Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OS IDIANTES
Como os idiotas-arrogantes
dominaram o mundo
2021
Copyright ©2021 by Poligrafia Editora
Todos os direitos reservados.
Este livro não pode ser reproduzido sem autorização.
OS IDIANTES
Como os idiotas-arrogantes dominaram o mundo
ISBN 978-65-5854-511-8
Poligrafia Editora
www.poligrafiaeditora.com.br
E-mail: poligrafia@poligrafiaeditora.com.br Rua Maceió, 43 –
Cotia – São Paulo Fone: 11 4243-1431 / 11 99159-2673
A editora não se responsabiliza pelo conteúdo da obra, formulada
exclusivamente pelo autor.
“Onde quer que a multidão vá, corra na outra direção. Eles
estão sempre errados. Por séculos estiveram errados e sempre
estarão errados.”
Charles Bukowski
– Meu filho, o mundo está cheio de idiantes – disse meu pai, por
trás do jornal que ele lia tão compenetrado.
– Idiantes, pai? – perguntei, deitado no sofá da sala.
– São os idiotas-arrogantes. Acabei de criar esse neologismo.
Dei uma gargalhada e levantei correndo para anotar no meu
caderninho mais um dos seus momentos iluminados.
Se há uma coisa
que Idiópolis tem aos montes são igrejas. Aliás, templos de todos os
tipos de crença. Se algum alie nígena algum dia aqui pousasse, diria
que este é o planeta mais religioso do universo. Vários cinemas,
teatros, bares e casas de show desapareceram. Em seus lugares,
foram er- guidos templos faraônicos. “Essa gente deve precisar
mesmo de muita oração”, pensaria o extraterrestre. Bom, mas o que
eu quero contar para você é a história do maior casamento realizado
até hoje na grande metrópole. Afinal, você precisa de provas para
se convencer de que agora é um figurante, não é mesmo? Vamos
começar, então, por esse megacasório. Para conseguir entrar, usei
o disfarce de cinegrafista de casamentos e fui contratado para cobrir
o evento. O diretor da empresa Filma Tudo Por Dinheiro foi muito
claro antes que eu e os outros quarenta cinegrafistas
começássemos a filmar o casamento:
– Eu não quero que vocês percam nada, entenderam? Se um
convidado espirrar na igreja, eu quero ver isso no filme. Se, na
recepção, um convidado pegar uma empada eu quero um close e
várias tomadas diferentes da cena. E não importa se a empada
tenha ou não azeitona. Isso eu resolvo na edição. Se o noivo suar,
quero ver cada gota em slow motion! Quero a entrada da noiva em
vários planos diferentes. Vocês compreenderam?
Ninguém teve coragem de dizer nada. Concordamos com simples
gestos de cabeça.
– Ótimo! Estarei o tempo todo de olho em vocês. Podem ir. Ação!
Ação!
Depois daquela palestra contundente de direção cinema-
tográfica, saí com a minha microcâmera 28K de altíssima resolução
na mão e nenhuma ideia na cabeça.
Mesmo assim, saí filmando geral para não levantar suspeitas.
Não perdia nada do casório. A noiva entrou de maneira apoteótica,
horas após o horário previsto. E todos na igreja sorriam sem parar.
Mas o que mais me chamou atenção foi o padre – justamente o fato
de não haver padre. Quando a noiva chegou ao altar, um gigantesco
telão 3D a laser desceu do teto. Todos os convidados colocaram
seus óculos 3D. A música parou e apareceu na tela a imagem de
um velhinho sorridente. A explicação veio de um dos convidados,
que cochichou para sua mulher:
– É que a noiva bateu pé e disse que só se casaria se o Papa
fizesse a celebração.
– Mas é o Papa mesmo, meu bem?
– Vai saber? Eu acho que é mais um daquele programas piratas
de computador que criam clones holográficos de personalidades
famosas.
– Mas é igualzinho, meu bem!
Realmente, tenho que reconhecer que, embora um pouco
duvidosa, aquela imagem de Sua Santidade que estava no telão, ao
vivo e direto do Vaticano, era bem convincente e emocionou a
todos.
