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Junguiana

v.40-3, p.171-186

#automutilação: a expressão simbólica da


autolesão não suicida

Felipe Moreira Borges Nascimento Fabbrini*


Ivelise Fortim**

Resumo Palavras-chave
A autolesão não suicida (ALNS) é um tos e necessidade de manutenção de uma perso- Autolesão,
fenômeno de relevância crescente com altas na funcional no cotidiano. Assim, a comunidade automutilação,
taxas de prevalência em adolescentes e jovens emerge como meio de expressão dos aspectos ALNS, redes
sociais,
adultos. Como método, foi realizada etnografia relegados à sombra no mundo offline. ■
psicologia
virtual em comunidade de autolesão no Face- analítica.
book de modo a ampliar a compreensão dos
aspectos simbólicos relacionados à prática. Em
fevereiro de 2021, 133 publicações foram cole-
tadas e divididas em três categorias de análise:
autolesão, sofrimento e religião. A autolesão é
compreendida como similar ao comportamento
compulsivo por meio do qual praticantes buscam
uma experiência de transcendência ainda que às
custas de dor. Assemelha-se a uma dependência
comportamental. O sofrimento descrito apon-
ta processos depressivos e se caracteriza por
solidão, dificuldade de expressão de sentimen-

* Psicólogo Clínico pela Pontifícia Universidade Católica de


São Paulo (PUC/SP). Aprimorando da Clínica Ana Maria
Poppovic. e-mail: felipembnf@hotmail.com
** Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora do curso de
Psicologia da PUC-SP. e-mail: ifcampos@pucsp.br

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#automutilação: a expressão simbólica da autolesão não suicida

Introdução maiores taxas de tentativas de suicídio que os


A autolesão não suicida (ALNS) pode ser homens (BRASIL, 2021). Outra possível expli-
entendida como a destruição intencional do cação é a equiparação do fenômeno ao cutting
próprio tecido corporal sem intenção suicida e – método de autolesão que consiste em infligir
com propósitos não sancionados socialmente danos teciduais através de cortes na pele – vis-
em cinco ou mais dias ao longo do último ano to que as mulheres se cortam com mais frequ-
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). ência enquanto os homens são mais propensos
Métodos mais comuns incluem cortes na pele, a se baterem ou se queimarem (FITZGERALD;
arranhões, mordidas e queimaduras, além de CURTIS, 2017; VICTOR et al., 2018).
eventos como bater partes do corpo contra pa- Apoiados em estudos da última década,
redes e enfiar objetos pontiagudos em si mes- Klonsky et al. (2014) ressaltam que a ALNS apre-
mo (FONSECA et al., 2018; VICTOR et al., 2018). senta correlação ainda mais forte com o suicí-
Maior variedade de métodos empregados está dio do que outros fatores já estabelecidos pela
positivamente associada a maior severidade na literatura, como ansiedade, depressão, impul-
autolesão (AMMERMAN et al., 2020). sividade, transtorno de personalidade borderli-
A ALNS apresenta maiores taxas em adoles- ne e histórico de tentativas – o que coloca esse
centes e jovens adultos e se inicia tipicamente comportamento como um fator de risco especial-
entre os 14 e os 15 anos de idade (GANDHI et mente importante para futuro suicídio. Segundo
al., 2018). Segundo Plener et al. (2018), em sua Andover et al. (2017), poucos tratamentos espe-
revisão sistemática, a prevalência de autolesão cíficos para a ALNS que não estejam atrelados ao
em amostras de escolas ao redor do mundo é diagnóstico do transtorno de personalidade bor-
de aproximadamente 17%, enquanto apenas derline foram desenvolvidos até o momento e a
5,5% dos adultos mais velhos relatam histó- sua eficácia em pacientes não borderline ainda
ricos de ALNS, dado que sugere o progressivo é limitada. Nesse sentido, devido às peculiarida-
crescimento do fenômeno nas últimas déca- des próprias do fenômeno e de sua gravidade,
das. Em 2020, durante os primeiros meses da o DSM-5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION,
pandemia do COVID-19 no Brasil, os números 2013) classificou a ALNS como uma dimensão
são ainda maiores: em uma amostra de 4.797 diagnóstica independente e adicionou-a à ses-
adultos, um em cada 10 reportou episódios de são III, na categoria de transtornos que necessi-
autolesão (FARO et al., 2021). tam de mais pesquisas e revisão de seus crité-
Embora o fenômeno da autolesão seja tipi- rios diagnósticos.
camente associado ao sexo feminino (FITZGE-
RALD; CURTIS, 2017; FONSECA et al., 2018; PLE- Expressão simbólica da autolesão
NER et al., 2018), Klonsky et al. (2014) ressaltam A autolesão pode ser compreendida como
estudos que apontam taxas equivalentes entre um fenômeno psicossomático. De acordo com
homens e mulheres. Tal atribuição da autole- Ramos (2006), os sintomas que se expressam
são ao feminino pode se dever à ausência nas através do corpo podem ser entendidos como
pesquisas de critérios de diferenciação entre símbolos que permitem atingir as camadas or-
a ALNS e a autolesão praticada com intento gânicas profundas inacessíveis à consciência.
suicida, uma vez que as mulheres apresentam A autora destaca que o “sintoma orgânico pode

