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Olhão
Junho de 1808

Carla da Costa Vieira

Edição
Carla da Costa Vieira
Olhão
Junho de 1808

Olhão, Junho de 1808.


Carla da Costa Vieira

Edição
6

Ficha Tecnica

Título:
Olhão, Junho de 1808.
O levantamento contra as tropas francesas através
da imprensa e literatura da época
Autor: Nota do Presidente
Carla da Costa Vieira
Coordenação Cientifica:
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Coordenação Editorial:
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Edição:
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Grafismo:
Bloco D (www.blocod.com)
Impressão:
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1ª Edição:
Setembro de 2009
Tiragem:
???? Exemplares
Depósito Legal:
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Isbn:
??

Município de Olhão
Largo Sebastião Martins Mestre
8700-349 Olhão

Reservados todos os direitos


“Olhai para a lista dos patriotas que diariamente enchem
as páginas de nossas gazetas com seus benéficos donativos
e acreditai que ainda existem virtuosos. Amigos da Pátria,
Príncipe e Religião, espalhai estas santas máximas pelos
vossos escritos e consolidai-as com vosso exemplo.”

(Luís de Sequeira Oliva, “Caracteres do Patriotismo”,


Telegrafo Portuguez ou Gazeta anti-franceza, n.º 26, 23 de
Fevereiro de 1809)
Index

Nota introdutória .................................................................................................................... 11

1. Breve notícia do levantamento de Olhão .............................................................................. 17


2. Olhão, da génese à elevação a vila ........................................................................................ 31
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura ......................................................... 39
3.1. Imprensa periódica ................................................................................................... 40
3.2. Panfletos ................................................................................................................... 44
3.3. Outros textos impressos ............................................................................................. 62
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos ................................................................................ 71
4.1. Quando David derrotou Golias ... ................................................................................. 71
4.2. Golias ......................................................................................................................... 79
4.3. David .......................................................................................................................... 86

Conclusão .............................................................................................................................. 100


Anexos .................................................................................................................................. 107
Bibliografia e Fontes .............................................................................................................. 140
Olhão, Junho de 1808. 13
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

FICHA TECNICA

Nota introdutória

O levantamento de Olhão de Junho de 1808 assinala o início da revolta contra a


ocupação francesa no Algarve. O seu carácter precursor, oriundo de uma pequena
aldeia de pescadores, marcou indelevelmente a memória da restauração do poder
português nesta província. Tal memória foi perpetuada pela pena de vários autores
contemporâneos dos acontecimentos, alguns até participantes activos no seu
desenlace. Foram esses mesmos autores que cristalizaram não só os factos como
também todo o ideário que motivou a revolta.
Conhecem-se vários estudos dedicados às insurreições algarvias contra a ocupação
francesa e, em particular, relativos à revolta de Olhão. Autores como Francisco
Ataíde Oliveira, Alberto Iria, José Fernandes Mascarenhas ou Antero Nobre
deram um importante contributo para o conhecimento dos principais factos que
desencadearam a expulsão das tropas napoleónicas em 1808. Mais ou menos
parcial, repleta de um halo de patriotismo ou capaz de um distanciamento e de uma
análise crítica das fontes, a bibliografia nunca ignorou este episódio incontornável
da história algarvia.
No presente estudo, pretendemos dar mais um contributo. Ao invés de sublinharmos
os factos ocorridos e a sua inscrição na história político-militar regional e nacional,
algo que já foi feito com bastante fluência pelos autores citados, o nosso objectivo
é mostrar como estes foram abordados nos textos impressos da época. Daremos,
aliás, um particular ênfase à literatura panfletária que, durante os anos das
invasões francesas, sofreu um desenvolvimento até então nunca visto. Quem são
os autores que escreveram sobre o levantamento de Olhão? Como o fizeram? A
que factos deram maior destaque? Que valores, ideais e doutrinas transmitiam
ou pretendiam transmitir? Queremos, assim, mais do que documentar factos,
apresentar perspectivas e a forma como estas esclareceram ou toldaram o rumo
14 Olhão, Junho de 1808. 15
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

dos acontecimentos.
Para elucidar o leitor, começaremos este estudo com uma síntese dos principais
factos que caracterizaram o levantamento de Olhão. É uma sequência cronológica
que visa revelar o crescendo de tensão entre olhanenses e franceses até ao culminar
da revolta e o seu desfecho. Por outro lado, torna-se igualmente necessário
apresentar um retrato do que era Olhão no alvorecer do século XIX. Para tal, temos
de remontar às suas origens e ao seu progresso, sempre sob o signo da actividade
marítima.
Quanto ao desenvolvimento da temática principal, resolvemos dividi-la em duas
partes. Numa primeira, apresentaremos os textos impressos que mencionam a
revolta de Olhão: os testemunhos na imprensa periódica, os panfletos e as obras
publicadas logo nos anos subsequentes. Finalmente, passaremos a uma abordagem
mais temática, pretendendo analisar a forma como os acontecimentos foram
narrados e a imagem transmitida dos seus protagonistas.
Para este trabalho, foi necessária uma base documental sólida. A nossa pesquisa
centrou-se, sobretudo, no fundo bibliográfico da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Através da consulta de catálogos de fontes, cuja publicação foi singularmente
profícua durante as comemorações do primeiro centenário da Guerra Peninsular,
concluímos que era neste arquivo que se encontrava a maior parte dos documentos
impressos relativos às invasões francesas e, em particular, aos movimentos
de resistência no Algarve. Assim, consultámos exaustivamente colectâneas de
panfletos e os números do ano de 1808 dos periódicos então publicados. Nestes,
seleccionámos todas as referências à revolta de Olhão, as quais serviram de base ao
presente trabalho.
Uma boa parte desses documentos foi já alvo de análise por alguma da
bibliografia consultada. Porém, com este trabalho, pretendemos levar a cabo um
novo tratamento de tais textos, salientando a sua essência doutrinária. Assim,
considerámos oportuno colocar em anexo uma boa parte do corpo documental
analisado no presente trabalho, como forma de disponibilizar ao leitor as fontes
consultadas, nem sempre facilmente acessíveis. Além disso, alguns destes textos
são dotados de uma beleza literária que não deve ser ignorada – só eles, por si,
valem uma leitura atenta.
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18 Olhão, Junho de 1808. 19
1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

1. Breve notícia do levantamento de Olhão

No final do ano de 1807, as tropas francesas já tinham entrado em Olhão. O


exército napoleónico, comandado pelo general Junot, chegara a Portugal a 19 de
Novembro, alguns dias antes do príncipe regente e de toda a corte portuguesa ter
embarcado para o Brasil. Em seu lugar, ficara a governar o reino um Conselho de
Regência1. Em Dezembro, foi ordenada a invasão do Algarve e a instalação da sede
do governo militar em Faro. O então governador de armas, D. Francisco de Melo
da Cunha de Mendonça e Meneses, conde de Castro Marim, foi destituído do seu
cargo e remetido para o quartel-general de Tavira. Em contrapartida, Junot, tal
como fizera nas outras províncias do reino, designou para o Algarve um corregedor-
mor, Goguet, e um oficial-general, Maurin. O primeiro ficava encarregue da
administração do território e o segundo do governo militar.
Perante as ordens de Junot para o desarmamento do reino e desorganização
das milícias, Maurin tratou igualmente de desmembrar as tropas portuguesas
destacadas no Algarve. Apenas foi conservado o regimento de artilharia n.º 2 de

1. A 21 de Novembro de 1806, foi assinado, em Berlim, o decreto em que Napoleão Bonaparte impôs o Bloqueio
Continental, proibindo a entrada de navios ingleses em qualquer porto do Império. A Europa fechou-se, assim,
ao comércio com a Inglaterra. A 19 de Julho de 1807, Portugal foi intimado a também fechar os seus portos:
a partir de Setembro, todas as relações entre os dois países teriam de ser rompidas. Como a Inglaterra era um
dos principais parceiros comerciais de Portugal, o governo tentou ganhar tempo e sujeitou-se a novos ultimatos.
Perante essa hesitação, França e Espanha negociaram a invasão do reino e a sua partilha. Tal ficou decidido a 27
de Outubro, com a assinatura do Tratado de Fontainebleau. A 5 de Novembro, as tropas francesas entraram em
Espanha. Portugal tomou, então, medidas para pôr em prática o bloqueio. Porém, não conseguiu evitar a invasão.
Vide: Maria Emília Cordeiro Ferreira, “Bloqueio Continental”, Dicionário de História de Portugal. Dir. Joel Serrão,
vol. I, Porto, Figueirinhas, [s.d.], pp. 349-352; António Álvaro Dória, “Peninsular, Guerra”, Ibidem, vol. V, pp.
47-51; Ana Cristina Bartolomeu de Araújo, “As invasões francesas e a afirmação das ideias liberais”, História de
Portugal. Dir. José Mattoso, vol. V, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 23-32; António Pedro Vicente, “Invasões
Francesas”, História de Portugal. Dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias. Dir. João Medina, vol. VIII, Amadora,
Clube Internacional do Livro, 1995, pp. 11-40.
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1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Faro, destinado ao auxílio das forças francesas no caso de um eventual desembarque uma afronta ao bispo. Pouco interessado em afastar o apoio do chefe máximo do
da esquadra inglesa que então rondava a costa algarvia. Perante essa ameaça, as clero algarvio, Maurin tentou recuperar a sua confiança. No Domingo de Ramos
principais praças litorâneas foram guarnecidas militarmente. Tal não dissuadiu os de 1808, convidou D. Francisco e alguns nobres a jantarem em sua casa, deixando
ingleses, atentos ao primeiro sinal de fragilidade da presença francesa no território. claro no convite que não seriam servidas carnes, de acordo com o preceito cristão.
Por todo o reino adoptou-se uma atitude passiva face aos ocupantes. Através Essa tolerância pedida pela coroa e pelo clero português tornou-se mais difícil
de um decreto de 25 de Novembro, o príncipe D. João pediu às populações que quando a alegada protecção francesa se transformou numa maior pressão fiscal sobre
prestassem a assistência possível às tropas francesas e advertiu os governadores o povo e na dissolução da autonomia nacional. As populações coagidas a prestarem
da regência a punirem qualquer acção que fosse cometida contra estas, castigando assistência às tropas francesas e a fornecerem-lhes guarida e mantimentos, viram a
exemplarmente os insurrectos. sua subsistência ameaçada por impostos cada vez mais pesados. A 23 de Dezembro
Este apelo à calma e à subserviência do povo português foi repetido nos púlpitos de 1807, como contribuição de guerra, Napoleão exigira a Portugal o pagamento
das igrejas . A 8 de Dezembro de 1807, o cardeal patriarca de Lisboa, D. José
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de um valor total de 40 milhões de cruzados. Apesar de tal quantia ser cobrada
Francisco Miguel António de Mendonça, lançou uma pastoral na qual recomendava principalmente sobre os bens da família real, da nobreza e do clero, a verdade é que
aos seus fiéis: “Não temeis, amados filhos, vivei seguros em vossas casas e fora delas, também o povo acabou por sentir a sobrecarga desse montante.
lembrai-vos que este exército é de Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei O caso do Algarve é emblemático. Maurin exigiu às comarcas de Faro, Tavira e
de Itália, Napoleão o Grande, que Deus tem destinado para amparar e proteger a Lagos o pagamento do denominado “prato do governador”, uma contribuição de
Religião, e fazer a felicidade dos Povos [...]”3. 1200 mil réis mensais destinados ao sustento da sua casa. Temendo o contacto
No Algarve, também o bispo D. Francisco Gomes de Avelar seguiu os mesmos dos mareantes algarvios com a esquadra inglesa, foram colocadas restrições à
passos . Apelou à calma do povo e mostrou-se solícito na assistência às tropas e
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saída dos barcos de pesca. Para se fazerem ao mar, os mareantes eram obrigados
autoridades francesas. D. Francisco colocou mesmo o seu palácio ao dispor do general a pagar um tributo pelas suas embarcações, além de 20 % do pescado ser
Maurin. Porém, o governador não aceitou fazer do paço episcopal a sua residência e necessariamente reservado às autoridades francesas. Ora, toda esta carga fiscal
alojou ali o seu irmão, junto com mais quatro serventes. Tal foi interpretado como afectava profundamente as condições de sustento dos pescadores, os quais, numa
boa parte das localidades algarvias, constituíam o grupo social mais numeroso. Era
2. Sobre a posição da igreja perante a ocupação francesa, vide: António Pedro Vicente, “A igreja perante a ocupação o que acontecia em Olhão 5.
de Portugal pelo exército napoleónico”, Revista Española de Teologia, vol. 44, fasc. 2, 1984, pp. 579-591.
Porém, não foi só o maior peso dos impostos que desencadeou a resistência à
3. Cf. Gazeta de Lisboa, 26 de Dezembro de 1807. presença francesa. A atitude das tropas também a encorajou. A fama de imoralidade
4. Francisco Gomes do Avelar (Alhandra, 1739 – Faro, 1816) foi bispo do Algarve entre os anos de 1789 e 1816. e, sobretudo, de irreligiosidade que os franceses traziam desde a Revolução crescia à
Em 1757, tinha entrado para a Congregação dos Padres do Oratório e, seis anos depois, era ordenado presbítero.
Amigo do núncio apostólico Rannuzi, em 1784, acompanhou-o até Roma, cidade onde permaneceu durante quase
medida que chegavam ao povo os rumores de profanação de igrejas e de desrespeito
quatro anos. Quando regressou, foi nomeado bispo do Algarve, cargo deixado vago por D. José Maria de Melo
depois de se tornar confessor da rainha D. Maria I. Esteve durante mais de 26 anos à frente da diocese algarvia. Ao
longo da sua vida, deixou uma extensa obra literária, entre traduções (como foi o caso de Plano para dar systema 5. Uma fonte da época revela-nos o valor desses tributos: “Os governadores das praças obrigaram os mestres dos
regular ao moderno espirito philosophico ou instrucções anecdoticas de um livre pensador, tradução de um original barcos de pesca a pagar um tanto por mês; os de Faro pagavam 400 rs., os de Olhão, 600 rs. A estes e àqueles
italiano, publicado em Lisboa em 1784) e obras originais. Entre estas, deixamos aqui alguns exemplos: Compendio concediam licença para sair do porto, ainda que fosse a inimigo, contanto que pagassem bem. E deste modo
da vida de S. Vicente Martyr, patrono especial do Bispado do Algarve (Lisboa, 1795); Instrucções que deverão observar navegavam os de Olhão para Gilbraltar, donde traziam contrabando, sendo isto proibido com pena de morte pelos
os inspectores da reparação das estradas (Faro, 1809); Instrucções para a enxertia dos zambujeiros (1813). A fama do mesmos franceses, leis de que estes eram executores; donde se inferia que semelhante legislação tinha por fim
bispo do Algarve, superou fronteiras e Ataíde Oliveira coloca mesmo a hipótese dele ter servido de inspiração a servir de pretexto para sacar dos navegantes avultadas quantias para conseguirem a faculdade de navegar ou de
Victor Hugo para a criação da personagem do bispo Bemvindo em Os Miseráveis. Vide Francisco Xavier de Athaide sair do país, o que também tinham proibido com a mesma pena.” (Cf. João Coelho de Carvalho, “Invasão Francesa
Oliveira, Biografia de D. Francisco Gomes do Avelar, Arcebispo-Bispo do Algarve, Porto, Typographia Universal, 1902. no Algarve”, in Francisco Xavier de Athaide Oliveira, op. cit., pp. 178-177)
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1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

às autoridades religiosas locais. Segundo testemunhos da época, as tropas de Junot que se ouviu o primeiro brado contra as forças francesas.
assaltaram vários templos no Algarve, arrecadando a prata e enviando-a para Era o dia 12 de Junho de 1808, véspera da festa de Santo António, quando João
Lisboa, onde era fundida na Casa da Moeda. Na Igreja de Nossa do Rosário, em da Rosa abriu as portas à revolta. Ele era o escrivão do Compromisso Marítimo
Olhão, teriam sido roubadas duas cruzes de prata e uma lâmpada.6 de Olhão e encontrava-se, então, encarregue dos preparativos das festividades
A autonomia nacional encontrava-se profundamente ameaçada. A 1 de em honra do santo. Estava na igreja matriz da aldeia, a adornar a capela de Nossa
Fevereiro de 1808, Junot dissolveu o Conselho de Regência sem consultar as Senhora da Conceição, quando simbolicamente se manifestou contra a égide
autoridades portuguesas. O direito ao trono fora retirado à Casa de Bragança sob a francesa – destapou as insígnias reais portuguesas existentes no cimo da capela
justificação da fuga da família real para o Brasil. As insígnias nacionais portuguesas que haviam sido encobertas por ordem do general Junot. Esta atitude inspirou
foram tapadas em todos os edifícios, substituiu-se a menção ao regente pela de os olhanenses. No dia seguinte, depois de terem ido à missa e visto as armas
Napoleão no formulário dos documentos oficiais e foi proibido o uso de armas de descobertas, os pescadores embandeiraram as suas embarcações com os símbolos
fogo no reino e o seu envio ao exército espanhol. nacionais e deram vivas à liberdade e à coroa portuguesa. O próprio João da Rosa
A oposição à ocupação francesa começara a emergir. Contudo, esta não se acabaria por descrever estes acontecimentos numa memória inscrita nos livros do
encontrava completamente muda até então. Desde finais de Novembro de 1807 Compromisso Marítimo de Olhão7.
que eram imprimidos panfletos contra a presença das tropas napoleónicas no reino. Mas esta primeira manifestação de resistência não representou uma ameaça
Mas foi a partir de Maio de 1808 que os ânimos aqueceram, decerto motivados para Maurin. O general continuava a considerar o lugar seguro. Afinal, desde 14 de
pelas insurreições vividas no reino vizinho. Abril que ali se encontrava uma guarnição francesa de pouco mais de 20 homens.
A 26 de Maio, perante a coacção de Napoleão para que Fernando VII abdicasse Por outro lado, a simples presença dessa guarnição numa pequena aldeia, como era
da coroa espanhola em favor de José I, rei de Nápoles, o povo de Sevilha revoltou- então Olhão, indicava, só por si, a existência ali de um prenúncio de revolta8.
se. Logo no dia seguinte, foi estabelecida uma Suprema Junta do Governo que, a Olhão não era um caso isolado. Por todo o Algarve começavam a circular
30 de Maio, publicou um apelo, recordando as promessas não cumpridas de Junot exortações à resistência perante as forças francesas. Em Faro, tinha-se constituído
e os abusos cometidos pelas tropas francesas nos territórios ocupados. Este apelo uma sociedade patriótica, formada por algumas figuras da elite social da cidade,
atravessou fronteiras e chegou a Portugal, exacerbando os ânimos de um povo que que, primeiramente, se reunia na Igreja da Santíssima Trindade e, depois, na casa do
se sentia igualmente oprimido. A 6 de Junho, a Junta de Sevilha declarou guerra à capitão Sebastião Brito Cabreira. Um outro grupo de patriotas de Faro encontrava-
França, em nome de Fernando VII. se na loja do comerciante Bento Álvares Canado. Porém, esta era ainda uma revolta
Em Portugal, a revolta iniciou-se a norte. A 6 de Junho, o general espanhol contida entre paredes, sem a adesão e os meios necessários para sair à rua.
Domingos Bellestra prendeu o general-comandante francês Quesnel, contando com Foi no dia de Corpo de Deus, a 16 de Junho de 1808, que o levantamento contra
o apoio do povo. Foi, então, proclamada a restauração da Casa de Bragança. Este
movimento contagiou todo norte do reino – dia após dia, registavam-se sublevações 7. Esta memória encontra-se transcrita em Ataíde Oliveira, Monografia do Concelho de Olhão, 3ª ed., Faro, Algarve
nas principais localidades, algumas apoiadas pelos insurgentes espanhóis. Junot em Foco, 1999, pp. 309-315. Deixamos aqui um pequeno excerto: “[...] quando fomos armar a dita capela para o
dia 13 fazermos a festa, olhando para as armas reais que estão na dita capela e se achavam tapadas e pregadas com
tentou anular os levantamentos mas já não havia volta a dar. A revolta expandiu-se um painel da Senhora da Conceição, o escrivão do Compromisso – João da Rosa, pô-las a público, sem olhar a mais
velozmente para sul. Os ecos da insurreição chegaram ao Algarve e foi em Olhão nada e somente confiado em Deus. Indo o povo no dia 13 à festa e vendo o Santo António com as armas destapadas,
sentiu o coração e a alma cheios daquele amor e lealdade, como fiéis vassalos do nosso Bom Senhor, e voltando
à praia embandeiraram todas as embarcações com a bandeira portuguesa, sem temerem o inimigo, e somente
levantando vivas à liberdade, e declarando-se fiéis a Nosso Amado Príncipe.”
6. Cf. Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular – 1808-1814),
Lisboa, Livro Aberto, 2004, p. 25. 8. Cf. Antero Nobre, História Breve da Vila de Olhão da Restauração, Olhão, A Voz de Olhão, 1984, p. 43.
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1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

a ocupação francesa se consumou em Olhão. À porta da Igreja de Nossa Senhora mandou um enviado, João Gomes Pincho, até à esquadra britânica que se encontrava
do Rosário foi afixado um edital de Junot a convidar os portugueses a se aliarem em Isla Cristina, frente a Vila Real de Santo António. Contudo, alegando falta
às forças napoleónicas contra a sublevação em Espanha. O coronel José Lopes de de armamento, os ingleses não prestaram o auxílio pedido. Pincho não desistiu
Sousa, governador de Vila Real de Santo António9, ao ler o edital, não conseguiu e, na companhia do capitão Sebastião Martins Mestre, que se encontrava então
esconder a sua revolta e rasgou o documento, exortando quem ali se encontrava à a bordo da dita esquadra, rumou até Aiamonte. Finalmente, conseguiram algum
resistência. As palavras que proferiu ficaram para a posteridade: “Ah! Portugueses, armamento, com o qual entraram em Olhão no dia 17 de Junho10.
já não merecemos este nome, nada somos já!”. As notícias da revolta de Olhão tinham chegado a Faro. O corregedor Goguet
Tais palavras causaram a comoção do povo que ali se encontrava. Em réplica, os chamou à sua casa algumas das autoridades da cidade, entre as quais o major
olhanenses afirmaram e mostraram como o seu sentimento patriótico ainda estava Landerset, e encarregou-as de seguirem até Olhão e ali acalmarem os ânimos, quer
vivo. Durante a missa que se sucedeu, o pároco também revelou simbolicamente através de ameaças, quer por uma tentativa de negociação com o povo, oferecendo
a sua resistência ao poder francês: o padre António de Matos Malveiro integrou perdões e prémios. Em simultâneo, enviou a Tavira e a Vila Real de Santo António
na cerimónia a chamada Collecta pro Rege, proibida desde a ocupação francesa. Na um pedido de reforços. As tropas francesas estavam, então, canalizadas para a
torre da igreja, a bandeira nacional foi desfraldada e os sinos soaram a chamar os fronteira, na tentativa de reprimirem a revolta andaluz. Segundo Iria, naquele
povos das freguesias vizinhas à revolta. Gentes vindas da Fuzeta, Moncarapacho, momento, os franceses não teriam mais de 900 homens em todo o Algarve11.
Pechão e Quelfes aderiram ao apelo e alistaram-se nas ordenanças capitaneadas por Estava a caminho um total de 185 granadeiros e caçadores de Tavira para
José Martins da Beira. auxiliarem as tropas francesas de Faro – foi esta a notícia que chegou aos ouvidos do
O coronel Lopes de Sousa assumiu, então, a liderança da insurreição. Deu capitão Sebastião Martins Mestre e do coronel Lopes de Sousa. Foram logo tomadas
ordens aos mareantes para embarcarem nas suas lanchas e irem buscar duas peças medidas destinadas a evitar esse reforço militar. Na manhã do dia 18 de Junho,
de artilharia à ilha da barra de Armona. Estes fizeram ainda mais do que lhes fora acompanhado por alguns paisanos armados, Mestre embarcou com o objectivo de
pedido – carregaram também munições e a guarnição militar que se encontrava na enfrentar as forças francesas no mar. Alguns mareantes, entusiasmados, seguiram
ilha, comandada pelo sargento Jacinto Ramalho Ortigão. o capitão com as suas lanchas. Chegados à Barra de Faro, encontraram-se ali com
Os recursos militares foram reorganizados. O povo pegou em armas e juntou- três embarcações, onde seguiam os soldados da famosa Legião do Meio-Dia. Estes,
se aos poucos militares portugueses que resistiam em Olhão. Patrulhas de ao verem os barcos olhanenses a aproximarem-se, julgaram que se tratava apenas
ordenanças a cavalo guardavam as estradas que davam acesso à aldeia. A defesa de lanchas de pescadores que iam para a sua lide marítima. Ao serem apanhados
da costa ficou a cargo de um grupo de pescadores comandados pelo sargento José de surpresa, o capitão Mestre e os seus homens impingiram-lhes uma humilhante
Gonçalves, enquanto que o sargento Joaquim José de Gusmão tentou organizar derrota. Segundo os relatos da época, foram aprisionados 77 soldados da Legião do
uma companhia local de caçadores. Meio-Dia, tal como as suas armas e munições, além de três oficiais de patente e de
Na expectativa de conseguir o apoio militar inglês, o coronel Lopes de Sousa um quartel-mestre.

10. Sebastião Martins Mestre, natural de Castro Marim, iniciou a sua vida militar em Tavira, tendo depois sido
9. José Lopes de Sousa estava, então, em Olhão porque a praça de Vila Real de Santo António tinha sido entregue transferido para a guarnição de artilharia de Vila Real de Santo António. Possuía uma casa comercial em Gibraltar.
ao capitão de artilharia Francisco Xavier Mimoso. Afinal, com a ocupação francesa, a sua presença naquela praça A 5 de Agosto de 1801, recebeu o hábito da Ordem de Santiago. Aquando da invasão de Junot, Mestre era capitão
tornara-se desnecessária e mesmo indesejável. Diz Ataíde Oliveira: “Era por Vila Real que parte dos nossos da 4ª companhia do regimento de milícias de Tavira. Para mais informações biográficas, vide, Alberto Iria, op. cit.,
inimigos tinham entrado. Conservar-se o governador em Vila Real sem dar um tiro era uma vergonha, sujeitar-se a pp. 286-288.
uma luta sem soldados era um contra-senso. Testemunha da nossa fraqueza não quis ele ser.” (Cf. Ataíde Oliveira,
op. cit., p. 230.) 11. Cf. Alberto Iria, op. cit., p. 44.
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1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Ainda no decorrer do mesmo dia, um outro confronto ocorreu na ponte três pescadores, Domingos do Ó Borrego, Joaquim Ribeiro e Lourenço Mendes, os
de Quelfes. Regressado a Olhão, Mestre ficou a saber que as tropas francesas de representantes de Olhão14. Os três paisanos tiveram o cuidado de ocultar a partida
Vila Real de Santo António já tinham chegado até Moncarapacho. Reuniu, então, de Martins Mestre e de Lopes de Sousa para Aiamonte e de salientar a coesão das
os paisanos e pôs-se em marcha. Junto com ele, seguiu a companhia de milícias forças olhanenses.
de Moncarapacho, comandada pelo capitão Manuel Madeira Nobre e pelo alferes O capitão Gaviel regressou a Faro. Numa nova tentativa de negociação, foi
Leonardo Palermo de Faria. Popularmente, ficou conhecida a participação de um acompanhado pelo juiz de fora, pelo corregedor da comarca de Faro e pelo major
velho, de alcunha o Zé da Gaita, o qual, nos domingos e dias de festa, mostrava Landerset até à Quinta do Chantre, nas proximidades da aldeia. Ali, esperavam
orgulhosamente umas condecorações que dizia terem sido conquistadas durante a encontrar o juiz do Compromisso Marítimo de Olhão, José Martins Micano. Porém,
luta contra os franceses12. Devido ao desequilíbrio entre os dois lados da contenda, nunca foi concretizado qualquer acordo pois as atenções francesas tiveram de se
sobejamente comentado pelas fontes, a vitória algarvia na ponte de Quelfes tornou- concentrar num novo foco de revolta. Faro havia-se insurgido.
se no episódio militar mais emblemático do levantamento de Olhão . 13
Os patriotas de Faro aproveitaram o momento em que as autoridades francesas
O general Maurin confiou o contra-ataque francês ao capitão Gaviel. Ao estavam concentradas na tentativa de ajuste da rendição de Olhão para pegarem
tomarem conhecimento de que uma nova investida francesa estava planeada para em armas e iniciarem a insurreição. De uma das torres da Igreja de Nossa Senhora
o dia seguinte, José Lopes de Sousa e Sebastião Martins Mestre embarcaram num do Monte do Carmo, Manuel do Nascimento, conhecido como “o Maneta”, fez soar
caíque rumo a Aiamonte, supostamente em busca de reforços. uma corneta, chamando o povo à revolta.
Em Olhão, a situação dos resistentes começava a ser alarmante. Isolados Também Faro foi capaz de expulsar as forças francesas da cidade em poucos
na sua revolta, enquanto as outras localidades algarvias ainda se encontravam dias. Era, então, necessário assegurar a adesão de todo o Algarve e, para tal, foram
passivamente sob a égide francesa, os olhanenses sofriam com a falta dos enviados emissários a todas as localidades.
mantimentos mais básicos. O Compromisso Marítimo foi mesmo obrigado a pedir Mas a insegurança e a expectativa de um novo contra-ataque francês
esmola para o sustento dos paisanos armados e para o pagamento do soldo aos permaneciam. A 22 de Junho, as tropas napoleónicas, já afastadas de Faro,
artilheiros. Ora, a partida para Espanha dos dois líderes ainda aprofundou mais este empreenderam um novo ataque sobre o Olhão, o qual foi prontamente repelido.
sentimento de abandono. Quem assumiu, então, a liderança da revolta e continuou O Padre Malveira contava com um destacamento de 160 artilheiros comandados
a exortar o povo à resistência foi o pároco local, o padre António de Matos Malveiro. pelos tenentes Maximiliano Augusto Penedo e António Teixeira Valente.
O contra-ataque planeado para o dia 19 de Junho acabou por não se concretizar. Assim, até ao dia 23 de Junho, já todo o Algarve tinha proclamado a
O capitão Gaviel resolvera adiar o confronto até à chegada dos reforços de Tavira. restauração. Do lado francês, tentava-se evitar que o levantamento contra as tropas
Afinal, em Faro, corria o rumor de que os olhanenses contavam com o apoio da napoleónicas se alastrasse por todo o reino. A 26 de Junho, no quartel-general de
esquadra inglesa e que, inclusivamente, esta já tinha desembarcado. Assim, o Lisboa, Junot ainda exortava o povo português à fidelidade para com a França,
capitão francês iniciou as conversações com os insurgentes, na esperança de repetindo o argumento da protecção francesa e da ingratidão dos insurgentes. O
conseguir uma rendição pacífica e, sobretudo, de ganhar tempo. Conta-se que foram general terminava essa proclamação com uma ameaça:

“Eia pois, portugueses, não tendes mais que um instante para


12. Cf. José Fernandes Mascarenhas, A luta contra os franceses em Olhão à luz de novos documentos, Olhão, 1950.
Separata de Correio Olhanense, p. 12.