O Santo Padre abençoou os noivos e as legendas apareciam
simultaneamente, em arrogota. Meu acrobático diretor corria de um
lado para outro, para ver se estávamos filmando tudo.
Após a cerimônia realizada no templo da Igreja Sua Culpa, Sua
Grande Culpa, os três mil convidados foram para a recepção no
Petulant’s Country Club. Não há palavras para descrever a
decoração impecável da festa. Tudo do bom e do melhor. Ah, os
noivos. Os noivos eram das melhores famílias da cidade-planeta, é
claro. O rapaz, um loiro de quase dois metros de altura, pertencia à
família Pelasacos de Pinto, conhecida pelo enorme sucesso no
ramo de lavagem de roupa, cerebral e de dinheiro. Já a noiva, uma
linda morena de olhos azuis, tinha como pais o abastado prefeito,
Umseteum de Araújo Neto, e sua mulher, Primeira-Dama da Cidade.
Isso mesmo. O nome da primeira-dama era Primeira-Dama da
Cidade. Seus pais escolheram o nome após consultar uma
senadora que era numeróloga nas horas vagas. Realmente, o nome
provou-se profético. Por fim, línguas maliciosas diziam que o alcaide
e sua mulher tinham participação majoritária nos SPAs de
Emagrecimento Cerebral, onde lavavam dinheiro e cérebros. Enfim,
juntando tudo isso, ninguém tinha dúvida de que o amor imortal
explicava o apoteótico casório. Mas voltemos ao Petulant’s Country
Club. Naquele momento, a mãe da noiva conversava animadamente
com a mãe do noivo. Abri a câmera e dei um close nas duas.
– Obrigada, querida, obrigada pelos elogios.
– São sinceros, queridíssima! Que bom gosto! Tudo chi-que-ré-
simo!
A mãe da noiva suspirou, emocionada.
– Você viu as alfaces?
– As alfaces?
– Sim, querida, transgênicas e clonadas. Mandei vir da antiga
Ucrânia.
– Sério?
– Claro! E os chuchus vieram diretamente das Ilhas Maldi- vas,
antes delas afundarem, naturalmente.
– Que luxo! Que luxo!
– Ah, querida... Você acha que eu pouparia esforços pela
felicidade dos nossos filhos?
– Eu sei que não, querida.
– Pois é. A banda que vai tocar daqui a pouco é formada por
monges apagados do antigo Tibete.
– Que tudo!
– Ah! – puxou a amiga e disse baixinho: – O maestro da banda é
um clone do Dalai Lama que teve o cérebro apagado especialmente
para essa festa.
– Sério? É aquele senhor simpático ali que não para de sorrir e
dizer “namastê”?
– Exatamente.
– Nossa, querida! Que es-pe-tá-cu-lo!
– Obrigada... O que a gente não faz por amor, né?
Naquele momento, passaram por elas quatro senhoras
sorridentes, com vestidos estampados e passos firmes. Virei a
minha microcâmera e peguei em close o sorriso enigmático no rosto
daquelas misteriosas senhoras. Usavam óculos escuros, vestidos
estampados e seus inseparáveis guarda-chu- vas. As quatro foram
para o salão, onde dançaram anima- damente ao som da banda dos
monges apagados do antigo Tibete.
Filmei tudo com riqueza de detalhes e, para desespero do meu
diretor, esqueci totalmente as empadinhas! Enquanto isso, as duas
anfitriãs olharam estarrecidas para as velhinhas e se entreolharam,
enojadas. Porém, não comentaram nada. Por dentro, pensavam em
como a outra podia ter coragem de convidar aquelas velhinhas
robustas e pessimamente vestidas para um momento único como
aquele. O silêncio estava ficando constrangedor entre as mães do
noivo e da noiva quando foram salvas por duas outras socialites que
se aproximaram sorridentes.
– Olhem só – começou uma delas – a mãe da noiva e a mãe do
noivo.
– Nossa! As duas mulheres mais chiquerésimas de Idiópolis.
As duas, após um heroico esforço inicial, esticaram a pele e
conseguiram sorrir.