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corresponder a uma cisão na representação de sociedade ocidental, o autor ressalta a necessi-


um complexo/arquétipo em que a parte abs- dade de se chapinhar no esterco de tempos em
trata/psíquica ficou reprimida” (RAMOS, 2006, tempos com vista à assimilação do sofrimento.
p. 78). Desse modo, a conscientização da pola- Desse modo, os estados sombrios podem ser
ridade abstrata do complexo resulta, portanto, entendidos como chamados de individuação
em uma diminuição da expressividade patoló- para a integração de conteúdos inconscientes
gica orgânica. No entanto, na medida em que o e a retomada do desenvolvimento psicológico.
conflito permanecer inconsciente, os sintomas Caso o indivíduo não consiga enfrentar tal tarefa
poderão se repetir de forma compulsiva. de compreensão do significado, poderá perma-
Nessa linha, Rothenberg (2004) argumenta necer preso a um estado de grande sofrimento.
que o aparecimento de sintomas físicos decorre Já Sternudd (2010) propõe que o aspecto vi-
de um impulso de realização da psique no senti- sual é crucial para muitos praticantes de autole-
do de expressar simbolicamente conteúdos que são justamente por transformar algo indizível em
permanecem inconscientes. Assim, aquilo que algo concreto. Assim, se a as lesões consistem
não é diretamente conscientizado se manifesta em uma representação visível de sentimentos
de forma fisiológica e, desse modo, o corpo auxi- ruins, compreende-se que o próprio processo de
lia o ego a carregar os conteúdos que não podem cicatrização possa servir de gatilho para a práti-
ser tão facilmente absorvidos. Embora as feridas ca de autolesão, visto que a perda das cicatrizes
sejam frequentemente experienciadas de forma também pode acarretar uma perda do senso de
repulsiva em virtude de sentimentos de vergo- identidade (STERNUDD, 2012).
nha, nojo ou dor, a autora destaca que a ferida Especificamente com relação ao fenômeno
também encerra em si algo de grande valor, pois do cutting, Sternudd (2014) apresenta outras
nelas reside um enorme potencial de transfor- hipóteses. Em oposição às formas curvas – li-
mação: uma joia indispensável para o desenvol- gadas aos conceitos de caos, eros e feminilida-
vimento psicológico. de – das regiões do corpo cortadas, os traços
Sintomas físicos, em seu sentido mais posi- retos simbolizam princípios de ordem, logos e
tivo e metafórico, são como joias no corpo espe- masculinidade. Assim, a demarcação de cortes
rando serem descobertas. Eles criam um ímpeto paralelos na pele poderia ser interpretada justa-
no paciente para realizar o trabalho interno e tra- mente como uma tentativa de contenção de sen-
zem consigo o ponto central para a cura. O sinto- timentos caóticos por meio da remodelação do
ma corporal serve a um propósito bem definido corpo com uma expressão formal de ordem. Já a
nesse ponto, levando o indivíduo à fonte da do- formação de queloides decorrentes do repetido
ença ou da desordem que a criou e, consequen- engajamento no cutting corresponderia literal
temente, à cura (ROTHENBERG, 2004, p. 19). e simbolicamente a uma “segunda pele” com
Do mesmo modo, Hollis (1998) entende que a finalidade de conferir proteção ao indivíduo
os sintomas expressam um desejo de cura. O (STERNUDD, 2010).
trabalho psicológico não consistiria, portanto, A partir de relatos de praticantes de autole-
no fortalecimento da repressão ou na tentativa são, Sternudd (2014) destaca a importância do
de eliminação dos sintomas, mas na busca do impacto visual do sangue como forma de exterio-
seu sentido e de sua compreensão. O sofrimen- rização da dor de modo a torná-la visível, como
to é um requisito necessário para o amadureci- se pode perceber através da fala de um entre-
mento psicológico e são justamente os estados vistado: “a autolesão apenas faz com que a dor
mais sombrios que fornecem o contexto para a vire exterior, para que eu possa vê-la e saber o
estimulação e obtenção do significado. Assim, que está me machucando”. Também foi possível
a despeito dos ideais de felicidade irrestrita da identificar o sangue como um veículo que trans-