13. Especificamente sobre este episódio, vide José Fernandes Mascarenhas, A luta contra os franceses à ponte de 14. Domingos do Ó Borrego e Joaquim Ribeiro participaram também na viagem do caíque Bom Sucesso até ao Rio
Quelfes, Olhão, 1981. Separata de A Voz de Olhão. de Janeiro para comunicar a nova da restauração do Algarve ao Príncipe Regente.
28 Olhão, Junho de 1808. 29
1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

implorar a clemência do Imperador, para desarmar a sua ira. Os seus A forma como decorreu o levantamento de Olhão, em muito se assemelhou às
exércitos de Espanha se vêm chegando já para as vossas fronteiras por demais revoltas que se registaram em Portugal contra a ocupação francesa. Ana
vários pontos: perdidos ficareis, se hesitardes. Deponde as armas, tornai Cristina Araújo, no seu estudo Revoltas e Ideologias em conflito durante as Invasões
pacíficos para os vossos lares, imitai a tranquilidade da vossa capital e das Francesas, menciona algumas características comuns a todos estes movimentos:
províncias que a rodeiam. Entregai-vos ao trabalho da vossa agricultura, a sua relação com o calendário litúrgico; o facto das primeiras acções passarem
recolhei essas belas searas que o Céu vos envia depois de tantos receios pela destruição de elementos simbólicos da presença francesa; o papel da igreja; o
de uma horrível fome, de que eu soube preservar-vos. Expulsai entre vós protagonismo de figuras de prestígio local; a evolução do movimento da periferia
com horror esses miseráveis celerados, cujo objecto é só a pilhagem das para o centro; a tentativa das classes dominantes inscreverem a revolta num suporte
vossas cidades; tornai-vos dignos de serdes perdoados por uma pronta institucional; e a sua base ideológica conservadora17. Uma outra característica
submissão, por uma pronta obediência ás minhas ordens. Aliás, eis aqui também a sublinhar: a actuação dos paisanos. Afinal, as medidas de desarmamento
a punição que vos espera. impostas por Junot conduziram à desorganização do exército e, portanto, as
Toda a cidade ou povoação onde se tiver pegado em armas contra o acções militares tiveram de contar com o auxílio do povo armado, organizado em
meu exército e cujos habitantes fizerem fogo sobre a tropa francesa, será milícias18. Ora, todas estas características se registaram nos acontecimentos de
entregue ao saque, destruída totalmente e os seus moradores passados Junho de 1808 em Olhão.
ao fio da espada. Todo o indivíduo colhido de mão armada, será logo A revolta de Olhão foi uma acção popular. É o que os relatos da época deixam
espingardeado.”15 transparecer: um movimento motivado pela ira do povo face a um poder estrangeiro
que o sobrecarregava com uma crescente carga fiscal, a qual punha em risco a sua
Porém, tal ameaça não surtiu efeito no Algarve. A província passou a ser capacidade de sustento. Uma causa patriótica? Não propriamente. Foi a necessidade
governada por um Supremo Conselho de Regência da Justiça e Guerra, mais e a miséria que atearam o patriotismo. Foi a escassez do peixe nas redes e nas mesas,
usualmente denominado de Junta Suprema Provisional do Reino do Algarve, que o pão de um povo de mareantes, que levou os pescadores de Olhão a pegarem em
actuava em nome do Príncipe Regente e no qual tinham representação os quatro armas, levando na boca os vivas à “Coroa” e à “Santa Religião”, um apelo patriótico
grandes grupos sociais: clero, nobreza, povo e militares. Reunida na Igreja de Nossa mais incutido do que natural. Afinal, poucos anos mais tarde, era contra essa
Senhora do Monte do Carmo, em Faro, a Junta elegeu como governador do Algarve, mesma coroa que Olhão se voltaria a revoltar, motivado pela indiferença às suas
o tenente-general Francisco de Melo da Cunha de Mendonça e Menezes, futuro exigências19.
duque de Olhão. Por outro lado, o levantamento foi dirigido por elementos da nobreza e do
A mesma Junta Suprema acordou em enviar à corte no Rio de Janeiro a notícia
da restauração do Algarve. Para isso, rumou ao Brasil um pequeno caíque, o Bom
Sucesso, com uma tripulação de menos de duas dezenas de mareantes 16. 17. Cf. Ana Cristina Araújo, Revoltas e Ideologias em conflito durante as Invasões Francesas, Coimbra, 1985. Separata
de Revista de História das Ideias.

18. Cf. Teresa Bernardino, Sociedade e Atitudes Mentais em Portugal (1777-1810), Lisboa, IN-CM, 1985, p. 177.

19. Após a elevação a vila, os olhanenses reclamaram a autonomia administrativa e judicial face a Faro e a
15. Cf. Proclamação que o general em chefe do exercito de Portugal dirigio aos Portuguezes em consequencia da incorporação de Quelfes, Pechão e Fuzeta no termo de Olhão. Porém, a Câmara Municipal de Faro opôs-se e a
sublevação do Algarve e Resposta à mesma. Reimpresso segundo hum exemplar da edição de Londres, Lisboa, Impressão coroa ignorou igualmente o pedido. Esta ausência de resposta levou os olhanenses a se revoltarem contra o poder
Regia, 1808, pp. 5-6. instituído. Quando, em 1820, rebentou a Revolução Liberal, Olhão colocou-se do lado dos liberais. Tal posição teve,
sobretudo, consequências em 1823, com a contra-revolta da Vilafrancada, quando vários olhanenses foram presos
16. Sobre a viagem do caíque Bom Sucesso, vide infra, pp. 65-69. e conduzidos para as cadeias de Faro. Vide Antero Nobre, op. cit., pp. 61-65.
30 Olhão, Junho de 1808. 31
1. Breve notícia do levantamento de Olhão O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

clero, grupos originalmente apoiantes dos valores conservadores. Indivíduos de


prestígio local, como o coronel José Lopes e Sousa ou o padre António Malveira,
tomaram as rédeas à revolta, organizaram o povo e deram-lhe as palavras de ordem.
Destaque-se, em particular, o papel da igreja. É certo, como já vimos, que num
primeiro momento as autoridades eclesiásticas limitaram-se a seguir as ordens
deixadas pelo príncipe regente de tolerância e hospitalidade para com as tropas
francesas. Porém, quando o povo se levantou, o clero local colocou-se logo ao seu
lado. O primeiro palco da insurreição foi o espaço religioso, no caso de Olhão, a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Nos panfletos revolucionários proliferam os
sermões, a palavra dos homens da igreja contra os ocupantes franceses, acusando-
os de irreligiosidade, de desrespeito para com as instituições católicas. Ora, essa
insolência face ao sagrado, os roubos às igrejas, os ultrajes aos homens do clero, só
por si já exaltavam o povo, enraizadamente sensível ao apelo da religião. A divisa de
defesa da “Santa Religião” caiu que nem uma luva aos ouvidos dos populares.
Sublinhe-se, ainda, que a primeira vitória militar das forças olhanenses frente
aos franceses deu-se no mar, na Barra de Faro. O inimigo foi humilhado naquele
que era o cenário quotidiano dos homens de Olhão, fonte do seu sustento e causa
das suas agruras.
32 Olhão, Junho de 1808. 33
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

2. Olhão, da génese à elevação a vila

O momento em que o espaço correspondente ao que é, actualmente, Olhão


começou a ser habitado é, ainda hoje, uma incógnita, embora sejam muitas as
hipóteses apresentadas pela bibliografia. Antero Nobre considera possível que a
praia de Olhão fosse frequentada desde o domínio muçulmano, ou mesmo antes,
por embarcações que ali iam fazer a aguada20.
Essas origens reconhecem-se quando se considera a toponímia. Também aqui,
as conjecturas têm sido abundantes. Alguns consideraram que o nome “Olhão”
resultara do facto de existir na região um grande olho de água. Também foi
ponderada a hipótese de ser uma derivação do termo “Al-Hayun” ou “Al-Háin”,
fonte em árabe. António Henrique Cabrita pondera uma proposta intermédia.
Considera que “Olhão” não procede directamente do dito vocábulo árabe pois não
é conhecido nenhum outro exemplo de derivação do sufixo “al” para “ol”. Por outro
lado, defende que a evolução lexical de grande olho de água seria sempre “Olheirão”
e não “Olhão”. Assim, a suposição adiantada pelo autor é a seguinte: os muçulmanos
teriam efectivamente chamado ao lugar “Al-Hayun” devido à existência ali de uma
fonte; posteriormente, o termo fixou-se em “Alham” que, por semelhança fonética
e semântica, o povo identificou com “olho”, referente ao dito olho de água – o
resultado foi “Olhão”21.
Certo é que as origens de Olhão residem no facto de ter ali existido uma fonte
de água potável à qual acorriam as tripulações necessitadas de abastecimento.
Segundo uma tradição mencionada por Antero Nobre, teriam sido os pescadores

20. Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 18.

21. Cf. António Henrique Cabrita, Olhão: subsídios para o estudo das origens dos topónimos do concelho, Olhão,
Câmara Municipal de Olhão, 1978, pp. 7-11.
34 Olhão, Junho de 1808. 35
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

de Faro os primeiros a fazerem ali a aguada22. Ataíde Oliveira coloca a hipótese dos Corpo Santo, na freguesia de S. Pedro de Faro 28. No ano de 1670, viviam em Olhão
primeiros habitantes de Olhão terem sido pescadores da região de Aveiro, visto alguns pilotos experientes, os quais foram ouvidos numa consulta sobre a defesa da
que estes partilham com os olhanenses uma série de características em comum, barra de Faro contra os ataques de mouros e espanhóis29.
nomeadamente o mesmo arrojo e audácia e, entre as mulheres, o lavor das rendas Já na segunda metade do século XVII, cuidou-se da defesa do local. Em 1673, era
de bilros23. criada uma companhia de ordenanças em Olhão. Porém, apesar de uma tendência
As relações e descrições do Algarve escritas no século XVI não fazem nenhuma crescente, a população era ainda débil, rondando uma centena.
referência a Olhão. Na Corografia do Reino do Algarve (1577), Frei João de São José Mesmo assim, o povo de Olhão já se fazia ouvir. Em 1665, quando o bispo do
menciona mesmo vários lugares de pequena dimensão como, por exemplo, a aldeia Algarve tentou limitar os gastos com a festa da sua padroeira, de modo a canalizar
de Pereiro (termo de Alcoutim), mas nunca Olhão24. Também Henrique Fernandes essas verbas para o restauro da Igreja de S. Sebastião de Quelfes, os olhanenses
Sarrão, na sua História do Reino do Algarve (1600), não alude o lugar, nem sequer manifestaram o seu descontentamento em pertencerem a esta freguesia 30
.
quando se refere à cidade e termo de Faro . 25
Passaram, então, a solicitar a sua desanexação. Foi-lhes feita a vontade e, em 1695,
Contudo, desde 1378 que existem registos documentais do “Logo de Olham” . 26
D. Sebastião da Gama instituiu a freguesia de Olhão. Esta passava a ser constituída
Inicialmente, tratava-se de um agregado de cabanas de palha, onde os pescadores pelo aglomerado de cabanas na praia, pela igreja e por dois moinhos próximos.
se abrigavam durante as suas pescarias . 27
Tratou-se, então, de construir uma nova igreja, a qual teria sido financiada pelos
No início do século XVII, existia já em Olhão uma ermida de invocação de Nossa próprios olhanenses31. A primeira pedra foi lançada em 1698 e, em 1715, o
Senhora do Rosário, na qual, desde pelo menos 1665, um capelão celebrava missa, Santíssimo Sacramento foi transferido da ermida de Nossa Senhora do Rosário para
pagando os mareantes do lugar 30 mil réis anuais por esse serviço. Também ali a igreja. Na ermida, passou a estar uma imagem de Nossa Senhora da Soledade e foi
se formou uma confraria, encarregada da realização das festividades em honra da fundada uma confraria. O primeiro pároco da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
padroeira. foi o Padre António Fernandes de Ataíde, até então cura de Quelfes. A frequência da
Os mareantes tornaram-se no motor do desenvolvimento do lugar. Tem-se igreja foi crescendo e, cerca de um século depois, esta já albergava cinco sacerdotes
notícias de que, em 1614, eles já pertenciam em grande número à Confraria do e um coadjutor32.
Porém, Olhão era ainda apenas por um aglomerado de cabanas. Em 1712, na
sua Corografia Portuguesa, António Carvalho da Costa descrevia a freguesia desta
forma:
22. Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 18.
“O Olhão fica a uma légua da cidade de Faro, situado na barra, tem
23. Cf. Ataíde Oliveira, op. cit., pp. 48-50.

24. Cf. Frei João de São José, “Corografia do Reino do Algarve”, Duas Descrições do Algarve no Século XVI.
Apresentação, leitura, notas e glossário de Manuel Viegas Guerreiro e Joaquim Romero Magalhães, Lisboa, 28. Cf. Ataíde Oliveira, op. cit., p. 47.
Livraria Sá da Costa, 1983, pp. 23-132.
29. Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 20.
25. Cf. Henrique Fernandes Sarrão, “História do Reino do Algarve”, Duas Descrições do Algarve no Século XVI.
Apresentação, leitura, notas e glossário de Manuel Viegas Guerreiro e Joaquim Romero Magalhães, Lisboa, 30. Desde 1614, quando foi criada a freguesia de S. Sebastião de Quelfes, o lugar de Olhão integrou o seu termo.
Livraria Sá da Costa, 1983, pp. 133-172.
31. Uma carta do padre Sebastião de Sousa, datada de 20 de Abril de 1758, que se destinava a Luiz Cardoso, então a
26. Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 19. redigir o Diccionario Geografico, referia que tinha sido o povo de Olhão a financiar a construção da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário. (Cf. Ataíde de Oliveira, op. cit., p. 54)
27. Cf. Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno., vol. VI, Lisboa, Livraria
Editora Tavares Cardoso & Irmão, 1875, p. 230. 32. Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 29.
36 Olhão, Junho de 1808. 37
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

trezentos vizinhos que moram em casas de cana cobertas de palha, por Corpo Santo de Faro. A confraria passou a estar representada na igreja com um
lhas não consentirem de pedra e cal. É gente rica, que vive da pesca. altar próprio, de invocação de Nossa Senhora da Conceição. Alguns anos depois, em
Eram, antigamente, seus moradores fregueses da Igreja de S. Sebastião 1772, o Compromisso Marítimo de Olhão inaugurou a Casa do Corpo Santo, junto
de Quelfes. O Bispo D. Simão da Gama lhes fundou uma paróquia da à ermida de Nossa Senhora da Soledade.
invocação de Nossa Senhora do Rosário.”33 Como era Olhão no final do século XVIII? Segundo José António de Jesus Martins,
num pequeno trabalho dedicado ao estudo das condições socioeconómicas da aldeia
De facto, até ao ano de 1715, a nova igreja e a ermida primordial eram os dois de Olhão no ano de 1790, a freguesia tinha, então, 1133 fogos, com 2947 pessoas
únicos edifícios de alvenaria da jovem freguesia. Afinal, a Câmara de Faro proibia a maiores, 465 menores e 800 ausentes. Ali, viviam cerca de mil pescadores, com 114
construção de quaisquer edifícios de pedra e cal em Olhão. Contudo, nesse ano, a embarcações de pesca. Estes constituíam o grupo social sobre o qual recaía uma
rainha concedeu uma autorização a um mareante, João Pereira, para levantar uma mais intensa carga fiscal: tinham de pagar contribuições à Casa do Compromisso
morada de casas na praia. A partir de então, outras construções de alvenaria foram e ao pároco da aldeia, além do tributo imposto a cada embarcação. A sua vida era
erigidas em Olhão. ainda dificultada pela insegurança vivida na costa algarvia, permanentemente
O início do século XVIII representou também um momento de crescimento assolada pela pirataria36.
da freguesia em termos geográficos. Afinal, a 8 de Julho de 1722, passaram-lhe Os pescadores olhanenses destacavam-se na navegação de cabotagem,
a pertencer os terrenos que circundavam a povoação. O crescimento também se transportando os produtos algarvios para outros portos da costa portuguesa e
registou na demografia. Em 1732, a população ascendia a 1016 moradores e, em do Mediterrâneo, em particular para o Norte de África. Assim, conseguiam bons
1758, a 244034. Portanto, o terramoto de 1755, que deitou abaixo a cúpula da torre lucros na prática de contrabando. Durante o cerco de Gilbraltar (1779-1783), os
e parte da abóbada da igreja matriz, não afectou particularmente o crescimento olhanenses mantiveram relações comerciais com ambos os lados do conflito. Aliás,
populacional. várias foram as ocasiões em que os mareantes olhanenses souberam tirar partido
O comércio fomentara-se. Em 1752, a feira de S. Miguel, realizada durante os da instabilidade política vivida na Espanha meridional e no Norte de África. Como
dias 28 a 30 de Setembro, foi tornada feira franca. Alguns anos depois, era criada diz Ataíde Oliveira: “É que o marítimo de Olhão, livre como a águia nos espaços,
uma segunda feira anual, entre 18 e 20 de Agosto35. valente e audaz como o leão, manhoso e sagaz como a raposa, não deixa passar um
Mas a pesca continuava a ser a principal fonte de mantimento do povo de acontecimento sem aproveitar a ocasião de tirar dele todas as vantagens.”37
Olhão. No final da década de 50 do século XVIII, partiam correntemente, para fora As estratégias comerciais dos mareantes de Olhão trouxeram a prosperidade à
da Ria Formosa, trinta barcos de Olhão, com tripulações que totalizavam os 500 aldeia. Tal é particularmente visível no crescimento demográfico registado no início
homens. Os mareantes olhanenses ganharam também uma maior autonomia. Em do século XIX. Segundo uma pastoral de 1813, a população de Olhão ascendia já aos
1765, por alvará real, foi-lhes autorizada a criação de uma confraria própria na 5 mil moradores.38
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, ficando, assim, desvinculados da Confraria do Por outro lado, os olhanenses expandiam-se também para lá da aldeia natal.
Antero Nobre refere colónias de pescadores olhanenses na Caparica logo nos inícios
33. Cf. António Carvalho da Costa, Corografia Portugueza, e Descripçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal...,
tomo 3, Lisboa, Officina Real Deslandesiana, 1712, p. 17. 36. Cf. José António de Jesus Martins, Olhão, uma aldeia de pescadores em 1790 (Aspectos Socioeconómicos), Vila
Real de Santo António, edição de autor, 1994.
34. Cf. Ataíde Oliveira, op. cit., p. 55.
37. Cf. Ataíde de Oliveira, op. cit., p. 58.
35. Em 1822, a feira foi transferida para os dias 30 de Abril a 2 de Maio, passando a ser conhecida como Feira de
Maio (Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 30). 38. Cf. Idem, ibidem, p. 57.
38 Olhão, Junho de 1808. 39
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

do século XVIII. Os negócios com o Norte de África também levaram à emigração Palácio do Rio de Janeiro, em 15 de Novembro de 1808. – Principe.”40
dos filhos de Olhão para as praças marroquinas de Ceuta, Tetuão, Rabat, Larache,
Marraquexe e Alger39. Portanto, este alvará não demarcava o termo da vila, nem decretava a instituição
O ano de 1808, além de ter notabilizado a aldeia na revolta contra as tropas de uma câmara municipal e a nomeação de juizes próprios. Apesar de vila, Olhão
napoleónicas, também lhe trouxe a ascensão de categoria. Como recompensa pelos continuava sujeita à vereação e justiça de Faro.
feitos dos olhanenses durante a restauração do Algarve, D. João concedeu o estatuto Através do Compromisso Marítimo, os moradores de Olhão reivindicaram
de vila a Olhão, através de um alvará datado de 15 de Novembro de 1808. os seus direitos municipais. Em Fevereiro de 1809, numa exposição ao príncipe
Ditava o documento: regente, o Compromisso Marítimo de Olhão pediu a incorporação das freguesias de
Quelfes e de Pechão e da povoação da Fuzeta no termo da vila. Também reclamaram
“Eu, o Príncipe Regente, faço saber aos que o presente alvará com força
a nomeação de um juiz de fora, a atribuição do título de “Leal” à vila e a construção de
de lei virem que, merecendo a Minha Real consideração e estima os meus
um monumento evocativo da revolta de Junho de 1808 com a legenda “Lealdade!”.
fiéis vassalos habitadores do lugar de Olhão, no reino do Algarve, pelo
Porém, a Câmara Municipal de Faro não cedeu aos pedidos dos olhanenses. Novas
patriotismo, amor e lealdade com que, no dia 16 de Junho do corrente ano,
demandas foram dirigidas à coroa. A resposta continuou a ser nula, apenas a
se deliberaram, com heróico valor e intrepidez mui própria da valorosa e
indiferença se fez ouvir. Como já se disse, tal levou os olhanenses a se revoltarem
sempre real nação portuguesa, a sacudir o pesado e intolerável jugo francês
contra as instituições vigentes e, durante o movimento liberal, apoiaram a causa dos
com que se viam oprimidos e vexados, dando o sinal da restauração da
revolucionários. Apenas a 18 de Junho de 1826 foi emitido um alvará a estipular
sua liberdade, tiranizada com factos injustos e violências insofríveis,
que o termo de Olhão passaria a integrar as freguesias de Moncarapacho, Quelfes e
e rompendo em vivas á minha Augusta Pessoa e a toda a Real Família,
Pechão. O mesmo alvará formava a nova Câmara de Olhão, com três vereadores, um
arvorando a bandeira portuguesa e propondo-se a sustentar, com as armas
escrivão e um procurador do concelho. A 11 de Agosto, um novo alvará constituiu a
na mão e á custa do seu sangue, a causa da religião e do trono, com tanta
primeira vereação da Câmara Municipal de Olhão.41
perfídia invadido: e querendo eu dar um testemunho de quão bem aceites
por mim foram estes relevantes serviços, praticados com tanto brio, honra
e valor, que foram o primeiro sinal para restaurar a monarquia de que
se tinha apoderado o inimigo comum da tranquilidade da Europa com
manifesta usurpação e ultraje dos meus Reais Direitos e da Augusta e Real
Família; e ao mesmo tempo distinguir entre os presentes e vindouros o
referido lugar de Olhão e seus habitantes: Hei por bem e me apraz erigi-lo
em vila e ordenar que da publicação deste em diante se denomine Vila de
Olhão da Restauração e permito outro sim que os habitadores dela usem de
uma medalha, na qual esteja gravada a letra – O – com a legenda – Viva a
restauração, e o Principe Regente nosso senhor. – Pelo que mando. Dada no
40. Cf. “Restauração do legitimo governo de Portugal na villa de Olhão, em 16 de Junho de 1808”, Memorias da
Academia Real das Sciencias de Lisboa. Classe de Sciencias Moraes, Politicas e Bellas-Lettras, tomo III, parte II, Lisboa,
Typographia da Academia, 1865, pp. 62-63.