– Obrigada, queridas. Vocês estão lindas também – disse a mãe
do noivo.
– Lindíssimas! Obrigada por terem vindo, queridas.
– Ah! A gente não perderia essa por nada.
– Que bom que vocês estão se divertindo.
– Se estamos... Por falar nisso, vocês nos dão licença? Va- mos
passear por aí, porque esta festa está cheia de milioná- ri... Quero
dizer, gente interessante! – as três sorriram e se afastaram,
deixando as anfitriãs sozinhas mente.
Coitadas – disse a mãe do noivo, suspirando e balançan do a
cabeça.
– Coitadas por que, querida?
– Ai! Você não soube?
– Não! Conta!
– Um dia, eu pedi para o King Arthur, meu motorista dos
sábados, dar uma paradinha com a nossa limusine em frente à
Galeria Trivial.
– E aí?
– Aí que estava chovendo muito e vi essas duas... Sabe onde?
– Onde?
– Entrando numa loja de departamento de calcinhas reci- cláveis.
– Que horror!
– Pois é querida, um horror! Mas deixa isso para lá... Você já viu
os tomates?
– Os tomates também?
– Da antiga Letônia, minha querida. Cultivados com banho
matinal de raios gama.
– Nossa!
Quando a festa acabou, pensei melhor e resolvi dar o fora sem
entregar minha gravação para o meu “vou enfartar daqui a dois
minutos” diretor. Não queria que as velhinhas fossem perseguidas.
No entanto, soube por meio de um colega de filmagem que as
velhinhas haviam pego uma carona na van da banda dos
sorridentes monges apagados do Tibete.
Capítulo III
A POLÍTICA IDIANTE
Idiópolis tem um
Congresso eleito pela maioria idiante e figurante. Existem dois
partidos: o PIT, Partido Idiante Total, que é o da situação, e o PIT do
M, Partido Idiante Total do Mesmo, da situação radical. Mas se você
quer mesmo saber, algumas coisas curiosas acontecem por lá.
Certa vez, na Câmara da Máxima Arrogância (CMA), onde os
eminentes legis- ladores votam os projetos mais importantes para o
povo de Idiópolis, um acontecimento bastante inusitado ocorreu, por
assim dizer. O ambiente solene e formal reforçava a impressão de
que algo inesquecível estava para acontecer. Todos os deputados
da casa, por mais surpreendente que possa pare- cer,
compareceram ao plenário. Nas galerias lotadas, o povo idiante e
figurante gritava palavras de ordem. E é claro que eu estava ali, de
terno, gravata e um ar compenetrado. Ou seja, com o meu disfarce
insuperável: meio figurante, meio idiante. Fiquei o mais próximo
possível da tribuna, pois não queria perder de maneira nenhuma os
discursos que estavam por vir.
Tudo bem que o fato de termos um monte de idiantes decidindo o
futuro da humanidade não era nada assim de tão novo, mas eu
tinha um interesse especial pela pauta daquele dia. Olhei para a
parte superior das galerias e estremeci. Lá estavam elas. Quatro
senhoras de idade avançada que tam- bém usavam disfarces de
figurantes. Não tive nenhuma dú- vida: eram as quatro velhinhas
que teimam em andar com os guarda-chuvas abertos debaixo das
marquises em dias de chuva. Usavam óculos escuros e, mesmo
sem os seus inseparáveis vestidos estampados, eram
inconfundíveis, pelo menos para mim.
Porém, os sorrisos enigmáticos das robustas e excelentes
senhoras passavam despercebidos para os demais. Mesmo assim,
desviei meu olhar, com medo de que algum idiante percebesse. Os
figurantes não me preocupavam, pois, como disse antes,
infelizmente vivem apenas para compor cená- rios, eleger idiantes,
pagar impostos e esperar as recompen- sas da outra vida.
Foi então que um deputado, magérrimo e curvilíneo, subiu à
tribuna. O sujeito suava rios com afluentes, embora o ar-
condicionado da Casa estivesse no máximo.