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porta tal experiência de sofrimento para fora acontece” (ARCOVERDE, 2013, p. 48) e “Estou a
do corpo, uma vez que a visão do sangue pin- sentir tudo de novo, estava limpa há tanto tem-
gando fez com que um entrevistado sentisse o po” (SILVA, BOTTI, 2018, p. 111), indicam que a
estresse correndo para fora de si através de seu prática autolesiva é frequentemente expressa
sangue. Baseado em estudos alquímicos, Jung como um comportamento compulsivo. Nota-se
destaca a simbologia do sangue como meio de que as palavras “vício”, “recaída” e “limpa” uti-
união do corpo com a alma, como substância ca- lizadas pelos praticantes são expressões que se
paz de devolver a vida ao corpo “morto” (JUNG, referem tipicamente ao fenômeno de dependên-
1990). Nesse sentido, também foram frequentes cia de drogas. A semelhança se dá especialmen-
as declarações de praticantes que se referem te com o transtorno de escoriação, caracterizado
à autolesão como a única coisa capaz de fazê- pelo ato de beliscar, friccionar ou arranhar a pele
-los sentirem vida, como por exemplo o relato de forma recorrente resultando em lesões (APA,
de um entrevistado: “o sangue jorra e então eu 2013). Esse transtorno segue, pelo menos de
sei que sou real. Não uma boneca que se move forma parcial, os ciclos de tensão prévia, prazer,
rigidamente. Então eu sou um ser vivo, com san- gratificação e alívio, culpa, autocensura, esca-
gue nas veias. [...] Nós somos reais, não falsos” pismo, fissura, tolerância (OLIVEIRA, 2018), que
(STERNUDD, 2014, p. 22). são característicos de dependências.
Pimentel (2019) destaca a importância da Zoja (1992) entende o fenômeno de depen-
pele como órgão que proporciona contorno ao dência de drogas como resultado da ausência
indivíduo, simultaneamente expondo-o e prote- de rituais de iniciação na sociedade contem-
gendo-o, estabelecendo limites entre mundo in- porânea. Para o autor, a ausência de ritos res-
terno e mundo externo. Simbolicamente, a pele ponsáveis por conferir sentido e demarcar a
cumpre a função de ponte entre corpo e psique. passagem do jovem ao mundo adulto obstacu-
No entanto, devido a dificuldades na relação liza o renascimento do espírito. Assim, em uma
primal, a autora destaca que indivíduos que cultura marcada pela ausência de instituições
promovem modificações corporais extremas ou capazes de promover iniciações e pela sacra-
praticam autolesão permanecem em um estado lização do consumo, o uso de drogas emerge
de indiferenciação entre corpo e psique. Nesse como uma das poucas alternativas de trans-
sentido, qualquer tentativa de elaboração sim- cendência. No entanto, para aqueles que vi-
bólica precisa acontecer via corpo e a expressão venciam uma condição de profunda carência de
do conflito deixa de ser simbólica para se tornar significado, a necessidade de transcendência
concreta. Consequentemente, a libido perde sua atua de forma inconsciente e destrutiva. Desse
função transformadora e fica aprisionada na modo, personifica-se no dependente a imagem
compulsão à repetição. arquetípica do herói negativo como forma de
Outra importante expressão da autolesão obtenção de identidade e papéis definidos na
descrita na literatura diz respeito à prática au- sociedade, ainda que tal condição seja nega-
tolesiva como semelhante a um comportamento tivamente avaliada pela cultura e resulte em
de dependência. A partir de estudos em comu- comportamentos autodestrutivos.
nidades virtuais, percebe-se que depoimentos Embora ressalte a impossibilidade de se
de praticantes de autolesão, como “É uma luta uniformizar todos os diferentes quadros de de-
para eu não fazer isso, mas já se tornou um ví- pendência e considerá-los equivalentes, Oliveira
cio” (ARCOVERDE, 2013, p. 48), “Tem uns três (2004) ressalta que há importantes similarida-
dias que estou me segurando para não ter uma des entre o fenômeno de dependência de drogas
recaída, mas está difícil, só penso nisso, e sei e as ditas dependências comportamentais. Para
que eventualmente não vou resistir... sempre a autora, impulsividade, busca por sensações

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fortes, culpa pelos excessos, depressão, desor- Foram lidas todas as publicações do grupo no
ganização da vida familiar e queda no desempe- mês de fevereiro de 2021. Postagens sem qual-
nho no trabalho são traços comuns aos diversos quer vinculação com a temática da autolesão,
quadros. Nas dependências, Oliveira (2004) ar- como spams de vagas de emprego e tentativas
gumenta que há uma estagnação do processo de de phishing, foram excluídas da análise. As pu-
individuação, uma vez que a repetição do com- blicações e seus respectivos comentários foram
portamento decorre de uma dificuldade de ela- arquivados através de capturas de tela. Também
boração que mantém o indivíduo indiferenciado, foram feitas notas de campo acerca das práticas
alienado de si mesmo. comunicacionais e das interações estabelecidas
Enquanto praticam o comportamento a que no grupo. A observação se deu de forma anôni-
se dedicam, perdem o controle, identificam-se ma e não foram estabelecidas interações entre
com o arquétipo do herói, sem pensar nas con- participantes do grupo e pesquisador.
sequências de seus atos. Aparece a dificuldade A coleta de dados resultou em 133 publica-
em aceitar limites, em sacrificar e escolher. As- ções selecionadas. As publicações, que incluem
sim como o farmacodependente, querem tudo, textos, imagens e/ou vídeos, foram identificadas
já, aqui e agora. Possuídos por esses complexos, como Pn, sendo “n” a enumeração respectiva à
parece difícil aceitar a condição humana de in- ordem da coleta. Já os respectivos comentá-
completude e suportar privações (p. 119). rios foram identificados como PnCx, sendo “x”
correspondente à ordem dos comentários em
Método cada publicação.
Foi realizado estudo do grupo “automutila- Os conteúdos selecionados foram distribu-
ção” na rede social Facebook de modo a compre- ídos em categorias de análise de acordo com
ender como a ALNS é tratada nessa comunidade suas características e analisados a partir do re-
virtual. O trabalho foi desenvolvido por meio da ferencial teórico da psicologia analítica. A aná-
Etnografia virtual. Tal método consiste na utili- lise temática foi dividida em três etapas: um
zação de meios de comunicação online para se momento inicial de identificação de temas ou tó-
ampliar a compreensão acerca da representação picos que apareceram de maneira recorrente nos
etnográfica de um fenômeno na internet através dados, sendo comparados por similaridades e
de conjuntos de dados holísticos, que abrangem diferenças. Depois foram estabelecidas catego-
cultura, contexto, narrativas e perspectivas inter- rias centrais. As categorias foram revisadas pela
nas aliadas à rigorosa ética da etnografia tradi- orientadora da pesquisa, sendo que as poucas
cional (JENSEN et al., 2022). Justifica-se a esco- divergências foram discutidas em conjunto até
lha pelo Facebook por este ser uma plataforma se chegar a uma percepção convergente. Foram
que proporciona às pessoas agruparem-se em estabelecidas três categorias centrais: autole-
comunidades, que são de livre acesso a qual- são, sofrimento e religião. A categoria autolesão
quer participante. Já o grupo foi encontrado por refere-se às postagens diretamente relaciona-
meio de pesquisa conduzida na barra de busca das à ALNS e abarca tanto a publicação de ima-
do Facebook a partir dos termos “autolesão” e gens e vídeos com comportamento de autolesão
“automutilação” e foi selecionado a partir de quanto comentários e descrições processuais do
quatro critérios: (i) grupo de nacionalidade bra- comportamento autolesivo.
sileira e de língua portuguesa; (ii) grupo público A categoria sofrimento inclui postagens nas
e visível; (iii) grupo ativo e com maior número de quais os usuários descrevem sentimentos dolo-
participantes e postagens diárias; (iv) grupo que rosos e desabafam, mas que não estão direta-
propõe o objetivo de fornecer um espaço de re- mente relacionados à prática autolesiva. Por fim,
flexão e de apoio aos praticantes de autolesão. a categoria religião inclui publicações e comen-