39. Cf. Antero Nobre, op. cit., p. 34. 41. Cf. Alberto Iria, op. cit., pp. 292-294.
40 Olhão, Junho de 1808. 41
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

3. O levantamento de Olhão na imprensa e na


literatura

Na revolta contra as tropas francesas, o texto impresso desempenhou um


papel tão importante quanto a luta armada. Foi o periódico, mais ou menos “sério”,
foi o escrito em folha volante, acutilante nas suas críticas, muitas vezes satírico,
outras poético e inspirador do espírito patriótico, que, prolificamente divulgados,
incutiram as bases ideológicas à revolta e lhe deram as palavras de ordens.
Os estudos sobre a evolução da imprensa em Portugal, sobretudo neste período
das invasões napoleónicas, embora não sejam abundantes, têm abordado com
maior ou menor profundidade o papel do texto impresso na formação de uma
ideologia anti-francesa que inspirou a revolta contra as forças invasoras. Aliás, este
foi um período decisivo de viragem na imprensa nacional.42
Os jornais deixam de ser meramente noticiosos para ganharem um forte pendor
crítico. Eram influenciados pelo que se escrevia no estrangeiro, em particular
em Inglaterra e Espanha, mas também em França. Aliás, vários dos textos que
surgiam nos periódicos portugueses e nos panfletos eram traduções de originais
estrangeiros.
Depois de um trabalho de consulta dos jornais portugueses desse ano e da

42. Sobre a história da imprensa em Portugal, em particular durante o período das invasões francesas, vide os
estudos: Georges Boisvert, Un Pionnier de Propagande Liberale au Portugal : João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-
1853), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português, 1982; Nuno Daupias d’Alcochete, “Les
pamphlets portugais anti-napoléoniens”, Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XI, Paris, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1977, pp. 507-515; José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª edição, Lisboa,
Caminho, 1989; Idem, Imprensa e Opinião Pública em Portugal, Coimbra, Minerva, 2006; António Pedro Vicente,
Le Génie Français au Portugal sous l’Empire. Aspects de son activité à l’époque de l’invasion et de l’occupation de ce pays
par l’armée de Junot – 1807-1808. Prefácio de Jacques Godechot, Lisboa, Serviço Histórico Militar, 1984; Idem,
“Panfletos anti-napoleónicos durante a Guerra Peninsular. Actividade editorial da Real Imprensa da Universidade”,
Revista de História das Ideias, vol. 20, 1999, pp. 101-130.
42 Olhão, Junho de 1808. 43
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

literatura panfletária então produzida, verificámos que, sobretudo na imprensa 1808, em Coimbra, começava a ser impressa diariamente a Minerva Lusitana 46.
periódica, é escassa a referência à insurreição de Olhão. Afinal, há um facto que Após a expulsão dos franceses, a imprensa periódica entra numa nova fase.
temos de ter em conta. Em 1808, não existia nenhum órgão de imprensa local ou Boisvert datou-a de 15 de Setembro de 1808 a 1 de Maio de 1809. A Gazeta de Lisboa,
mesmo regional no Algarve43. Todos os periódicos eram produzidos ou em Lisboa, livre da égide francesa, passa a ser o órgão oficial do governo. Novos periódicos
ou no Porto, ou em Coimbra. Olhão estava, assim, muito longe dos olhos e ouvidos começam a aparecer com grande abundância – alguns apenas subsistem durante
do jornalismo português de inícios do século XIX. poucos números, outros perduram durante mais tempo. Segundo José Tengarrinha,
só durante o ano de 1809, foram criados 24 periódicos47. A 21 de Novembro de
1808, Luís de Sequeira Oliva começava a publicar O Lagarde Portuguez ou gazeta para
depois de jantar, um folheto satírico que, logo no seu título, parodiava o comandante
3.1. Imprensa periódica francês Lagarde, intendente-geral da polícia e redactor da Gazeta de Lisboa até
Agosto de 1808. Poucos números depois, a 19 de Dezembro, o título da publicação
À entrada de Oitocentos, a imprensa periódica portuguesa era ainda muito era mudado para O Telégrafo Portuguez ou gazeta para depois de jantar, embora o
débil. No final de 1807, apenas subsistia um único periódico português, a Gazeta de autor e os conteúdos continuassem a ser os mesmos48. O restabelecimento das
Lisboa, órgão oficial da coroa. O início da resistência à invasão francesa provoca o relações com a Inglaterra revelou-se na difusão em Portugal do Correio Braziliense,
crescimento de um espírito crítico, manifestado na imprensa pela sátira contra os publicação mensal editada em Londres desde Junho de 1808 49.
franceses e pela exaltação dos valores patrióticos. Tal obrigou a uma multiplicação Georges Boisvert identifica mais três períodos da imprensa portuguesa nos
dos instrumentos de divulgação. anos seguintes. Entre Maio de 1809 e Agosto de 1810, a Gazeta de Lisboa deixou
Georges Boisvert, no seu estudo Un Pionnier de Propagande Liberale au de ter o privilégio sobre a publicação das notícias nacionais e internacionais, numa
Portugal  : João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853), identifica cinco fases tentativa de se divulgar mais proficuamente as vitórias da aliança anglo-portuguesa.
de evolução da imprensa periódica portuguesa durante o período das invasões O segundo semestre de 1809 marcou o apogeu no desenvolvimento da imprensa
francesas . Demonstra, assim, como essa evolução acompanhou o desenrolar dos
44
periódica. Afinal, a partir de Fevereiro de 1810, começaram a surgir os primeiros
acontecimentos políticos. sinais de repressão política, os quais marcaram a quarta fase identificada pelo
Numa primeira fase, delimitada entre 30 de Novembro de 1807 e 15 de Setembro autor. Essa repressão atenuou-se a partir de meados de 1712, devido à crescente
de 1808, a imprensa periódica foi profundamente influenciada pela ocupação vantagem militar dos aliados.
francesa. A Gazeta de Lisboa, que durante muito tempo foi o único periódico em
Portugal, estava sob o controlo directo de Junot. No final desta fase, com o sucesso
46. Minerva Lusitana, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 12 de Julho de 1808 – 6 de Julho de 1811. Entre os
da revolta contra as tropas napoleónicas, começaram a surgir outros periódicos, seus autores, encontravam-se José Bernardo de Vasconcelos Corte Real e Joaquim Navarro de Andrade.
autênticos órgãos de propaganda e de informação. No Porto, a 27 de Junho de 47. Cf. José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª edição, Lisboa, Caminho, 1989, p. 61.
1808, saía o primeiro número do semanário O Leal Português 45. A 12 de Julho de
48. O Lagarde Portuguez ou Gazeta para depois de jantar, Lisboa, Impressão Régia, 1808. Saía duas vezes por
semana, à segunda e à quinta-feira, em quatro páginas não numeradas, divididas em três secções: documentos,
43. O primeiro periódico de Olhão surge em 1888. Vide Antero Nobre, A Imprensa Periódica no Concelho de Olhão: notícias e anúncios. O Telégrafo Portuguez perdurou até 1814. A partir do n.º 25, de 16 de Fevereiro de 1809, passou
1888-1963, Olhão, 1983. Separata de A Voz de Olhão. a se chamar Telégrafo Portuguez ou Gazeta anti-francesa, título que conservou até 15 de Junho de 1809, quando a
sua publicação foi interrompida. A 1 de Janeiro de 1812, voltou ao prelo durante mais dois anos.
44. Cf. Georges Boivert, op. cit., pp. 256-258.
49. Correio Braziliense ou Armazem Literario, Londres, Impresso por W. Lewis, 1808-1822. Tinha Hipólito José
45. O Leal Português foi publicado entre 17 de Junho de 1808 e 28 de Janeiro de 1809. da Costa como redactor. A sua distribuição foi proibida em Portugal após a Revolução de Pernambuco, em 1817.
44 Olhão, Junho de 1808. 45
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

As referências na imprensa periódica portuguesa aos acontecimentos de Junho pareceram azadas para fixar ao seu jeito a opinião dos portugueses; e
de 1808 em Olhão são escassas. A Gazeta de Lisboa é demonstrativa de como esta até, para mais impor, transtornou os dias da publicação da Gazeta. As
insurreição foi pouco abordada pelos periodistas. Porém, não podemos esquecer que, suas traças contudo foram logo conhecidas da gente judiciosa. (Fica em
então, o invasor dominava inteiramente a redacção do periódico e as insurreições nosso poder tudo quanto ele escreveu pelo seu próprio punho a este respeito.)
contra o poder francês eram completamente abafadas por Lagarde. Por exemplo, Agora, porém, que por especial favor da Providência e mediante a
Lisboa era apresentada como uma cidade completamente rendida às autoridades assinalada vitória que, com o auxilio das armas britânicas, se obteve do
francesas, quando os documentos da Intendência Geral da Polícia registam várias exército francês, e conseguinte retirada do resto das suas tropas, cessou
manifestações populares de resistência50. Assim, até Setembro de 1808, nunca foi um tal flagelo e nós vemos restituídos ao suave governo de Sua Alteza
mencionada a revolta de Olhão na Gazeta de Lisboa. Real nosso legítimo e muito amável soberano, pode o público esperar
O mês de Setembro de 1808 marca a viragem no principal periódico português. que prossigamos na redacção da Gazeta com aquela prudência que as
As armas portuguesas, que tinham sido substituídas pelas insígnias imperiais circunstâncias exigirem, sendo o primeiro objecto do nosso cuidado
francesas, regressaram ao cabeçalho. O novo redactor justificou-se perante os completar o número das folhas que os nossos assinantes têm de menos
leitores, garantindo que Gazeta voltara a pertencer aos portugueses: pelo motivo apontado.”51
“Sem dúvida, haverá notado o público a imparcialidade com que
Foi, então, publicada nas páginas da Gazeta de Lisboa a “Relação da feliz, e
sempre procedeu a Gazeta de Lisboa até à época da entrada do exército
gloriosa restauração do Reino do Algarve”, da autoria de Sebastião Duarte Andrade
francês nesta capital.
Pinto Negrão52. Esta relação tinha sido já integrada, a 27 de Agosto, no diário
Ainda assim, considerando o caso da entrada de um exército, que
conimbricence Minerva Lusitana53 e, em Outubro, seria novamente levada ao prelo
com o pretexto de proteger o país, começou logo a assoberbá-lo, não foi
num número do Correio Braziliense54.
mui estranha a mudança de tom que tivemos de fazer.
De resto, a revolta no Algarve e, em particular, em Olhão, raramente foi
Quando esta mudança começou por certo a fazer-se mais sensível foi
abordada pelos periódicos portugueses. Porém, ressalva seja feita a duas publicações
á chegada do ex-intendente geral da polícia francês, P. Lagarde.
de pendor humorístico.
Aquele magistrado, arrogando à sua autoridade a superintendência
A rendição das tropas francesas no Algarve surgiu satiricamente narrada num
da Gazeta, não só assumiu a sua censura, senão também a sua redacção,
texto publicado na Gazeta do Rossio, “Capitulação ajustada entre o General Maurin
especialmente no artigo de Lisboa. Daqui resultou a grande estranheza
e os Pescadores do Algarve”55. Já a 26 de Janeiro de 1809, o já mencionado Telegrafo
deste artigo desde 14 de Abril até 24 de Agosto porque o dito magistrado,
fiel instrumento dos intuitos cavalosos e pérfidos do seu governo, fez
51. Cf. Gazeta de Lisboa, 18 de Setembro de 1808.
lançar no mesmo artigo todas as fábulas, calúnias e inépcias que lhe
52. Sebastião Duarte Andrade Pinto Negrão, após a revolta de 1808, foi nomeado capitão-mor agregado às
ordenanças de Faro. Em 1816, foi transferido para a praça de Albufeira mas, no ano seguinte, encontrava-se
novamente em Faro, como major das ordenanças. Vide Alberto Iria, op. cit., pp. 285-286.
50. Cf. Ana Cristina Araújo, op. cit., p. 33. Logo a 13 de Dezembro de 1807, deu-se em Lisboa o primeiro sinal de
descontentamento face à ocupação francesa, quando alguns populares se manifestaram perante a substituição da
53. Cf. Minerva Lusitana, n.º 27, 27 de Agosto de 1808.
bandeira portuguesa pela francesa no cimo do Castelo de S. Jorge. Na Gazeta, essa agitação nunca chegou a ser
noticiada. Lisboa surgia, nas páginas do periódico, como uma cidade submissa, grata à presença das autoridades 54. Cf. Correio Brasiliense ou Armazem Literario, vol. I, n.º 5, Outubro de 1808, pp. 410-412.
francesas. A 5 de Abril de 1808, por ocasião da elevação de Junot à categoria de duque de Abrantes, o redactor da
Gazeta descrevia, assim, os ânimos em Lisboa: “À vista destes numerosos testemunhos de alegria pública, pode-se 55. Cf. Collecção das celebres Gazetas do Rocio, que para seu desenfado compôz certo Patusca; o qual andava á pesca
ajuizar do quanto a cidade de Lisboa sabe ser agradecida para com o herói, cuja chegada tão rápida e tão necessária, de todas as imposturas, que o intruso ministério francez fazia imprimir no Diario Portuguez, parte I, n.º 1, Lisboa,
ao tempo da fugida da antiga corte, a livrou dos estragos da Anarquia.” (Cf. Gazeta de Lisboa, 5 de Abril de 1808). Typografia Lacerdina, 1808. Vide a transcrição deste texto em anexo, pp. 74-75. A Gazeta do Rossio foi publicada
46 Olhão, Junho de 1808. 47
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Portuguez publicou um poema humorístico, “O Camões do Algarve”, uma sátira Uma literatura com um público mais alargado, passível de ser lida por todos
à promessa feita por Junot de que o Algarve e a Beira Alta teriam “também um os que tivessem apenas as primeiras letras, facilmente compreensível e capaz
dia o seu Camões” . Neste poema os levantamentos algarvios, em particular o de
56
de criar um ideário popular baseado no amor à coroa e à religião – é assim que
Faro, são referidos como um acto heróico e digno de ser cantado como o foram em se apresentam os panfletos contemporâneos das invasões francesas, autêntico
tempos os feitos de Afonso de Albuquerque no Oriente57. instrumento de construção de um patriotismo popular. Desta forma, é natural que
Se, na imprensa periódica, o levantamento de Olhão foi apenas mencionado de o surto panfletário se registe num momento em que os levantamentos contra a
uma forma ténue e indirecta, integrado nas acções que conduziram à restauração ocupação francesa começavam a se disseminar por todo o reino, em Junho de 1808.
do poder português no Algarve, tal não aconteceu noutro género de publicações Os números não enganam. Entre 1807 e 1815, foram publicados cerca de 1200
– na literatura panfletária, o feito dos olhanenses em Junho de 1808 recebeu um a 1400 panfletos anti-napoleónicos em Portugal, mais de metade dos quais pela
tratamento mais intenso e prolixo. Imprensa Régia60. Segundo Jean Tulard, na sua obra La Legende noire de l’Empereur,
Londres foi o ponto de origem da literatura panfletária anti-napoleónica e Portugal
o lugar de entrada deste género na Europa Continental61. Por outro lado, os panfletos
começaram a proliferar a partir das insurreições registadas em Espanha no mês
3.2. Panfletos de Maio de 1808, inspiradoras da resistência portuguesa. Aliás, vários foram os
panfletos espanhóis traduzidos para português e publicados em terras lusas.
A reacção à presença francesa em 1808 provocou, igualmente, mutações nos Toda a literatura panfletária produzida durante o período das invasões
géneros literários publicados. Em 1822, Adrien Balbi, na sua obra Essai statistique francesas tem em comum uma série de características: a exaltação da Religião,
sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, apresentava uma relação das obras publicadas da Pátria e da Coroa; um profundo patriotismo; a aversão às autoridades e tropas
em Portugal entre os anos de 1800 e 1820, dividindo-as por géneros. Nota-se que, francesas; o enaltecer dos feitos dos aliados espanhóis e ingleses. Às autoridades
a partir de 1807, as publicações mais técnicas (medicina, filosofia, táctica militar, francesas, um poço de corrupção e de imoralidade, é contraposta a virtude da coroa
gramática, etc.) cedem perante a impressão de obras de géneros mais vocacionados portuguesa e do príncipe regente. A partida da corte para o Brasil, apresentada na
para as massas (variedades, novelas, poesia, entre outros) . É a expressão da 58
voz dos franceses como um abandono, é interpretada nos panfletos como um gesto
evolução da literatura panfletária, ainda mais evidente quando observamos os de profundo patriotismo e de amor paternal para com o povo, um acto sensato que
títulos de algumas dessas publicações59. poupou a nação a um brutal derramamento de sangue:
“Sair o Príncipe para estados seus será crime? E contra quem o
entre 1808 e 1809. O título demonstra o seu carácter satírico: representava a contraposição à Gazeta de Lisboa, cometeu? Não, não é este facto criminoso: é sim um efeito do seu paternal
controlada pelos franceses.

56. Essa promessa foi feita por Junot no edital, decretando que, dada a ausência do príncipe regente, Portugal
passaria a ser administrado e governado em nome de Napoleão. Esse edital foi publicado no suplemento Hespanha e a França; Noticia historica dos Crimes, atrocidades e perfidia de Napoleão Buonaparte com estampas; Carta
extraordinário de 5 de Fevereiro de 1808 da Gazeta de Lisboa. curiosa em verso a Mr. Junot com huma Cantata Patriotica; Memoria em que se examina qual seria o estado de Portugal
se por desgraça os Francezes o chegassem a dominar; A perfidia, ou politica infernal entre Lucifer e Buonaparte. Vide
57. Cf. O Telegrafo Portuguez ou Gazeta para depois de jantar, n.º 20, 26 de Janeiro de 1809. Vide, em anexo, pp. mais exemplos in Adrien Balbi, op. cit., pp. cclxx-cclxxv.
76-77.
60. Cf. António Pedro Vicente, “José Accúrsio das Neves – Panfletário Antinapoleónico”, O tempo de Napoleão em
58. Cf. Adrien Balbi, Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve..., tomo II, Paros, Rey et Gravier Portugal. Estudos Históricos, 2ª ed., Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, p. 354.
Libraires, 1822, pp. ccxlj-cccxj.
61. Cf. Idem, “Portugal face à Revolução Francesa – atitudes contraditórias”, O tempo de Napoleão em Portugal.
59. Exemplos: Notavel Patriotismo de huma Matrona Hespanhola nas actuaes circunstancias de guérra entre a Estudos Históricos, Lisboa, CPHM, 2000, p. 128.
48 Olhão, Junho de 1808. 49
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

amor para com os seus vassalos, cujo sangue quis poupar, salvando de exemplos que os panfletários procuravam incessantemente enaltecer nos seus
igualmente a sua Real Pessoa, contra quem os pérfidos atentavam. Ele escritos. Assim, os levantamentos que se registavam de Norte a Sul de Portugal
se entrega às ondas dos vastos mares e nos deixa a última prova do seu no Verão de 1808 serviram de tema a panfletos, quer descritos factualmente
paternal amor, recomendando-nos a obediência ao poder francês, a fim de de uma forma mais ou menos pormenorizada, quer ficcionados em novelas ou
evitar a efusão do nosso sangue. Que amor! Que heroísmo! peças dramáticas, ou simplesmente mencionados em proclamações ou sermões
Ah! Se assim não fizeras, Príncipe Amado, a soberba capital viria o religiosos. Todos os géneros serviam para cantar as empresas do povo português.
sangue de seus filhos correr pelas suas ruas e em caudalosos rios o de Assim, também é em vários géneros que encontramos citados ou descritos os
todos os franceses, cada um procurando seu diferente leito, porque a acontecimentos de Junho de 1808 em Olhão, apresentados como uma luta desigual
honra e a virtude não podem unir-se à insídia, à aleivosia. Lisboa veria tão entre os pescadores de uma pequena povoação algarvia contra um exército francês,
triste cena mas o triunfo também veria. Lisboa seria Baiona mas a presa repleto de memoráveis vitórias no seu passado.
não sairia.” 62
É assim que D. Francisco Gomes de Avelar exortava a vitória dos algarvios frente
às tropas francesas na proclamação que fez a 13 de Dezembro de 1808, invocando
Portugal não estava sozinho na sua luta. A literatura panfletária frisa a restauração do Algarve. Segundo o bispo, a expulsão dos franceses era obra da
constantemente as virtudes dos aliados portugueses contra as forças napoleónicas. Divina Providência: Jesus Cristo foi o “Supremo General”, o capitão das tropas e
De um lado, a coragem de Espanha, que se levantara contra o inimigo comum. milícias portuguesas, quem incutiu a força a um David destinado a vencer o Golias
As vitórias espanholas eram igualmente celebradas em território português, francês. D. Francisco acreditava que Deus estava do lado dos portugueses e que a
reforçando o ânimo dos patriotas. Do outro, o apoio das forças inglesas que, apesar vitória lusa era a única vontade divina:
das limitações impostas pelos franceses, continuaram a rondar a costa portuguesa,
“Este Senhor, pois, vai agora capitaneando as nossas tropas, as nossas
prontas a actuarem a qualquer momento em defesa do seu velho aliado. A tríade
milícias e a nós todos que nos imos aprontar para pelejarmos em massa se
Deus-Coroa-Pátria era partilhada pelas três nações, tal como revelam as seguintes
o inimigo temerário se atrever a procurar-nos novamente. Se marcharmos
palavras do bispo do Algarve:
contra ele, bem sabeis que as nossas bandeiras se ornam com os sinais da
“Valor e ânimo tem dado à Espanha, nossa boa vizinha e aliada, nossa redenção e que as nossas insígnias são as maravilhosas cinco chagas
vitórias sobre vitórias, triunfos e mais triunfos. Valor, ânimo e amizade e os trinta dinheiros, com que o próprio Filho de Deus remiu o Mundo: à
têm trazido ao nosso continente e a toda a Península as generosas tropas
britânicas, muitas delas oferecidas para se distinguirem na defensa da
causa comum: e a constante fidelidade desta nação generosa e sempre
nossa amiga, vem ao mesmo tempo testemunhar os efeitos do que
devemos a Deus, aos nossos Soberanos e à Pátria.”63

As vitórias espanholas surgem como um exemplo de coragem e era este tipo

62. Cf. Proclamação que o general em chefe do exercito de Portugal dirigio aos Portuguezes..., Lisboa, Impressão Regia,
1808, p. 9.

63. Cf. Proclama ou Exhortação Pastoral do Bispo do Algarve, [s.l.], [s.n.], 1808.
50 Olhão, Junho de 1808. 51
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

sombra delas sempre os portugueses venceram e nunca foram vencidos. protecção francesa apenas se traduzira nos mais variados abusos. Por esses, Junot,
É, portanto, necessário que antes que vamos para a batalha, recolhamos o “emissário do despotismo”, como refere o dito panfleto, recebeu a humilhação de
as misteriosas pedras do melhor David contra o gigante soberbo e cheio ver as suas afamadas tropas serem dizimadas por um adversário militarmente tão
de presunção, oremos a Deus eficazmente para que, aplacando a sua inferior. O seu valor militar é posto em xeque67. Ao general não resta outro caminho
ira, nos assista contra os seus próprios inimigos que profanam quanto senão a rendição. Termina assim o panfleto:
Deus tem de mais sagrado. Como Deus peleja connosco, unamo-nos em
“Aproveita pois este momento se queres desarmar a nossa ira.
espírito de religião, pois a guerra é contra o ímpio e perseguidor da Igreja
Aproveita, não ouças os teus subalternos que não duvidam derramar com
e supliquemos ao Senhor Deus dos Exércitos que nos favoreça com a sua
o teu o seu sangue. Aproveita enquanto é tempo. Depõe as armas. Aliás,
misericórdia. Unamo-nos resolutos a obedecer e ser fiéis e logo tomemos as
eis aqui a punição que te espera:
armas para vencer, destruir e até, se possível for, aniquilar esse inculcado
«Capitulação não será recebida. As nossas armas serão depostas sobre
Omnipotente do Universo.”64
gargantas francesas. O sangue de um só português será vingado com o de
toda a França.»
O bispo do Algarve tomava, assim, a resistência às tropas francesas como uma
Em obséquio da Religião, do Príncipe e da Pátria.”68
autêntica guerra religiosa, o confronto entre os valores cristãos dos portugueses e
o ateísmo francês, comparável às cruzadas medievais 65. O amor a Deus e o amor à
Este panfleto é um bom exemplo da retórica patriótica, contrapondo a posição
Coroa caminham lado a lado na formação de uma panóplia ideológica justificativa
das autoridades francesas à do autor panfletário, alegada voz do povo português.
da insurreição contra as forças francesas.
Ora, nesta campanha dialéctica, os argumentos portugueses saem sempre
A evocação de um passado cheio de glórias e de feitos memoráveis coloca mais
triunfantes.
uma pedra nessa construção. É uma resposta à protecção francesa, mencionada
Outro género literário de eleição entre a produção panfletária é a poesia. Após a
insistentemente por Junot. Esta seria novamente invocada a 26 de Junho de 1808,
restauração, a poesia patriótica ganha um novo impulso69. No que respeita ao caso
quando o general condenou os levantamentos no Algarve, considerando-os actos de
algarvio, é de salientar o poema O Novo Argonauta, escrito por José Agostinho de
uma vergonhosa ingratidão para com um exército que apenas pretendia assegurar
Macedo em 180970. O tema central era a viagem do caíque Bom Sucesso ao Brasil,
a independência do reino face a Espanha. Num panfleto surgia a resposta do povo
algarvio: nem essa protecção alguma vez existiu, nem nunca Portugal necessitou 67. “Ah! A antiga França já não existe: esta é hoje a nova França! É com estes soldados que pretendes vencer-nos?
dela; a independência portuguesa fora conquistada com os seus próprios meios Pérfido! São estes os soldados do bravo exército do Gironda, do Marengo, de Austerlitz, de Fridieland? Envergonha-
te! Se são os mesmos, estão a perfídia ou a compra vencerão as batalhas.” (Cf. Ibidem, p. 11).
e a sua manutenção não dependia de nenhuma acção do exército francês66. A
68. Cf. Ibidem, p. 14.

69. Cf. Teresa Bernardino, op. cit., p. 195.


64. Cf. Ibidem.
70. O Padre José Agostinho de Macedo (1761-1831) era natural de Beja e, numa primeira fase da sua vida religiosa,
65. “A guerra, que vamos a fazer, bem se pode chamar de Religião, como as que temos feito aos seguidores de foi eremita augustiniano. Porém, aos 30 anos, depois de expulso da ordem, passou a presbítero secular. Foi pároco
Mafoma.” (Cf. Ibidem) em Lisboa e ficou conhecido pela sua capacidade retórica. Em 1802, era pregador régio e, entre os anos de 1824
e 1829, desempenhou a função de censor do ordinário. Deputado substituto às Cortes ordinárias de 1822, oito
66. “Por ventura, dependemos de ti ou do teu infeliz amo? Quereis persuadir-nos que sem a tua tantas vezes anos depois foi nomeado cronista do reino. Viria a falecer passados poucos anos, em Pedrouços. Sócio da Arcadia
apregoada protecção ficaremos sendo uma província da Espanha? Não tem Portugal conservado a sua de Roma e da Academia de Belas-Letras de Lisboa, Macedo foi um profícuo autor, notabilizando-se em vários
independência? Acaso ignoras, que não sofre jugo alheio? Não tens exemplos? Que te importa a desgraça que julgas géneros: poesia, teatro, sermões, obras de filosofia, miscelâneas históricas, etc. Entre os seus títulos dedicados às
consequente da sujeição espanhola? Por ventura te rogamos auxílio? É forte mania!” (Cf. Proclamação que o general invasões francesas, destacamos: Carta de despedida ao resto do exercito francez, pelos fieis e honrados portuguezes
em chefe do exercito de Portugal dirigio aos Portuguezes..., Lisboa, Impressão Regia, 1808, p. 8) (1808); Sermão prégado na igreja de N. Senhora dos Martyres a 23 de Novembro de 1808, por occasião da festividade na
52 Olhão, Junho de 1808. 53
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

com a missão de comunicar a notícia da restauração do Algarve ao príncipe regente. Voltada aos Céus a imagem respirante,
Segundo o autor, o feito destes “argonautas” olhanenses deveria ser cantado como E no soberbo pedestal não grava
uma grande empresa da história naval portuguesa. Aliás, Macedo considera que Os atributos da naval ciência,
a literatura portuguesa vinha a descurar os grandes feitos nacionais e, assim, era Co’a mente em fogo acesa e ás Musas dada,
um dever patriótico cantar os bons exemplos71. É para suprir essa “imperdoável Á Pátria, ao Trono, ao Mérito, á Virtude
lacuna” que ele escreve o poema, disposto a não deixar cair no olvido a empresa dos Que a façanha inspirou, que o herói coroa,
tripulantes do Bom Sucesso, símbolo do ardor patriótico. O feito do piloto Manuel Este tributo de louvor consagro.”72
de Oliveira Nobre e dos seus companheiros de viagem é superior até ao dos maiores
navegadores portugueses: os modestos pescadores arriscaram-se pelo mar adentro Os responsáveis pelo levantamento de Olhão surgem na literatura panfletária
num pequeno batel, motivados pelo mesmo amor à pátria que encorajara o povo de como exemplos de coragem e de lealdade à coroa, autênticos heróis da pátria.
Olhão a se revoltar contra o invasor francês. Canta Macedo: Panfletos são escritos para contaminarem os leitores com esse mesmo ânimo
“Maior prodígio os séculos guardavam, e a melhor maneira de o fazerem é através da narração de tais feitos “heróicos”.
Quando a cobarde tirania oprime Desta forma, a revolta de Olhão aparece retratada pela mão de vários autores,
A pátria dos heróis, quanto pretende alguns anónimos, outros claramente identificados, uns activos participantes nos
Abater, degradar almas sublimes, acontecimentos, outros meros observadores.
Honra da espécie humana e lançar ferros Com a data de 17 de Setembro de 1808, circulou um panfleto denominado de
Ao colo português; então de Lísia Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, o qual descrevia os acontecimentos
O filho ilustre as ondas avassala ocorridos entre o início da revolta, no dia do Corpo de Deus de 1808, e a formação do
Em pequeno baixel. Exército do Sul, dando particular relevo, como nota o título, ao papel desempenhado
[...] pelo coronel José Lopes de Sousa73. A narração é antecedida por uma gravura
Enquanto a pátria agradecida ao feito representando o momento em Lopes de Sousa rasgou o edital de Junot perante a
Prepara ao grande navegante os louros, exaltação do povo presente.
Enquanto o bronze e mármore não mostram De uma forma factual, o autor acompanha cronologicamente os principais
acontecimentos que marcaram o levantamento de Olhão e a luta contra o exército