– Senhor presidente, Vossa Arrogância tem de ser alertado para
o que é realmente importante para Idiópolis. Não podemos deixar
que nada popular fique em segundo plano. É preciso acelerar as
votações dos projetos prioritários e urgentes.
– Concordo. Vossa Arrogância tem cinco minutos para ex- por o
que pensa.
– Desculpe, senhor presidente, mas Vossa Arrogância me ofende
quando pede para eu dizer “o que penso”.
– Perdão. Vossa Arrogância está com a razão. Não houve dolo
da minha parte. Continue, por favor.
– Obrigado, senhor presidente. Quero conclamar a todos desta
Casa para votar o Projeto de Lei das Velhinhas Egoístas.
Precisamos de mecanismos e políticas públicas para combater com
extrema urgência este mal que assola nossas ruas. Quem essas
velhinhas pensam que são? Todo dia de chuva é a mesma coisa:
elas, impávidas e atrevidas, andando com seus guarda-chuvas
abertos debaixo das marquises.
Todos aplaudiram, entusiasmados. O homem
empolgou-se.
– A lei que impede que as velhinhas de Idiópolis andem com os
guarda-chuvas abertos debaixo das marquises em dias de chuva
precisa entrar em vigor já, senhor presidente!
– Não é mais possível a gente ver esse abuso de poder, esse
vilipêndio! Diria mais: é um crime hediondo o que essas senhoras
estão cometendo nas ruas.
– Vossa Arrogância está coberta de razão. A maioria da
população que, com certeza, já esqueceu seu guarda-chuva em
algum lugar e precisa das marquises tem que ficar desviando das
velhinhas e acaba tendo de andar na chuva. Muitos ficam gripados e
quem paga a conta somos nós. Creio que nem precisamos abrir
votação para esse projeto. Teremos, como sempre, a unanimidade
desta Casa 100% idiante.
– Obrigado. Vossa Arrogância realmente é um homem do povo.
Um dos grandes nomes do nosso tempo idiante.
– Vossa Arrogância está quase exagerando um pouquinho.
– Não! Ninguém pode esquecer que foi Vossa Arrogância que
criou a lei que mudou a cor da tinta de azul para preto no prazo de
validade dos iogurtes de baunilha diet!
– Obrigado, mas não foi uma obra só minha, e sim de centenas
de idiantes.
– Não seja modesto! É preciso dizer que é uma honra ter Vossa
Arrogância como presidente desta Casa!
– Vossa Arrogância é muito gentil e ajudou muito na aprovação
da mudança dos rótulos. Vale lembrar que em apenas 281 sessões
conseguimos votar o projeto.
– É verdade! Por isso vou agora me encontrar com o nosso líder
no Senado para aprovar logo a Lei das Velhinhas Egoístas lá.
– Claro! Isso é extremamente urgente! Fale com o líder do PIT do
M também.
– Com certeza. O pessoal do PIT do M quer derrubar to- das as
marquises de Idiópolis para resolver o problema das velhinhas.
– É brilhante, mas não é preciso tanto. Basta puni-las com o rigor
da lei.
– Concordo 100% com Vossa Arrogância.
– Fique tranquilo, senhor presidente. Essas velhinhas infames
vão pagar caro por não seguir a nova ordem do “não-
-pensar, não-fazer”. Por isso, devemos criar um novo imposto
para acelerar a construção de mais SPAs de Emagrecimento
Cerebral.
– Excelente ideia! Todos precisam dar sua cota de sacrifício para
o bem de Idiópolis.
– Nada que um aumento de 25,33% sobre a aposentadoria das
velhinhas não resolva.
– Por que os 0,33?
– Fica um número mais técnico, Vossa Arrogância.
– Perfeito! Se elas querem andar com os guarda-chuvas abertos
debaixo das marquises em dias de chuva, que pa- guem mais por
isso!
– Exatamente! Mesmo que elas parem de andar com os guarda-
chuvas abertos debaixo das marquises em dia de chuva, devem
pagar por todos esses anos que fizeram isso impunemente!
– E para os dias de sol?
– Hummm... Vamos criar uma emenda na próxima sessão
extraordinária.
– Projeto aprovado, não é, pessoal?