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tários que se propõem a apoiar os membros do E eu não consigo controlar a vontade de fazer
grupo a partir de argumentos de cunho religioso isso” (P75C4), “Faz muito tempo que não me
católico e evangélico. corto, mas não tô aguentando mais, a vontade
de me cortar é maior do que posso suportar”
Resultados e discussão (P75C12) e “Eu prometi pra meu namorado que
não ia mais fazer isso [emoticon triste] so que
Autolesão não resisti a dor da minha alma é insuportável e
A partir da análise das publicações do grupo, só assim pra eu me sentir melhor” (P75C23) (sic)
foi possível identificar que os membros descre- são extremamente frequentes. Nesse sentido, os
vem a prática autolesiva como forma de concre- membros do grupo reconhecem o desafio que é
tização de um sofrimento emocional, como ilus- permanecer “livre” de autolesão e celebram as
tram os depoimentos: “Ainda dói e está inchado, conquistas dos demais, como em uma publica-
mas garanto que dói menos que a alma aflita” ção na qual o usuário foi parabenizado ao pos-
(P65C50), “As marcas em meus braços contam tar “Uma semana que não me corto” (P4) ou em
minha história, revelam os meus traumas...” comentários como “dois anos sem me mutilar
(P92) e “tenho essas (cicatrizes) e mais as cica- [emoticon de coração]” (P66C13) junto a uma
trizes internas q não se curam” (P65C132). Tam- foto de um braço livre de lesões. Por outro lado,
bém puderam ser observadas descrições da au- nem todos conseguem sustentar essa condição:
tolesão como um importante meio de regulação “eu consegui parar, mas tenho recaídas ainda”
afetiva, como revelam os comentários “Quando (P65C20).
eu me corto fica tudo bem com tudo o que eu sin- Assim, percebe-se no grupo que a autolesão
to” (P12C4) e “Eu também fazia isso pra tentar é caracterizada como uma compulsão. Há uma
amenisar a dor, mais com o tempo persebi que clara sensação de impotência frente aos impul-
isso n adiantaria. Não fassa isso minha linda” sos autodestrutivos e o alívio e bem-estar pro-
(P64C26) (sic). movidos pela prática são passageiros e invaria-
Assim, apesar do alívio imediato propiciado velmente sucedidos por um retorno à condição
pelos cortes, muitos membros da comunidade de sofrimento, capaz de provocar cortes ainda
apontam a ineficiência da estratégia a longo pra- mais profundos. Os marcos temporais livres de
zo: “[...] eu confesso, quando vc ta la se cortando lesões são celebrados e o retorno à prática auto-
é uma sensação maravilhosa, mas depois que lesiva é descrita como “recaída”. Nesse sentido,
vc para, viu que n adiantou em nd, e ver cada o grupo caracteriza a autolesão como um com-
corte e fica se perguntando: pq eu fiz isso? [...]” portamento de dependência, análogo ao do uso
(P55C26) (sic); “Sei muito bem como é, um alívio de drogas.
que a gente sente, mas o pior vem depois [emo- Como destaca Zoja (1992), a dependência de
ticons tristes]” (P74C6). Percebe-se que o bem- drogas é fruto da ausência de rituais de iniciação
-estar é efêmero e o sofrimento pode retornar de na sociedade contemporânea. Atualmente, des-
forma ainda mais intensa, o que contribui para o de o momento de sua concepção, o indivíduo se
aprofundamento das lesões, conforme ressalta o vê lançado ao acaso em uma determinada cul-
comentário: “acho que VC entende, quando se tura e sociedade que não lhe inspiram nenhum
começa n passam de arranhões e depois come- respeito sacral. Consequentemente, não há
çam a virar rasgos e VC nem percebe” (P12C14). mais uma trabalhosa passagem à cultura a ser
Também foi possível constatar que vários ritualizada responsável por conferir sentido e
membros da comunidade descrevem a autole- demarcar as transformações que acompanham o
são como um comportamento compulsivo. Co- desenvolvimento do indivíduo. No caso dos jo-
mentários como “Sei como eh, é muito difícil! vens, para que a transformação seja de fato sig-

