua
Grande Culpa, aconteceu um fato que talvez, finalmente, te
convença. Havia um pastor conhecido pelos seus discursos
inflamados e emocionantes. O povo lotava o templo em busca de
força, alegria e, principalmente, esperança nas palavras do nobre
religioso. Aos domingos, então, era preciso chegar bem cedo para
pegar um lugar privilegiado. Como sempre fui um curioso incurável,
resolvi assistir a um desses cultos. Cheguei cedinho e ocupei um
lugar bem nas primeiras fileiras.

O imponente pastor surgiu entre luzes e fumaça.


Parecia um anjo, em trajes brancos reluzentes. Veio descendo do
teto do lugar numa redoma de vidro sustentada por um guindaste de
fibra de carbono. Um coral holográfico cantava uma famosa canção
gospel. Todos se ajoelharam e ergueram as mãos aos céus. O
pastor saiu da redoma com passos firmes. Levan tou a mão direita e
começou sua pregação:
– Irmãos! Sejam todos bem-vindos à casa do Senhor!
– Glória a Deus! – disse o povo, em coro.
– Antes de mais nada, uma advertência: cuidado com o demônio!
Ele está tentando tirá-los do caminho do bem! Não se deixem levar
pelas falsas promessas de quem não segue a nossa crença.
Os fiéis concordavam com a cabeça e levantavam as mãos.
O pastor animou-se.
– Eles vão encontrar o fogo do inferno ou, na melhor das
hipóteses, vão morar num conjugado no Purgatório! Enquanto vocês
vão descansar eternamente nas maiores e mais confortáveis
mansões do Paraíso.
– Glória a Deus! – gritavam os fiéis.
– Mas, para isso, é preciso que vocês ajudem cada vez mais a
nossa igreja. Portanto, quanto maior for o desapego de vocês ao
dinheiro e aos bens materiais, maior será a casa de vocês no reino
dos céus.
Vários homens começaram a percorrer o templo com sacolinhas
e maquininhas de cartão de crédito.
– Livrem-se do metal pecaminoso e depositem tudo nas
sacolinhas agora mesmo! Libertem-se do vil metal e coloquem tudo
de valor nas nossas sacolinhas. Quem estiver sem dinheiro,
aceitamos todos os cartões, relógios de ouro, pulseiras com metais
preciosos…quanto maior o valor, maior a casa de vocês na Casa do
Senhor! Além disso, estão vendo esse gigantesco cifrão aqui no
altar? Basta olhar fixamente para ele e piscar duas vezes, que o
valor total que você tiver em sua conta corrente ou poupança será
debitado automaticamente! E lembrem-se: eu mesmo farei,
pessoalmente, o depósito nas contas de vocês no Banco Paraíso
Prime. Assim, as taxas bancárias serão menores e vocês ainda
podem financiar o restante com juros de mercado e ainda com toda
a eternidade para pagar!
Os fiéis, emocionados e esperançosos, começaram a doar. Até
eu doei dez arroguetas para disfarçar. Vários fiéis piscavam sem
parar, olhando fixamente para o gigantesco cifrão do altar. O pastor
falava cada vez mais empolgado.
– E lembrem-se! Quem quiser morar no mesmo bairro do Nosso
Senhor tem que doar mais! Dependendo do seu desprendimento,
você poderá ser até vizinho de porta dEle!
Depois da doação, o pastor retomou a pregação, ainda mais
empolgado. Sua alegria e energia eram tão grandes que ele se
aproximou das pessoas da primeira fila, fechou os olhos e começou
a repetir:
– Que todo espírito maligno deixe esses corpos agora mesmo,
em nome de Deus!
O homem estava tão empolgado que ficou mais de 10 mi- nutos
assim, repetindo a mesma frase.
Mas o grande detalhe, que o povo sentado lá atrás não percebia,
incomodava por demais o pessoal da primeira fila. O homem falava
cuspindo. E, nesse dia, chegou ao máximo da tempestade salival,
talvez empolgado demais com o valor estratosférico arrecadado
com as sacolinhas, maquininhas e piscadinhas.
Foi aí que notei que, na primeira fila, bem em frente ao homem
de fé, estavam elas: as quatro onipresentes velhinhas! Se você
pensa que as impávidas senhoras abriram seus guarda-chuvas para
se proteger, está começando a compreender tudo. O pastor ficou
mais branco que suas vestes, mas não perdeu a chance.
– Viram, meus irmãos? O demônio é tão esperto que se apossou
dos corpos dessas inocentes senhoras para tentar nos enganar!
O povo direcionou olhares assustados para as pobres idosas. O
pastor olhou para cima e levantou os braços.
– Mas Deus acaba de me mandar uma mensagem! Por isso,
todos nós, juntos, expulsaremos os seres malignos que se
apossaram desses corpos cansados e patéticos. Repitam comigo:
vai-te, satanás!
– Vai-te, satanás! – gritou a massa, de olhos fechados e braços
levantados.
Só que, cada vez que o pastor gritava, cuspia, e as velhinhas
viravam os guarda-chuvas abertos na direção do altar. O homem
gritou mais forte:
– Vai-te, satanás!
Cuspia mais e as velhinhas, agora, pareciam ter sumido debaixo
dos guarda-chuvas. Notando que o pastor não ia mesmo parar, as
quatro fecharam seus objetos de proteção, resignadas. O pastor
sorriu, vitorioso.
– Viram? Conseguimos expulsar o demônio que tentou dominar
essas indefesas senhoras! Amém, Igreja!
Olhando para as idosas, ele sorriu e disse:
– Vão em paz, mulheres de fé! As senhoras estão limpas!
Aliás, todos neste templo estão limpos!
As velhinhas não esperaram nem um segundo e saíram
rapidamente por uma porta lateral. É claro que tentei segui-las, mas
um dos fiéis abraçou-me aos prantos, talvez me confundindo com
outra pessoa. O homem gritava, entre lágrimas de esguicho.
– Estou limpo! Estou limpo!
Só sei que perdi as velhinhas de vista mais uma vez. E ain- da
fiquei com o peso das lágrimas do infeliz sobre os ombros. Após o
término do culto, quando o templo já estava totalmente vazio, o
pastor chamou um dos seus ajudantes.
– Manda alguém consertar esse teto, Almeida. É um absurdo
que um templo que tenha custado uma fortuna tenha goteira!
Capítulo XIII
ALMAS GÊMEAS

Minha médica disse que eu não preciso beber para


ficar interessante. O problema que ela não sabe é que a maioria das
pessoas só fica interessante quando eu bebo. Mas por que estou
dizendo isso? Ah! O amor... Sem dúvida nenhuma, o amor é um
assunto inesgotável. Em Idiópolis, é um assunto extremamente
rentável também. Quantos livros, filmes, peças e afins não usaram e
abusaram do amor?