– Sim! Sim! Sim! – gritaram todos os deputados do plenário ao
mesmo tempo. As galerias explodiram em aplausos e todos
cantaram o Hino da Internacional Idiantista com olhos marejados.
Enquanto também aplaudia, percebi que as ve- lhinhas haviam
desaparecido sorrateiramente mais uma vez.
Capítulo IV
O SEQUESTRO
Se os idiantes achavam que a filosofia do “não-pensar, não-fazer”
traria menos problemas para o mundo, precisavam ter visto o que
eu vi. Certa vez, cheguei em casa e escutei um estranho diálogo na
varanda do apartamento vizinho.
– Cabeção, não me venha com essa de diminuir o resgate.
– Me dá um uísque duplo!
Marco Antônio bebeu um grande gole e fixou o copo com um
olhar perdido. Foi então que outro homem entrou em cena.
– Marcão! Fala, amigão! Você por aqui?
Marco virou-se espantado, mas logo tentou sorrir. Um ho-
mem de cerca de 45 anos, alto, elegantemente vestido,
chegava todo sorridente.
– Oi, Lorpa...
Lorpa franziu as sobrancelhas.
– Que cara é essa, Marcão? Aconteceu alguma coisa?
– Aconteceu. Ganhei a concorrência da construção do novo
Fórum de Idiópolis...
– Poxa, cara! Parabéns!
– Obrigado...
– Mas que cara é essa, amigão? Você devia estar dando
pulos de alegria!
Marco continuava com aquele olhar perdido, procurando
respostas no fundo do copo.
– Talvez... Mas aconteceu uma coisa terrível, Lorpa.
– Fala, cara! Tô ficando preocupado.
– É minha mulher...
Lorpa empalideceu. Pegou um copo de uísque também.
– O que tem a Cleópatra? Não vai me dizer que... Não... A
Cleópatra não faria isso.
– Faria não, ela faz!
– O que, Marco? Fala logo, cara. Eu sou seu amigo.
Desabafa, vai... Ela está te traindo, né?
Marco Antônio continuava com o olhar fixo na bebida. Aquele
líquido amarelo, caro e envelhecido lembrava algo que o
irritava.
– Não é nada disso, Lorpa...
Lorpa aproximou-se e falou bem baixinho, quase dentro do
ouvido de Marco.
– Pode se abrir comigo, cara. Você não é o primeiro a ser
traído... A minha mulher, a Pascácia...
– Porra, Lorpa! Não é nada disso! – Marco interrompeu
bruscamente. – Não é isso.
– O que é, então?
– Eu descobri, cara... Não posso acreditar!
– Fala logo!
– Ela... Faz cocô... A minha mulher caga! É isso!
Lorpa deixou o copo cair no chão. O barman olhou assustado
para a dupla. Mas logo tudo voltou ao normal, menos as feições
de Lorpa.
– Você tá de sacanagem?!
– É sério! Cheguei em casa e ela estava no banheiro...
– E daí?
– Daí que ela me disse em alto e bom som que estava fa-
zendo cocô.
– Isso é impossível!
– Sério! Minha mulher faz cocô! Aquela gostosa que todos da
praia queriam e eu conquistei! Aquela gata que tinha a bunda
mais desejada da praia... Deus do céu! Aquela deusa caga,
Lorpa, caga!
– Eu não posso acreditar nisso, Marco! Só pode ser
brincadeira!
– Brincadeira? Não tem graça nenhuma! E você não sabe o
pior...
– O que foi?
– Fede! O cocô dela fede!
– Jura? Não é possível! Aquela bundinha linda... Isso é
impossível!
Marco franziu o cenho.
– Veja lá como fala da minha mulher, Lorpa...
– Desculpe, cara. Mas você sabe que ela era a mais bonita
da turma da praia.
Marco suspirou estarrecido, pálido.
– Sei... Mas eu não sabia! Eu sempre achei que mulher
bonita não... Você entende, né?
– Claro! É terrível saber disso. A gente sempre acha que
nunca vai ver uma cena dessas.
– Pois é! A minha mulher, aquele avião, fazendo cocô.