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nificativa, é preciso ritualizar a morte da criança a transformação almejada pelo dependente está
para que o adulto possa, enfim, nascer. Nesse fadada ao fracasso, pois subverte a lógica: ao
sentido, identifica-se nos ritos de iniciação o consumir a substância, o indivíduo experiencia
tema arquetípico Morte-Renascimento. um contato com o sagrado que lhe fornece uma
breve vivência de renascimento. Tão logo os efei-
[...] De um modo geral, a sociedade de tos cessam, o indivíduo retorna à sua profana
hoje já quase não tem condições de ofe- condição de sofrimento que, no limite, pode pro-
recer iniciações institucionais. Tais inicia- vocar sua morte literal caso não volte a consumir
ções exigiriam ao mesmo tempo mestres a substância.
e estruturas formadas durante um longo A descrição da autolesão pelos participantes
tempo e dentro de toda uma cultura parti- assemelha-se a uma dependência comporta-
cipante. A iniciação pressupõe que o mero mental, tal como a descrita por Oliveira (2018)
nascimento ponha o homem no mundo sobre o transtorno de escoriação. Os membros
em condições insatisfatórias, sem valores da comunidade descrevem experiências seme-
ou transcendência, ou antes numa condi- lhantes, como se pode observar em: “Me corto
ção apenas vegetativa. O acesso a uma pra me sentir ‘VIVA’ [emoticons de coração parti-
condição superior é obtido com uma mor- do e choro]” (P4C1). Mais do que simplesmente
te e uma regeneração simbólica e rituais euforia e bem-estar, a autolesão pode fazer com
(ZOJA, 1992, p. 21). que os praticantes enfim sintam vida, ainda que
por breves instantes, ainda que às custas de
A cultura ocidental, entretanto, não apenas dor. A exemplo dos achados de Pimentel (2019),
carece de rituais de iniciação, como também percebe-se que a pele e o corpo originais se re-
exalta sobremaneira valores da positividade, velam insuficientes para indivíduos que se auto-
materialidade e consumo ao passo que nivela as lesionam: há uma clara necessidade de se usar
diferenças subjetivas. Zoja destaca que tal con- o corpo para sentir vida e o sacrifício necessário
texto favorece a emergência de uma necessida- para o renascimento não consegue se realizar
de arquetípica de transcender o próprio estado no campo simbólico, o que demanda o sacrifício
a qualquer preço, mesmo às custas de meios concreto do corpo.
danosos para a saúde física. Assim, principal- Rejeitado pela cultura, o elemento psicoló-
mente dentre os indivíduos que sofrem com uma gico arquetípico da transcendência propiciada
condição carente de significado, personifica-se a pelos antigos rituais de iniciação retorna, nes-
figura do herói negativo como uma tentativa in- ses casos de autolesão, de forma inconsciente e
consciente de conseguir uma identidade e papel destrutiva. Atualmente, a necessidade de trans-
definidos ainda que negativamente pelos valo- cendência se manifesta principalmente através
res correntes, como seria o caso dos dependen- de fenômenos de grupo nos quais indivíduos
tes químicos. com conflitos semelhantes se unem de modo a
O dependente, no entanto, não consegue criar não apenas um espírito comunitário como
transcender sua situação e se vê preso em um ci- também aquele necessário clima de grupo mís-
clo vicioso. Na dependência há uma estagnação tico que exalta e reforça reciprocamente a ten-
do processo de desenvolvimento, pois trata-se tativa de cada um, como aponta Zoja (1992). Em
da repetição de um comportamento em que não consonância com Pimentel (2019), as lesões no
há elaboração, apenas anestesiamento (OLIVEI- corpo parecem emergir como formas de compar-
RA, 2004). Se as etapas clássicas dos bem-su- tilhar com o outro aquilo que não se consegue
cedidos rituais de iniciação consistem em situ- suportar sozinho: o sofrimento psíquico parece
ação a ser transcendida, morte e renascimento, ser tão grande que o indivíduo precisa dividi-lo

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com o coletivo para suportá-lo. Entretanto, en- na-se inevitável. Assim, mais cedo ou mais tar-
quanto não for elaborada e integrada, a neces- de somos obrigados a abandonar a fantasia de
sidade de transcendência, de vivência da tota- que há um Outro mágico que irá nos salvar do
lidade, permanecerá na sombra e assombrará isolamento existencial.
o indivíduo com os sintomas do excesso ou da A solidão é ameaçadora precisamente por-
dependência (OLIVEIRA, 2004). que é uma condição irremediavelmente humana.
Nem mesmo o mais funcional dos relacionamen-
Sofrimento tos poderia restaurar plenamente o senso de
Foi possível identificar três importantes as- participação mística da vida uterina, a conexão
pectos do sofrimento compartilhado pelos mem- original rompida com o nascimento e que tanto
bros do grupo: solidão, depressão e trauma. A buscamos nos outros. Nesse sentido, Hollis ar-
solidão é uma temática que grita na comunida- gumenta que o amadurecimento do ser humano
de. O sentimento de desamparo e de não ter com depende diretamente de sua capacidade de fa-
quem contar foi amplamente compartilhado no zer escolhas, de deixar de culpar os outros ou es-
grupo, seja através de relatos pessoais, poemas perar que eles venham salvá-lo, e de reconhecer
ou músicas sobre o tema. Frequentemente, a a dor da solidão por mais que esteja envolvido
dor da solidão aparece diretamente vinculada em papéis sociais e relacionamentos.
a desilusões amorosas, como se pode perceber Assim, o autor aponta que mesmo a avassa-
no comentário “pq nenhuma menina me quer” ladora solidão encerra algo de enorme valor: o
(P57C5), no qual o membro explica o motivo de desenvolvimento de nossas qualidades únicas.
seu sofrimento após um episódio de autolesão. É estando a sós, munidos apenas de nossos pró-
No entanto, a dificuldade de estabelecimento prios recursos, que descobrimos quem somos e
de vínculos com os pares também é destacada que rumo tomaremos. Sozinhos, temos a opor-
no âmbito da amizade, como se pode perceber tunidade de nos desenredar dos outros, de nos
em “Nem amigos, nem amor. Eu sou aquela pes- diferenciar, de avançar em direção a nosso pró-
soa que todo mundo acha legal, mas ninguém prio caminho. Se a impossibilidade de uma ple-
gosta de verdade” (P35). Consequentemente, foi na união com o outro traz sofrimento, ao rejeitar-
possível identificar que a solidão com frequên- mos o chamado que a solidão convoca sofremos
cia desperta no indivíduo o sentimento de que duplamente, pois abdicamos também de nossa
está sozinho por ser indesejável, o que contribui jornada mais pessoal, a individuação.
para o desenvolvimento de um senso de valor Se adentrarmos a densa floresta sozinhos
próprio diminuído conforme se pode observar na pelo caminho que ninguém jamais percorreu é
publicação “Eu sou um lixo mesmo, todo mundo algo aterrorizante, ao menos deixamos para trás
sempre vai embora da minha vida. Eu cansei, as os pantanais da solidão, onde quanto mais nos
pessoas que eu amava tanto mentiram pra mim debatemos, mais somos tragados pela areia mo-
e me destruíram, não sinto mais vontade de viver vediça e mais afundamos. Desse modo, o “antí-
[emoticons de coração partido e choro]” (P18). doto para a solidão é abraçá-la. Como na home-
Hollis (1998) representa a temida solidão opatia, a ferida é curada engolindo-se um pouco
como um dos “pantanais da alma”: estados da toxina” (HOLLIS, 1998, p. 87). Se conseguir-
sombrios e ameaçadores nos quais o indivíduo mos abraçar a solidão, descobriremos a solitude
se vê preso, atolado, incapaz de prosseguir e perceberemos que há sempre uma presença
com seu desenvolvimento psicológico. Segun- interior com a qual se pode dialogar. Assim po-
do o autor, o reconhecimento de que ninguém deremos atravessar o pantanal da solidão.
é capaz de nos salvar, de nos proteger da morte Conteúdos compartilhados pelos usuários
ou mesmo de nos distrair suficientemente tor- que fazem referência a sentimentos de profun-