Em Idiópolis, a coisa chegou a


um ponto que existia um bairro na cidade só de emergentes
milionários do amor. Gente que escreveu livros de autoajuda, fez
filmes, lançou sites, virou influencer, coach quântico do amor nas
redes sociais ou fez qualquer outra atividade que envolvesse o
sentimento mais desejado desde os primórdios da raça humana. É
claro que só havia idiantes morando lá. E os inevitáveis figurantes
também transitavam pelo local, mas só para dar movimento e
passar naturalidade. Cumpriam sua função de figurantes
resignados.
Quanto aos excluintes, é óbvio que nunca puseram os pés no
selecionadíssimo bairro. Ali, só mesmo a nata da nata idiante podia
viver. Por isso, não havia local mais apropriado para se criar uma
seita intitulada Eu Exijo A Minha Alma Gêmea Já!
O líder da seita, autor de 273 best-sellers, com canais bombando
em todas as redes sociais somente sobre o tema, havia criado a
“Bússola do Amor”. O sucesso de vendas do produto foi tão
estrondoso que, por ironia, ninguém mais encontrava a bússola na
cidade. A não ser, é claro, no mercado pirata.
Por isso, a campanha publicitária alertava contra as imitações. Os
comerciais mostravam homens, mulheres e até crianças no meio do
deserto, na mais completa e desgraçada solidão, por terem
comprado as bússolas piratas. Outros mostravam mulheres jogando
pianos e diversos artigos ca- seiros pelas janelas, em cima de
homens infelizes. Realmente, uma campanha bem impactante. Você
deve estar querendo saber como a tal geringonça original
funcionava. Muito sim- ples: primeiro, você tinha que ter fé. Sem fé,
sua alma gêmea continuaria a vagar pelo mundo, perdida, vadia e
chorosa. E, caso sua fé fosse 100%, você teria que ter também o
coração preparado e limpo para receber a sua tão aguardada outra
metade.
Para te ajudar nessa aparentemente difícil tarefa, a Bússola do
Amor oferecia, com ótimo desconto, um kit com 3.001 mantras
criados especialmente para atrair a sua cara-metade autêntica.
Porém, o mais curioso mesmo é que a bússola não possuía
ponteiros. Nem Norte, nem Sul ou qualquer outra direção. Era
apenas um objeto redondo, com um coração no meio. Nas
instruções, estava escrito: “o coração vai acender quando seu amor
estiver por perto, mas não se esqueça de comprar as pilhas”.
Certa vez, saiu na revista PerceVeja, um dos maiores veí- culos
de comunicação dos idiantes, uma matéria abordando, como
sempre, com muita isenção e imparcialidade, o assunto. A
PerceVeja online também trazia uma escandalosa reportagem de
capa com o nome de várias pessoas envolvidas no esquema que o
veículo chamou de “Bússolagate”. A matéria descrevia detalhes
minuciosos de como a bússola havia sido desvirtuada por gente
cética, que não acreditava no amor e em alma gêmea. Os poucos
idiantes envolvidos no escândalo foram logo salvos pelos seus
caríssimos advogados, que ameaçaram processar o Estado e a
revista.
Chegou-se a pensar numa conspiração dos excluintes, mas, após
cumprir vários mandados de buscas e apreensão, a Polícia Idiante e
o Mistério Público descobriram que nenhum excluinte havia
adquirido o produto. Portanto, por eliminação, após uma série de
denúncias, CPIs e com a ajuda do jornalismo sempre imparcial e
investigativo da PerceVeja, chegou-se à conclusão de que as
culpadas só podiam ser elas: as velhinhas que teimam em andar
com os guarda-chuvas abertos debaixo das marquises em dias de
chuva.
As insistentes velhinhas eram vistas como o mal do século, ou a
última grande praga do tempo, o último vestígio da Era do
Pensamento. A PerceVeja entrevistou diversas personali- dades de
Idiópolis, que se posicionaram, em sua esmagadora maioria, contra
as velhinhas e seus inseparáveis guarda-chu- vas.
A revista fez uma competente e inusitada relação entre a falta de
escrúpulos da máfia das bússolas falsas e as velhinhas. Como o
escândalo manchou a imagem da “Bússola do Amor”, foi lançado o
“GPS do Amor Quântico”. Em uma semana, o produto bateu todos
os recordes de venda e tornou-se, rapidamente, o novo caminho
para quem quisesse encontrar sua cara-metade.
O objeto foi um verdadeiro upgrade para todos os cora- ções
carentes de Idiópolis e seu estrondoso sucesso fez com que o
“Bussolagate” fosse completamente esquecido e arquivado.
Os coaches quânticos do amor começaram a se multiplicar como
moscas nas redes sociais de Idiópolis. Alguns acompanhavam os
“clientes-pacientes” até os encontros para conhecer a fundo o
problema amoroso. Logo, os coaches exigiam pelo menos três
vídeos de sexo explícito dos pacientes para uma análise mais
Freudiana do processo. Quando tentei acessar uma página desses
coaches quânticos do amor, recebi uma mensagem de vídeo das
velhinhas no meu celular: as quatro balançavam a cabeça dizendo
um NÃO rotundo. Olhei em volta e não vi nada. Corri para o boteco
mais próxi- mo, porque não sou de ferro e precisava relaxar um
pouco. O mais incrível foi ver que, na TV do boteco, um coach
ensinava a dar o salto quântico que levaria seu cliente até os braços
da pessoa amada em menos de três segundos. Com O GPS
Quântico nas mãos, claro!
Foi um verdadeiro caos: várias pessoas marcavam três se-
gundos no relógio e davam pulinhos até conseguir agarrar alguém
do seu interesse. O Problema é que houve muito mais “sai pra lá,
coisa feia!” do que crushes e matches.
Foi mesmo um horror!
Capítulo XIV
O CONDOMÍNIO IDIANTE

Preciso contar outro acontecimento


banal de Idiópolis que, com certeza, você já deve ter vivido ou
pelo menos visto: uma reunião de condomínio. Pois saiba que,
se existe uma coisa que não mudou mesmo, são essas
assembleias. Quem mora em algum edifício de Idiópolis sabe
que ocupar uma “gaveta” num gigantesco bloco de concreto
vertical não é assim tão tranquilo e seguro quanto parece.
Ainda mais em dia de reunião de condôminos.