restauração d’este reino (1809); Ode à ambição de Bonaparte (1813); Ode ao invicto Wellington (1814). (Cf. Inocêncio
Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez, tomo IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, pp. 183-203.). 72. Cf. Idem, Ibidem, pp. 46-48.
A bibliografia sobre José Agostinho de Macedo é abundante. Destaque para a recente obra de Maria Ivone de
Ornellas de Andrade, José Agostinho de Macedo: um iluminista paradoxal, Lisboa, Colibri, 2001. 73. O autor do panfleto não é identificado. Ele refere que se encontra a copiar uma notícia de que tivera conhecimento,
a qual denomina de “Declaração da Revolução principiada no dia 16 de Junho de 1808 no Algarve e Lugar de Olhão,
71. “Com o prazer ou com o dever patriótico de publicar esta acção que aumenta o catálogo dos rasgos maravilhosos pelo Governador da Praça de Vila Real de Santo António, José Lopes de Sousa, para a Restauração de Portugal”. O
da fidelidade portuguesa e, desta maneira, a salvo do esquecimento em que outros muitos têm ficado sepultados, ou autor dessa notícia também se mantém anónimo. Colocamos a hipótese se não seria o próprio José Lopes de Sousa
por incúria dos escritores, ou pela natural magnanimidade dos portugueses que, pagos da consciência das grandes o redactor do texto. É verdade que, na primeira parte, o autor refere o governador na terceira pessoa (“Achando-se o
acções, morrem com elas sem curar da posteridade de que se fazem senhores quando as praticam. Em Portugal dito Governador no mencionado lugar [...]”; “O Governador os sossega [...]”), porém, mais à frente, é escrito: “Então,
nunca faltaram talentos capazes de escreverem ditos e factos memoráveis, como Valério Máximo, e de eternizarem unido este capitão com o meu enviado João Gomes Pincho [...]”. Vide infra, em anexo, pp. 78-79. Por outro lado,
as vidas dos varões ilustres, como as eternizaram Plutarco e Cornélio Nepos; mas não sei que indolência os conteve, o facto do autor mencionar José Lopes de Sousa na terceira pessoa não é determinante. Afinal, também Joaquim
talvez que a invencível inclinação que temos de admirar mais os estrangeiros que os nacionais nos torne insensíveis Filipe Landerset, na sua Breve Notícia da Feliz Restauração do Reino do Algarve, refere-se a si mesmo na terceira
às grandes proezas que temos obrado.” (Cf. José Agostinho de Macedo, O Novo Argonauta, 2ª ed., Lisboa, Typografia pessoa verbal: “[...] fez chamar a casa do General o Corregedor, o Juiz de Fora da terra e o Major Joaquim Filipe de
de Bulhões, 1825, pp. 10-11). Landerset [...]”. Vide infra, em anexo, p. 90.
54 Olhão, Junho de 1808. 55
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

francês. Além do próprio José Lopes de Sousa, é dado destaque a outras figuras da relação. O protagonismo cabe a Sebastião de Brito Cabreira, mencionado ao
centrais da restauração do Algarve, nomeadamente ao capitão Sebastião Martins longo de todo o texto como A. (autor). Também a perspectiva dos acontecimentos
Mestre e ao tenente Belchior Drago Cabreira . Ao sublinhar, sobretudo, figuras
74
é a sua. Por outro lado, o estilo literário é o de um homem de letras, como o era
militares, a fonte transparece a sua própria essência. Afinal, trata-se de uma relação António Maria do Couto. Contudo, este nunca se evidencia ao longo do texto como
militar que dá um particular ênfase à luta armada e à forma como foi realizado o sendo o autor, essa categoria é permanentemente atribuída a Cabreira. Assim,
abastecimento de munições e armamento para o reforço das hostes olhanenses. 75
cremos que a hipótese mais viável é a de que Couto escreveu o que ouviu da voz
A mesma perspectiva militar encontra-se patente na relação de um outro oficial do tenente-coronel. Porém, no presente trabalho, vamos respeitar as palavras de
que participou activamente na restauração do Algarve, Sebastião Drago de Brito Couto e atribuir a autoria do texto a Cabreira.
Cabreira76. Em 1809, é publicada a Relação Histórica da Revolução do Algarve contra Logo nas primeiras linhas da relação, o autor promete que vai narrar os
os franceses, “oferecida aos seus compatriotas e dada à luz por António Maria do acontecimentos ocorridos no Algarve em 1808 e não só aqueles que presenciou
Couto” . Esta observação coloca a dúvida sobre quem teria sido o verdadeiro autor
77
mais de perto, visto que “não devo passar em silêncio o nome e o esforço de meus
patrícios que tanto cooperaram para a liberdade da pátria”78. Novamente, e como
em tantos outros testemunhos, é essa necessidade de perpetuar uma memória o
74. Belchior Drago Valente de Brito Cabreira (1762-1834) iniciou a sua carreira militar logo em 1776. Ao lado dos
irmãos, Sebastião, Deoclesiano e Severo, participou nas campanhas do Roussilhão e da Catalunha, na sequência que move a pena de Cabreira. Tal memória é também a de si próprio, a dos feitos
das quais foi preso pelos franceses, a 28 de Novembro de 1794. Acabou por regressar a Portugal no Outono de que cometeu durante a restauração do Algarve. Tanto assim é que a revolta de
1795, promovido a tenente efectivo. Ainda antes da primeira invasão francesa, foi administrador dos armazéns de
munições de Castro Marim. Como recompensa pelos serviços prestados na expulsão dos franceses, promoveram- Olhão é vista do lado de fora, a partir de Faro, onde o autor se encontrava. Desta
no a capitão, em Julho de 1808. No ano seguinte, recebeu foro de fidalgo cavaleiro da Casa Real e, cinco anos forma, faltam os pormenores que encontramos noutras descrições. Para não deixar
depois, de cavaleiro da Ordem de Cristo. Em 1817, já com a patente de major, foi nomeado governador da praça de
Vila Real de Santo António. Abraçou a causa liberal, razão pela qual acabou por ser preso em 1823. Condenado ao dúvidas da veracidade do seu testemunho, no final da relação, são transcritos
degredo, apenas regressou às funções de governador de Vila Real após a vitória do liberalismo. Vide, Alberto Iria,
alguns documentos justificativos do que fora narrado79.
op. cit., pp. 250-251.
O autor adverte para que não se julgue que as suas acções na “Revolução do
75. Cf. Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, [s.l.], [s.n.], 1808. Em anexo, o documento encontra-se
parcialmente transcrito, vide pp. 78-81. Algarve”, como ele próprio a denomina, foram movidas pela vaidade ou pela vã
esperança de recompensa. Cabreira termina a sua relação exprimindo o desejo de
76. Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira (1763-1833) iniciou a sua carreira militar no regimento de artilharia
n.º 2 de Faro, sua cidade natal. Formado em Matemática na Universidade de Coimbra, participou nas campanhas que tal empresa fique para a posteridade, como exemplo para as gerações futuras:
do Roussilhão e da Catalunha, ao lado dos seus irmãos Bechior, Severo e Deoclesiano Cabreira. Foi também ao lado
dos irmãos que liderou a revolta de Faro contra as tropas francesas em 1808. Pelos serviços prestados, recebeu o “De toda esta relação que, sem afecto ou paixão, escrevi, se deduz
título de cavaleiro fidalgo e a comenda da Ordem de Avis. Promovido a coronel, Cabreira teve um papel activo na
revolta de liberal de 1820 no Porto, tendo sido nomeado vice-presidente da Junta do Governo. Regressou a Lisboa que tudo quanto o autor fizera não foi por aspirar àquele grau a que
em 1823 mas, com a contra-revolução miguelista, foi obrigado a emigrar para França. Ainda regressou a Portugal ordinariamente sobem os espíritos nobres e não vulgares no centro de uma
em 1827 mas, no ano seguinte, partiu para Inglaterra e, dali, passou para os Açores. D. Pedro nomeou-o presidente
do governo provisório da Ilha Terceira em 1829. Participou no desembarque no Mindelo e, em 1832, recebeu o revolução feita por um povo que neles confia; [...] e que não foi o espírito
ofício de governador interino das armas do Porto e Minho. Vide Alberto Iria, op. cit., pp. 283-285.

77. António Maria do Couto (m. 1843) era professor régio de grego, cargo do qual foi demitido em 1828, devido à 78. Cf. Sebastião Drago de Brito Cabreira, Relação Histórica da Revolução do Algarve contra os franceses que
sua posição política. Porém, em 1833, regressaria à mesma função. Sete anos depois, era nomeado reitor do Liceu dolozamente invadírão Portugal no ano de 1807..., Lisboa, Typografia Lacerdina, 1809, p. 5.
Nacional de Lisboa. Destacou-se não só como autor mas também como tradutor, tendo publicado uma tradução
da Ilíada em 1810. Foi ele o responsável pela publicação do periódico satírico Gazetas do Rocio. Entre as obras que 79. Surgem intitulados de “Autos de petição e justificação do Tenente Coronel do Regimento de Artilharia n.º 2,
dedicou à temática das invasões francesas, destacamos as seguintes: Resumo historico das diversas invasões dos Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira”. Através destes, Cabreira propõe-se a provar 33 proposições, algumas
francezes na Europa (1806); Memorias sobre a má política do Ministerio francez em Portugal nos annos de 1807 e relativas aos acontecimentos de Olhão, como a ausência de tropas francesas quando ali se deu o levantamento e o
1808 (1808); Delirios de Napoleão e travessuras de Champagny (1810); Resolução de Talleyrand sobre os progressos da facto de José Lopes de Sousa não se encontrar em Olhão quando se iniciou a revolta de Faro e de apenas ter voltado
França da Península (1811). (Cf. Inocêncio Francisco da Silva, op. cit., tomo I, pp. 197-200; tomo VIII , pp. 243-244). ao Algarve após a evacuação dos franceses.
56 Olhão, Junho de 1808. 57
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

do autor em dar ao prelo a presente relação documentada a esperança de Num registo teatral, ficcionava-se os factos, caricaturizava-se Napoleão e os seus
prémios e graduações que morrem com o homem, mas sim aquela fama oficiais, satirizava-se a debandada das tropas francesas frente às hostes portuguesas.
e aquele nome que justamente adquire todo o homem de bem por suas Um dos nomes que se destacou neste género foi o de Luís de Sequeira Oliva
acções, do qual sim nos pode momentaneamente esbulhar a inveja e o e Sousa Cabral, o editor de O Lagarde Português e, posteriormente, de O Telégrafo
ciúme, mas não a posteridade que mais imparcial combina por não ter Português, como já vimos82.
émulos, as façanhas de seus antepassados [...]”80 Oriundo de uma família da pequena nobreza, Sequeira Oliva formou-se em
Direito mas foi nas belas-letras que se notabilizou. Durante as invasões francesas,
O major Joaquim Filipe de Landerset também quis deixar o seu testemunho deu o seu contributo à causa patriótica, não só através da escrita mas também da
para que o tempo fizesse a sua devida justiça81. Com as suas iniciais (I. F. L.), sua acção na frente da batalha, tendo integrado o Exército do Sul83. Muitos dos
assinou uma Breve Noticia da Feliz Restauração do Reino do Algarve. Esta é a relação panfletos que escreveu encontram-se assinados pelo pseudónimo L. S. O. Português.
que mais pormenorizadamente narra o início da revolta em Olhão. Aliás, entre os Afinal, o uso de pseudónimos e de abreviaturas era uma prática recorrente entre os
documentos já referidos, este é o único que também engloba o primeiro sinal de autores panfletários.
revolta do povo olhanense, na noite de 12 de Junho de 1808, véspera de Santo O humor era um meio abundantemente utilizado por Luís de Sequeira Oliva
António. e são conhecidos alguns textos satíricos em que ele abordou a restauração do
Landerset era, então, major da praça de Faro, agregado ao regimento de Algarve. Em 1808, escreveu um panfleto, Dialogo entre as principaes personagens
infantaria n.º 14 de Tavira. Quando o corregedor-mor francês organizou uma francezas, no banquete dado a bordo da Amavel por Junot no dia 27 de Setembro de
“comissão de negociadores” destinada a ir a Olhão persuadir os revoltosos a se 1808, no qual imaginou um banquete ocorrido durante a viagem de Junot e dos
renderem, foi a ele que recorreu para ser o intérprete. Do resto da história, o próprio outros altos oficiais franceses após o abandono de Portugal. Então, as personagens
Landerset deixou testemunho – ao saber do início da revolta em Faro, juntou-se recordavam as dificuldades que haviam encontrado na Península Ibérica. O general
aos olhanenses contra as tropas francesas. Essa sua atitude valeu-lhe novas honras de artilharia Taviel relembra mesmo os implacáveis inimigos que tivera de enfrentar
depois de restaurado o poder português no Algarve. A 11 de Julho de 1808, foi no Algarve, “[...] o Monteiro-Mor, Cabreiras, José Lopes e Landercet”84. Uma outra
promovido a tenente-coronel.
Assim, nesta Breve Notícia, Landerset contextualiza a revolta no Algarve com o
82. Luís de Sequeira Oliva e Sousa Cabral (1778-1815) nasceu em Casfreires, na Beira. Em 1802, obteve o grau
início das insurreições no reino, em particular no Norte, narrando os acontecimentos de bacharel em Direito na Universidade de Coimbra. Regressou, então, à sua terra natal, onde exerceu advocacia.
Porém, acabaria por emigrar para Paris e dedicar-se ao estudo da Química. Esteve durante três anos a trabalhar
dia a dia nos dois palcos de acção, Faro e Olhão. É uma estrutura diferente da que
sob a direcção de Nicolas Vauquelin e apresentou uma memória sobre o mercúrio, publicada nos Annales de Chimie.
surge nas outras relações e revela como eram abundantes as informações e os Ao regressar a Portugal, tornou-se 1º tenente do corpo de engenheiros e encarregado da direcção de uma fábrica
de refinação de salitre em Moura. Durante as invasões francesas, integrou as hostes patrióticas. Entre as obras que
informadores que o autor tinha em ambos os lados do conflito. publicou, dedicadas às invasões francesas, além das mencionadas no presente trabalho, destacamos as seguintes:
Outro género de eleição entre os autores panfletários era o texto dramático. Verdadeira vida de Bonaparte até à feliz restauração de Portugal (1808); Dialogo entre Bonaparte e seu irmão José,
Buthier e Lasnnes ácerca da declaração de guerra pela Austria (1809); Carta dirigida a S. A. Mr. Massena, general em
chefe da expedição contra Portugal, pelo auctor do antigo Telegrapho portuguez (1810). Cf. Inocêncio Francisco da
Silva, op. cit., tomo V, pp. 320-321; tomo XVI, p. 69; Georges Boisvert, op. cit., pp. 285-290.
80. Cf. Sebastião Drago de Brito Cabreira, op. cit., p. 37.
83. É o próprio que o refere no final do seu poema “O Camões do Algarve”: “Esta bagatela poética foi feita em
81. Joaquim Filipe de Landerset era filho de um oficial suíço ao serviço do exército português, Jaques Filipe de Azeitão, quando o nosso Exército do Sul tinha aí o seu quartel-general. E eu tive a honra de acompanhá-lo.” (Cf.
Landerset de La Tour. Em 1804-1805, por ocasião da peste que alastrava em Cádis e Gibraltar, Landerset serviu no Luís de Sequeira Oliva, “O Camões do Algarve”, O Telégrafo Português, n.º 20, 26 de Janeiro de 1809. Vide infra,
cordão sanitário destinado a proteger o Algarve de tal flagelo. Faleceu em Faro, a 1 de Maio de 1809, pouco depois em anexo, p. 77).
de lhe ter sido confirmada a patente de tenente-coronel pela coroa. Vide Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve
(Subsídios para a História da Guerra Peninsular – 1808-1814), Lisboa, Livro Aberto, 2004, pp. 266-269. 84. Cf. L. S. O. Português, Dialogo entre as principaes personagens francezas, no banquete dado a bordo da Amavel por
58 Olhão, Junho de 1808. 59
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

personagem, Carion de Nisas, apresenta uma carta de Amaro da Fonseca Charroco, Adeus, adeus, que tocam os sinos de Olhão e Faro, creio que é para
um olhanense que fora grande amigo de infância de Napoleão. Essa carta vale uma receber a tua Legião do Meio-Dia com aquelas honras que ela merece.
transcrição parcial: Quero achar-me presente, ela te levará notícias da nossa cortezania.
Saudades às manas e à mãe. Sou teu amigo em bom português”86
“Amigo Bonaparte, há 24 anos que não vejo, nem tenho podido escrever
por falta de portador certo. Não posso, contudo, queixar-me de não ter
Charroco apresenta-se, assim, como a imagem de Portugal, a quem Napoleão
notícias tuas, pois que a nossa Gazeta de Lisboa quase sempre falava
fez “festinhas” para lhe “sacar figos”, uma evidente metáfora à chamada “protecção
de ti e a dos nove meses passados não falava em outra coisa. Como te
à francesa”, tão satirizada pela literatura panfletária. É este Charroco, sempre num
fizeste Imperador, é natural que te não lembres do teu Amaro da Fonseca,
tom amistoso, quem aconselha Napoleão à rendição, a dar por terminada a grande
a quem fazias tantas festinhas para lhe sacares alguns figos e que pela
peça de teatro que foi o Império e a abandonar a personagem de Imperador que
muita confiança que lhe davas, te tratava por tu: perdoa se hoje te dou o
interpretara nos últimos anos, regressando à sua Córsega natal.
mesmo tratamento, sou Portugal velho, foras tu um santo, certamente
Este bravo olhanense, que Luís de Sequeira Oliva garante não ser uma
não mudava de tom.
personagem fictícia, regressa à pena do autor numa outra peça, Restauração dos
Vamos ao que serve. Dizem por cá tanto mal de ti, que pela confiança
Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, a qual retrata os acontecimentos decorridos
que sempre tive com a tua família, principalmente com tua mana mais
entre o levantamento de Olhão e o início da revolta em Faro. Entram em palco
velha, a mulher do Joaquim, não posso deixar de dar-te alguns saudáveis
personagens cuja existência real é conhecida, como o general Maurin, e outras
conselhos, ainda que faças deles o caso que fizeste dos do teu grande
que, embora fictícias, eram representativas de grupos ou individualidades que
amigo Talleirand. Amigo Bonaparte, fique aqui entre nós, a asneira está
protagonizaram o levantamento do Algarve contra as tropas napoleónicas.
feita e o borrão lançado. Eu sempre disse que a tua demasiada esperteza
A peça inicia-se com Maurin a receber uma carta de Junot que o alertava para o
e mau génio não a podia fazer limpa e quando soube que te fizeras cônsul
perigo da insurreição em Espanha atravessar a fronteira e chegar a Portugal. Porém,
e Imperador, pus as mãos na cabeça e disse a quem me quis ouvir que
o general já se consciencializara desse perigo e tinha mesmo uma solução na manga:
te queriam deitar a perder. O que acabas de fazer à Espanha justifica o
meu prognóstico. Estás perdido, meu pobre Bonaparte, armaram-te “Tomar todas as medidas para que os vassalos do meu governo se
uma entrega e já não podes sair bem da festa. Se queres, contudo, ainda não revoltem; acarear os grandes e punir os pequenos. É necessário,
salvar-te, abraça estes salutíferos conselhos. Manda logo sair as tropas primeiro que tudo, observar de perto os que nos poderiam ser danosos,
da Península se não olha que ficas sem elas; entrega aos espanhóis o seu dirigindo o furor patriótico; finalmente, todos os que gozando entre os
Fernando85, senão arriscas-te a que to vão buscar por força! seus compatriotas da estima pública, adquirida pelas armas ou pela toga,

[...] Eis o único recurso que te resta, meu Bonaparte, dá-te pressa a possam servir de cabeça aos insurgentes.”87

executá-lo, senão queres perder a vida, e volta para a Córsega, onde para o
Oliva acrescenta um enredo romântico a este “drama histórico”, protagonizado
ano que vem te darei um abraço, se tiver boa colheita de figos.
por Julieta, uma donzela francesa que emigrara para Faro ainda antes da invasão

Junot no dia 27 de Setembro de 1808, Lisboa, Typografia Lacerdina, 1808, p. 22. 86. Cf. L. S. O. Portuguez, op. cit., p. 41.

85. Fernando VII de Espanha, afastado do trono por Napoleão, o qual foi ocupado pelo seu irmão, José I, rei de 87. Cf. Idem, Restauração dos Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, Drama Historico em Tres Actos, Lisboa,
Nápoles. Impressão Régia, 1809, p. 7.
60 Olhão, Junho de 1808. 61
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

das tropas napoleónicas. Ela é irmã do Ajudante de Ordens do General Maurin, incapazes de fazerem fogo contra os seus conterrâneos. Sequeira Oliva intercala as
personagem que representa o emigrante colaboracionista, vendido ao poder cenas do exército português com as do francês, propondo assim uma analogia entre
francês e sedento do derramamento de sangue luso. Julieta nutre uma paixão pelo o espírito de ambas as formações, a primeira imbuída pelo entusiasmo patriótico e
Capitão de Artilharia Português (assim mencionado na peça), um jovem patriota pronta a se sacrificar contra as ordens francesas, a segunda a ansiar pelo saque da
que, devido às suas obrigações de militar, se encontra ao serviço do invasor. A aldeia e pela aniquilação do povo rebelado.
donzela está perante um dilema: o seu sangue apela para que siga os interesses da As tropas francesas chegam a Olhão e deparam-se com o cenário da revolta.
sua França natal, enquanto que o seu amor a leva ao apoio aos portugueses . 88
Vêm-se alguns homens vestidos de vermelho que o Capitão Francês teme serem
O Capitão é a primeira voz da revolta a ouvir-se na peça. É ele quem alerta militares ingleses desembarcados. Oliva satiriza, assim, a confusão dos oficiais
Maurin para os abusos cometidos pelas suas tropas e como estes atiçaram a revolta franceses ao identificarem as barcas dos pescadores olhanenses com as embarcações
entre os portugueses: ou o general pune devidamente tais excessos ou a insurreição da esquadra inglesa. Um Ministro de Faro (possivelmente uma referência a Joaquim
instala-se. Porém, o levantamento no Algarve já havia começado em Olhão. O Filipe de Landerset) que se encontra entre os negociadores ridiculariza o temor
Ajudante aconselha Maurin a tomar medidas enérgicas, a aniquilar os insurgentes. do Capitão e a própria tentativa de negociação, dado o desequilíbrio entre as duas
Contudo, o general opta por uma solução mais benevolente e ordena que se iniciem forças: “Não posso acreditar que os franceses se abaixem ao ponto de quererem
as negociações de paz. Dá também ordens para o Capitão Português comandar as tratar diplomaticamente com uma pobre povoação de pescadores [...]”90.
suas tropas de modo a salvaguardarem a retaguarda do exército francês. Mas o Aparecem, então, três personagens representativas dos olhanenses insurrectos:
espírito do Capitão está imbuído de zelo patriota, pronto a se juntar aos revoltosos: dois pescadores, Charroco e Amaro, e uma mulher, Mariana. Vendo ali apenas
aqueles paisanos, o Capitão tenta saber quem é o líder da revolta, ao que eles, para
“Querida Pátria, há quase sete meses que gemes entre os ferros, é tempo
o amedrontar, falam de um militar português que se juntara à esquadra inglesa.
de correr às armas para libertar-te. Os pérfidos opressores nos indicam o
Apresentam, então, as suas condições para a paz:
caminho e sua cobardia nos assegura a vitória. Em Faro, apenas ficaram
“[...] Artigo I: Haverá paz entre os habitantes da vila de Olhão e tropas
alguns guardas, eles mesmos armaram os nossos para os combatermos; e
francesas existentes e outras quaisquer que, para o futuro, possam invadir
qual será o oficial ou soldado português que se não preste voluntário para
os Algarves por mar e por terra. Artigo II: Será livre aos habitantes da
salvar a Pátria! Corramos a sondar o espírito dos habitantes desta cidade;
dita vila pescar como dantes e fazer tudo o que faziam seus antepassados,
o momento é precioso e os ânimos acham-se dispostos. Mas que escuto!
sem que os franceses possam fazer das suas costumadas reclamações.
Não me engano, lá ouço dizer na rua: “Morram os Franceses”. Lá dizem:
Artigo III: Nenhum francês militar, ou outro, ou jacobino de qualquer
“Viva o Príncipe Regente”. Não tem dúvida, é a voz da Pátria que chama
nação que seja, mesmo português, poderá aproximar-se da dita vila para
seus filhos; voemos a salvá-la ou a morrer.”89
dentro de meia légua. Artigo IV: Tremulará nas torres de Olhão a bandeira
Era também este o ânimo que se fazia notar entre as tropas portuguesas, portuguesa, ainda que na de Faro tremule a das três cores. Artigo V: O
presente tratado será ratificado dentro de vinte e quatro horas, em cujo
espaço haverá uma suspensão de armas, conservando-se os dois exércitos
88. “[...] Por um lado, meu irmão, seguindo o partido dos intrusos, lançou uma nódoa na conduta da sua vida e fez nas posições em que se acham. Artigo VI: O presente tratado, logo que
participar a família da reprovação pública; por outro, o meu amante, cujo peito abraça o mais ardente patriotismo,
tem esfriado no amor que me consagrava, o nome francês tornou-se-lhe odioso e eu menos cara.” (Cf. Idem, ibidem, for assinado e ratificado pelas duas partes contratantes, será registado
p. 10)

89. Cf. Idem, ibidem, pp. 31-32. 90. Cf. Idem, ibidem, p. 47.
62 Olhão, Junho de 1808. 63
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

no Livro Mestre da Câmara de Faro, para que conste a nossos netos que M.me Rolland, e M.me Lafaete e tantas outras são desta verdade eterna
haviam ainda portugueses em Olhão no mês de Junho de 1808.”91 prova.”93

É, então, que os emissários franceses são informados da revolta que rebentara O Capitão acaba por exortar os habitantes de Olhão e de Faro a continuarem a
em Faro. Animados, os pescadores de Olhão partem para se juntarem aos seus sua campanha e a lutarem pela libertação de todo o reino do jugo francês. Assim,
vizinhos e o próprio Ministro português, que acompanhava os franceses, associa-se propõe que se forme uma junta interina em nome do príncipe regente, destinada
a eles. Também no campo de batalha, os oficiais portugueses dão ordens para que as a evitar a instalação da anarquia, formada pelos “membros mais puros de todas
tropas se voltem contra as forças francesas. O Capitão Português apela: as classes de cidadãos” e presidida pelo “nosso verdadeiro governador”, uma
referência ao conde de Castro Marim, D. Francisco de Melo da Cunha de Mendonça
“Eia pois, mostremo-nos verdadeiros portugueses! Um bando de
e Menezes94.
assassinos devastava até aqui o belo país dos Algarves: é necessário
Então, Charroco recorda que se deveria anunciar à corte a restauração do
exterminá-los e que nem um só ouse mais pisar a terra que nossos
Algarve. Aliás, ele próprio oferece-se para seguir num barco até ao Rio de Janeiro,
antepassados nos remiram á custa do seu valor e sangue.”92
como “navegador portador”. Também os seus companheiros, Mariana e Amaro, não
Regressam às armas. Julieta, em Faro, teme pela sorte do irmão e do amado. se esquivam a essa missão e imediatamente se prontificam a acompanhá-lo.
Acompanhada pela sua criada, Florinda, tenta encontrar um refúgio mas as duas A peça termina com um autêntico apelo patriótico por parte do Capitão
são atacadas por um grupo de soldados franceses que batiam em retirada. A sua Português. Abalando a lógica temporal da obra, ele refere-se ao desfecho da revolta
sorte é a chegada de Amaro e de Charroco que as salvam. Florinda tenta esconder e à expulsão final das tropas napoleónicas:
a nacionalidade da sua senhora mas Julieta acaba por se confessar francesa, o que “Amados concidadãos meus, dignos do nome português, à Restauração
a leva a ser presa pelos dois pescadores. Entretanto, surge um oficial de Faro que dos Algarves sucedeu em breve a de todo o Portugal. Ajudados pela
anuncia a retirada dos franceses e manda libertar Julieta. generosa nação inglesa, aniquilemos de todo as devorantes águias e nem
Ela reencontra-se, então, com o Capitão Português, o qual trazia, como um só francês, depois de Setembro, pisou o solo da nossa pátria. Mas,
prisioneiros, Maurin e o Ajudante de Ordens. Depois de suplicar pela vida do irmão, queridos compatriotas, se a Hidra que Hércules abateu tinha cabeças que
pedido ao qual o Capitão se mostra sensível, Julieta é enviada para um convento, renasciam, à Hidra Francesa, semelhante à de Lerna, rebentaram de novo
de forma a manter-se a salvo enquanto tarda a restauração de todo o reino. Aliás, hediondas cabeças; e então, repassando os Pirinéus, silvando raivosa,
o Capitão apela para que o povo saiba fazer justiça e não puna a “bela metade dos arrojou seu escamoso ventre até Madrid. Eia pois, sejamos os Hércules
franceses”, equiparando Julieta a outras heroínas da Revolução: modernos, armemos nossos braços com a massa nacional, e corramos
“Lembrai-vos que não é à bela metade dos franceses que devemos às fronteiras destruir a infernal Hidra. Lá, formando de nossos corpos
nossas desgraças: esta tanto como nós odeia o déspota da França: recordai- uma muralha impenetrável e possuídos do santo entusiasmo do amor
vos, finalmente, que se a Revolução Francesa não produziu verdadeiros
heróis, produziu, pelo contrário, milhares de heroínas. Charlotte Cordois, 93. Cf. Idem, Ibidem, p. 79. Neste excerto, Sequeira Oliva refere-se, especificamente, a Charlotte de Corday,
Madame Roland e Madame de Lafayette. A primeira foi condenada à guilhotina por ter apunhalado e morto Marat.
Marion Jeanne Roland foi a inspiradora do movimento girondino, tendo sido presa e guilhotinada em 1793. Marie
Adrienne de Lafayette, esposa do Marquês de Lafayette, fora aprisionada pelos revolucionários jacobinos em 1792
91. Cf. Idem, Ibidem, pp. 55-56. e apenas se salvou da condenação à morte devido à intercessão do presidente americano James Monroe.