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da tristeza e letargia também vieram à tona no emerge, como meio de expressão dos aspectos
grupo, como apontam as publicações “hoje eu relegados à sombra no mundo offline.
não estou triste não, hoje eu estou muito triste Hollis (1998) aponta que, como a própria pa-
[emoticon de coração partido]” (P26) e “A triste- lavra depressão literalmente diz, há algo sendo
za é tão grande que te dá tanto sono, mas um pressionado para baixo: nossa energia vital. Daí
sono que você não consegue dormir [emoticons decorrem as sensações de tristeza, cansaço,
de choro]” (P27). Outro ponto levantado diz res- apatia, anedonia e dor que nos envolvem duran-
peito ao caráter incessante do sofrimento e à te nossa estadia nos pantanais da depressão.
dificuldade de deixar essa condição, como su- Mesmo no caso das chamadas “depressões sor-
gerem as postagens “Pfv não me fassam fingir ridentes”, nas quais conseguimos cumprir sufi-
que isso é só uma fase! Porque não é...” (P113) cientemente bem com as demandas do mundo
(sic) e “25 anos e minha vida está imóvel. Estou externo, a alma se torna pesada e impede que
tentando subir a grande colina de esperança desfrutemos da jornada. Assim, se os papéis
por um destino: insônia e crise existencial me que fomos chamados a representar não estive-
resume agora” (P58). Desse modo, percebe-se rem em harmonia com nossa imagem interior,
poderemos nos deprimir. A depressão é justa-
que tais sentimentos não correspondem a uma
mente a forma pela qual a psique expressa que
flutuação natural do humor, mas a processos
há algo de profundamente errado no modo como
depressivos duradouros.
a vida está sendo conduzida; é um “protesto da
O sofrimento, entretanto, é frequentemente
alma que remove autonomamente a energia de
camuflado e vivenciado em segredo, oculto dos
nós porque ela não aprova a maneira como o ego
demais relacionamentos do indivíduo no coti-
a está despendendo” (HOLLIS, 1998, p. 103). A
diano, como se pode perceber em “Eu me faço
depressão extrai nossa energia e não sairemos
de durona, sabe? Mas aqui dentro dói tanto”
do lugar enquanto não a recuperarmos.
(P96), publicação que gerou o maior número de
reações da categoria. Já na segunda publicação
Se tivermos deixado para trás uma parte
mais reagida, a autora da postagem coloca uma
vital de nós mesmos, metaforicamente
foto de si mesma com a legenda “Aprendi a sorrir
falando é essencial que voltemos para en-
mesmo sentindo dor” (P29). Na imagem é pos-
contrá-la, trazê-la à superfície, integrá-la,
sível identificar tanto um sorriso em seu rosto vivê-la. Assim como os xamãs penetram
quanto cicatrizes em ambos os braços. no mundo dos espíritos para recuperar a
A mesma dinâmica pode ser observada em parte da alma que foi dividida, e trazê-la
diversos outros relatos, como “Aprendi a cho- de volta para reintegrá-la, nós também
rar sem lágrimas, a sorrir sem felicidade, a viver somos terapeuticamente obrigados a en-
sem vontade” (P69), “[...] até quando vou te que contrar o que foi deixado para trás e trazê-
mostra um sorriso no rosto mas por dentro to me -lo de volta à superfície (p. 98).
sentindo mal, até quando vou te que mostra uma
pessoa que eu não sou” (P1) (sic) e tantos ou- Ao tentarmos desesperadamente escalar as
tros. Percebe-se, portanto, que a dificuldade de paredes do poço escuro que nos encontramos,
expressão emocional aliada à inautenticidade somos mais cedo ou mais tarde frustrados com
decorrente da grande discrepância entre os as- uma nova queda. Por outro lado, ao mergulhar-
pectos demonstrados pela persona e a dor sen- mos em direção à escuridão que nos habita des-
tida internamente são componentes importan- cobriremos que o poço não é sem fundo. Sere-
tes do conflito vivenciado por muitos membros mos, sim, obrigados a enfrentar aquilo que mais
do grupo. Nesse sentido, a comunidade virtual tememos, mas em compensação poderemos