Em Idiópolis, dependendo muito do


lugar, os moradores compareciam em peso a essas reuniões.
Ninguém queria perder a oportunidade de cobrar do síndico
uma melhor ad- ministração do seu dinheiro. Certa vez, fui à
assembleia do meu prédio. Foi mais uma daquelas reuniões de
ânimos exal- tados e ressentimentos mil. O síndico, um senhor
de bom caráter e simpático, segundo a minha impotente
opinião, prestava contas do seu mandato e mostrava os
números para os presentes.
– Como os senhores podem ver, os recursos foram aplicados
em obras que só vão valorizar o nosso patrimônio.
– Eu discordo – interrompeu um homem de cabelos
grisalhos, óculos pequenos e que devia ter uns 50 anos. O
sujeito tinha uma pilha de papéis amarelados diante de si.
Parecia um daqueles dossiês gigantescos com provas cabais e
irrefutáveis.
– Não sei se alguém percebeu, mas no elevador de serviço
há uma mancha no canto esquerdo da porta que fica visível
quando o elevador para no 49º andar.
– O senhor tem certeza?
– Absoluta! Sem querer fazer trocadilho, mas acho que essa
mancha acabou por manchar a sua administração.
A assembleia concordou e começou a sussurrar entre si.
Formou-se aquele famoso zunzunzum tão comum a essas
reuniões. Alguns já olhavam para o síndico com ódio crescente.
Este não se deu por vencido.
– Senhores! Silêncio, por favor! A aplicação de recursos foi
feita de forma criteriosa. Vejam a fachada do prédio, por
exemplo. Fiz uma licitação super rigorosa entre cinco empre-
sas e venceu a que apresentou melhor preço e qualidade de
serviço. Todos os membros do Conselho que estão aqui pre-
sentes podem comprovar a lisura e a transparência de todos os
meus gastos.
Porém, o homem da “mancha” não se deu por satisfeito.
– Sem querer fazer trocadilho novamente, isso é só facha-
da. Nada mais, nada menos que isso. O senhor não respondeu
sobre a mancha.
– Mas a mancha pode ser resolvida com uma pincelada de
tinta, meu amigo!
– Uma pincelada? Claro! Uma pincelada. Mas por que ela
não foi dada antes, hein? Essa é a pergunta que não quer calar!
Por quê?
De novo, aquele murmurinho da assembleia ecoou pelo
salão de festas do edifício.
– Pois bem. Se for reeleito, prometo amanhã mesmo resolver
esse problema.
– Agora é tarde. O mandato do senhor acaba hoje. E, sem
querer fazer frase de efeito, minha mãe já dizia: “Nunca deixe
para amanhã o que você pode fazer hoje”.
Enquanto o homem falava, vi o que pareceu ser uma mira-
gem. Olhei para o prédio vizinho e notei as quatro velhinhas
olhando para mim da varanda do segundo andar! Cocei os
olhos e olhei de novo, e elas continuavam lá. Mesmo intriga- do,
suspirei e resolvi intervir na reunião.
– Um momento, por favor! Vocês não podem julgar a
administração do nosso síndico por causa de uma manchinha
de nada. Este edifício nunca foi tão bem administrado desde
que eu vim morar aqui.
– O senhor pode dar um exemplo, Mister Guima?
– Claro! A obra da piscina! Se ele não tivesse mandado re-
tirar os fios de cobre com lâmpadas de neon que o outro síndico
colocou a título de enfeite, nossas crianças continuariam a
morrer eletrocutadas aos finais de semana.
– Isso não é o bastante.
– E a economia de luz de 90% que ele conseguiu apenas
desligando os refletores dos jardins e os holofotes das quadras
de esporte durante o dia?
– Nós sabemos de tudo isso. Mas a mancha do elevador é
injustificável. E se os nobres vizinhos me permitem, gostaria de
lançar a minha candidatura para, com muito sacrifício e suor,
tentar restabelecer a ordem idiante do nosso grande lar.
O “homem da mancha” só não foi eleito por unanimida- de
porque eu não votei nele. Olhei para o prédio em frente e vi que
as velhinhas já tinham sumido de novo. Quanto ao antigo
síndico, caiu em depressão e foi confinado num SPA de
Emagrecimento Cerebral. No dia seguinte, providenciei a minha
mudança para um lugar bem longe dali. Fui embora com um
pensamento fixo a me perseguir: a arrogância é a burrice com
plumas.
Capítulo XV
A EMPRESA IDIANTE

Sim, eu já trabalhei numa grande empresa idiante.


Conta- rei como foi o meu último dia de trabalho antes de pedir
demissão. Durante 20 anos, administrei uma soma incalculável de
valores. Dei a palavra final em inúmeras licitações. E me desculpem
a aparente falta de modéstia, mas nunca aceitei um centavo sequer
para favorecer quem quer que seja nessas concorrências.

Fui tentado de todas as formas:


mandavam cestas de Natal gigantescas para a minha casa; vinhos
caríssimos; passagens para Paris (o único lugar em que me sinto
bem) e me ofereciam até casas de praia, lanchas e carros. Tudo o
que chegava a mim, eu mandava devolver na hora. Por isso, meus
amigos diziam que, se um dia eu estivesse num navio, esse
afundasse e houvesse apenas eu como sobrevivente, e de repente
aparecesse o cofre do navio boiando sobre os escombros, eu
devolveria todo o dinheiro.