92. Cf. Idem, Ibidem, p. 60. 94. Cf. Idem, Ibidem, p. 80.
64 Olhão, Junho de 1808. 65
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

da Pátria, digamo-lhe a peito descoberto: «Pérfidos, tigres com aspecto já; ao que o povo respondeu: Somos ainda Portugueses e estamos prontos
humano, para entrardes de novo no seio da nossa querida pátria, eis aqui a morrer pela Religião, pelo Príncipe e pela Pátria. E voou a Tavira, Loulé,
a entrada (Batendo no peito) por donde deveis penetrar primeiro que lá Albufeira, Silves e por todos os mais lugares do Algarve que, mostrando o
chegueis»”95 mesmo entusiasmo, valor e energia e fidelidade, prendendo os franceses
que neles estavam espalhados e dando vivas ao nosso augusto e amado
Esta peça de Luís de Sequeira Oliva foi escrita quando as tropas napoleónicas Príncipe e à Religião, juraram o Povo, Nobreza e Clero defender, pondo as
se reorganizavam para uma segunda invasão do solo português. Napoleão tinha mãos sobre as peças de artilharia, até dar a última gota de sangue.
chegado pessoalmente a Espanha para reprimir a sublevação, derrotou o exército Os franceses tentaram embaraçar esta acção gloriosa e honrada mas
espanhol em Zorusza, Gamorial, Espinosa e Cardenen e marchou apoteoticamente foram valorosamente rechaçados, e muito principalmente em Olhão, onde
sobre Madrid. As tropas francesas, comandadas pelo General Soult, ameaçavam a perderam bastante gente, um obus, mochilas, pólvora e mais munições de
fronteira portuguesa a Norte. A “Hidra” estava às portas do reino. É este o momento guerra; e os que escaparam, fugindo deste combate, mataram duas crianças,
oportuno em que Sequeira Oliva relembra o ardor patriota que animou os “heróis um velho de mais de 100 anos e uma mulher velha com a sua família.
de Olhão e de Faro” contra o invasor, na esperança de que este se voltasse a acender Os fugidos e debandados foram-se reunir em Mértola, aonde estava uma
entre o povo português. maior porção deles que, com a tropa portuguesa do Algarve, tinha ordem
para marchar à Espanha. Porém, ficaram logrados e conheceram que estava
chegada a hora do seu destroço e que já ninguém queria a sua felicidade.”96

3.3. Outros textos impressos Mais desenvolvido foi o tratamento que o levantamento de Olhão teve pela
pena de José Acúrsio das Neves. A sua História Geral da Invasão dos Franceses em
Os acontecimentos de Junho de 1808 em Olhão correram todo o país. O Portugal e da Restauração deste Reino, cinco volumes publicados entre os anos de
papel daquela pequena aldeia no acender das acções que levariam à restauração 1810 e 1811 pela oficina de Simão Thadeo Ferreira, tornou-se numa das poucas
do Algarve, encontra-se presente nas obras dedicadas às invasões napoleónicas em obras contemporâneas da ocupação francesa.
Portugal, escritas nos anos seguintes. António Pedro Vicente apresenta José Acúrsio das Neves como um liberal
No seu Compendio Historico dos Acontecimentos mais celebres, motivados pela no seu pensamento económico e um conservador na acção política97. Embora
Revolução da França, Joaquim Soares integra a revolta de Olhão nesses ditos contemporâneo das revoluções liberais, Acúrsio das Neves sempre se mostrou um
“acontecimentos mais célebres”. É de uma forma sintética que este frade dominicano acérrimo defensor da monarquia absoluta, tendo sido um opositor da Constituição
descreve o levantamento: de 1822 e apoiante de D. Miguel98. Assim, era com reprovação que via a presença
“Em pouco tempo, a voz repetida em Faro e entoada antes em Olhão,
lugar distante de Faro meia légua, pelo coronel e governador de Vila Real 96. Cf. Frei Joaquim Soares, Compendio Historico dos Acontecimentos mais celebres, motivados pela Revolução
de Santo António José Lopes de Sousa que, rasgando um edital em que da França, e principalmente desde a entrada dos francezes em Portugal até à segunda Restauração deste, e gloriosa
acclamação do Principe Regente o Serenissimo Senhor D. João VI, tomo II, Lisboa, Imprensa Regia, 1809, p. 18.
o intruso governo convidava os portugueses a tomar armas contra os
97. Cf. António Pedro Vicente, “José Accúrsio das Neves – Panfletário Antinapoleónico”, O tempo de Napoleão em
espanhóis, disse: Oh Portugueses, já não merecemos este nome, e nada somos
Portugal. Estudos Históricos, 2ª ed., Lisboa, Comisssão Portuguesa de História Militar, 2000, p. 345.

98. José Acúrsio das Neves (1766-1834) nasceu na freguesia de Fajão, concelho de Pampilhosa da Serra, no seio
95. Cf. Idem, Ibidem, p. 82. de uma família de considerável fortuna. Formou-se na Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra e iniciou a
66 Olhão, Junho de 1808. 67
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

das tropas francesas em Portugal, herdeiras da doutrina política liberal proclamada minhas indagações e a minha crítica.”99
pela Revolução Francesa. Igual crítica era tecida contra todos aqueles que haviam
colaborado com o invasor, desde o Cardeal Patriarca que, no púlpito, aconselhara o É difícil tentarmos averiguar a quem é que Acúrsio das Neves se referia
povo a acolher amistosamente as tropas napoleónicas, até à própria Academia das especificamente. É verdade que todos os textos dão sempre a perspectiva do autor,
Ciências que oferecera a presidência a Junot. Todo o fervor anti-napoléonico está sobretudo quando este teve um papel activo nos acontecimentos. Um caso exemplar
espelhado na sua História Geral da Invasão dos Franceses. é o de Joaquim Filipe de Landerset, como já vimos. Será que Acúrsio se referia a
Contudo, é um discurso imparcial o que José Acúrsio das Neves promete aos ele? Será que Landerset era um dos que, segundo o autor, tomou o “espírito do
seus leitores. Nos capítulos que dedica à restauração do Algarve, ele faz questão partido”, tentando mostrar que teve “parte principal na restauração”? A verdade é
de o notar. Aliás, ele introduz a narração de tais acontecimentos com as seguintes que, depois de uma leitura dos capítulos da obra dedicados a Olhão, constata-se que
palavras: Landerset teria sido uma das principais fontes utilizadas por Acúrsio das Neves.
De facto, e considerando os textos já abordados, o ponto de vista do autor
“A história da revolução do Algarve acha-se muito complicada por
contamina permanentemente a forma de ver e de descrever os acontecimentos e
causa dos escritos que sobre ela se têm publicado, cheios de incorrecções
Acúrsio das Neves, embora condene tal facciosidade, não se imiscui em apresentar
e mesmo contraditórios em pontos essenciais. Entrou neles o espírito
um discurso pautado pelas advertências críticas e pelo comentário constante dos
de partido, querendo por força alguns dos que os dirigiram serem os
factos narrados. Por exemplo, num excerto em que se refere ao edital publicado pelo
autores, ou terem a parte principal na restauração; e é quanto basta para
Senado da Câmara de Faro a condenar a revolta de Olhão e a exigir aos olhanenses
confundirem a verdade. Procurarei aclará-la, quanto me permitirem as
a rendição, o autor comenta assim os factos:

“Que blasfémia! Lavemos, se é possível, esta grande nódoa da câmara


de Faro: o ferrete infame é bem conhecido neste edital; ele só podia vir
sua carreira de magistrado em Angra em 1795. Permaneceu nos Açores até 1807, quando regressou ao continente,
passando a residir em Sarzedo, próximo de Coimbra. Em 1810, foi nomeado deputado da Real Junta do Comércio, imediatamente de uma mão francesa. Os camaristas lhe prestaram as suas
Agricultura, Fábricas e Navegação e da direcção da Real Fábrica das Sedas e Obras das Águas Livres. A 15 de Junho assinaturas; mas também o algoz fere a vítima e não é senhor do braço que
desse ano, era promovido a desembargador da Relação do Porto. Em 1821, foi demitido desse cargo devido à sua
oposição ao vintismo, embora tenha sido readmitido dois anos depois, com a mudança do governo. Foi deputado move cutelo.”100
às cortes ordinárias de 1822 e durante o governo miguelista, procurador à Assembleia dos Três Estados. Estava,
então, a viver em Lisboa mas, em 1833, devido a um surto de cólera, mudou-se para as Caldas da Rainha, onde
Por outro lado, logo de seguida, o autor pede o perdão dos que assinaram esse
viria a falecer no ano seguinte. Entre as suas obras dedicadas às invasões napoleónicas e à consequente resistência
portuguesa, contam-se, além da História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, os edital, decerto persuadidos a serem “os instrumentos maquinais dos pérfidos
seguintes títulos: Manifesto da Razão contra as usurpações francesas (1808); A salvação da pátria. Proclamação aos
tramas de nossos opressores”. Os acontecimentos posteriores veriam a provar
portugueses (1809); A voz do patriotismo na restauração de Portugal e Hespanha (1809); Reflexões sobre a invasão dos
franceses em Portugal (1809); Observações sobre os recentes acontecimentos das províncias de Entre-Douro e Minho como o povo de Faro continuava, no seu âmago, fiel à pátria e disposto a também
e Traz-os-montes (1809); Discurso sobre os principaes successos da campanha do Douro (1809); O despertador dos
soberanos e dos povos (1809); A generosidade de Jorge III e a ambição de Bonaparte (1809); Tres peças patrioticas
pegar em armas contra os franceses.
(1809). São vários os estudos dedicados a José Acúrsio das Neves. Além do já mencionado artigo de António Pedro Portanto, embora prometa um discurso imparcial, Acúrsio das Neves não nega
Vicente, destacamos: José Ignácio Cardoso, Notícias Biográficas do Desembargador José Acúrsio das Neves, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1849; Moses Bensabat Amzalak, A Economia Política em Portugal. O Economista José Acúrsio a sua veia patriota, anti-francesa e, sobretudo, contra-revolucionária. Mesmo
das Neves, Lisboa, 1920-1921; Bernardo Campos, José Acúrsio das Neves, o Historiador, o Economista, o Panfletário,
Lisboa, Gama, 1946; José Calvet de Magalhães, José Acúrsio das Neves, Lisboa, SNI, 1946; Fernando Pinto Loureiro,
José Acúrsio das Neves: percursor do industrialismo em Portugal (1766-1834), Coimbra, Coimbra Editora, 1954; Luís 99 Cf. José Acúrsio das Neves, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste
Maria Pedrosa dos Santos Graça, A Promoção e o Banimento Político em Portugal, no tempo de José Acúrsio das Neves Reino, vol. 1, Porto, Edições Afrontamento, [s.d.], p. 139.
(1766-1834). Subsídios para o seu estudo. Dissertação de doutoramento, Lisboa, 1998. Também é de destacar a
edição das Obras Completas de José Acúrsio das Neves, com introduções de António Almodovar e Armando Castro. 100. Cf. Idem, ibidem, p. 144.
68 Olhão, Junho de 1808. 69
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

assim, a sua descrição dos acontecimentos de Junho de 1808 é a mais equilibrada, napoleónicas102. Soares condenava não só o seu alegado carácter anti-religioso dos
frisando todos as principais nuances da revolta e apresentando uma harmonia no franceses, como a própria Revolução Francesa:
tratamento dos aspectos militares e políticos.
“É verdade que, geralmente falando, nenhuma Revolução é boa,
Menos célebre é a obra de João Coelho de Carvalho, Invasão Francesa no Algarve.
principalmente para a geração presente; porque o génio que as traça não
Aliás, apenas a conhecemos por ser mencionada e citada na Biografia de D. Francisco
pode ser tão fecundo e activo que dirija constantemente a sua marcha; nem
Gomes do Avelar, Arcebispo-Bispo do Algarve de Ataíde Oliveira. Nem o nome do
ter um tão valente braço que segure e amarre as paixões e interesses de cada
autor, nem o título da obra surgem nos dicionários bibliográficos de Inocêncio
um, fazendo-o conformar com suas ideias e sentimentos. Por isto, Catão
Francisco da Silva e de Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda. Assim, sobre João
nada recomendava a seu filho, como que fugisse sempre de Revoluções,
Coelho de Carvalho apenas sabemos o que Ataíde Oliveira nos revela: foi director
tanto conhecia ele o perigo e risco que correm os revolucionários, as
do seminário de Faro durante o episcopado de D. Francisco Gomes de Avelar e, em
desordens e partidos que há nestas ocasiões funestas; porém a Revolução
1816, era arcediago de Tavira.
da França não foi boa para os actuais, nem o podia ser para os futuros; não
Carvalho adopta uma estrutura original: logo no primeiro parágrafo que
podia ser boa nem para si própria nem aos estranhos.”103.
dedica à revolta de Olhão, apresenta um breve resumo dos acontecimentos, desde
o início do levantamento até à tentativa de negociação da rendição. Depois, passa Mas se é relevante a presença de referências à revolta da Olhão nas obras de
a relatar com maior detalhe as ocorrências desses dias, sobretudo o episódio alguns autores contemporâneos dos acontecimentos, também é sintomática a
militar na Ponte de Quelfes e o equívoco que se gerou entre os franceses quando ausência ou quase ausência de menção em outros escritores. Vejamos o caso do
confundiram os pescadores de Olhão, envergando vestes rubras, com a esquadra autor da mais conhecida corografia dedicada ao Algarve escrita no século XIX,
inglesa desembarcada. João Baptista da Silva Lopes. Na sua Corografia ou Memória Económica, Estatística e
A perspectiva de João Coelho Carvalho é evidentemente a de um homem da Topográfica do Reino do Algarve, o episódio da expulsão das tropas napoleónicas do
Igreja. Toda a narração da revolta de Olhão gira em torno de uma tese: o seu sucesso Algarve está limitado a curtas linhas no capítulo que dedica à história da província.
deveu-se inteiramente à acção da Providência Divina: Vejamos:
“À vista disto, julgue o leitor como lhe parecer acertado e conclua de “Foram eles [algarvios] os primeiros que, em 1808, alçaram a voz
tudo que Deus é quem livrou o Algarve dos franceses, servindo-se, como contra o jugo francês que os oprimia; e a primazia desta obra coube aos
instrumento quimérico, dos ingleses, e que saíram sem efusão de sangue habitantes de Olhão que, também ousados, se arrojaram a ir levar a notícia
e sem a mais pequena profanação religiosa, nem insulto feito por violência à corte do Rio de Janeiro em um frágil caíque, enquanto seus outros
a mulher alguma.”101 compatriotas, com gente e cabedais, se aprestavam para levar avante a
empresa começada. Ali, foi ela nem só bem recebida com assombro, mas
Aliás, encontramos a mesma tónica nas palavras de Frei Joaquim Soares.
admirada a ousadia com que em tão pequeno baixel atravessaram mares
Segundo este autor, Deus operou ao lado dos portugueses para afastar as tropas
tão longínquos, quanto empolados. El-rei D. João VI mandou conservar

102. “Visivelmente o dedo de Deus esteve com os portugueses na ocasião de obstar àquele flagelo terrível e sacudir
101. Cf. João Coelho de Carvalho, “Invasão Francesa no Algarve”, in Francisco Xavier de Ataíde Oliveira, Biografia o pesado jugo com que Bonaparte os queria esmagar [...]” (Cf. Frei Joaquim Soares, op. cit., p. 7).
de D. Francisco Gomes de Avelar, Arcebispo-Bispo do Algarve, Porto, Typographia Universal, 1902, p. 196. Vide infra,
em anexo, p. 102. 103. Cf. Idem, ibidem, pp. 6-7.
70 Olhão, Junho de 1808. 71
3. O levantamento de Olhão na imprensa e na literatura O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

o caíque para memória e ainda hoje ali é examinado com maravilha por
nacionais e estrangeiros.”104

Desfolhando o resto da obra, verificamos que Silva Lopes, nas páginas em que
escreve sobre a vila de Olhão, nunca se refere aos acontecimentos de Junho de 1808.
Encontramos a explicação desse silêncio na posição política do autor. Afinal, ele era
um liberal, simpatizante do ideário da Revolução Francesa, aquilo que, na altura,
se chamava de um “afrancesado” 105. A sua simpatia pelo liberalismo conduziu-o à
prisão na sequência da contra-revolta da Vilafrancada. Durante os anos de 1828
e 1833, esteve encarcerado na Torre de S. Julião e aproveitou esse tempo para
traduzir algumas obras dedicadas à figura de Napoleão Bonaparte: A campanha de
Itália de Napoleão; Excertos do Memorial de Santa Helena do Conde de las Casas e
História do Imperador Napoleão até à abolição de Fontainebleau do Barão de Fain106.
Como é que um liberal afrancesado encarava os levantamentos contra as tropas
napoleónicas? Ora, Silva Lopes parece ter optado pela solução mais simples – o
silêncio.

104. Cf. João Baptista da Silva Lopes, Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do
Algarve, vol. I, Faro, Algarve em Foco, 1988, p. 16.

105. João Baptista da Silva Lopes (1781-1850) nasceu em Lagos e foi nesta localidade onde primeiramente exerceu
advocacia. Designado vice-cônsul de Espanha, em 1822, passou a ocupar o cargo de presidente da Câmara da
Lagos. Porém, devido à sua adesão ao liberalismo, foi obrigado a abandonar este posto e a sua terra natal. Poucos
anos depois, era preso na torre de S. Julião da Barra, de onde saiu em 1833, após a vitória das forças liberais.
Desempenhou, então, a função de deputado pelo Algarve nas cortes de 1842-1845 e 1848-1850. Foi sócio da
Academia Real das Ciências de Lisboa e da sua congénere de Turim. Esteve igualmente associado ao Instituto
Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Além da dita Corografia, destacam-se, entre as suas obras: Historia do
captiveiro dos presos d’Estado na torre de S. Julião da Barra de Lisboa durante a desastrosa epocha da usurpação do
legitimo governo constitucional (1833-1834); Memoria sobre a suppressão dos direitos de consumo em Lisboa e seu
termo... (1834); Memorias para a historia ecclesiastica do bispado do Algarve (1848); Memoria sobre a reforma dos
pezos e medidas (1850); entre outras.

106. Cf. António Pedro Vicente, “A França Revolucionária e o Algarve”, O Algarve da Antiguidade aos Nossos Dias,
Lisboa, Colibri, 1999, p. 335.
72 Olhão, Junho de 1808. 73
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

4. Alguns olhares sobre os acontecimentos

4.1. Quando David derrotou Golias...

Já nos referimos à sequência dos acontecimentos que levaram à revolta de


Olhão e à restauração do poder português no Algarve. Também já abordámos as
obras em que são mencionados esses mesmos eventos. Resta-nos agora analisar
a forma como estes foram descritos, as diferentes perspectivas sobre um mesmo
momento da história de Olhão, as insurreições de Junho de 1808.
Como já vimos, a perspectiva francesa encontra-se predominantemente
naquele que era, então, o órgão de informação oficial do regime, a Gazeta de Lisboa.
Até muito tarde, a Gazeta conservou o silêncio face às revoltas que começavam a
estalar um pouco por todo o reino. A 22 de Junho de 1808, quando todo o Algarve
já se havia levantado, o redactor da Gazeta de Lisboa ainda falava de um ambiente
de tranquilidade que se vivia por todo o reino:

“A venturosa tranquilidade de que continuamos a gozar, é um dos


graves objectos da inveja dos nossos inimigos, ou sejam externos, ou
internos: custa-lhes muito perdoar ao povo português a grande prudência
com que obedece ao seu novo governo, enquanto o espírito de inquietação
e de revolta vai lavrando em países vizinhos, produzindo neles todos os
males da guerra civil e estrangeira.”107

Apenas no número seguinte é que são referidos os habitantes “de algumas


partes das províncias de Entre Douro e Minho e dos Algarves” que “deixando-se

107. Cf. Gazeta de Lisboa, 22 de Junho de 1808.


74 Olhão, Junho de 1808. 75
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

levar de conselhos pérfidos, se sublevaram”108. A 4 de Julho, o redactor classificava deixaram de a controlar. Foi, então, publicada a “Relação da feliz, e gloriosa
tais movimentos como insurreições imprudentes, movidas por alguns revoltosos restauração do Reino do Algarve”, de Sebastião Duarte Andrade Pinto Negrão. Este
insensatos: apresenta uma descrição relativamente sucinta dos acontecimentos em Olhão para
se demorar, com maior pormenor, na posterior organização das forças algarvias
“[...] Em Portugal, pelo menos, ou antes nas partes que
para a restauração do poder português em toda a província. Assim, passam ao lado
momentaneamente estão agitadas no Norte e Sul deste país, não
do relato de Negrão alguns dos momentos-chave da revolta de Olhão como a missão
se alimentam tais despropósitos: o único que aí se observa é o de se
de João Gomes Pincho junto da esquadra inglesa ou mesmo a acção de Sebastião
terem deixado atemorizar por alguns pequenos bandos de acelerados
Martins Mestre e dos paisanos contra as embarcações francesas na Barra de Faro.
que entraram em 3 ou 4 povoações, gritando que vinham seguidos de
Além disso, o autor data de 17 de Junho o início da insurreição, quando, nas outras
exércitos que não existiam; e o terem, tanto contra a sua vontade, como
fontes, é referido o dia 16 de Junho – trata-se, possivelmente, de um lapso.
contra os seus interesses, feito pegar em armas a pessoas que a isso se não
Num registo mais literário, Luís de Sequeira Oliva, na peça Restauração dos
inclinavam de modo algum e, ainda assim, só a mais vil canalha é que se
Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, coloca uma das personagens, o Ajudante de
sublevou para se entregar à pilhagem, se lho consentirem.
Ordens, a descrever as primeiras acções que levaram à insurreição de Olhão:
É mais que tempo de deporem as armas os que nelas pegaram, sejam
quem forem; de pedirem perdão e de fazerem ceder um vão receio a “Dizem que saindo da missa e vendo pregado na porta da igreja o
um terror muito mais racionável, porque uma parte do exército francês edital do Excelentíssimo Senhor Junot, em que convidava os portugueses
está em marcha e vai a fulminar vingança contra tudo o que se não tiver a pegarem nas armas para se unirem aos bravos de Marengo e aprenderem
submetido antes da sua chegada. Desgraçadas as povoações a quem seja com eles a vencer, arrancando o edital, exclamara diante do Povo que
preciso forçar, de mão armada! A sua sentença está proferida na ultima saía da igreja: “Os pérfidos querem ensinar-nos a vencer! Já não há
proclamação tão enérgica e ao mesmo tempo tão paternal do Ilustríssimo portugueses; ou se os há, unam-se a mim para mostrarmos aos cobardes
e Excelentíssimo Duque de Abrantes. Não é debalde que ameaça, depois de como se vence”. Que todos gritaram: “Somos portugueses e queremos
ter generosamente oferecido o perdão!” 109
morrer ou vencer”. Assim electrizados, marcharam a buscar as peças de
artilharia do forte vizinho, aprisionaram os franceses e acha-se Olhão
Os levantamentos do Algarve e do Norte aparecem como movimentos fortificado e em verdadeira insurreição.”111
insignificantes, prestes a serem liquidados pelas forças francesas. Aliás, no número
seguinte da Gazeta, falava-se de um abrandamento da revolta110. Na mesma peça, quando os enviados franceses chegaram à aldeia na expectativa
A resistência às tropas napoleónicas apenas é mencionada nas páginas da de conseguirem um acordo de rendição com o povo olhanense, é-nos fornecida uma
Gazeta de Lisboa a partir de Setembro de 1808, quando as autoridades francesas imagem visual bastante forte do ambiente que se vivia então:

“Lá descubro duas peças de artilharia de grosso calibre, assestadas


108. Cf. Gazeta de Lisboa, 26 de Junho de 1808. nas duas bocas das ruas, que conduzem para aqui, servidas por alguns
artilheiros: imenso povo apinhoado nas ditas ruas: lá vejo tremular sobre
109. Cf. Gazeta de Lisboa, 4 de Julho de 1808.
a torre da igreja a bandeira portuguesa, como igualmente cabeças que
110. “Por felicidade, o movimento de desvario que, por alguns dias, parecia haver-se apoderado de uma parte de
Portugal, parece que vai serenando e tomando uma face pacifica: pois de outra sorte mal conviria nem seria próprio
representar este país a S. M. o Imperador e Rei como digno dos altos destinos que a sua bondade tem feito brilhar
à vista dos seus olhos.” (Cf. Gazeta de Lisboa, 5 de Julho de 1808). 111. Cf. Luís de Sequeira Oliva, op. cit., p. 18.
76 Olhão, Junho de 1808. 77
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

examinam os nossos movimentos. Oh! Lá correm pelas ruas e se dirigem Noticia da Feliz Restauração do Reino do Algarve, o autor era a voz da razão entre o
para onde estão as peças, não poucos homens vestidos de vermelho e não governo de Faro, quem alertou as autoridades francesas para a provável revolta de
usam de chapéu, pelo contrário, todos lho tiram.” 112
todo o Algarve motivada pelos abusos cometidos sobre o povo. Landerset representa
as autoridades portuguesas coagidas a acatarem as suas ordens francesas. Por isso,
Dado ser um texto dramático, de carácter fundamentalmente fictício, embora mostra uma constante preocupação em justificar essa “adesão”. Na sua narrativa,
baseado em factos reais, as informações transmitidas sobre a revolta de Olhão são os oficiais portugueses resistem sempre às ordens das autoridades francesas e só as
apenas pontuais e pouco conclusivas. É num outro tipo de panfletos, na chamada aceitarem quando coagidos a isso, nunca de livre vontade – é o que acontece com o
“relação” ou “descrição”, que podemos encontrar um relato mais linear e completo tenente Belchior Drago Cabreira e com ele próprio114.
dos factos. Sebastião Drago de Brito Cabreira, na Relação Histórica da Revolução do Algarve
No panfleto anónimo Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, a revolta contra os franceses, também tenta justificar a sua proximidade face às autoridades
de Olhão é descrita tendo como epicentro a figura de José Lopes de Sousa. É este francesas. Aliás, é com algum desenvolvimento que Cabreira narra o seu encontro
quem interpela o povo à reacção contra os franceses, quem é imediatamente com o corregedor-mor francês e a forma com recusou qualquer tipo de colaboração115.
nomeado líder dos revoltosos. Pioneiro da revolta, torna-se, portanto, a figura José Acúrsio das Neves apresenta a descrição mais detalhada da revolta de
central de todo o movimento. Aliás, o autor tenta mesmo justificar as acções mais Olhão. Narra, claramente, o momento em que José Lopes de Sousa deu início à
polémicas de Lopes de Sousa, nomeadamente a sua partida para Aiamonte, na revolta, no dia do Corpo de Deus, a sucessiva organização das milícias olhanenses
companhia de Sebastião Martins Mestre, quando a restauração de Olhão ainda não contra as tropas francesas – a expedição à ilha da barra de Armona e a Aiamonte – e
estava assegurada. Assim, esta viagem é descrita como a única forma encontrada as vitórias no campo de batalha, nomeadamente, no confronto na barra de Faro e
para a obtenção do armamento necessário à defesa da aldeia. Além disso, antes de na ponte de Quelfes. É evidentemente uma narração a posteriori, muito crítica das
partir, Lopes de Sousa preocupara-se em garantir a segurança de Olhão: fontes que consultou e confrontou.
“Quando já o governador havia tomado medidas de precaução, a Comum a todos os textos é a propagação de um ideário patriota, baseado na
fim de não ficar frustada a revolução, por ver que as mesmas tropas gratidão à Coroa e na devoção a Deus. Na Acção memoravel do Coronel José Lopes de
portuguesas o vinham atacar, quando devia esperar que progressivamente Sousa são constantemente mencionados os valores que moveram o povo: o ódio
se reforçasse, não só por aquela cidade, mas geralmente por todos os mais aos franceses “inimigos do nosso Príncipe Regente, Real Família, Pátria e Religião”,
bons portugueses interessados na mais justa causa [...]”113. a vingança dos “agravos feitos á Religião tão escandalosamente profanada por um
bando de homens ou monstros corrompidos e abomináveis”. Enfim, como o próprio
Esta tentativa de justificação sustenta a hipótese que deixámos em aberto de autor refere, era a revolta de um “povo fiel, amante do seu Príncipe, da Pátria, da
que o autor deste panfleto seria o próprio coronel José Lopes de Sousa. Afinal, honra própria e da Nação”116. O mesmo tom é adoptado por Landerset: aos apelos
existe a tendência dos autores se colocarem no centro das narrativas e de as usarem de José Lopes de Sousa, o povo responde com vivas à Religião, ao Príncipe Regente
como forma de justificação das suas acções potencialmente mais recrimináveis pela
opinião pública.
114. “Procurou quanto pode o dito Major [Joaquim Filipe de Landerset] escusar-se mas sendo forçado a partir,
O mesmo se regista no relato de Joaquim Filipe de Landerset. Segundo a Breve assim mesmo se demorou tempo bastante para protestar a violência que se lhe fazia”( Cf. Joaquim Filipe de
Landerset, op. cit.. Vide infra, em anexo, p. 90).

