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AUTOLESÃO

Conceito

Na sociedade atual as condutas agressivas acompanham a


contemporaneidade, assumindo novas formas e novos conteúdos que são
debatidos entre os grupos sociais. Todavia, não é dado a todos os temas a
frequência e importância necessária para essas discussões. Para Borges (2012),
os comportamentos autoagressivos estão inseridos na História da humanidade e
são também transversais a todas as culturas, a amputação dos dedos em povos do
pacífico, o esticar de pescoços e lábios em tribos africanas e até mesmo os
piercings e as tatuagens presentes na cultura ocidental traduzem rituais, expressam
também a espiritualidade de um povo, como também refletem tradições sociais.

Reflexivamente deve-se falar também de outros tipos de comportamentos,


esses são autolesivos, automutilatórios e tentativas de suicídio que, por vezes, são
consumados, baseados em motivações afetivas e emocionais, afetam aqueles que
os praticam e a seus familiares. Gabriel et al (2020), descreve que esses
comportamentos são considerados patológicos e desajustados para o indivíduo e,
por conseguinte, para a sociedade visto que não se relacionam com nenhum
simbolismo sociocultural ou religioso e também não são aceitos de forma
generalizada pelas pessoas.

Para Walsh (2012), os termos utilizados para se referir a comportamentos


autolesivos, como cortar-se, queimar-se, bater em si mesmo ou contra a parede,
arranhar-se, entre outros, podendo ser utilizado para isso algum tipo de instrumento,
também passa por alterações desde a década de 1990. “Automutilação” (self-
mutilation) foi o termo mais utilizado, porém, “autolesão” (self-injury) ou “autolesão
sem intenção suicida” são os termos utilizados na atualidade.

Características

A Autolesão Sem Intenção Suicida (ASIS) se relaciona a dois aspectos


principais: a tentativa de causar dano a uma parte do próprio corpo sem intenção
suicida e o conhecimento de que essa ação não validada socialmente (ARAGÃO,
2019). Pode-se então definir ASIS como o ato de, premeditadamente, causar lesão
a si próprio, resultando em um dano imediato a alguma parte do corpo do indivíduo
que se lesiona, sem a intenção suicida e estando ciente de que está ação não é
socialmente aprovado dentro da própria cultura que ele está inserido.

Além de a autolesão ser um ato de destruição deliberada contra o próprio


corpo, para Gomes (2019) ela se constitui em um esforço mórbido de autoajuda ou
auto regulação interna a estados emocionais negativos que promove o alívio rápido
e passageiro de sentimentos como despersonalização, culpa e rejeição, podendo
ser utilizada também para afastar pensamentos desordenados, alucinações ou
preocupações que podem mascarar sintomas psicopatológicos. Dentro desse
contexto, o fenômeno da autolesão passou a ser cada vez mais visto com
frequência nos consultórios e nos serviços de saúde mental, assim também como
nas escolas e em outros contextos do cotidiano, tendo uma incidência marcante em
adolescentes e jovens. (American Psychiatric Association, 2014).

Essencialmente, a adolescência não é uma representação de mortalidade ou


adoecimento para o ser humano quando comparada com as outras fases do
desenvolvimento humano. Todavia, algumas pessoas podem enfrentar sofrimentos
emocionais ao passar pelo processo de mudança e adaptação nessas fases de
desenvolvimento que se relacionam, por exemplo, ao ambiente escolar, familiar e/ou
afetivo (BRASIL, 2017). Esses fatores podem ainda ocasionar comportamentos
autodestrutivos que por muitas vezes, são responsáveis pela maior parte de
atendimentos de adolescentes em serviços de emergência. (GABRIEL et al, 2020).

A Organização Mundial da Saúde entende e categoriza o comportamento


autolesivo na adolescência como um problema de saúde pública. No Brasil, as
pesquisas sobre a ASIS ainda são incipientes e apresentam poucas informações no
que se refere ao estudo da dinâmica psíquica, dos meios de intervenção com essa
população, a coleta e sistematização de dados dificultando a interpretação e
promoção de ações no enfrentamento deste fenômeno. (CHAVES et al,2021 &
PATEZ, 2022).

Logo, o tema autolesão está para além do impacto na saúde e


desenvolvimento dos indivíduos, considera-se a ASIS como um problema de saúde
pública porque produz impacto nos serviços que padecem com a falta de recursos
para lidar com o problema e a sobrecarga no sistema de saúde (DE MIRANDA,
2017). Assim, não só o indivíduo é afetado por esse fenômeno, mas também seus
familiares e amigos que compõem sua rede de convívio.