Eles diziam que honesto era o cara que tinha a


oportunidade, a facilidade e a certeza da impunidade e, mesmo
assim, não se corrompia. Para eles, eu era exatamente essa
raridade. Mas eu sei que você também já foi assim, antes de ter o
cérebro apagado. Ok! Não vou mais desviar o assunto e falar da
minha vaidade. Vamos agora até a principal sala de reunião da
maior empresa de Idiópolis. Aliás, vale ressaltar que, dificilmente,
haveria outro lugar tão luxuoso e moderno, pelo menos em Idiópolis.
Você deve estar se perguntando se as velhinhas apareceram.
Calma.
Quando ocupei a minha
cadeira ao lado de outros vinte executivos impecavelmente
vestidos com as melhores marcas de terno do planeta, olhei para a
janela e vi as onipresentes e metafísicas senhoras num andaime,
limpando as vidraças da sala. O mais incrível é que ninguém parecia
notar a presença delas, exceto eu. Posso jurar para você que elas
executavam a tarefa na maior alegria e pareciam sorrir para mim.
Tentei me concentrar na reunião, mas toda hora olhava para as
minhas inatingíveis e invisíveis amigas.
Enquanto isso, a reunião começou. Havia um telão a laser de
mais ou menos 200” no fundo da sala. Foi então que o presidente,
que estava na cabeceira da mesa, tomou a palavra. Tinha uns
quarenta e poucos anos e muita experiência em dirigir grandes
empresas.
– Podemos?
Ninguém disse nada. O homem começou a falar com um tom de
voz indecifrável para ouvidos poucos experientes, o que não era o
meu caso.
– Bom... Primeiro, gostaria de comentar o balanço do último
trimestre. Acho que o lucro de três bilhões de arroguetas foi muito
aquém do esperado. Investimos muito para aceitar esses números
ridículos. Alguém tem algo a dizer sobre esse resultado medíocre?
O diretor financeiro tomou a palavra.
– Senhor presidente, acho que houve um grave erro estratégico
nesta questão.
– Erro estratégico? De quem?
– Não gostaria de acusar meus companheiros de trabalho, mas
creio que houve um ligeiro e gritante equívoco do pessoal do
Marketing.
Um sujeito ainda bem jovem levantou a mão. Tinha, no máximo,
trinta e cinco anos.
– Como responsável pelo Marketing, tenho que discordar
veementemente dessa estapafúrdia afirmação. Fizemos mágicas
com a verba de apenas trinta milhões de arroguetas. Seguimos à
risca todas as teorias dos nossos mestres do Pós-
-Após-MBA. Também não quero transferir a culpa para ninguém,
mas, se alguém deixou muito a desejar, foi o pessoal da
Distribuição.
– Iscania, Distribuição é assunto seu.
– Presidente, tenho certeza absoluta de que eu e a minha equipe
não comprometemos em nada a operação. Pelo contrário. Nossos
produtos foram entregues rigorosamente no prazo em todos os
estabelecimentos comerciais. Não foi por falta de produto que não
vendemos. Acho que o pessoal de Vendas pode explicar melhor o
que houve!
– O que Vendas tem a dizer?
Um sujeito baixinho e de óculos abriu seu holograma pessoal
com força e começou a explicar.
– Que absurdo desconfiar de quem carrega essa empresa nas
costas! Como os senhores podem ver, os gráficos não mentem.
Vendemos todos os produtos fabricados. Esse gráfico de
desempenho médio da força de vendas nos últimos três trimestres
mostra com clareza a capacidade da nossa equipe. Se no ponto de
venda o produto falhou, é porque a Comunicação deixou a desejar.
– O pessoal da agência de propaganda tem algo a dizer?
– Presidente, criamos campanhas brilhantes com um recall
impressionante. O produto tem o maior share of mind da categoria.
– Se ninguém errou, o que aconteceu, então, para justificar esse
resultado patético, essa queda de 0,0002% no lucro líquido, hein?
Fez-se um silêncio sepulcral. Uma pausa de trinta segundos que
pareceu durar milênios. Achei estranho o presidente não me
consultar, mas fiquei constrangido diante das patuscas faces dos
presentes até aquele momento. Foi então que o imprestável do
Meirelles, que estava sentado à direita do presidente, resolveu se
pronunciar.
– Acho que precisamos cortar na própria carne para
continuarmos competitivos.
– O que você sugere, Meirelles?
– Bem... Sei que isso vai doer fundo no coração de todos aqui,
mas devemos efetuar um radical corte de pessoal.
– Não há alternativa, Meirelles?
– Infelizmente, não vejo nenhuma. Digo isso com o coração em
frangalhos, mas temos que cortar.
– Mas onde? Aqui nesta mesa só há profissionais brilhantes!
Quase todos com MBA, Pós-MBA e Pós-Após-MBA. Gente que
construiu esta e várias outras empresas de sucesso. Não posso
perder nenhuma das mentes idiantes desta vencedora organização.
– Não estou falando de ninguém daqui presidente.
– Então quem, Meirelles? Quem?
Neste momento, entrou uma senhora que devia ter 60 e poucos
anos, carregando uma bandeja com água e café. Todos da mesa
olharam para a robusta senhora com os olhos ligeiramente
umedecidos e com um profundo pesar.
Capítulo XVI
O I-DIANTE

Num dia chuvoso e frio, resolvi passear


sem rumo pela cidade. Ser um fugitivo dentro de uma cidade-
planeta é algo que jamais imaginei acontecer. Não há lugar seguro.
Se existissem pelo menos paraísos terrestres verdadeiros para
excluintes, eu acharia bem mais interessante. Mas, como você
sabe, esse papinho de “paraíso” fez-me lembrar dos SPAs de
Emagrecimento Cerebral, vendido para todos como a cura para
todos os transtornos mentais.

Por isso, a minha esperança, não sei


explicar exatamente por que, estava depositada, em grande parte,
naquelas velhinhas misteriosas. Se elas são as inimigas número um
da opinião pública idiante, devem ter tudo a ver comigo. Mas, até
onde sei, o único motivo de tanto rancor contra as velhinhas é
porque elas teimam em andar de guarda-chuvas abertos debaixo
das marquises em dias de chuva. Entretanto, tudo o que acontecia
de ruim na cidade creditavam na conta das enigmáticas senhoras.
Para mim, isso parecia ser, no mínimo, suspeito. Ou as velhinhas
eram mesmo simples bodes expiatórios ou sabiam de algum
segredo de Estado ou coisa parecida.
Além disso, o fato de estarem sempre nos mesmos lugares que
eu, sempre me observando, só aumentava a minha curiosidade.
Será que elas sabiam que eu era o último dos excluintes em
liberdade? Perdido em devaneios, levei um susto quando pus os
pés na Praça das Antas. Havia um gigantesco telão onde acontecia,
ao vivo, uma apresentação de um comercial de lançamento da
empresa Maçã Mordida. A mesma estava lançando um player
cerebral criado no Vale do Cretinus.
Seu criador, Esteves de Bobis, apresentava o produto com
riqueza de detalhes. Por isso, fique sabendo que ninguém ficou
surpreso quando Bobis revelou que o i-Diante devia ser implantado
diretamente no cérebro do cliente, de acordo com sua capacidade
de armazenamento.
O homem reuniu a imprensa de toda a Idiópolis para ex- plicar
melhor o funcionamento do revolucionário aparelho.
– Amigos, o que não tenho aqui em minhas mãos é um
espetáculo, um produto revolucionário até amanhã de manhã, no
mínimo! O i-Diante é uma joia da tecnologia idiante de ponta.
Música e vídeos digitais são coisas do passado. Com o i-Diante,
você implanta suas músicas e seus vídeos preferidos diretamente
no seu cérebro, sem contato manual! Portanto, quanto mais vazia
estiver a sua cabeça, mais músicas e vídeos conseguirá armazenar.
E para usar é muito simples: basta sacudir a cabeça três vezes para
a frente, para escutar música, e duas para trás, para transformar
seus pensamentos em vídeos exclusivos da Maçã Mordida. Fiquem
tranquilos, porque através dos nossos algoritmos, sabemos tudo
sobre cada um de vocês.
As imagens piscaram na tela gigante e as pessoas à minha volta
já pensavam em onde adquirir o i-Diante. Bobis continuou a colocar
mais água na boca de todos.
– Essa verdadeira revolução cultural que a Maçã Mordi- da traz
até vocês é mais uma excelente oportunidade para provar como é
bom ter o cérebro livre para só ocupá-lo com coisas realmente
importantes.
O povo ficava cada vez mais animado na Praça das Antas, e de
Bobis continuou sua apresentação bombástica.
– O i-Diante vem em três versões: Simples Figurante, Idiante Pro-
Max e Idiante Total Mesmo. Não é compatível, infelizmente para
eles, com os abarrotados e obsoletos cérebros dos excluintes. Mas
como eles estão praticamente extintos, nosso produto é para todos
vocês que têm as cabeças abertas e desérticas para receber essa
última palavra em entretenimento.
Eu via o brilho nos olhos daquelas pessoas que estavam mais
perto de mim. De Bobis era, embora fosse apenas um holograma de
alguém já falecido, um gênio vivo do século XXI. Sabendo que
estava agradando, o “homem” usou um argumento final e definitivo:
– E, como promoção de lançamento, quem comprar o i-Diante
receberá, inteiramente grátis, o grande sucesso do fantástico grupo
de rock The Fury of Panacas’ Cover, "Pensar, eu dispenso". Corram
agora mesmo para a loja mais próxima e peçam para um vendedor
implantar o i-Diante na sua cabeça. Não dói nada e custa muito
menos do que vocês imaginam!
O entusiasmo na Praça das Antas chegou ao máximo, apesar da
forte chuva. Várias pessoas partiram aflitas à procura do i-Diante na
loja mais próxima.
Foi então que vi, na parte norte da praça, quatro guarda-
chuvas abertos debaixo de uma marquise. Sim, as velhinhas
não perdiam nada mesmo. Aliás, pareciam divertir-se, pois
olhavam para mim e riam, balançando a cabeça para frente e
para trás, como se estivessem experimentando o produto.
Capítulo XVII
O GRANDE ENGODO