112. Cf. Idem, ibidem, p. 43. 115. Cf. Sebastião Drago de Brito Cabreira, op. cit., pp. 6-7. Vide infra, em anexo, p. 86.

113. Cf. Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, [s.l.], [s.n.], 1808, p. 3. Vide infra, em anexo, p. 81. 116. Cf. Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, [s.l.], [s.n.], 1808, p. 1. Vide infra, em anexo, p. 78.
78 Olhão, Junho de 1808. 79
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

e à Pátria. Aliás, a palavra “Príncipe” surge sempre escrita em garrafais letras família119.
maiúsculas. O que é similar em praticamente todos os textos analisados é o facto das vítimas
São estas as palavras de ordem de um povo que dizia “ainda ser português”, olhanenses mencionadas estarem sempre à margem do conflito, exceptuando o
quando José Lopes de Sousa colocou em dúvida essa mesma identidade. Aliás, caso do capitão Sebastião Martins Mestre. O objectivo propagandístico é evidente
é curioso notar como, tirando uma ou outra pequena diferença, aparecendo em – visa a transmissão de uma imagem de extrema crueldade das tropas francesas,
paráfrase ou em citação, esse diálogo inicial entre o coronel Lopes de Sousa e o povo as quais nem aos inocentes poupavam a vida, e, por outro lado, de força das hostes
de Olhão, que abre as portas à revolta, é uma constante em quase todos os textos . 117
olhanenses que, aparentemente, conseguiram uma vitória sem baixas.
A este ânimo apenas poderia corresponder uma retumbante vitória. É esta a Contudo, encontramos um autor que não apresenta uma imagem tão idílica do
ideia que a produção panfletária tenta transparecer, um triunfo que se traduziu confronto e admite mesmo que a batalha da ponte de Quelfes foi mais mortal para
num número mais elevado de baixas entre as hostes francesas do que nas algarvias. os olhanenses do que para as tropas francesas. É João Coelho de Carvalho quem
Quase todos os documentos referem o aprisionamento dos 77 soldados da Legião explica como, devido à precipitação dos paisanos, que atacaram antes do sinal do
do Meio-Dia no confronto da manhã de 18 de Junho, junto à Barra de Faro. Afinal, capitão Martins Mestre, foram muitas as vítimas entre os olhanenses, enquanto
a derrota de tão afamadas tropas constituiu um profundo golpe no orgulho francês. que, do lado francês, “só consta que morresse um ou dois”120.
Porém, relativamente à outra contenda que decorreu no mesmo dia, na O triunfo algarvio é sempre representado como um profundo golpe na soberba
ponte de Quelfes, as fontes já enumeram vítimas olhanenses. O próprio capitão francesa. Na capitulação jocosa do general Maurin, publicada na Gazeta do Rossio,
Sebastião Martins Mestre foi ferido. Quanto ao número e identificação das vítimas dizia-se que algarvios “sacudiram muito bem o pó a todos os Franceses”. “Tudo foi
olhanenses, os textos diferem ligeiramente. Quase todos referem a morte de um corrido a pau segundo o costume camponês” – é assim que é descrita a expulsão
velho de mais de cem anos, popularmente conhecido como o Pai Avô. João Coelho das tropas francesas pelos populares. “Maurin e o Diaboqueoleve”, signatários da
Carvalho diz que este, “por loucura”, se envolvera na batalha e acabou por ser assim dita capitulação, ajustam a evacuação imediata das praças algarvias pelos franceses,
morto, tal como “algumas pessoas que estavam descauteladas pelos campos”118. desde que “lá deixassem a pele”, sendo-lhes concedida “toda a alfarroba de que
Outros autores identificam essas vítimas: dois rapazes, uma mulher velha e a sua precisarem”. É a imagem satírica da humilhação imposta às tropas francesas,
rendidas perante uma força maioritariamente popular. O autor faz questão de
mostrar como, dadas as circunstâncias, as exigências francesas nunca poderiam ser
117. “O Governador exclama então: Ah! Portuguezes, já não merecemos este nome, e nada somos já!,, a que todos os
espectadores respondêrão somos ainda Portuguezes, e estamos promptos a dar a vida pela Religião, pelo Principe, e pela
muitas e que, nesta negociação, eram os algarvios a parte forte121.
Patria!” (Cf. Acção memoravel..., p. 1); “José Lopes de Sousa, de conhecido valor e honra, ao entrar a igreja, é quem Por outro lado, nem todos as fontes ignoram os momentos de fragilidade
primeiro lê e arranca indignado, dizendo “que havia de ser louvado quanto fizera se ainda houvesse portugueses”. A
cujas vozes se junta o povo [...]” (Sebastião Drago Cabreira, op. cit., p. 6); “[...] [José Lopes de Sousa] voltando-se para sentidos entre as forças olhanenses. Acúrsio das Neves sublinha como, após os
os circunstantes e increpando-os que já não eram portugueses, e com outras expressões semelhantes; estes, ainda primeiros dias da revolta, o povo de Olhão se encontrava desprovido de mantimentos
que homens rústicos e de grosseiro trato, enchem-se de entusiasmo e furor, protestam, juram que são portugueses,
que vingarão tantos ultrajes feitos à religião, ao soberano e à pátria e fica decidida a revolução.” (Cf. Acúrsio das e de armas e sem liderança. Afinal, José Lopes de Sousa e Sebastião Martins Mestre
Neves, op. cit., p. 139); “[...] [Lopes de Sousa] lança mão do papel afixado, rasga-o, pisa-o e, voltando-se para o povo,
cheio de entusiasmo, lhe increpa o sofrimento, duvidando de que fossem portugueses. Gritam todos que o eram,
e estavam prontos a mostra-lo, dando as vidas pela Religião, pelo PRÍNCIPE, e pela Pátria. “ (Cf. Joaquim Filipe de 119. Acúrsio das Neves e Joaquim Filipe de Landerset mencionam os ditos dois rapazes. A mulher velha e a sua
Landerset, op. cit., p. 7); “[...]José Lopes de Sousa que, rasgando um edital em que o intruso governo convidava os família são mencionados por Frei Joaquim Soares e Sebastião Duarte Pinto Negrão. Vide infra, na secção de
portugueses a tomar armas contra os espanhóis, disse: Oh Portugueses, já não merecemos este nome, e nada somos anexos, a transcrição destes textos.
já; ao que o povo respondeu: Somos ainda Portugueses e estamos prontos a morrer pela Religião, pelo Príncipe e pela
Pátria.” (Cf. Joaquim Soares, op. cit., p. 19) 120. Cf. João Coelho de Carvalho, op. cit., p. 181. Vide infra, em anexo, p. 101.

118. Cf. João Coelho de Carvalho, op. cit., p. 180. Vide infra, em anexo, p. 100. 121. Cf. Collecção das celebres Gazetas do Rocio..., I parte, n.º 1, 1808. Vide infra, em anexo, pp. 74-75.
80 Olhão, Junho de 1808. 81
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

tinham partido para Aiamonte, sob um chorrilho de críticas. O autor não assina 4.2. Golias
essas críticas, antes pelo contrário, reprova-as com veemência e considera-as uma
autêntica ingratidão para com os dois líderes122. Em 1808, o filão de todos os males e de todos os vícios materializava-se numa
Um desses críticos foi João Coelho de Carvalho que, no seu testemunho, deixa única figura, a do invasor francês, severamente criticado, caricaturizado, satirizado
transparecer como concordava com o boato corrente em Olhão de que José Lopes nas páginas de panfletos que circulavam de mão em mão. Napoleão era a “Besta
de Sousa tinha partido para a Andaluzia por prever a derrota dos olhanenses . 123
de Sete Cabeças e Dez Cornos”, as tropas francesas, uma “matilha de ladrões”. A
Landerset também demonstra essa vulnerabilidade do povo olhanense, motivada França destituiu a Espanha no estatuto de grande inimigo da pátria portuguesa.
pela ausência de Sousa e de Mestre. Assim, quando os enviados franceses chegam Aliás, como nota Georges Boisvert, a luta contra um adversário comum fez com que
a Olhão para negociarem a capitulação, não é com repugnância que os paisanos nascesse um novo sentimento de solidariedade peninsular125.
encaram essa proposta: o isolamento e a falta de mantimentos tornam apelativas Mais do que à França, em alguns casos a aversão era sobretudo aos princípios da
as ofertas francesas de protecção da pesca. Os olhanenses vacilam na sua revolta e Revolução Francesa. Tal verifica-se, em particular, nos autores mais estreitamente
Landerset considera mesmo que eles não a teriam prosseguido caso a insurreição relacionados com a esfera eclesiástica, para os quais o ateísmo dos revolucionários
em Faro não tivesse rebentado naquele mesmo momento . É claro que esta é a 124
era a grande ameaça. Frei Joaquim Soares diz mesmo que a Revolução foi “uma
perspectiva de um oficial de Faro que pretendia, com as suas palavras, enaltecer a erupção mais terrível que todas as do Vesúvio e do Etna”, que levou a toda a parte
acção insurreccional do povo da sua cidade, fazendo com que esta não parecesse “o ferro, a fome, a intriga, a irreligião e a imoralidade”, pretendendo tornar a terra
secundária face ao pioneirismo da revolta de Olhão – a restauração do Algarve “deserta de homens e de virtudes”126.
dependera não apenas da iniciativa olhanense mas, sobretudo, do levantamento A primeira grande divisa do ódio ao invasor francês encontra-se na falta de
daquele que era o centro de poder da província. concretização das promessas feitas por Junot quando entrou no reino. O general
prometera uma melhor administração económica, uma justiça igualitária, uma
religião livre de superstições e uma mais eficiente instrução pública. Porém, aquilo
que os portugueses viam era a exploração das populações locais em prol do sustento
das tropas napoleónicas, o saque de igrejas e dos conventos, os abusos cometidos
122. “Nesta triste situação, Lopes e Mestre resolveram-se partir para Espanha, a solicitar socorros da junta de pelos soldados franceses em todos os lugares por onde passavam. O conceito de
Ayamonte e do governo supremo de Sevilha, conduzindo consigo os prisioneiros e as bagagens que puderam levar
para porem tudo a salvo. Foi uma resolução tão sábia e prudente com útil à causa do Soberano e da pátria, mas não
protecção ganhou uma nova nuance – panfletos falavam da “protecção à francesa”,
deixou a maledicência de derramar sobre ela os seus venenos. Houve invejosos que a notaram de cobardia; mas os disfarce da exploração do povo português127.
invejosos têm de calar-se à face do público reconhecido e imparcial que respeitará sempre a Lopes e Mestre como
os ilustres chefes da Restauração do Algarve.” (Cf. Acúrsio das Neves, op. cit., p. 143. Vide infra, em anexo, p. 98).

123. “Muitos críticos, e talvez com razão, censuraram esta retirada do governador, deixando aquele povo entregue 125. Cf. Georges Boisvert, op. cit., p. 97.
a dois comandantes pouco instruídos na arte militar, na ocasião em que ali era indispensável a sua presença,
por onde inferiram que ele, contando com a vitória dos franceses, aproveitasse esta ocasião para se retirar e, na 126. Cf. Frei Joaquim Soares, op. cit., p. 6.
verdade julgar outra coisa não parece acerto, à vista do estado daquele povo, sem armas nem munições e numa
total ignorância militar. Eram homens que nunca pegaram em espingardas e só depois da revolução é que tomaram 127. É da autoria do panfletário José Daniel Rodrigues da Costa um poema que se intitula precisamente de
algum exercício e, portanto, com esta gente, esperar vitória da tropa francesa e artilharia portuguesa, era rematada “Protecção à francesa”, em que são definidas todas as cambiantes dessa dita “protecção”. Deixamos aqui um
loucura.” (Cf. João Coelho de Carvalho, op. cit., p. 182. Vide infra, em anexo, p. 101) pequeno excerto: “Querer sujeitar o povo / Com tramóias disfarçadas, / Com compras atraiçoadas, / São acções
de alta memória; / E quem ler a nossa História, / Verá que tanta vileza / É protecção à francesa. [...] Podia-se bem
124. “[...] pois que sem a energia desta nobilíssima cidade [Faro], tudo se haveria frustrado e aquela heróica compor / Um catálogo de petas / Dos editais e gazetas / Destes nossos protectores; / Mas serem uns impostores,
povoação teria sido vítima da sua incomparável lealdade.” (Cf. Joaquim Filipe de Landerset, op. cit.. Vide infra, em / Com capa de singeleza, / É protecção à francesa.” (Cf. José Daniel Rodrigues da Costa, “Protecção à Francesa”, in
anexo, p. 93). História de Portugal. Dir. João Medina, vol. X, Alfragide, Ediclube, 2004, pp. 95-107).
82 Olhão, Junho de 1808. 83
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

A literatura panfletária utilizou essa falta às promessas feitas como tema divina, através da profanação dos templos sagrados, teve como consequência a
de vários escritos. Num capítulo anterior, já nos tínhamos referido a um poema derrota do exército francês, um autêntico Golias, repleto de glórias passadas, mas
satírico publicado por Luís de Sequeira Oliva no periódico O Telegrafo Portuguez, que, perante o pequeno David algarvio, cedeu. É esta a explicação encontrada pelo
“O Camões do Algarve”, inspirado numa dessas promessas: a de uma nova época bispo do Algarve para a vitória portuguesa no Algarve, um triunfo de Deus frente
dourada para Portugal, simbolizada na doação de um novo Camões ao Algarve e às a uma força pintada com pinceladas demoníacas. Afinal, “[...] uma nação fiel e
Beiras. “Desgraça, miséria, fome / Reinava na Capital, / Enquanto Junot lascivo / valorosa, unida pelos vínculos da religião, da obediência, do amor da pátria e mútua
Era aos maridos fatal.” – era esta a imagem deixada por um povo que de protegido caridade não pode ser destruída.”130.
passou a explorado. A imoralidade é constantemente associada ao general francês. Irreligiosidade, brutalidade, libertinagem e sede expansionista são caracteres
Lembrados do Camões prometido por Junot e de como era necessário criar feitos que acabam por se generalizar. Das autoridades francesas e, em particular, da
patrióticos para serem cantados por um novo bardo, a resposta do povo algarvio foi autoridade máxima, o Imperador Napoleão, passam a identificar as próprias tropas:
a revolta 128
.
“As tropas francesas não são mais do que um agregado de saqueadores,
Assim, a protecção francesa é vista como uma mera ilusão, utilizada para
de pérfidos, de traidores, nutridos com o leite desse monstro desgraçado
subtrair Portugal ao jugo francês. O povo português cobra essa promessa:
que a mesma Natureza arrependida e envergonhada de o haver produzido,
“Diz-nos: Que felicidade trouxestes a Portugal? Oprimir os Povos ainda que por descuido, degrada da sua origem: um agregado da gente
com pesadas contribuições para resgate dos nossos bens que não estavam pior que o Sol cobre.”131
cativos; reduzir à indigência famílias inteiras, tirando-lhes o pão, que os
seus chefes ganhavam pelos seus empregos públicos; sacrificar a virtude Das tropas francesas, passam a caracterizar o francês em geral:
à necessidade; exterminar as nossas melhores tropas; extinguir o resto, “O francês é sempre superficial e inconstante: não conhece reserva,
desarmar as cidades e povoações com o frívolo e manhoso pretexto de nem prudência; tudo quanto sabe é para o dizer; amigo de ridicularias e de
manter a segurança pública [...]; pôr finalmente a Nação indefesa, pobre, jogos de palavras. A Revolução aumentou-lhe a soberba, tornou-o insolente
sem comércio, sem erário: é por ventura tudo isto alguma sombra da e vaidoso tanto nas armas, como nas letras. A mocidade é imoral, egoísta
felicidade? Eis aqui os efeitos dessa protecção!”129 e ditadora; não se lhe deve contudo negar o génio que é devido ao clima e
certa civilização física, filha do luxo. Não existe nação mais faladora e mais
É dada, desta forma, a justificação do levantamento contra o invasor. Este não
charlatona, nem onde a massa geral seja mais ignorante. Quase todos os
cumprira as suas promessas e servira-se delas para explorar as populações. Além do
franceses lêem, mas pouco sabem ler. Todos escrevem e se contradizem.”132
mais, não soubera respeitar os valores mais caros ao povo português e aproveitou-
se da sua hospitalidade. Por outro lado, alguns autores tentam separar o trigo do joio, o “bom francês”
A tão mencionada irreligiosidade francesa torna-se na principal razão explicativa do “mau francês”. É claro que esse “bom francês” é sempre um “francês menos
da derrota das tropas francesas em solo português. A forma como atearam a ira
130. Cf. Proclama ou Exhortação Pastoral do Bispo do Algarve, [s.l.], [s.n.], 1808.

128. Cf. Luís de Sequeira Oliva, “O Camões do Algarve”, O Telegrafo Portuguez, ou gazeta para depois de jantar, n.º 131. Cf. Proclamação que o general em chefe do exercito de Portugal dirigio aos Portuguezes..., Lisboa, Impressão
20, 26 de Janeiro de 1809. Vide infra, em anexo, pp. 76-77. Regia, 1808, pp. 7-8.

129. Cf. Proclamação que o general em chefe do exercito de Portugal dirigio aos Portuguezes..., Lisboa, Impressão 132. Cf. L. S. O. Portuguez, Verdadeira Vida de Bonaparte, até à Feliz Restauração de Portugal, Lisboa, Impressão
Regia, 1808, p. 9. Regia, 1808, p. 79.
84 Olhão, Junho de 1808. 85
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

mau”. Verificamos essa distinção na peça de Luís de Sequeira Oliva, Restauração Mas o grande vilão da peça de Sequeira Oliva é outro, um francês que emigrara
dos Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, na qual o menos nefasto dos franceses para o Algarve ainda antes das incursões napoleónicas e que se tornara num aliado
acaba por ser o próprio general Maurin. Aliás, em alguns excertos, podemos mesmo dos invasores, uma personagem que apenas é identificada pelas suas funções, o
identificar uma certa simpatia do autor para com esta personagem. Logo no início Ajudante de Ordens. É ele quem propõe a Maurin uma solução mais enérgica para a
do drama, quando Maurin é informado do levantamento de Olhão, ele tenta revolta de Olhão, quem pede a aniquilação dos revoltosos e das suas famílias:
desculpar os abusos cometidos até então pelas tropas francesas e justificar as suas
“Se prontamente não corre o sangue, vereis todos os Algarves
decisões futuras:
em breve sublevados – é necessário levar a essa corja de pescadores os
“Portugueses, conheço vossas desgraças, confesso que somos a
estragos e a morte. E eu vos prometo os mais saudáveis efeitos. Conheço
causa; mas sou mandado, destinei-me à carreira das armas, não posso
os algarvenses e eles vendo suas casas saqueadas e abrasadas, mortos os
abraçar outra; e, na alternativa de abandoná-la, prefiro segui-la. Uma vez
pais, esposas e filhos, vereis que submissos de toda a parte virão implorar
encarregado deste governo, hei-de continuar a exercê-lo. Serei obrigado
vossa clemência.”135
talvez a lançar mão de meios violentos para conter a tempestade que nos
ameaça. Em tal caso, terei cumprido as ordens desse Junot que, não sendo Maurin e o Ajudante de Ordens surgem como dois pontos opostos de uma
o executor, parecerá, com o seu ar de brandura, não lhe ter dado origem, mesma facção. Sequeira Oliva faz essa distinção e sublinha que o próprio povo
enquanto eu ficarei entre vós com o nome odioso de carniceiro francês.” 133
também a soube fazer. Já no desenlace do enredo, quando os dois são aprisionados,
o Capitão Português evidencia como o povo soube fazer justiça ao tratá-los de forma
Desta forma, ao mesmo tempo que justifica a posição de Maurin, também
distinta. O Capitão dirige-se, assim, ao Ajudante de Ordens:
enaltece as razões da revolta algarvia, admitida como justificável por uma autoridade
francesa. “E tu, homem pérfido e ingrato, vil hipócrita, eis o prémio de teus

À relativa brandura de carácter que identifica Maurin contrapõe-se vilania crimes: vê como a opinião pública sabe melhor do que ninguém distinguir

das tropas francesas, às quais apenas interessava o derramamento de sangue a perversidade: ao general francês, apesar de ter sido o principal

português. Quando o capitão francês transmite aos seus soldados as ordens de instrumento dos nossos males, conservou o povo a espada e uniforme, e a

Maurin para que se tente uma negociação de paz com os olhanenses antes de se ti a mesma farda te despiram.”136

iniciar a luta armada, estes demonstram imediatamente o seu descontentamento.


É claro que se trata apenas de ficção. Luís de Sequeira Oliva retratou uma
O capitão apenas consegue acalmar essa desilusão com a promessa de, no caso da
“justiça popular” que, na realidade, esteve longe de se verificar. Porém, o objectivo
revolta persistir, ser-lhes permitido o saque e a aniquilação dos insurgentes 134.
do autor era mesmo enaltecer esses “heróis de Faro e Olhão” e todos os heróis
têm de ser necessariamente justos. Os factos foram outros. Não se registou uma
133. Cf. L. S. O. Portuguez, Restauração dos Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, Drama Historico em Tres Actos, tão louvável justiça no tratamento dado aos vencidos, ou seja, aos franceses e a
Lisboa, Impressão Régia, 1809, p. 9.
todos aqueles que estiveram do seu lado. E ainda foram muitos os que colaboraram
134. “Valorosos soldados franceses, anunciar-vos um combate é publicar uma vitória: os vencedores da Europa
não vieram a Portugal para jazer numa triste apatia e muito menos para murcharem seus louros. O nosso general
me ordena que vos guie ao campo de gloria. Marcharemos contra aquela miserável povoação que além vedes, cujos
(Cf. Idem, Ibidem, p. 34).
habitantes ousaram desconhecer o irresistível poder de nossas baionetas e omnipotência de nosso Imperador. Era
com a morte que deveriam pagar tamanha afronta; mas a bondade do nosso General é tão grande que me ordena 135. Cf. Idem, Ibidem, p. 22
que haja de usar primeiro com eles de meios brandos e que no caso de não quererem entrar na ordem, ponha à vossa
disposição a vida e bens de seus habitantes: podereis então saquear, metralhar, fuzilar e violar à vossa vontade.” 136. Cf. Idem, Ibidem, pp. 75-76.
86 Olhão, Junho de 1808. 87
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

com o invasor. Afinal, quando as tropas francesas entraram em solo português, nossa Pátria de amaldiçoar um dia alguns de seus ingratos filhos.”138
foi aconselhada uma atitude passiva e mesmo acolhedora aos oficiais portugueses
e muitos continuaram a desempenhar as suas funções sob a alçada estrangeira. Como já vimos, a personagem do Ministro representa, possivelmente, o major
Restaurado o poder português, era necessário justificar esse colaboracionismo. Joaquim Filipe de Landerset. Porém, a forma como este variou entre o serviço às
Na peça de Luís de Sequeira Oliva são apresentadas várias personagens que autoridades francesas e a aliança aos patriotas não foi sempre encarada de uma
se deparam com o dilema de continuarem a respeitar as ordens dadas pelos seus forma benevolente. Sebastião Drago Cabreira, na sua Relação Histórica, classifica
superiores ou de serem fiéis aos seus compatriotas. Esse dilema encontra-se mesmo essa atitude como “bizarra”, embora, logo de seguida, alegue que Landerset
perfeitamente expresso nas palavras de um dos oficiais portugueses submetidos às deu provas de ser um bom patriota.
autoridades francesas, o 2º Capitão de Artilharia Português: Assim, os panfletos distinguem claramente aqueles que foram coagidos a
colaborar com os franceses dos que o fizeram de livre vontade. Se, por um lado,
“Os franceses são ainda poderosos e os habitantes de Olhão
abonam em favor dos primeiros, punem arrebatadamente estes últimos, os ditos
insuficientes para os arrostarem: se não se pacificam, podem os tigres fazer
“afrancesados”. Sebastião Pinto Negrão classifica-os como “pérfidos cobardes”
correr o sangue; e então os meus compatriotas me darão o nome odioso de
mas sublinha como “[...] não é licito nomear antes de provados seus crimes com
traidor: que farei nesta colisão? Toda a perplexidade é fraqueza... Sim, o
testemunhos autênticos em juízo competente [...]”139. Esta advertência, que se
meu partido está abraçado. O som do primeiro tiro será o sinal da minha
repete em outros escritos de outros autores, apenas vem demonstrar como a “justiça
retirada para unir-me aos meus concidadãos e o espírito de que os achar
popular” que Luís de Sequeira Oliva tanto enaltecia nem sempre foi tão justa assim.
animados regulará a minha conduta.”137
Insólito é notar como a literatura panfletária que condenou franceses e
“afrancesados” durante as invasões francesas, poucos anos depois, estava a servir
Outra das personagens dividida entre um e outro lado do conflito é a do
de arauto ao liberalismo. Afinal, a presença das tropas francesas conduziu a uma
Ministro Português enviado com as tropas francesas para negociar as condições
familiarização do povo com os ideais propagados pela Revolução. Depressa o que era
de rendição dos olhanenses. Quando o general Maurin o impele a essa missão,
familiar tornou-se atractivo e a resistência portuguesa à presença francesa ganhou
ele não se mostra disposto a colaborar e é de mau grado que acaba por ceder e
um carácter dúbio: por um lado, marcada pelo conservadorismo e pela francofobia
acompanhar os franceses nessa missão, durante a qual se manifesta como uma voz
e, por outro, capaz de adoptar alguns dos ideais revolucionários em seu proveito140.
jocosa, ridicularizando constantemente os seus superiores. Já quase no final da
Assim, nos anos subsequentes às invasões francesas, muitos dos jornais e panfletos
peça, perante o sucesso da revolta de Faro, o mesmo Ministro tenta justificar-se
tornam-se veículos de crítica do regime absolutista e de proliferação dos ideais
perante o Capitão Português que o acalma com palavras de compreensão:
liberais 141.
“[...] nenhum de nós deve ignorar que foi a força e não a vossa vontade
que vos arrancou de Faro. É sempre a vida inteira do homem que deve
138. Cf. Idem, Ibidem, p. 79.
decidir da sua moral e sentimentos e não as acções do momento que
139. Cf. Sebastião Duarte Andrade Pinto Negrão, op. cit.. Vide infra, em anexo, p. 83.
circunstâncias superiores às nossas forças nos obrigaram a praticar.
140. É de citar o que diz uma tese dedicada ao estudo da evolução da opinião pública em Portugal, da autoria de
Provera aos Céus, Senhor, que todos vos imitassem e que não tivesse a
José Augusto dos Santos Alves: “[...] a expansão impressa anti-francesa é ambivalente, pode funcionar como um
princípio de rejeição / apelo cognitivo, ou seja, “demoniza” o inimigo em nome de uma idealização consensual, ao
mesmo tempo que “vampiriza” as suas ideias mais puras, adequando-as ao espaço nacional.” (Cf. José Augusto dos
Santos Alves, A Opinião Pública em Portugal (1780-1820), Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2000, p. 307).