Como o DSM-5 classifica

A Autolesão Sem Intenção Suicida (ASIS) foi introduzida como uma nova
entidade nosológica no DSM-5 na categoria "Condições para estudos adicionais",
sendo dissociada da Perturbação de Personalidade Borderline. No Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM 5 (APA, 2014) a autolesão
não suicida é definida como “comportamento repetido do próprio indivíduo de infligir
lesões superficiais, embora dolorosas, à superfície do seu corpo” (p.804).
A lesão é mais frequentemente infligida com uma faca,
agulha, lâmina ou outro objeto afiado. Locais comuns para
lesão incluem a área frontal das coxas e o lado dorsal do
antebraço. Uma única sessão de lesão pode envolver uma
série de cortes paralelos superficiais – separados por 1 ou 2
centímetros – em um local visível ou acessível. Os cortes
resultantes com frequência irão sangrar e eventualmente
deixarão um padrão de cicatrizes característico. Outros
métodos utilizados incluem fincar uma agulha ou faca de ponta
afiada em uma área, em geral na parte superior do braço;
infligir uma queimadura superficial com a ponta de um cigarro
aceso; ou queimar a pele esfregando repetidamente uma
borracha. O envolvimento em autolesão não suicida com
múltiplos métodos está associado a psicopatologia mais grave,
incluindo tentativas de suicídio. (APA, 2014, p.804)

A intenção do indivíduo é obter alívio de emoções negativas ou de um estado


cognitivo, resolver uma dificuldade interpessoal ou induzir um estado emocional
positivo. A ASIS pode estar associada a mais uma das seguintes características:
são precedidos por dificuldades interpessoais ou emoções/pensamentos negativos
(depressão, ansiedade, tensão, raiva, sensação de pânico ou autocrítica); o período
que antecede as autolesões é acompanhado de preocupação perante o
comportamento que pretende praticar e que é difícil de controlar; pensamentos
frequentes sobre as ASIS, mesmo sem ocorrer o ato (GOMES, 2021).

Verifica-se que o comportamento autolesivo ocorre em diversas faixas


etárias, predominantemente no sexo feminino, porém a prevalência é mais alta nos
adolescentes do que nos adultos. Vários são os fatores de riscos, como,
características da personalidade, transtornos psiquiátricos, problemas sociais,
problemas familiares, uso de substâncias psicoativas, entre outros. (FONSECA,
2018).

O que permite realizar a diferenciação da autolesão não suicida do


comportamento suicida é a ausência da intenção de morrer, baixa letalidade dos
ferimentos, e os aspectos compulsivo e repetitivo do comportamento (PACHECO,
2020). A análise do modo de execução da autolesão torna-se importante para definir
o enquadramento nos critérios propostos pelo DSM 5 (APA, 2014), pois além da
autolesão não suicida a autolesão pode aparecer em outros transtornos, como
transtorno de personalidade borderline, transtorno do comportamento suicida,
tricotilomania, autolesão estereotipada, transtorno de escoriação, também em
alguns quadros de transtornos do desenvolvimento.