É verdade que eu fui um dos poucos a


escapar do SPA de Emagrecimento Cerebral num primeiro
momento. Mas tenho que confessar que foi por acaso. A data que
eu escolhi para ir ao “Paraíso Genial” coincidiu com uma grande
tempestade que desabou sobre o meu bairro, e aí resolvi deixar
para outro dia. Neste intervalo de tempo, fui avisado por um amigo
excluinte que tudo era uma grande farsa. A partir daquele dia,
começou a minha luta para tentar escapar das garras idiantes. Só
que eu ainda não fazia a menor ideia de que seria o último excluinte

a ser confinado num dos malditos SPAs. E o pior foi a


forma como fui capturado.

Tudo aconteceu quando saí da Praça das Antas,


depois de assistir à apresentação do i-Diante. Parei em frente a uma
loja de eletrônicos para ver de perto aquele produto revolucionário.
Vi centenas de idiantes, e principalmente figurantes, saindo
balançando a cabeça para a frente e para trás. Logo, as ruas de
Idiópolis foram tomadas pela febre. Todo mundo andando,
balançando a cabeça para a frente e para trás, numa coreografia
simplesmente inesquecível. Pelo visto, aquela piada visual que as
velhinhas fizeram para mim na Praça das Antas tornou-se uma
realidade irrefutável. Aquilo funcionava melhor do que mil discursos
do PIT do M ou qualquer outra artimanha. E foi aí que eu dancei.
Como você sabe, o i-Diante é incompatível com os excluintes, por
falta de espaço cerebral. Bem que os proféticos hippies dos anos 60
do século XX diziam para abrirmos a mente. O fato é que, ao invés
de tentar andar nas ruas balançando a cabeça para frente e para
trás, num patético e último recurso de passar despercebido, andei
normalmente, e foi aí que um vendedor daquela loja de eletrônicos
me puxou pelo braço para dentro da mesma. Vi-me cercado de
gente fazendo o test drive do i-Diante.
– Venha! Venha! O senhor precisa experimentar o i-Diante!
Experimente aqui sem nenhum compromisso de comprar mais de
seis!
Tentei argumentar:
– Mas eu estou com um pouco de dor de cabeça, sabe?
– Não tem problema! Temos aqui um modelo especial para quem
sofre de enxaqueca! Já vem com um analgésico embutido! E o
melhor: você não paga nada a mais por isso! É inteiramente grátis!
Quando pensei em argumentar novamente, já estava sentado
numa cadeira de implante. Logo surgiu uma máquina que tinha na
ponta um ferrão de escorpião a laser! O vendedor, eufórico, nem fez
mais perguntas. Ligou a máquina e o ferrão caiu sobre a minha
cabeça. Não senti dor nenhuma, se isso vai te deixar mais tranquilo.
Aliás, não senti nada, pois absolutamente nada aconteceu. Todos os
que estavam na loja ficaram paralisados, olhando para mim. O
sorriso congelado do vendedor derreteu-se num passe de mágica.
Começou a sair uma estranha fumacinha da máquina de implantes.
– Não acredito! Logo na minha vez de vender aparece um
excluinte! Preciso me benzer!
Tentei sair da cadeira, mas estava preso por algemas. Todos na
loja olhavam para mim como se eu fosse um alienígena. Soou um
alarme e o segurança do lugar apareceu.
– Arrá! Hoje é meu dia de sorte! Esse aí é o Mister Guima,
pessoal. O último excluinte em liberdade.
Todos olharam para mim com muito mais atenção.
– E o melhor é que existe uma recompensa de cem mil
arroguetas para quem capturá-lo.
O vendedor ficou todo serelepe.
– Opa! Fui eu que puxei o cara para dentro da loja! O cliente é
meu! O cliente é meu!
– Mas sou eu o responsável pela segurança, logo vamos dividir a
bolada.
– Nada disso! O cliente é meu! O cliente é meu!
Os outros vendedores queriam entrar na partilha também.
Estabeleceu-se uma confusão total dentro do recinto. É claro que
aproveitei para tentar escapar, ainda mais quando vi as velhinhas
disfarçadas de socialites falidas na porta da loja. Cheguei a ficar
animado, mas o segurança colocou todo mundo para fora e fechou
a porta do estabelecimento. Ainda vi a imagem das velhinhas e seus
inseparáveis guarda-chuvas desaparecerem por trás da porta de
aço.
Capítulo Final
DR. ARROGANTUS MAXIMUS
– O senhor é o último, Mister Guima.

– Já?
A mulher sorriu, quase que piedosa.
– O senhor pensou que fossem tantos assim? Encolhi os
ombros.