137. Cf. Idem, Ibidem, p. 36 141. Cf. António Pedro Vicente, “Panfletos anti-napoleónicos durante a Guerra Peninsular. Actividade editorial da
88 Olhão, Junho de 1808. 89
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Do outro lado, encontramos autores que se mantiveram fiéis ao halo conservador o vício, a justiça contra a tirania, o alento popular contra o vigor militar. O povo
que a revolta contra o invasor francês sempre imanou. É o caso de José Acúrsio das levantado, um pequeno e astuto David, é o alvo de todos os louvores.
Neves e de José Agostinho de Macedo. Este último, na nota introdutória ao seu No caso do levantamento de Olhão, esse David é o pobre pescador, experiente
poema O Novo Argonauta, observa a influência que, então, a cultura francesa tinha no labor marítimo mas um novato nas artes da guerra. A sua intrepidez foi
em Portugal, notando como tal provocara uma subvalorização a literatura nacional fomentada pela experiência no mar – o pescador de Olhão nunca temeu fazer as
e limitara o número de obras que cantavam os feitos dos heróis lusos: mais arriscadas empresas marítimas para conseguir o seu sustento. É neste tom
que João Baptista da Silva Lopes prefere retratar o mareante olhanense ao invés de
“Eu entrarei pela sombra do túmulo com a mágoa inconsolável de ver
enaltecer os seus sucessos militares frente às tropas francesas em 1808:
que muito se pejam e se envergonham da literatura pátria e que se pagam
“São os moradores de Olhão os mais destros e hábeis pescadores do
unicamente dos superficiais conhecimentos que agora aparecem na língua
Algarve e os que mais se afastam da costa, na distância de 12 a 15 léguas
francesa, cuja prática e ensino tomara ver abolido e desterrado de Portugal,
a S.O., onde pescam à linha e anzol, para o que lhes é indispensável a isca
fechando-se para sempre a entrada a seus livros pestilenciais, arrancando-
ou camada, que fazem dos chocos ou sardinha miúda.”143
os das mãos da juventude que só desta arte se lhe pode introduzir a moral
no coração e considerar-se como um crime civil a pronunciação de uma
Mais à frente, Silva Lopes refere-se, especificamente, às mulheres olhanenses
só palavra francesa. Se o ódio pudesse ser uma virtude, só quem com
que, tão laboriosas quanto os homens, têm um papel activo na actividade pesqueira,
toda a alma aborrecesse os franceses mereceria o nome de português e de
sendo responsáveis pela venda do peixe 144
. Outras fontes mencionam também a
virtuoso.” 142
coragem e o valor feminino. A Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa diz que
os olhanenses eram “[...] uma gente maruja, estranha em tais empresas mas valorosa,
Assim, em 1809, a ameaça de “afrancesamento” já ultrapassara o plano militar
a quem as mesmas mulheres davam exemplo [...]”145. Luís de Sequeira Oliva, na sua
e político para se impregnar na cultura portuguesa. Aos olhos de Agostinho de
peça Restauração dos Algarves, cria até uma personagem representativa da mulher
Macedo essa ameaça colocava em xeque o orgulho nacional e o próprio espírito
olhanense, Mariana. Esta, disfarçada com trajes masculinos, não hesita em pegar
patriótico. São estas as palavras de um conservador que temia o alastramento de
em armas e debater-se contra as tropas francesas, ao lado do seu irmão, Amaro, e
um ideário oposto ao “amor à Coroa, Religião e Pátria” que inspirara a resistência à
do seu amante, Charroco. Mariana é mesmo, entre as personagens olhanenses na
invasão francesa.
peça, a mais aguerrida, quem defende sempre as soluções mais enérgicas contra o
inimigo. Quando a sua identidade feminina é desvendada, o seu valor é equiparado
a outras heroínas da história portuguesa146.

4.3. David
143. Cf. João Baptista da Silva Lopes, op. cit., pp. 341-342. Palavras semelhantes repetem-se na voz de Ataíde
Oliveira: “O arrojo do pescador de Olhão é único, no Algarve. A sua audacia não tem aqui comparação. É feito de
Como já se viu, a imagem do português resistente surge sempre em contraposição fibras d’aço. No Algarve não há pescadores que os imitem.” (Ataíde Oliveira, Monografia do Concelho de Olhão, 3ª
ed., Faro, Algarve em Foco, 1999, p. 48).
com a do francês invasor: o patriotismo contra o expansionismo, a virtude contra
144. Cf. Idem, Ibidem, p. 343.

145. Cf. Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, [s.l.], [s.n.], 1808, p. 2. Vide infra, em anexo, p. 78.
Real Imprensa da Universidade”, Revista de História das Ideias, vol. 20, 1999, p. 121.
146. “[...] Portugal tem tido heroínas em todos os tempos: o capitão de Júlio César, quando veio à Lusitânia,
142. Cf. José Agostinho de Macedo, op. cit., pp. 12-13. foi desfeito na província do Minho pelas matronas bracarenses; Aljubarrota e Diu ficaram imortalizadas pelas
90 Olhão, Junho de 1808. 91
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Aliás, é uma constante na literatura panfletária a inscrição da coragem do povo mundo conhecido, descobrindo regiões incógnitas, dobrando o Cabo
algarvio e, em particular, dos mareantes de Olhão, no panteão dos heróis nacionais. dos Tormentos e fazendo que o soberbo e até ali indómito elemento
Afinal, este já havia demonstrado o seu alento em outras ocasiões passadas. É obedecesse ao Império Português. E dar-se-á caso, amados concidadãos
frequentemente mencionado o papel do Algarve na reconquista cristã. Existe que vós, portugueses de hoje, não sejais os mesmos de então! Ou para
mesmo uma comparação entre as duas situações, ambas encaradas por alguns o serdes, que seja necessário pôr á vossa frente os veneráveis esqueletos
sectores, nomeadamente pelo clero, como guerras religiosas – a expulsão das tropas de um Nuno Álvares, de um D. João de Castro, de um Vasco da Gama e
francesas representou uma vitória da religião contra o ateísmo . 147
de tantos outros heróis. Porém, perdoai meu entusiasmo: a morte não
Os mareantes olhanenses eram os “[...] verdadeiros descendentes dos Gamas estende o seu Império sobre os homens grandes que mereceram da pátria,
e Albuquerques [...]” e neles circula o mesmo sangue que corria nas veias dos eles ainda vivem em nossos peitos e eles estão animando o coração de
protagonistas das maiores e mais louváveis empresas portuguesas 148
. Assim, o vós todos. Portugueses, corramos á vitória, vamos aniquilar este infame
Algarve tornara-se no berço de novos heróis, cujo exemplo deveria ser seguido bando de malvados que a cólera de Napoleão vomitará sobre Portugal:
pelas gerações futuras. Luís de Sequeira Oliva deixa transparecer esta ideia ao vamos ensinar-lhe como se vence e dar a todos os portugueses o mais belo
longo da sua peça Restauração dos Algarves e um bom exemplo é o seguinte excerto. exemplo do santo amor da pátria. Mas antes que partamos, é necessário,
Neste, o Capitão Português dirige-se ao povo num discurso em que sublinha como soldados, que tenhais também o sinal da firme união das vossas vontades:
a restauração do Algarve marcaria uma página da história nacional, ao lado das falo da do patriotismo que abraça nossos corações. Eis aí tendes essas
mais famosas façanhas do passado. Trata-se de um dos momentos da peça mais fitas, cingi-as igualmente aos vossos braços. (Põem todos o laço vermelho.)
celebrativos dos valores patriotas: Um dia, queridos compatriotas, virá e o coração me diz que não está longe,
em que nunca tendo deixado cair dos valorosos braços nem as armas,
“Amados concidadãos, o dia 19 de Junho de 1808 vai ser sempre
nem este distintivo, entraremos triunfantes em Lisboa, para livrá-la da
memorável nos fastos da História Portuguesa: ele provará à derradeira
opressão dos tiranos e recebermos no reconhecimento de seus habitantes
posteridade o vosso grande patriotismo e que não tinham murchado
o prémio de nossas fadigas. Marchemos ao Campo da Glória e juremos
ainda os louros que nossos avós nos deixaram por herança. Provará
de novo à face dos Céus e da Terra, morrer pela nossa Independência,
que ainda circula nos habitantes dos Algarves o generoso sangue dessa
PRÍNCIPE e Religião. Viva o PRINCIPE REGENTE.”149
longa série de heróis famosos que, não satisfeitos com as vitórias do
continente, foram plantar as quinas portuguesas em todas as partes do
Tão grandes, tão dignos de memória eram os olhanenses revoltados quanto
os maiores nomes da história nacional. E esse valor é tanto mais louvável tendo
heroínas portuguesas e, de hoje em diante, Olhão será célebre por esse motivo.” (Cf. L. S. O Portuguez, Restauração
dos Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, Drama Historico em Tres Actos, Lisboa, Impressão Régia, 1809, p. 79).
em conta o desequilíbrio de forças na luta pela restauração do poder português no
Algarve. Acúrsio das Neves, depois de narrar a vitória dos olhanenses no confronto
147. Na resposta à proclamação de Junot de 26 de Junho de 1808, condenando o levantamento, o povo algarvio
apresenta-se como tendo já defrontado com sucesso inimigos bem mais ameaçadores do que as tropas de Napoleão. na Ponte de Quelfes, faz um interregno na sua exposição para esclarecer os leitores
São esses algarvios que “[...] lembrados ainda de haverem ganhado o seu país à custa de suas vidas, lançando fora
mais incautos de que Olhão não era sequer uma cidade mas sim uma pequena aldeia
dele outros mais temíveis, mais guerreiros soldados, a quem nem tu, nem os teus jamais igualaram os maometanos,
digo, resolveram de uma vez mostrar-te que eles são ainda os mesmos, fazendo desaparecer de entre si a infame e que os homens que ali lutaram contra as tropas francesas não passavam de uns
raça francesa, bem como aconteceu à mauritana gente [...]” (Cf. Proclamação que o general em chefe do exercito de
Portugal dirigio aos Portuguezes ..., Lisboa, Impressão Regia, 1808, p. 7.).

148. Cf. L. S. O. Português, Verdadeira Vida de Bonaparte, até à Feliz Restauração de Portugal, Lisboa, Impressão 149. Cf. L. S. O. Português, Restauração dos Algarves, ou os Heroes de Faro e Olhão, Drama Historico em Tres Actos,
Regia, 1808, p. 123. Lisboa, Impressão Régia, 1809, pp. 61-62.
92 Olhão, Junho de 1808. 93
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

pobres pescadores e camponeses. É claro que o autor cai num certo exagero, não Capitão Francês: Se o meu general vos proibiu de pescar, não foi por mal
notando nesta observação a presença de alguns oficiais e soldados que se juntaram mas para que vós não comunicásseis com a esquadra inglesa que
ao povo rebelado. Porém, o objectivo era exactamente exaltar o valor da vitória desse deseja a vossa perdição.
miserável David. Assim, Acúrsio exorta a todos aos “povos da Europa”: “Aprendei Charroco: A nós não nos importa quem nos deseja mal, mas sim quem
dos pescadores do Algarve lições de valor e de fidelidade!”150. no-lo faz.
Na peça de Luís de Sequeira Oliva, general Maurin vê com espanto o sucesso da Capitão Francês: Ignorais, por ventura, que, por força ou por bem, havíeis
revolta daquele povo de pobres pescadores . A coragem dos olhanenses raia mesmo
151
de fazer o que os franceses vos mandassem? Creio que não conheceis
o atrevimento. Quando os paisanos se apresentam junto dos oficiais franceses, eles ainda bem os seus poderes.
não temem provocar a ira dos seus interlocutores, respondendo com grande arrojo Charroco: Se todos são como os que tenho visto, são fortes papões! Nossas
às questões colocadas. Esse diálogo é particularmente eloquente no que toca ao mulheres e crianças nem sequer têm medo deles.
confronto entre a audácia dos olhanenses e a arrogância dos franceses, herdeiros Mariana: Que me lancem dois e veremos: creio que já sabem como eu
de um glorioso passado militar cuja decadência era denunciada pelo sucesso do mordo.
levantamento de Olhão: Amaro: Meia dúzia para mim é bagatela.
Tenente (Quer tirar a espada): Que dizeis, atrevidos, olhai que...
“Capitão Francês: Dizei porque motivo pegaste em armas?
Charroco: Olhe, não a constipe, abafe-a na bainha e lembre-se que cá nós
Charroco: Primeiramente porque tínhamos mãos e alma para lhe dar uso.
representamos aquela potência que além vê: os embaixadores sempre
Em segundo lugar, porque não fazíamos mal a ninguém, vivíamos cá
foram pessoas sagradas, veja primeiro o que faz.
neste calcanhar do Mundo da nossa agência. Em terceiro lugar, porque
Capitão Francês: Tenente, moderai os transportes: se as coisas não forem
sempre foi livre entre nós de pais a filhos podermos pescar. E para
a bem, teremos tempo de nos vingar.
deixarmos satisfações, pegamos nas armas porque quisemos.
Tenente: Havemos nós outros, vencedores de Marengo, Austerlitz,
Capitão Francês: Mas quem vos fez mal?
Jena e Frideland, sofrer que diante de nós se atreva algum a soltar
Mariana: Ora sofram de semelhante pergunta! Deixa-me falar com todos
semelhantes palavras e, sobretudo, uma miserável paisanada...
os diabos.
Charroco: Eu cá não conheço Maranhas, nem Marinhas, Sterliques ou
Charroco (Mandando-a calar): Sabeis vós o que significa Olhão em
Sterloques, Hellenas ou Forros de Hollanda. O que sei é que represento
português?
coisa de três mil habitantes que sem distinção de saia ou calção, de
Capitão Francês: Não
velho ou rapaz, todos estão ansiosos de guerrear com esses vencedores
Charroco: Pois eu vo-lo explico: quer dizer coisa que olha muito. Ora,
de que falais, fossem eles d’além do Inferno três léguas; e como vejo
quem olha muito, não vê pouco, quem não vê pouco, não é tolo. Nós
somos da terra dos que olham muito, tirai-lhe agora a consequência e
eis – aí tendes a resposta.

150. Cf. José Acúrsio das Neves, op. cit., pp. 142-143. Vide infra, em anexo, p. 97.

151. “Como! Em uma povoação de pobres pescadores! Costumados á miséria escravos por natureza. Não posso
acreditá-lo.” (Cf. L. S. O. Português, op. cit., p. 18.)
94 Olhão, Junho de 1808. 95
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

que quereis guerra, adeus, que nos vamos embora; e se vos atreveis, Quanto à restante tripulação, as informações são mais escassas. Aliás, embora
vinde-nos fazer uma visita.” 152
se conheçam os dados biográficos de alguns dos tripulantes devido às mercês e
honras concedidas pelo príncipe D. João, dos outros nada se sabe. Ataíde Oliveira,
Ainda durante o ano de 1808, o povo de Olhão deu uma nova prova do seu na Monografia de Olhão, apenas refere o nome de onze indivíduos155. Num estudo
arrojo. Logo no mês seguinte à restauração do Algarve, alguns pescadores de posterior, Alberto Iria consegue identificar dezassete tripulantes156. Porém,
Olhão ofereceram-se para irem num pequeno caíque de pesca levar essa boa o mesmo autor considera que este número não representaria a totalidade da
nova ao príncipe regente, no Rio de Janeiro153. A empresa era arriscada: o caíque, tripulação. Dá, aliás, o exemplo das personagens da peça de Luís de Sequeira Oliva,
denominado de Bom Sucesso, tinha apenas a capacidade de duas mil arrobas e as Amaro e Charroco. Iria pondera a hipótese destas duas personagens terem sido
suas dimensões não ultrapassariam os 15 a 20 metros de comprimento por 3 a 4 inspiradas em indivíduos reais, em dois pescadores de Olhão que teriam também
metros de largura. embarcado no caíque Bom Sucesso157. De facto, Luís de Sequeira Oliva mencionara
O mestre da embarcação era Manuel Martins Garrocho enquanto que o piloto os mesmos nomes num outro seu panfleto, Dialogo entre as principaes personagens
era Manuel de Oliveira Nobre, quer um, quer outro, sem qualquer experiência de francezas, embora referentes a uma única personagem, Amaro da Fonseca Charroco,
navegação para o Brasil. Alberto Iria, na obra que dedica ao estudo desta viagem, Do que o autor garantia não ser fictícia158. Sebastião de Brito Cabreira, na sua relação,
Algarve ao Brasil no caíque de pesca “Bom Sucesso” em 1808. Um episódio à margem da menciona também um Domingos Gonçalves Enxarroco (seria o Charroco de
Guerra Peninsular, apresenta algumas notas biográficas sobre estes dois olhanenses. Sequeira Oliva?) que o informara sobre o “desgosto geral de seus compatriotas,
Manuel Martins Garrocho morava na rua de S. José e era casado com Teresa dispostos a caírem repentinamente sobre os inimigos”159. Iria acrescenta ainda
Machada. Embora tenha sido mestre do caíque, não era o seu proprietário – este a referência que um artigo d’O Telégrafo Portuguez faz a dois filhos do piloto do
pertencia a um outro olhanense, o capitão Miguel do Ó, do qual, possivelmente, caíque, João e José de Oliveira Nobre, que teriam participado na viagem, razão pela
seria parente. Após a viagem, Garrocho recebeu o hábito da Ordem de Cristo, a qual foram elevados à categoria de guardas-marinhas160.
patente de 2º tenente da armada e o cargo de guarda-mor de saúde em Olhão. Viria
a falecer em 1833, vítima de cólera. Sobre o passado de Manuel de Oliveira Nobre,
antes da expedição do caíque Bom Sucesso, também pouco se sabe. Vivia, então, na Peninsular, Lisboa, edição de autor, 1936, pp. 10-13.

rua de S. Bartolomeu, junto com a sua esposa, Clara Maria. Como recompensa pela 155. Manuel Martins Garrocho, Manuel de Oliveira Nobre, Joaquim do Ó, Joaquim Ribeiro, Manuel de Oliveira,
viagem, o príncipe D. João concedeu-lhe o hábito da Ordem de Cristo, a patente Manuel de Viegas, António da Cruz Charrão e três indivíduos com o mesmo nome de Domingos do Ó (Cf. Ataíde
Oliveira, op. cit., p. 87).
de 2º tenente da armada e de capitão do porto de Olhão, cargo que desempenhou
156. Manuel Martins Garrocho, Manuel de Oliveira Nobre, Joaquim do Ó, Joaquim Ribeiro, Manuel de Oliveira,
até 1831. Com a vitória do liberalismo, Oliveira Nobre passou a participar mais António da Cruz Charrão, Domingos do Ó Borrego, António Pereira Gémio, António dos Santos Palma, Domingos
assiduamente nas sessões da Câmara de Olhão. Faleceu aos 87 anos, a 30 de Junho de Sousa, Francisco Lourenço, João Domingues Lopes, João de Munho, José Pires, José da Cruz, José da Cruz
Charrão e Pedro Ninil. (Cf. Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular
de 1850154. – 1808-1814), Lisboa, Livro Aberto, 2004, p. 132).

157. Cf. Alberto Iria, Do Algarve ao Brasil no caíque de pesca “Bom Sucesso” em 1808. Um episódio à margem da Guerra
152. Cf. Idem, ibidem, pp. 50-51. Peninsular, Lisboa, edição de autor, 1936, p. 25.

153. Esta não foi a única viagem realizada com o fim de dar a notícia da restauração do Algarve à corte do Rio de 158. Cf. L. S. O. Português, Dialogo entre as principaes personagens francezas, no banquete dado a bordo da Amavel
Janeiro. A 8 de Agosto, partiu de Faro o iate Nossa Senhora do Monte do Carmo com o mesmo destino. (Cf. Alberto por Junot no dia 27 de Setembro de 1808, Lisboa, Typografia Lacerdina, 1808, p. 41.
Iria, As Caravelas do Infante e os Caíques do Algarve. Subsídios para o Estudo da Arqueologia Naval Portuguesa, 2ª
edição, Lisboa, Academia da Marinha, 1991, pp. 107-109). 159. Cf. Sebastião de Brito Cabreira, op. cit., p. 6.

154. Cf. Alberto Iria, Do Algarve ao Brasil no caíque de pesca “Bom Sucesso” em 1808. Um episódio à margem da Guerra 160. Cf. Alberto Iria, op. cit., p. 25.
96 Olhão, Junho de 1808. 97
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Independentemente de quem e de quantos eram os tripulantes do caíque Bom “[...] Apenas soa
Sucesso, houve um que se destacou em relação aos seus companheiros de viagem, o A voz da Fama nos doirados paços,
piloto Manuel de Oliveira Nobre. O responsável por tal é José Agostinho de Macedo E do monarca enternecido à vista
que dedicou o seu poema O Novo Argonauta aos feitos do piloto olhanense. Na Tão estranho espectáculo se mostra,
introdução, ele descreve-o como “um homem de uma coragem desusada, de uma E o vacilante barco as praias toca;
constância inflexível e de uma intrepidez a toda a prova”, pois só alguém assim E desde a popa o triunfante nauta
poder-se-ia arriscar em tal empresa . Oliveira Nobre personifica todas as virtudes
161
Alça a voz e anuncia a liberdade,
do pescador olhanense: a intrepidez, o patriotismo, o desinteresse face à riqueza e E da Pátria o grilhão quebrado e roto.
à fama. Ele representa toda a tripulação do caíque Bom Sucesso que, sem temer os Nunca no peito humano afectos tantos
perigos do mar, lançou-se rumo ao Brasil para bradar “[...] que o grilhão se quebrou Entraram de uma vez! D’um lado, assombro
e a vil coorte / dos assassinos vândalos fugira” . Em termos mais gerais, Oliveira
162
De ver domado o túmido Oceano,
Nobre personifica todo um passado de heróis portugueses. Assim, José Agostinho Vencida a estrada perigosa, imensa,
de Macedo envereda por aquela que era, como já vimos, uma tónica constante na Por um mortal que as ondas assoberba
literatura panfletária. Em tão pequeno lenho; e d’outro lado
O caíque partiu do Algarve a 6 de Julho de 1808, tendo aportado na ilha Da libertada Pátria a imagem doce,
da Madeira para fazer a aguada. Ali, encontraram um jovem piloto, Francisco Dos vassalos o amor ao Trono Augusto,
Domingues Machado, que se dizia experiente na navegação na carreira da Índia. Com caracteres imortais expresso
Assim, a tripulação passou a contar com um piloto substituto para o caso de Oliveira No grão navegador que ao Soberano
Nobre adoecer ou mesmo falecer durante a missão. Da vistoria imortal conduz o brado,
A viagem foi tortuosa e o caíque sofreu as agruras de uma violenta tempestade. E a cena expõe da mísera derrota
Ao chegarem ao continente americano, a primeira terra avistada foi a Caiena De avarentos, cobardes opressores.”164
Francesa. Navegando ao largo da costa, aportaram em Pernambuco a 22 de Setembro.
Depois, seguiram até ao Rio de Janeiro, onde chegaram a 28 de Setembro. Ali, Para que esta viagem não caísse no olvido, D. João quis comprar o caíque Bom
foram recebidos em festa e completaram a sua missão, ao entregar os documentos Sucesso, pelo qual pagou seis mil cruzados. Este passou, então, a estar exposto na
que levavam, noticiando a restauração do Algarve163. Macedo dá-nos uma aguarela Ilha das Cobras, onde permaneceu até, pelo menos, 1841. Para a viagem de regresso,

poética da recepção dos “argonautas” olhanenses: Garrocho pôde escolher uma embarcação maior e mais segura165.
Individualmente, os tripulantes foram contemplados com várias honras do
príncipe regente. Como já vimos, os mais agraciados foram Manuel de Oliveira
161. Cf. José Agostinho de Macedo, op. cit., p. 9.
Nobre e Manuel Martins Garrocho166. Todos eles receberam uma medalha de prata,
162. Cf. Idem, ibidem, p. 22.