Atuação do psicólogo

A criação de estratégias de prevenção a autolesão em adolescentes é


fundamental, dada à prevalência crescente e as implicações associadas. Investigar
e identificar os fatores de risco modificáveis, como por exemplo, sintomas
depressivos, dificuldades na regulação emocional, baixa autoestima e maior
impulsividade, devem ser abordados para a prevenção de futuras práticas
autolesivas.
Para a realização do diagnóstico do comportamento autolesivo é preciso
entender os processos que levam a esta prática, desenvolver protocolos ou
programas psicoterapêuticos específicos, através de instrumentos de avaliação.
Estes exercem um considerável papel na otimização da avaliação dos vários
domínios das ASIS, incluindo a frequência, os métodos, os fatores de risco e
protetores e as funções. As únicas ferramentas que foram traduzidas e estudadas
em amostras de população adolescente de Língua Portuguesa são Questionário de
Impulso, Autodano e Ideação Suicida na Adolescência (QIAIS-A) e o Inventario de
Comportamentos de Risco e Autolesão para Adolescentes (RTSHIA) (GOMES,
2021).
Almeida et al. (2018) apontam que compete ao psicólogo escolar ressaltar o
tema exposto em projetos e palestras com o propósito de sensibilizar os
adolescentes, envolvidos ou não com este padrão de conduta, para serem mais
assertivos quanto à expressão de conflitos pessoais. O psicólogo escolar precisa
favorecer o desenvolvimento da autoestima entre os adolescentes, usar a escuta
clínica e criar espaços coletivos pretendendo a troca de experiências entre os
mesmos, ampliando a discussão da problemática em busca de uma solução.
Em outro estudo, Freitas e Sousa (2017) destacam que as ações do
psicólogo escolar podem ser pautadas em outras dimensões: reuniões com a
equipe de gestão e professores a fim de conhecer visões e enfraquecer possíveis
mecanismos de exclusão e estigmatização de alunos, criação de espaços de escuta
de demandas aspirando discutir aspectos de enfrentamento com base em situações
do cotidiano, bem como atendimento as famílias visando identificar alguns aspectos
e ressignificar os relacionamentos do meio intrafamiliar.
Estudiosos concluíram que, o que poderá ajudar realmente um indivíduo que
pratica a Autolesão é deixá-lo falar e expressar-se, ouvindo-o e reconhecendo sua
singularidade; permitindo-lhe fazer uma troca simbólica com aqueles que estão a
sua volta. Permitir a fala a esse sujeito é dar voz a um silêncio presente, tendo em
vista que autolesionar-se acaba sendo a forma encontrada para comunicar seus
afetos. Esta escuta poderá ser desenvolvida, com este propósito, por meio de
Plantão psicológico (ALMEIDA et AL., 2018).
Em estudos internacionais existe a recomendação que o psicólogo identifique
a gravidade da prática da autolesão, e que em situações mais graves (intenção
suicida e outros transtornos comórbidos) o encaminhe para tratamento externo, em
casos menos graves, o profissional é chamado para identificar o comportamento e
orientar condutas pertinentes ao contexto escolar. O objetivo do acompanhamento
terapêutico em casos graves é conhecer a fonte de sofrimento, a função e a
manutenção do comportamento autolesivo e auxiliar o adolescente a criar
estratégias de enfrentamento mais apropriadas (SANT’ANA, 2019).
O tratamento de adolescentes com comportamentos autolesivos não deve
limitar-se apenas aos danos físicos destas ações, mas também buscar soluções
para dissipar o estado emocional negativo que os leva a esta prática. Adequar o
tratamento a cada indivíduo e as suas demandas traz benefícios prévios e
aumentando a adesão ao tratamento. A motivação é o primeiro passo para a
adesão ao tratamento, psicoeducação, identificação das razões que despertam ou
mantém os comportamentos e o levantamento de problemas de saúde mental
concomitantes. No processo de reabilitação, deve-se promover a conscientização e
a educação geral de cuidadores e familiares envolvidos com o adolescente, de
modo a melhorar os vínculos afetivos, a comunicação entre a família e,
particularmente, as relações mais tensas ou difíceis com cuidadores primários. A
psicoterapia é eficaz no tratamento de ASIS em adolescentes, reduzindo os
episódios de autolesão até um ano após o início das sessões (GOMES, 2021).
REFERENCIAS

ALMEIDA, R., CRISPIM, M. S., & Peixoto, S. (2018). A prática da automutilação na


adolescência: o olhar da psicologia escolar/educacional. Ciências Humanas e
Sociais, 4(3), 147-160.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. (2014). Manual diagnóstico e


estatístico de transtornos mentais – DSM-5. Porto Alegre, RS: Artmed.
ARAGÃO NETO, Carlos Henrique de. Autolesão sem intenção suicida e sua relação
com ideação suicida. 2019.
BORGES, Carolina Nunes Leal de Oliveira. À flor da pele: Algumas reflexões a
propósito de um estudo de caso sobre autolesão. 2012.
Brasil. Ministério da Saúde. Proteger e Cuidar da Saúde de Adolescentes na
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CHAVES, Gislaine et al. Adolescência e autolesão: uma proposta psicodiagnóstica
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100, p. 93-105, 2021.
DE MIRANDA TRINCO, Maria Edite; SANTOS, José Carlos; BARBOSA, António.
Vivências e necessidades dos pais no internamento do filho adolescente com
comportamento autolesivo. Revista de Enfermagem Referência, v. 4, n. 13, p.
115-124, 2017.
FONSECA, Paulo Henrique Nogueira da et al . Autolesão sem intenção suicida
entre adolescentes. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro , v. 70, n. 3, p. 246-258,
2018.
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GABRIEL, Isabela Martins et al. Autolesão não suicida entre adolescentes:


significados para profissionais da educação e da Atenção Básica à Saúde. Escola
Anna Nery, v. 24, 2020.
GOMES, Maria Carlota Gonçalves Jardim. Comportamentos Autolesivos Sem
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PACHECO, Rógel Petri, ROMANHA, Rosane. Conduta autolesiva não suicida em


pessoas sem psicopatologia: revisão de literatura. 2020.

PATEZ, Mariana Luz. Autolesão: uma discussão sobre a mobilização do


atendimento em rede. 2022.
SANT'ANA, Izabella Mendes. Autolesão não suicida na adolescência e a atuação do
psicólogo escolar: uma revisão narrativa. Rev. Psicol. IMED, Passo Fundo , v.
11, n. 1, p. 120-138, jun. 2019.

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