– Muito gentil da sua parte me acompanhar


nesses últimos momentos, doutora Sue Cida.
– Agradeça ao doutor Arrogantus Maximus... Acho – disse a
Dra. Sue Cida, tentando disfarçar uma tristeza profunda.

– A senhorita está bem, doutora Sue Cida? –


perguntei, vendo o caos no meio daqueles olhos verdes sem
esperança.
– Estou ótima! Estou ótima! – disse ela, nervosa.
– Foi também o doutor Arrogantus Maximus que
criou os SPAs de Emagrecimento Cerebral?
– Sim… Sem falar que foi ele que “descobriu”, digamos, que,
além dos excluintes, as verdadeiras culpadas pelas grandes
tragédias da nossa sociedade são as velhinhas que teimam em
andar de guarda-chuvas abertos debaixo das marquises em
dias de chuva.
– Eufemismo para bodes expiatórios, não é doutora Sue
Cida?
A médica nem prestou atenção no meu comentário irônico.

– O doutor Arrogantus Maximus é realmente tudo para o


povo de Idiópolis. Ele quer conhecê-lo pessoalmente, porque o
senhor é o último excluinte e será um marco histórico o
momento em que o seu cérebro for apagado – falou a médica,
sem entusiasmo.
– Já tô quase desejando isso...
De repente, uma voz grave e metálica ecoou no recinto.
– Doutora Sue Cida! Mande o último entrar! – disse, com
certo prazer.
– Sim, doutor Arrogantus! Pode entrar, Mister Guima... Estou
péssima hoje – confessou, pela segunda vez, a mulher, sem
conseguir olhar para mim.
Não tive nem tempo de pensar na tristeza profunda da Dra.
Sue Cida. Finalmente ia conhecer o homem que havia criado o
maior engodo da história da humanidade. A sala dele era como
uma gigantesca central de computadores quânticos de última
geração. Uma espécie de cérebro gigantesco, com luzes
piscando e fazendo bip-bip. Olhei em todas as direções e não vi
o Dr. Arrogantus Maximus em nenhum lugar. Foi então que uma
imagem formou-se diante de mim: um holograma de um homem
sem rosto.
– Sabia que o senhor ia estranhar. Sim, eu sou o doutor
Arrogantus Maximus. Sou a soma de todo o pensamento idiante
de Idiópolis e, por que não, de toda a humanidade.
– Não duvido. Pelas luzes, pelos computadores e por toda
essa parafernália, parece mesmo um trono de um idiante
máximo do século XXI.
– Suas ironias não vão lhe servir de nada.
– Desculpe, mas cadê o senhor de verdade, Doc? Não vai
me dizer que você é apenas um maldito holograma?
– Que visão mais limitada para um excluinte! Como disse
antes, sou apenas o reflexo, a soma de todo o pensamento
idiante, ou não-pensamento, se o senhor assim preferir. Quem
o senhor que criou o slogan “não-pensar, não-fazer”, hein? O
que diriam seus amigos excluintes se soubessem que foram
derrotados por um ser espectral, sem corpo, mas com o cérebro
que é a soma de todas as ideias idiantes?
– Acho que, no fundo, eles não se espantariam tanto.
– Sério?
– Claro! Somos, todos os dias, derrotados pela idiotice e
pela estupidez. O que me espanta é que o mundo ainda não
tenha acabado.
– Reconheça que vocês, excluintes, fracassaram.
– É que a estupidez está sempre se modernizando, doutor
Arrogantus.
– Vocês, excluintes, perderam a vez. Tentaram melhorar o
mundo, segundo seu conceito ultrapassado, e só fracassaram.
Os grandes avatares, os artistas, filósofos, cientistas... Nenhum
deles conseguiu livrar este mundo da infelicidade. Pelo
contrário. Criaram uma minoria pensante muito perigosa.
– Aí o doutor está repetindo como um idiante a ideia estúpida
de que conhecimento é infelicidade. Doutor Arrogantus, cheguei
a uma conclusão: ao contrário do que muita gente pensa, acho
que a hora certa de procurar um terapeuta é quando você
estiver feliz demais durante muito tempo.
– Claro que o senhor está, novamente, errado. Minha
felicidade é sem fim porque não penso no passado, no presente
nem no futuro.
– Esqueci que Vossa Arrogância não é máquina, nem
homem. É só uma ideia estúpida.
– Não adianta tentar me bajular!
– Sem os grandes excluintes, avatares, filósofos, artistas,
cientistas e outros, o mundo ainda estaria na Idade da Pedra e
o senhor nem existiria.
– Exato! Sou o resultado da lei da causa e efeito. Vocês me
criaram quando tentaram desconstruir crenças, tradições... E,
além disso, não é novidade que a criatura volte-se contra o
criador ou, no meu caso, supere o mestre.
– Realmente, não enxergamos o óbvio ululante: o
crescimento descontrolado da idiotice e da arrogância. A
ausência de predadores sempre causa desequilíbrio na
natureza.
– Vou lhe dar uma última chance, Mister Guima. Venha para
o meu lado e prometo guardar segredo de que você é um
excluinte convertido, sem precisar ter o cérebro apagado.
Imagine comandar Idiópolis comigo? Às vezes, terei de ser
mais empático e vou precisar de alguém que ainda possua tal...
Vá lá... Qualidade.
– Ora, ora... O todo-poderoso doutor Arrogantus Maximus
tentando comprar um excluinte... Sem chance.
Dr. Arrogantus Maximus não tinha um rosto fixo, mas
pareceu estar puto por alguns instantes.
– Era pegadinha... Claro que não preciso de gente que
insiste no erro da curiosidade, da generosidade e da
criatividade! O egoísmo é muito mais produtivo; o egoísmo é o
pai do progresso!
Vi que aquela discussão filosófica não ia levar a lugar algum.
Além disso, convém não provocar a ira da estupidez máxima.
Tentei mudar de assunto.
– Quer dizer, então, que sou o último excluinte a virar
figurante?
– Exato. Faz parte da transição. Do “processo cármico”,
como gosta de dizer a doutora Sue Cida.
– Mas o que isso tem a ver com carma?
– Não sei, mas gostei da palavra e a doutora Sue Cida vive
falando disso pelos corredores.
– E como é o processo?
– Bom... Vamos aos fatos: primeiro, você terá a memória
apagada no nosso supercomputador quântico Arrogantum
Maximus II e se tornará um figurante. Aí, depois, naturalmente,
no dia a dia de Idiópolis, com a convivência diária com outros
idiantes, tornar-se-á (como diria um Idiante-Vampiro), se tiver
sorte, um idiante. Logicamente, serão necessários mais alguns
anos para se tornar um idiante completo. Então, finalmente, a
máxima do “não-pensar, não-fazer”, fará de você um cidadão