Cocô, cara! O mais patético dos momentos humanos.
– Merda!
– Literalmente!
– Calma, Marcão. Veja o lado bom da coisa. O momento do
cocô é o nosso contato diário com a humildade.
– Bela filosofia... Mas é porque você não viu, Lorpa! E nem
sentiu...
Lorpa insistiu, penalizado.
– Calma, amigão! De repente foi apenas uma indisposição...
– Que indisposição, o quê? Ela é naturalista! Só come salada
e peixe.
Lorpa deu um sorriso triunfal.
– Então? Só pode ter sido o peixe! A culpa é do peixe!
Marco bebeu mais um grande gole. Suas feições estavam
distorcidas e marcadas pelos traços sóbrios da decepção.
– Não sei, não...
– Sabe o que eu acho, Lorpa?
– Desabafa, cara, desabafa... Sei o que você está sentindo!
Isso é uma traição! E das fétidas!
– Pois é! No tempo de namoro, isso não acontecia. Acho que
ela foi desonesta comigo. Se eu soubesse...
– Fica frio, cara. Você supera esse momento. Lembre-se de
que ela é uma excluinte, né?
– Tem isso também! Talvez ela deva ir para um SPA de
Emagrecimento Cerebral ou então que se mudem as leis do
casamento.
– Eu sou advogado, cara, você sabe como as leis me
interessam.
– Acho que o casamento não deveria ser com separação de
bens, mas sim com separação de banheiros... É isso! Vou
começar a pedir para os arquitetos de Idiópolis criarem suítes
com dois banheiros. Vai vender pra caramba! Com certeza, os
excluintes nunca pensaram nisso!
– Mesmo que tenham pensado, estamos ricos! – os olhos de
Lorpa brilhavam com uma clarividência futurística. – Quero ser
seu sócio nesta empreitada.
– Claro, Lorpa, claro. Mas, antes, preciso me mudar! Pre-
ciso de uma suíte com dois banheiros para hoje ou não volto
para casa.
– Calma, meu amigo.Vai ver que, a essa hora, sua mulher já
está toda cheirosinha, te esperando.
Marco Antônio balançou a cabeça negativamente.
– Não adianta, Lorpa. Eu nunca mais vou esquecer. Aquele
cheiro! Quando eu olhar para ela, vou lembrar. Mesmo que ela
esteja usando o mais maravilhoso dos perfumes.
Lorpa suspirou e bebeu todo o uísque que restava no copo.
– É... Difícil esquecer... Mas acho que você supera essa.
– Ou a gente separa os banheiros ou se separa. Agora que
sei da verdade, preciso tentar esquecê-la...
– Tragédia, cara! Tragédia! – Lorpa olhou para o relógio.
– Bem... Preciso ir. A gente se vê depois para combinar o
negócio, tá? – Lorpa esfregou as mãos. – Suítes com dois
banheiros! Essa é a saída! – disse, eufórico.
– Tudo bem. Já tenho o projeto todo na cabeça.
– Ótimo! Um abração e olha: vai com calma em casa, tá?
– Pode deixar. Só vou beber mais um aqui e... (Último ato:
casa/quarto de casal)
Marco entra em cena com passos cambaleantes e trôpe-
gos. Vê Cleópatra deitada na cama sobre lindos lençóis de
seda, lendo um livro. Ela está com os cabelos soltos e veste
uma linda camisola branca.
– Amor, o que houve? Você está todo molhado! – pergunta
ela, apreensiva, com o rosto ainda úmido pela cascata de
lágrimas que tinha derramado por ele. Havia, naquelas
lágrimas, toda a acidez do passado imutável.
Marco voltou-se para ela e falou, com voz pastosa:
– Nada... Comi muito petisco no bar. Tô com dor de barriga...
Cleópatra sorriu estranhamente e disse, suavemente:
– Quando sair do banheiro não se esqueça de dar a
descarga, amor. Você sempre esquece...
(Cai o pano.)
– Já?
A mulher sorriu, quase que piedosa.
– O senhor pensou que fossem tantos assim? Encolhi os
ombros.