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reaver nosso eu esquecido e recuperar nossa letargia e a baixa autoestima emergiriam como a
energia para, enfim, retornar à superfície. Em- compensação necessária.
bora repudiemos esse sombrio pantanal, Hollis Para os indivíduos que sofreram na infância
argumenta que há grande valor terapêutico na tantas violências, não é raro a internalização de
depressão. Se ao invés de tentarmos eliminá-la tais circunstâncias em um senso diminuído de
soubermos respeitá-la, confrontá-la e, a exem- eu. Nesse sentido, Hollis aponta que a tarefa
plo de Orfeu com sua lira mágica, talvez até en- implícita nesse pantanal é discernir a diferença
cantá-la, poderemos encontrar o maior tesouro entre o que nos aconteceu no passado e quem
de nossa alma: nosso eu autêntico. nós somos no presente. Tornar-se capaz de di-
O sofrimento decorrente de vivências dolo- zer “eu não sou o que me aconteceu; eu sou
rosas é outro aspecto frequentemente destaca- o que escolhi ser” é uma condição necessária
do na comunidade. Na publicação “Já sofreram para o desenvolvimento psicológico (HOLLIS,
bullying? Pelo o que?” (P83), por exemplo, foi 1998, p. 95).
possível identificar violências sofridas pelos
membros principalmente em função de apa- Religião
rência física, como “por ser baixinha e gordi- Destaca-se a atuação de organizações reli-
nha” (P83C8), “por ser magra, alta e espinhas” giosas na comunidade com uma série de posta-
(P83C35). No entanto, também foi possível iden- gens direcionando os usuários para a participa-
tificar questões ligadas à raça: “Muito, pela mi- ção em projetos da Igreja. Frente às dificuldades
nha cor, pelo cabelo” (P83C31) e “[...] soltou que compartilhadas pelos membros da comunidade,
eu pareço o macaco da passatempo... dei risa- são frequentes as mensagens que buscam ofe-
da, porém senti” (P83C32); à orientação sexual: recer conforto através da vinculação à Igreja ou
“por ser bi e meu jeito de ser” (P83C5); e à saúde da crença de que tudo será resolvido pela fé em
mental: “por ser magra e ter depressão” [emoti- Deus, como se pode observar em “Não pensa
cons de tristeza e coração partido] (P83C3). Já na nisso linda. Jesus TE Ama sua Alma é muito pre-
publicação “Desafio você a escrever as palavras ciosa pra Deus... Tenha fé é só uma fase tudo vai
mais dolorosas que já falaram pra você” (P13), passa” (P111C16) (sic) e “Vai pra igreja aceitar Je-
foi possível constatar uma série de vivências sus, eu tenho certeza que ele resolverá seus pro-
traumáticas relacionadas à experiência com os blemas” (P111C20). Há de se ressaltar que o últi-
pais, como “Eu tentei te abortar, mas nem pro mo comentário provocou três reações de risada.
capeta você serve” (P13C28) e “Você não serve Especificamente em relação à ideação sui-
pra nada seu bicho do mato, por isso te dei em- cida, os comentários religiosos adquirem ainda
bora quando você nasceu” (P13C2). mais relevância. Em resposta à publicação “Exis-
Assim, também é possível identificar como te forma de cometer suicídio sem dor?” (P100),
determinantes importantes do sofrimento dos foi possível identificar comentários como “existe
membros da comunidade os atravessamentos siim... Vc vai pra igreja e se batiza, aí tu morrer
do patriarcado que incidem na cultura através pro mundo e renasce pra Cristo [...]” (P100C36)
de manifestações machistas, racistas e misógi- (sic). Já na publicação “Quais remédios tomados
nas, que inibem a “alteridade”, a expressividade juntos provocam suicídio?” (P111), a mesma di-
emocional, a demonstração de fraqueza e, em nâmica pôde ser observada através do comentá-
última análise, o feminino. Aliada aos ideais de rio “O remédio se chama eucaristia, vc morre pra
produtividade, consumo e felicidade irrestrita do o mundo é nasci pra Deus!” (P111C14) (sic).
capitalismo, a depressão pode ser considerada Percebe-se, desse modo, que os meios de su-
em si uma manifestação da sombra de nossa peração de uma condição de intenso sofrimento
cultura (HOLLIS, 1998). A tristeza, a anedonia, a descritos nos relatos de diversos usuários apon-