feliz.
– Feliz? O senhor quer dizer obediente e tributável?
– Exato! Mas há casos e casos...
– Como assim?
– Alguns excluintes levam mais tempo que outros para se
desapegar de tudo o que aprenderam e resistem à máquina. Aí
já viu, né? O computador dá uns probleminhas de memória e
pode atrasar um pouco o processo.
– Computador quântico com problema de memória? Imagino
a quantidade de idiotice e arrogância necessárias para tal
feito...
O maldito holograma pareceu sorrir. Um sorriso sem rosto,
sem dentes.
– Mas calma! Isso só aconteceu algumas vezes. Não é
sempre. Portanto, tente relaxar, que logo você será um
felicíssimo figurante.
– Fico muito feliz com sua preocupação com a minha
pessoa, mas, sinceramente, apesar dos pesares, prefiro
continuar sendo um miserável excluinte e estou disposto a
conviver com as consequências de tal escolha.
– Não há essa possibilidade. O mundo como você imaginou
é uma utopia, definitivamente morta. Além disso, todos os
outros excluintes já foram transformados em figurantes. Você
imagina só a solidão que será a sua vida? Seja bonzinho e
aceite seu destino com parcimônia.
Vi que a situação estava realmente complicada.
Quando já caminhava para a guilhotina do saber, elas
apareceram como anjos vingadores, surpreendentes. O Dr.
Arrogantus Maximus deu um gritinho estranho para confirmar a
minha descrição. As quatro velhinhas surgiram com seus
inseparáveis guarda-chuvas. Trovões e relâmpagos explodiram
no céu. As quatro usavam seus óculos escuros e vestidos
estampados. Ou seja, estavam vestidas como velhinhas que
teimam em andar com os guarda-chuvas abertos debaixo das
marquises em dias de chuva. O Dr. Arrogantus Maximus
continuou impassível.
– Ainda bem que a doutora Sue Cida leu o meu horóscopo
hoje e disse que “surpresas aconteceriam ao longo do dia” –
disse o holograma sem rosto.
Mas eu nem prestei atenção nele. Estava hipnotizado diante
daquela imagem fascinante. As velhinhas aproximaram-se e me
examinaram dos pés à cabeça. Uma delas falou para as outras:
– Ufa! Ele continua excluinte! – e, virando-se para mim: – Há
tempos estamos te acompanhando, Mister Guima.
– Deu para perceber – respondi, quase eufórico.
– Sabíamos que você era o último dos excluintes. Tentamos
várias vezes fazer contato, mas estávamos sendo muito
vigiadas e temíamos pelo seu cérebro. Quando vimos que os
idiantes conseguiram capturá-lo, viemos correndo impedir que o
último excluinte fosse apagado e o plano do doutor Arrogantus
Maximus se concretizasse.
– Mas eu tentei falar com as quatro várias vezes e vocês
fugiam!
– Claro! Também estávamos observando se o último
excluinte não ia se corromper. Precisávamos ter certeza de que
poderíamos usar o senhor como o condutor.
– Condutor? Como assim?
– Você já vai descobrir.
As outras três respiraram aliviadas.
– Como ousam entrar aqui? – o maldito holograma parecia
ter perdido o senso de humor. – Vou chamar a segurança! As
grandes vilãs do nosso modo de viver invadido este local
sagrado!
As velhinhas sorriram.
– Não seja ainda mais patético, doutor Arrogantus.
– Isso mesmo. Os idiantes tentaram transformar-nos em
bodes expiatórios e agora vão pagar o pato! – disse outra
velhinha.
– Bodes expiatórios? Não me façam rir! As senhoras são, no
máximo, múmias expiatórias!
– Pois é. O preconceito dos idiantes contra as pessoas mais
velhas foi nosso melhor disfarce.
– As senhoras são risíveis. Mas preciso continuar o meu
trabalho. A segurança já foi chamada.
– Pode esquecer, doutor Arrogantus. Já desligamos todo o
sistema idiante de segurança. E confessamos que foi até di- fícil
passar pelos fofíssimos poodles de guarda que o senhor
colocou aqui na entrada.
– Maldição! Vou deletar esses seguranças incompetentes e
fazer sabão desses vira-latas imprestáveis! E a doutora Sue
Cida? Onde ela está?
– Quando chegamos, vimos um vulto pendurado na janela,
mas sumiu logo.
– Sabia que aquela depressiva-compulsiva ia acabar
pulando daqui.
– Admita. Seus dias de estupidez acabaram, doutor! O
holograma deu uma gargalhada irritante.
– Vocês, excluintes, são uma piada E as senhoras devem
estar esclerosadas! Mas não se preocupem, embora sua idade
seja avançada, eu posso apagar tudo e colocar imagens lindas
de um asilo cheio de plantinhas e bichinhos nos seus cérebros.
O que acham?
Na minha opinião, as velhinhas não gostaram nem um pouco
da proposta, pois começaram a abrir os guarda-chuvas. Para
minha surpresa, luzes acenderam-se nas pontas deles, cada
uma com uma cor diferente. O Dr. Arrogantus Maximus não se
impressionou com a cena.
– O que significa isso? As senhoras vieram aqui fazer
mágicas? Ou vieram apresentar a nova dancinha do guarda-
chuva? As velhinhas sorriram tranquilamente. Algo me dizia que
uma surpresa estratosférica estava por vir. E não deu outra. A
velhinha do guarda-chuva que tinha a luz branca na ponta falou
primeiro:
– Sabe o que eu trago aqui na ponta do meu guarda-chuva,
doutor Arrogantus?
– Não faço a menor ideia, velhota.
– Claro que não faz. A arrogância e a idiotice cegam, meu
caro. Vai ver que é por isso que o senhor nem cara tem.
– O que vocês estão planejando fazer, suas velhas taradas?
– O senhor já vai ver. Agora, precisamos do condutor. Co-
loque esses fios na cabeça, Mister Guima.
– As senhoras vão me conectar a esse maldito holograma?
– Calma. É para o bem da humanidade. Precisamos de um
cérebro jovem, íntegro, cheio de amor e que não esteja
contaminado para servir de condutor.
– O senhor estará ajudando a gente a mudar o mundo –
disse outra das velhinhas.
– É verdade... Pelo menos até a próxima revolução dos
idiotas – disse outra velhinha.
– Hummm... Qualquer coisa é melhor do que o que tenho
visto ultimamente.
– Sim, Mister Guima, mas isso será um pouco desagradável.
Quando fizermos a conexão, o senhor verá milhões de imagens
de arrogância e estupidez. Sem falar dos rostos de vários
idiantes conhecidos. Sei que isso dói.
Suspirei, resignado.
– Melhor ver agora para não ver depois, não é?
– Bom garoto!
O Dr. Arrogantus voltou com tudo.
– Maldição! Suas velhas insolentes! O que pensam que
podem fazer com esses estúpidos guarda-chuvas? Além disso,
aqui não tem marquise! – disse, irônico.
As velhinhas nem deram bola para as ironias e os lamentos
do Dr. Arrogantus Maximus. Ligaram uns fios na minha cabeça
e conectaram ao gigantesco computador idiante. Para minha
surpresa e do maldito holograma, a primeira velhinha
desatarraxou a ponta do guarda-chuva.
– O que é isso? Velhas taradas! Esse objeto pontudo e fálico
serve para quê?
– Sua mente é mesmo uma soma ilimitada de estupidez e
maldade, não é mesmo?
– Isso aqui, meu caro mestre idiante, é um arcaico pen drive
do ano 2014! Dentro dele, está armazenada a sabedoria de
Buda, Cristo, Krishna e de todos os que só pregaram o amor
neste mundo.
– Além de esclerosadas, as senhoras ainda são carolas?
A velhinha que falava continuou impávida, atrevida e
sonhadora:
– É claro que, antes, passei o anti-idiante e tirei todas as
distorções que os idiantes fizeram de seus ensinamentos ao
longo dos séculos. Está tudo aí.
– Não me diga?! As senhoras não devem nem saber o que é
internet!
– Sempre cheio de certezas, né, doutor?
– Claro! Eu sou a única certeza, vovós!
– Fique atento, então, doutor Arrogantus.
– Além disso, vocês não estão na internet, portanto não
existem! Investigamos bem as senhoras. Quem ia se importar
com quatro velhas com um pé na cova?
– Pois é. A arrogância é a burrice com plumas, meu caro. Por
isso, prepare-se, doutor Arrogantus. Agora, utilizaremos esse
seu gigantesco cérebro oco para enviar a sabedoria dos
grandes avatares para todos os outros SPAs de Emagreci-
mento Cerebral.
– A senhoras querem me matar de rir? Como pensam em
fazer isso?
– O senhor está começando a ficar com medo, não é?
– Estou é me segurando para não entrar em curto-circuito de
tanto rir!
– Pois é – argumentou outra das velhinhas – Infelizmente,
ainda não inventaram uma vacina totalmente eficaz contra a
idiotice e a arrogância. Mas, mesmo assim, não custa nada
tentar.
A velhinha espetou o pen drive no computador idiante.
O Dr. Arrogantus pareceu acusar o golpe. As luzes da
gigantesca máquina idiante começaram a piscar de forma
desordenada.
– Maldição! Suas velhas homicidas!
Confesso que quase não escutava mais a conversa deles.
Minha cabeça estremecia e eu dava coices, como um burro
encurralado.
A velhinha da luz azul fez o mesmo com a ponta do seu
guarda-chuva e disse:
– Trago aqui todos os devires dos grandes filósofos. Platão,
Nietzsche, Espinoza, Deleuze, Foucault... Tá tudo aí!
– Malditas velhas taradas! Estão enfiando essas porcarias
pontudas em mim com prazer quase sexual!
O cérebro gigantesco devia estar mesmo vazio de dados
sobre conhecimentos e afetos, porque armazenou com uma
velocidade incrível todos os arquivos.
– Não é possível! Não podemos ser derrotados por quatro
velhas estúpidas que andam de guarda-chuvas abertos debaixo
das marquises em dias de chuva!
A terceira velhinha, a de luz amarela, repetiu o gesto das
outras e disse:
– Calma, que ainda tem mais! Trago toda a arte destruída
pelos idiantes. Música, pintura, poesia, teatro... Tá tudo aí….
Menos a música dos Panacas Cover’claro!
Finalmente, a quarta velhinha, a da luz vermelha, espetou
seu pen drive e disse:
– E, finalmente, trago o programa de reinicialização para a
gente começar tudo de novo.
O cérebro gigantesco começou a balançar e as luzinhas
piscaram alucinadamente. Vários rostos de idiantes famosos
dos quatro cantos de Idiópolis começaram a aparecer na face
do holograma do doutor Arrogantus Maximus. Foram tantos que
não há espaço suficiente nestas memórias para descrevê-los.
Além disso, com certeza, os advogados idiantes iriam me
processar se eu desse nomes aos bois. No meio do caos, um
miniburaco negro formou-se e sugou o doutor Arrogantus
Maximus.
As quatro velhinhas caíram, desacordadas. Entrei em pânico,
porque não sabia qual socorrer primeiro. Sorte minha que a
doutora Sue Cida surgiu não sei de onde e começou a socorrê-
las.
– Ia me suicidar, mas lembrei que hoje é sexta-feira treze!
Sem falar que amanhã tenho uns boletos para pagar – foi a
explicação que ninguém pediu, mas que a Dra. Sue Cida deu
após bocejar.
Depois de ver minhas quatro aliadas recuperadas, fui até a
janela e voltei a cair das nuvens: todos que estavam nas ruas
de Idiópolis voltaram a ser crianças. Idiantes, figurantes ou
mesmo excluintes apagados. Olhei de novo para dentro e vi
que as velhinhas continuavam velhinhas que teimam em andar
com os guarda-chuvas abertos debaixo das marquises em dias
de chuva. Já a Doutora Sue Cida, só podia ser aquela menina
de cinco anos que estava brincando de pular de cima de uma
cadeira para o chão, onde rolava como um cachorro atropelado.
Saímos pelas ruas e só vimos crianças.
As velhinhas me acompanhavam e iam acariciando as
crianças que vinham de todos os lugares. Nos telões da Praça
das Antas, vimos crianças brincando em todo planeta. Idiópolis
inteira viveu um dia onde todas as mentes do planeta vibraram
na mesma sintonia, como num sonho além da mais louca
utopia. A Vontade de Potência estava nos olhos de todas
aquelas crianças. Confesso que mesmo tendo continuado com
corpo de adulto, fui brincar com meus amiguinhos, tá? Me juntei
as velhinhas e curti cada segundo daquele dia em que só havia
alegria, amor e todos os afetos potentes.
Na manhã seguinte, as crianças já haviam revolucionado o
mundo. Todos os SPA’s de Emagrecimento Cerebral foram
transformados em Parques de Diversões. Eu e as velhinhas nos
sentamos nos bancos da Praça das Antas para recuperar o
fôlego daquele momento tão esperado de ausência absoluta da
arrogância e da idiotice dos idiantes. O que a gente não podia
imaginar é que naquele exato momento, no destruído
consultório do finado Doutor Arrogantus Maximus, uma luzinha
amarela começou a piscar, quebrando a escuridão no quartel-
general daqueles que julguei derrotados.

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