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tam para o mesmo padrão arquetípico de mor- sua morte, fazer renascer o homem consa-
te-renascimento subjacente à dependência da grado. Mas esta consagração é essenciali-
prática autolesiva. Nesse sentido, se o processo zada, absolutizada, aberta a todos e igual
de dependência consiste em uma tentativa falha para todos. Não há diferentes caminhos:
de renascimento do espírito e se a ideação sui- eles são tantos quantos são os homens e
cida advém de um desesperado desejo de trans- ao mesmo tempo um só, aquele que foi
formação instantânea, os comentários P100C36 aberto por Deus. Os muitos ritos de pas-
e P111C14 sugerem que a religião é uma via pos- sagem são praticamente substituídos
sível para se vivenciar uma experiência bem-su- pelo batismo. Não há diversas verdades
cedida de transformação e transcendência. a revelar, mas sim o Verbo. Simplificada
No entanto, a predominância de mensagens ao máximo a passagem, a iniciação está
que apontam o caminho da salvação por via da aberta a todos e a ninguém (p. 118).
religião gera desconfiança por parte de diversos
usuários. Como exemplo, é possível destacar o Em uma sociedade carente de rituais na qual
questionamento “se libertou e porque está no os jovens sofrem pela ausência de papéis defini-
grupo? Estás curada? Não tomas mais nenhum dos e de significado, o cristianismo assume de
medicamento?” (P111C45), no qual se evidencia forma hegemônica a tarefa de iniciar os indiví-
o ceticismo dos membros frente a relatos de su- duos em cada nova etapa da vida. No entanto, a
peração pela fé. Até mesmo usuários que acredi- própria religião pode ganhar contornos massifi-
tam em Deus chegam a demonstrar desconforto cadores na medida em que a preocupação com a
com o excesso de mensagens dessa natureza, apreensão dos símbolos é frequentemente pre-
como evidenciam os comentários: “Acredito terida pela teatralização das pregações de modo
em Deus, mas meu limite de sofrimento deu” a angariar mais seguidores. Assim, em vez de
(P111C38), “Quantas vezes no meu quarto implo- fomentar o desenvolvimento psicológico no âm-
rei por ajuda, pedi que ao menos me fizesse dor- bito espiritual, a repetição mecânica e irrefletida
mir, orei e orei com todas as forças que eu tinha da doutrina pode tanto conduzir aqueles que a
ali” (P111C39), “E não tive resultado” (P111C40). rejeitam em direção ao desenvolvimento de uma
Percebe-se, portanto, que discussões sobre identidade negativa dependente, como também
crenças são frequentes e polarizam opiniões no isentar os fiéis mais fervorosos da responsabi-
grupo. Percebe-se que os próprios membros re- lidade de zelar pela própria vida na medida em
conhecem a carência de outras formas de apoio que essa se encontra nas mãos de Deus.
e tipos de intervenção. Assim, se por um lado
as religiões cristãs podem propiciar legítimas Considerações finais
experiências de transcendência a determinados A pesquisa teve como objetivo compreender
indivíduos, por outro, não se pode afirmar que o a partir da psicologia analítica como o fenômeno
caminho da fé cristã se configura como uma pos- da ALNS se expressa em uma comunidade virtu-
sibilidade de desenvolvimento psicológico para al. Nesse sentido, foi possível identificar que a
todos. Sobre a iniciação promovida pelo cristia- autolesão é descrita como um comportamento
nismo, Zoja (1992) afirma: compulsivo com características de dependência
por meio do qual praticantes buscam uma expe-
Sem dúvida, não se pode dizer que o riência de transcendência ainda que às custas
cristianismo careça de revelação, de um de dor e sofrimento.
modelo que sirva de guia para o homem. Também foi possível identificar que o sofri-
Nem que falte ao cristianismo a intenção mento descrito pelos membros faz referência a
de superar o homem natural e, a partir da processos depressivos duradouros e se carac-

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teriza por grande solidão, vivências de eventos membros da comunidade é bastante significa-
traumáticos, dificuldade de expressão de senti- tivo e, embora seja necessária, a remoção de
mentos e necessidade de manutenção de uma páginas com conteúdos nocivos, por si só, é
persona funcional no cotidiano. Nesse sentido, insuficiente para fomentar processos de recu-
pode-se pensar no grupo como meio de expres- peração. Assim, dada a baixa procura de prati-
são dos aspectos relegados à sombra no mundo cantes de autolesão por profissionais da saúde,
offline e da depressão como um aspecto sombrio faz-se necessário o desenvolvimento de novas
compensatório de uma sociedade que prima estratégias de intervenção e cuidados em saú-
pela produtividade e pela felicidade irrestrita. de mental, de modo a acessar o ambiente onli-
Por fim, percebe-se que há um predomínio ne e promover maior aproximação entre usuá-
de organizações religiosas oferecendo apoio rios e serviços de saúde. ■
aos membros, o que gera controvérsias na co-
munidade. O sofrimento compartilhado pelos Recebido: 06/07/2022 Revisado: 03/12/2022

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Abstract
#self-harm: the symbolic expression of non-suicidal self-injury
Non-suicidal self-injury (NSSI) is a phenome- jury was understood as a compulsive behavior
non of increasing relevance, with high prevalence through which practitioners seek an experience of
rates in adolescents and young adults. NSSI is one transcendence at the expense of pain. It resembles
of the main risk factors for future. The method of an addict behavior. The suffering described refers
virtual ethnography was carried out in a self-injury to depressive processes and is characterized by
community on Facebook in order to broaden the loneliness, difficulty in expressing feelings and the
understanding of the symbolic aspects related to need to maintain a functional persona in everyday
the practice. In February 2021, 133 publications life. Therefore, the group emerges as a means of
were collected and divided into three categories of expressing aspects relegated to the shadows in
analysis: self-injury, suffering and religion. Self-in- the offline world. ■

Keywords: non-suicidal self-injury, self-harm; NSSI, social media, analytical psychology

Resumen
#automutilación: la expresión simbólica de la autolesión no suicida
La autolesión no suicida (ALNS) es un fenó- similar al comportamiento compulsivo por el
meno de creciente relevancia con altas tasas cual los practicantes buscan una experiencia
de prevalencia en adolescentes y adultos jó- de trascendencia incluso a expensas del dolor.
venes. Como método, se realizó una etnografía Se asemeja a una adicción conductual. El sufri-
virtual en una comunidad de autolesiones en miento descrito apunta a procesos depresivos
Facebook con el fin de ampliar la comprensión y se caracteriza por la soledad, la dificultad
de los aspectos simbólicos relacionados con para expresar los sentimientos y la necesidad
la práctica. En febrero de 2021 se recopilaron de mantener una personalidad funcional en la
133 publicaciones y se dividieron em tres ca- vida cotidiana. Así, la comunidad surge como
tegorías de análisis: autolesiones, sufrimien- medio de expresión de aspectos relegados a la
to y religión. Se entiende que la autolesión es sombra en el mundo offline. ■

Palabras clave: autolesión, automutilación, ALNS, redes sociales, psicología analítica

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