163. Os documentos eram os seguintes: uma carta do governo de Faro, de 5 de Julho; uma cópia do auto de eleição
164. Cf. Idem, ibidem, pp. 31-32.
do governo de Faro, de 22 de Junho, para ser aprovado pelo Príncipe Regente; duas cartas do bispo D. Francisco
Gomes de Avelar, a felicitarem o monarca em nome do clero algarvio, de 2 e 3 de Julho; uma carta do Compromisso 165. Cf. Idem, ibidem, p. 221.
Marítimo de Olhão, de 2 de Julho, em que se apresentavam as felicitações e se fazia uma breve descrição de Olhão
durante o domínio francês. (Cf. Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra 166. Alberto Iria elenca as honras concedidas aos vários tripulantes do caíque Bom Sucesso. Vide Idem, ibidem, pp.
Peninsular – 1808-1814), Lisboa, Livro Aberto, 2004, p. 133). 217-233.
98 Olhão, Junho de 1808. 99
4. Alguns olhares sobre os acontecimentos O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

votiva à restauração: tratava-se de uma medalha gravada num único lado, com um
“O” inscrito e, em redor, a legenda “Viva a Restauração e o Principe R. N. S.”. Com
eles, levaram igualmente o alvará em que o Príncipe Regente elevava o lugar a Vila
de Olhão da Restauração e agraciava D. Francisco de Mello da Cunha de Mendonça,
conde de Castro Marim, com o título de Marquês de Olhão.
Assim, o Príncipe D. João distinguiu Olhão e o seu povo pela iniciativa no
levantamento do Algarve contra as tropas francesas. Porém, essas honras não
foram capazes de sossegar o ímpeto dos pescadores olhanenses. Poucos anos
depois, durante a Revolução Liberal, o povo de Olhão voltaria a mostrar a coragem
e o arrojo que tão louvados foram pela literatura panfletária.
Conclusão
102 Olhão, Junho de 1808. 103
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Conclusão

Qual a função do texto impresso? Informar, sim. Divulgar, de facto. Entreter,


também. Doutrinar. Paremos nesta última acção. O objecto impresso, pela sua
acessibilidade, é um veículo preferencial de transmissão de informação mas
também de ideias, de valores, de doutrinas. Essa vertente é particularmente
intensa no que toca a géneros vocacionados a um público mais alargado. É o caso
dos periódicos, cuja actualidade da informação transmitida e o imediatismo da
sua assimilação, tornam-nos núncios do zeitgeist, do espírito do tempo. Também a
literatura panfletária tem um destinatário abrangente, atinge desde o topo até aos
níveis inferiores da hierarquia social, sob um único requisito, a literacia, mesmo
que a mais primária. São textos simples, de fácil compreensão, actuais e capazes de
sensibilizar as massas.
Assim, é natural a evolução da imprensa periódica e da literatura panfletária
durante o período das invasões francesas, tempo em que se tornou premente
exacerbar a resistência popular ao inimigo externo, uma ameaça à autonomia e à
própria identidade nacional. Sobretudo, passava a ser necessário fomentar uma
coesão nacional em torno de um ideário específico. Qual o melhor veículo para a
propagação desse ideário do que os jornais e os panfletos, tão acessíveis financeira
e intelectualmente?
Ora, a intenção doutrinária destes géneros torna-se evidente e condiciona o
seu crescimento em número a partir do início da resistência mais generalizada
à presença francesa em Portugal. Nas suas páginas são divulgados os valores a
preservar, é imposta uma posição face aos acontecimentos. Narram-se episódios
edificantes da resistência, exemplos a serem seguidos pelos leitores de então e pelas
gerações futuras.
104 Olhão, Junho de 1808. 105
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

O levantamento de Olhão em Junho de 1808 enquadra-se perfeitamente entre Tal leva-nos a questionar até que ponto poderemos chamar levantamento
esses episódios exemplares. Converte-se mesmo num paradigma da luta patriótica. popular à acção insurreccional de Olhão em Junho de 1808. Afinal, os próprios
É o fraco que se fez forte em prol de algo maior, o David que derrotou um Golias líderes do movimento não pertenciam à arraia miúda que prometiam proteger e
déspota. O pescador, homem simples e não familiarizado com a acção militar, é representar – eram elementos militares (José Lopes de Sousa e Sebastião Martins
impelido a pegar em armas para defender aquilo que tem de mais caro, a pátria e Mestre) e clericais (Padre António Malveira). Então, quais são os populares
a religião. Intenções tão nobres apenas poderiam resultar numa vitória – e foi um identificados nas fontes? Salvo uma ou outra referência breve a um nome ( e apenas
triunfo redundante a palma do mareante olhanense. É assim que os movimentos a isso), só foi perpetuada a memória da tripulação do caíque Bom Sucesso e, mesmo
pela restauração do poder português no Algarve surgem representados nos assim, sobretudo do mestre Manuel Martins Garrocho e do piloto Manuel de
panfletos e na imprensa periódica, exceptuando, como já vimos, o caso da Gazeta Oliveira Nobre. Aliás, o que se conhece destes dois olhanenses também se resume,
de Lisboa, sob a égide francesa até Setembro de 1808. praticamente, às honras com que foram agraciados após a missão. O pescador de
A Pátria, a Coroa e a Religião – esta tríade serviu de mote à revolta de Olhão, Olhão não surge na sua individualidade mas sim como uma categoria identificativa
tal como a todos os outros levantamentos contra a ocupação francesa. É uma tríade de um grupo social uniforme.
conservadora, com bases que satisfaziam o ideário da monarquia absoluta. Assim, O que trouxe a restauração ao povo olhanense? Em primeiro lugar, conseguiu
apesar da sua dimensão popular, estes movimentos eram, na sua essência, contra- conquistar o seu objectivo básico: expulsar do território uma autoridade que
revolucionários. Aliás, a Revolução Francesa aparecia evocada como a mãe de todos embargava a actividade pesqueira, base do seu sustento. Por outro lado, viu a sua
os vícios, da imoralidade e da irreligiosidade patentes em cada acção das tropas terra ser elevada à categoria de vila. Porém, como já observámos, tal não representou
napoleónicas. uma imediata autonomia administrativa e judicial face a Faro. Assim, essa elevação
Segundo a imprensa e a literatura panfletária, foi essa tríade, tornada palavra acabou por ser mais benéfica para alguns elementos da elite social algarvia, como
de ordem e clamada em alto tom pela voz dos populares, que impeliu o povo a foi o caso de D. Francisco de Mendonça e Meneses, privilegiado com o título de
armar-se contra o inimigo francês. O olhanense que respondeu ao apelo do coronel duque de Olhão, do que, propriamente, para o povo. A este restava continuar a
José Lopes de Sousa quando, à porta de igreja matriz, questionou se ainda havia lançar as redes ao mar, na mesma lide diária que levava há séculos.
portugueses por ali, é um patriota em toda a sua essência.
Mas seria realmente assim? Esse patriotismo inflamado foi mesmo a alavanca
que moveu a engrenagem da revolta? No caso de Olhão, a motivação foi mais
prosaica do que aquilo que estes textos querem deixar transparecer. As autoridades
francesas tinham colocado barreiras à actividade que ditava o sustento da população
olhanense, a pesca. O aumento da carga fiscal colocava em risco a sobrevivência dos
mareantes de Olhão. O que os moveu para o levantamento foi mais a necessidade
material do que o ideal.
Afinal, quer os periódicos, quer os panfletos representavam a perspectiva de
quem os escrevia. Não eram, portanto, a voz dos populares mas sim de uma fracção
letrada, uma boa parte dela ligada aos meios clericais, disposta a doutrinar esse
mesmo povo. Foi esta que acabou por dar o mote à revolta.
Anexos
108 Olhão, Junho de 1808. 109
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Anexos

Nota prévia:

O presente corpo de anexos não visa apresentar apenas documentação


inédita. Alguns dos documentos que aqui transcrevemos encontram-se
publicados noutras obras. Porém, a inclusão no presente estudo torna-
se necessária para uma mais fácil compreensão dos conteúdos e para um
mais imediato acesso do leitor às principais fontes consultadas
A transcrição dos documentos foi elaborada com uma actualização da
grafia e da pontuação, de modo a tornar a leitura mais clara e agradável.
110 Olhão, Junho de 1808. 111
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Doc. 1: “Capitulação ajustada entre o General Maurin e os Pescadores Que o exército sairia do Reino dos Algarves com artilharia e morrão aceso.
do Algarve”, Collecção das celebres Gazetas do Rocio, I parte, n.º 1, Lisboa, Concedido enquanto ao morrão, levando apenso o saco dos cigarros.
Tipografia Lacerdina, 1808.
A presente capitulação foi assinada entre o general Maurin e o Diaboqueoleve
Por notícias verdadeiras recebidas do Algarve e enviadas ao excelentíssimo aos 12 de Julho de 1808 = Maurin e Diaboqueoleve.
senhor general em chefe consta que os algarvios sacudiram muito bem o pó a todos
os franceses que ali se achavam. Não deixa contudo o general Maurin, apesar de
algumas lambadas que apanhou, elogiar a destreza e o furor daqueles povos e a
raiva com que expulsaram seus soldados, apesar da desigualdade das forças: tudo
foi corrido a pau segundo o costume camponês. Ficou prisioneiro o dito general com
toda a sua honra, segundo o artigo 1º da capitulação que ajustara, a mais gloriosa,
que se podia esperar para as nossas armas em tão perigosas circunstâncias. Deste
modo é que cedem os soldados de Marimbo quando não deixam o campo semeado
de cadáveres.

Capitulação ajustada entre o general Maurin e os pescadores do Algarve

Artigo I
Que as tropas francesas de guarnição nas praças de Silves, Faro e Olhão
evacuariam sem detrimento.
Concedido contanto que lá deixassem a pele.

II
Que a tropa francesa saía a toque de caixa com as suas honras, largando o
armamento na esplanada.
Concedido.

III
Que depois da ratificação do presente tratado, se aprontariam os franceses para
saírem do Algarve em 50 dias, sem que neste tempo houvesse falta de víveres.
Somente se concedem 5 minutos e se lhe ministrará toda a alfarroba de que precisarem.

IV
Que não ficariam provados de servir durante a presente guerra.
Concedido, visto não terem os franceses palavra de honra.

V
112 Olhão, Junho de 1808. 113
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Doc. 2: Luís de Sequeira Oliva, “O Camões do Algarve”, O Telégrafo Portuguez


Desgraça, miséria, fome Daqui sai um Albuquerque,
ou Gazeta para depois de jantar, n.º 20, 26 de Janeiro de 1809.
Reinava na Capital, Dalém outro Castro forte,
Enquanto Junot lascivo Ao vê-los espavorida
O Camões do Algarve
Era aos maridos fatal. Foge a malvada coorte.
Nota:
Junot, no delírio de seus proclamas, prometeu um Camões ao Algarve e Beira
Em banquetes, e deboches Reunidos estes valentes,
Alta; ignorou-se então o motivo; porém, hoje sabe-se que fora por antever que aqui
Do povo o sangue bebia Baixo do luso estandarte,
seria Loiscin batido e acolá a Legião do Meio-Dia destroçada.
Essa corja d’assassinos, Mandados por hábil chefe

Junot digno Comisário Por fomentar o comércio Que da nossa dor se ria. Correm ao Campo de Marte.

Do grande Napoleão, Das produções naturais,


O que nós chamamos roubo Abrirei por todo o Reino Eis briosos Algarvenses E limpando o Sul da Pátria

Chamava-lhe protecção. Novas estradas e canais. Lembrados do seu Camões, Da vil praga francesa,
Para cumprir-lhe a promessa Vem arvorar em Almada

Inocentes, sem malícia Mandarei para as províncias Fizeram consultações. A Bandeira Portuguesa.

Cuidámos que o tal Besoiro Luminosos magistrados,


Fazendo-nos mil promessas Que façam justiça aos bons, Lembrados do grande Homero, Eis arrogante Junot

Nos trazia a idade d’oiro. E castiguem os malvados. Que d’Ulisses não existira Brilhantes dignas acções,
Como famoso Poeta Que sem a tua protecção

Até nas esquinas dos becos, Talentos, ciências, artes Nunca ao mundo saíra. Hão de encontrar mil Camões.

Sítios sujos ou travessas Protegerei com cuidado,


Pregou em letra redonda Meu Amo o omnipotente Julgaram que neste caso Leva escravo a teu Senhor

Estas sublimes promessas. Assim mo tem ordenado.” Para produzir Camões, Do Algarve sabias lições;
Deverão criar primeiro Quem regenera Albuquerques,

“Portugueses venturosos, Enfim a tanto chegaram De Canto dignas acções. Sabe produzir Camões.

Vou melhorar vossa sorte Suas altas protecções,


Na pública administrança Que mesmo prometeu dar-nos Tocam-se os sinos de Faro,

Dar-vos-ei saudável corte. Nos Algarves um Camões. Correm às armas depressa,


Marcham todos á Vitória

Metade dos empregados, Em lugar de tais promessas, Só por cumprir-lhes a promessa.

Que viviam da escritura Que nos fez o Maganão,


N.B.: Esta bagatela poética foi feita em Azeitão, quando o nosso Exército do Sul
Subsistirão de hoje em diante Lançou sobre os protegidos
tinha aí o seu quartel-general. E eu tive a honra de acompanhá-lo.
Dos frutos d’agricultura. Enorme contribuição!
Luiz de Siqueira Oliva
114 Olhão, Junho de 1808. 115
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

matriz do lugar a ouvir missa, vendo então que muita gente lia um edital francês
que se achava afixado ao lado da porta da igreja, o qual convocava toda a nação
portuguesa a tomar armas contra Espanha e Inglaterra, o que vinha a ser por uma
Doc. 3: Acção memoravel do Coronel José Lopes de Sousa, [s.l.], [s.n.], consequência contra o seu mesmo Príncipe Regente, sugerindo na nação partidos
1808. 167
da mais enorme perfídia, não podendo já mais sofrer oculta a sensível paixão que
comprimia a sua alma, submetido com a sua nação ao duro jugo da traição dominante
Sendo um dos principais objectos desta obra transmitir à posteridade as dos franceses inimigos do nosso Príncipe Regente, Real Família, pátria e religião, se
heróicas façanhas e assinalados feitos acontecidos na feliz restauração de Portugal, apressa por entre o povo que o lia, deita mão ao terrível edital, ele o arranca, rasga
e sendo um dos memoráveis o executado pelo sempre respeitável, o fiel vassalo do e pisa aos pés, inspirando ao mesmo tempo como enérgicas persuasões, a verdade
nosso amabilíssimo Príncipe, o governador da praça de Vila Real de Santo António, e patriotismo, quando logo, felizmente, se vê seguido de um povo fiel, amante do
não só pela nobre acção que ele obrou naquele notável dia, mas também porque seu Príncipe, da pátria, da honra própria e da nação, que promete vingar os agravos
ele foi quem primeiro começou a restauração do Reino do Algarve, cooperando feitos à religião tão escandalosamente profanada por um bando de homens ou
deste modo para o restabelecimento do felicíssimo governo do nosso amabilíssimo monstros corrompidos e abomináveis.
Soberano, julgamos nosso dever transmitir à posteridade esta façanha do modo que Segue-se a isto o entrarem todos para a igreja a ouvirem missa, para impetrar o
está na nossa mão, dedicando-lhe ao seu patriotismo e lealdade a estampa junta. Omnipotente os socorros que em um tal conflito necessitavam. E saindo, depois, para
Esta estampa representa a acção em que o dito governador rasgou o edital o adro da igreja, todo o mais povo que correu aquele lugar, todos uniformemente ali
francês que convidava aos portugueses a irem contra os espanhóis. O governador mostram iguais sentimentos, gritando ao governador os dirigisse como seu chefe
exclama então: “Ah! Portugueses, já não merecemos este nome, e nada somos já!”, a que e restaurador, do tirano jugo inimigo, que eles se achavam prontos a combater,
todos os espectadores responderam: “Somos ainda Portugueses e estamos prontos a clamando ao mesmo tempo com altas vozes, tanto grandes como pequenos “Viva o
dar a vida pela Religião, pelo Príncipe e pela Pátria!”. Mostrando o seu patriotismo Nosso Príncipe e mais Real Família” e “Deus dê esforços e saúde ao governador que
e lealdade, oferecendo morrer ou vencer, gritando todos “Viva o Príncipe Regente deve ser o nosso general”. O governador os sossega e lhes ordena que, embarcados,
Nosso Senhor”. Como nós devemos também para instrução dos nossos leitores vão buscar duas peças de campanha de calibre de 6 que estavam assestadas na Ilha
narrar extensamente este facto, julgamos também necessário copiar a seguinte da Barra d’Armona, com suas munições guardadas por pés de castelo e também
noticia. a pólvora que houvesse no paiol da fortaleza de S. Lourenço da mesma Barra de
Faro. E com este pouco se pôs em defensa, expedindo logo no mesmo dia a um
“Declaração da revolução principiada no dia 16 de Junho de 1808, no Algarve, e João Gomes Pincho, com ofício, ao comandante de uma esquadra inglesa que se
lugar de Olhão, pelo governador da praça de Vila Real de Santo António, José Lopes achava fundeada na costa, em frente do lugar da Figueira, em Espanha, requerendo-
de Sousa, para a restauração de Portugal” lhe auxílio de armas e munições, ao que respondendo o referido chefe não ter o
Achando-se o dito governador no mencionado lugar, retirado para convalescer pretendido abastecimento que se lhes rogava, como havia já respondido ao capitão
das suas moléstias, no referido dia 16 de Junho, encaminhando-se para a igreja de milícias de Tavira, Sebastião Martins Mestre, que ainda se achava ali presente a
bordo na diligência de semelhante requisição, o que pretendia de prevenção, a fim
de aproveitar a ocasião oportuna contra os inimigos da pátria. Então, unido este
167. Este documento encontra-se transcrito na íntegra em Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para
a História da Guerra Peninsular – 1808-1814), Lisboa, Livro Aberto, 2004, pp. 301-306. Aqui, apenas apresentamos capitão com o meu enviado João Gomes Pincho, marcham sem perda de tempo
a parte que respeita à revolta de Olhão.
116 Olhão, Junho de 1808. 117
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

a Aiamonte e requerem à Junta do governo daquela cidade o pretendido socorro. seus patrícios a que o mandavam, ele tomaria aquele acordo que lhe inspirava a sua
Esta lhe confere logo o de cento e trinta espingardas que conduzem, vindo por esta honra e patriotismo.
forma a unir-se este capitão com o governador em defensa do lugar de Olhão, aonde Isto posto em execução, produz tanta impressão no povo de Faro que o seu
chega o mais pronto possível, no dia seguinte, dezassete, á noite, e jamais se separa resultado parece misterioso, pois que lembrando-se um homem marítimo de usar do
da acção. disfarce de subir á torre de Nossa Senhora do Carmo para tocar umas badaladas de
No dia dezoito de manhã, constando que o general francês do quartel de Faro devoção que por uso tem de costume dedicarem a Nossa Senhora pelo bom sucesso
tem ordenado reforçar a sua guarnição para o vir atacar e, para isso, marcham de alguma mulher em parto. Então, este homem toca a rebate, levanta-se o povo e
embarcados os franceses da guarnição de Tavira em três caíques, logo o povo, com correm sobre o general francês, prendem-no e a expedição que marchava a atacar
intrepidez, lhe requis o ataque, o pôs em execução, comandando esta expedição o Olhão é posta em fuga, dispersando-se o inimigo por toda a parte. Ultimamente,
referido capitão Sebastião Martins Mestre com os paisanos, embarcados em um todos os portugueses passam a formar união contra o mesmo inimigo e o povo
caíque, com os franceses armados e grande quantidade de bagagens, que eram em toma por seu chefe ao dito Tenente Belchior Drago Cabreira, o que aconteceu no
número de setenta e sete soldados e mais três oficiais de patente e quartel mestre, dia 19.
todos da Legião do Meio-Dia, que conduziu a este povo. Seguindo-se, poucos Quando já o governador havia tomado medidas de precaução a fim de não ficar
instantes depois, o virem marchando por terra os que eram da guarnição de Vila frustada a revolução por ver que as mesmas tropas portuguesas o vinham atacar,
Real para o mesmo referido fim de reunião em Faro, em número de cento e oitenta quando devia esperar que progressivamente se reforçasse, não só por aquela cidade
e cinco granadeiros da mesma legião, logo o povo, influído, quer marchar e corre a mas geralmente por todos os mais bons portugueses interessados na mais justa causa,
atacar estes inimigos, apesar da desigualdade em armas e poucas munições, assim pelo que ele passa junto com o capitão Sebastião Martins a Aiamonte, conduzindo
os vai a acompanhar o mesmo capitão, a fim de ordenar este povo na acção, que todos os prisioneiros franceses que aquela Junta lhe recebe e lhe reclama novos
foi principiada a meia légua deste lugar, no sitio da ponte de Quelfes, e acossam o socorros e armamento, de que tanto necessitava, e esta Junta resolve que o dito
inimigo, o mais que era de esperar. Quando também, com uma peça de campanha, capitão marchasse pela posta, a fazer presente à Suprema Junta de Sevilha quando
passa o governador a suster os inimigos que constava virem de Faro, chegando lhes convinha, para dela poder receber todos os socorros necessários, enquanto ele
a atacar os seus paisanos que, no fim da tarde, são perseguidos, disparando-lhes governador ficava para obrar com os que aquela de Aiamonte subalterna pudesse
alguns tiros, e o referido capitão só recebeu uma grande contusão no peito, enquanto subministrar-lhe.
inspirava valor e reunião possível em uma gente maruja, estranha em tais empresas Porém, constou logo ao governador o feliz sucesso de Faro, seguindo o exemplo
mas valorosa, a quem as mesmas mulheres davam exemplo. E foi constante perder o de Olhão, tendo a satisfação de ver felizmente sem outro chefe que os animasse
inimigo alguma gente, cujo número ocultaram. Da nossa parte, faleceu um homem recobrar a liberdade uns povos depois de outros. Os inimigos são postos em fuga
velho que os inimigos mataram fora da acção e mais dois rapazes. precipitada e, encaminhando-se dispersados pela serra, evacuam todo o Algarve.
Ameaçava o inimigo este lugar, não só com as suas forças, mas com as [...]
portuguesas que estavam ao seu serviço, com que saem de Faro a formar o ataque, Esta, a mais exacta narração que confirmará ao público o acontecido desde o dia
com peças e obuses de artilharia, sendo o oficial português nomeado para comandar 16 de Junho, com que teve principio a revolução no Algarve no lugar de Olhão, não
a respectiva tropa do seu regimento, o tenente Belchior Drago Cabreira, o qual devendo ficar em silêncio o merecimento do reverendo prior da freguesia daquele
logo, por palavras próprias de português, indicou o público agravo e fez entender lugar, que tanto mostrou o seu religioso patriotismo logo que viu o governador
que marchava por uma obediência repugnante e que, se chegasse a acção contra os com o seu povo posto em acção. É o que se faz saber ao público, a fim de não ficar
118 Olhão, Junho de 1808. 119
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

duvidoso ou equivocado pela narração dada ao público, em data de 17 de Setembro rechaçados com perda de 25 homens, deixando no campo 16 mortos, suas mochilas,
do presente ano de 1808. um obus mal encravado, com todas as munições e pólvora espalhada pela terra.
Aqueles pérfidos cobardes, talvez acompanhados de quem só devera acometê-
los, (e que não é licito nomear antes de provados seus crimes com testemunhos
autênticos em juízo competente) mataram duas crianças que apascentavam um
pouco de gado, um velho de mais de 100 anos, a quem por isso chamavam o Pai Avô,
Doc. 4: Sebastião Duarte Andrade Pinto de Negrão, “Relação da feliz, como também uma mulher já muito velha e sua família. Feriram mortalmente dois
e gloriosa Restauração do Reino do Algarve”, Minerva Lusitana, n.º 27, 27 homens, mas que felizmente se restabeleceram.
Agosto 1808 168 Ficou dispersa pelo campo aquela porção de franceses, esperando da cidade de
Tavira novos reforços que, de facto, lhes vieram em o dia 19; e pedindo o general
No dia 17 de Junho de 1808 (sic) , em que a nossa Santa Igreja celebrou a
169 Maurin, que governava todo o Algarve e residia em Faro, que do regimento de
festa do Corpo de Deus, mandando o pérfido e abominável governo francês afixar artilharia n.º 2 que ali se achava, se destacassem artilheiros para ajudarem a rebater
no lugar de Olhão, distante de Faro uma légua, uma ordem em que os oprimidos aquela valorosa porção de honrados e nobres mareantes; o povo de Faro, tocando a
portugueses eram convidados a tomar armas contra os nossos vizinhos espanhóis, rebate pelas duas horas da tarde, pondo-se à testa dele um paisano e dos militares
o governador de Vila Real de Santo António, o coronel José Lopes de Sousa, não Sebastião Cabreira, capitão de artilharia, e seus irmãos Belchior Cabreira e Severo
menos vassalo fiel que militar brioso, e que mal sofria a nossa escravidão, achando- Cabreira, como também Lázaro Landeiro e outros, arvoraram o estandarte nacional,
se em o dito lugar, arrancou o edital e, rompendo o involuntário silêncio, exclamou defenderam a cidade, transportando para os campos muita artilharia, apoderando-
para uns poucos de homens marítimos, única gente que habita aquela estância, com se do paiol da pólvora, aprisionando muitos franceses, soldados, oficiais e o mesmo
vozes e gestos os mais expressivos: “Ah Portugueses, já não merecemos este nome, e general Maurin, que seriam ao todo 170 homens.
nada somos já!”, a que os poucos homens gritando com voz unânime, responderam, Não foi inferior o partido que nisto tomou toda a nobreza, clero e ordens
“Somos ainda Portugueses, e estamos prontos a dar a vida pela Religião, pelo Príncipe religiosas, a quem o dito povo, em o dia 20, convocou, prestando todos
e pela Pátria”. O coronel recolheu-se à igreja e aqueles poucos homens facilmente juramento, pelas 7 horas da manhã, sobre as peças de artilharia, que defenderiam
atraíram a si o restante da povoação que tanto amou sempre a Augusta Família unanimemente até à última pinga de sangue a Religião, a Pátria, a Rainha Nossa
Real de Portugal; e entrando tumultuosamente pela igreja, tiraram o coronel, a Senhora, o PRINCIPE REGENTE N. S., os Sereníssimos Filhos e toda a Sereníssima
quem elegeram seu chefe e foram atacar, debaixo do seu comando, os franceses Casa de Bragança.
que alcançaram no lugar, procurando logo pôr-se no estado de defesa que puderam, Apareceu logo armado o corpo do reverendíssimo cabido e todo o clero com as
segundo as suas circunstâncias, indo depois tirar da fortaleza de Armona, sita em a três ordens franciscanos, antoninhos e marianos. Continuaram as disposições que
costa, a artilharia que lá se achava. requeriam as circunstâncias pela presença do inimigo, que perseguido voltava de
No dia 18, os franceses existentes em a cidade de Faro, granadeiros e caçadores, Olhão por não poder lá entrar, querendo refugiar-se em Faro, mas sendo repelidos
caminharam a fazer conter aquela revolução e, tentando investir Olhão, foram pela nossa artilharia principalmente, refugiaram-se para as montanhas distantes
mais de uma légua.
168. Este documento encontra-se transcrito em Alberto Iria, op. cit., pp. 313-314. Pelas duas horas da tarde deste mesmo dia, ficando em tumultuosa, mas segura
169. Todos os outros documentos referem que foi a 16 de Junho, dia de Corpo de Deus, que se iniciou revolta. Pode-
defesa a cidade, destacando-se tropa a socorrer Olhão, os franceses evacuaram
se tratar de um erro do autor. aqueles sítios e, fugindo dispersos pelas serras, se reuniram em Mértola, aonde
120 Olhão, Junho de 1808. 121
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

havia uma porção deles que, com a tropa do Algarve, se destinava a invadir Espanha, e todas perigosas, pois que o inimigo era vigilante, potente e ressabiado.
cujos movimentos se souberam depois. Mas o paisano, que andava também à testa Aparece a final suspirada ocasião e o dia 17 de Junho deu princípio à revolução
de uma grande porção de povo, despediu-se deste, dizendo-lhe: “Amigos, nós não dos algarvios contra os franceses. Eram estes 2 da Legião do Meio-Dia e do batalhão
estamos defendidos, enquanto em nosso reino houver cidade, vila ou aldeia que n.º 26, comandados pelo general Maurin, o qual, além de outros passados vexames,
viva dominada da tirania francesa. Eu parto já por todos os lugares de poente e obrigou todos os marítimos a pagar-lhe certa soma, a qual sem que nos lembremos
vós ide por mar, em multidão, a Tavira e seja em um momento feita em nosso país de ser uma extorsão violenta, excedia as forças de pobres pescadores; o que pouco
a restauração da nossa liberdade e do governo do nosso Príncipe: façamos nossos lhe importava, pois todo o seu alvo era saquear politicamente todo o Algarve. Afora
deveres.” este insolente procedimento, que agitou sobremaneira os espíritos de modo que um
Marchou logo arrebatadamente o paisano a Loulé, vila considerável, Albufeira, dos habitantes de Olhão, por nome Domingos Gonçalves Enxarrôco, logo veio dar
Lagoa, Silves, Vila Nova de Portimão, Alvor, Lagos e outros lugares, fazendo prender parte a A., no mesmo dia 17, da murmuração e desgosto geral de seus compatriotas,
todos os franceses ali existentes e aqueles que os povos notavam de pérfida adesão dispostos a caírem repentinamente sobre os inimigos. Apareceu fixado em todos
ás perniciosas máximas francesas; e com tal felicidade que, em 48 horas, não havia os lugares públicos aquele adulador edital de Junot, convidando os portugueses a
lugar algum que não tivesse com admirável entusiasmo restaurado sua liberdade. saber vencer como ele, isto é, com tramas, ardis e vilezas.
(assinado) Sebastião Duarte Andrade Pinto Negrão José Lopes de Sousa, de conhecido valor e honra, ao entrar a igreja, é quem
primeiro lê e arranca indignado, dizendo “que havia de ser louvado quanto fizera se
ainda houvesse portugueses”. A cujas vozes se junta o povo que, já no dia 13, andava
movido e grita que os comandasse, pois estavam todos prontos para derramar todo
o sangue para conservar os direitos do seu príncipe.
Doc. 5: Sebastião Drago de Brito Cabreira, Relação Histórica da Imediatamente, soou em Faro quanto acontecia em Olhão, à distância de
Revolução do Algarve contra os franceses..., Lisboa, Typografia Lacerdina, uma légua, em cuja cidade residia o general com todo o seu cortejo, bem como o
1809, pp. 5-8. corregedor-mor e Mr. Garier, comandante da artilharia. Cuidou logo o general
francês em se acautelar contra o incêndio que principiava a lavrar, não se ateando
[...] menos em Loulé, aonde o sargento-mor José da Costa Leal, junto com o capitão-
Lavrava este espírito émulo dos Castros e Albuquerques por uma grande mor Simão José de Azevedo, fez aprisionar logo 20 franceses que marchavam para
parte de Portugal aonde sempre houve dignos filhos da pátria e da guerra; e nos se unirem aos mais, do que tudo foi o A. informado pelo cabo de esquadra Jacola,
habitantes de Faro era já maior o incêndio, pois que a furto se juntavam perto da do regimento de artilharia n.º 2, o qual trouxe também cartas do capitão-mor em
Igreja da Santíssima Trindade implorando-a em socorro para dar-lhes forças, e que participava ao A. do acontecido. Não houve, portanto, circunstância alguma de
meios de acabarem com os inimigos da religião e da humanidade. Porém, como fosse que o general francês se não valesse contra o levantamento dos povos que há tanto
este um lugar público e os franceses tivessem um aluvião de traidores e espias, foi tempo sofriam as mais violentas vexações. Procurou também falar às autoridades
conveniente e assisado mudar as secções e os ajuntamentos que alguns patriotas ali constituídas para que estas e as pessoas mais conspícuas que influíam no povo o
faziam para a casa de A. 170
sempre firmes nos projectos de salvar a pátria quando as pudessem reprimir, chegando até o corregedor-mor ir procurar o A. por saber que o
circunstâncias fossem oportunas para o que tomavam todas as medidas necessárias povo assaz o estimava, ao qual, na presença do Dr. Negrão, fez as maiores ofertas ao
autor: “Sabeis, que sou cunhado de Mr. Herman e estou no caso de fazer a felicidade
170. A. é o autor.
122 Olhão, Junho de 1808. 123
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

destes reinos e a vossa, os Algarvios vos amam, falai-lhes, persuadi-os a entrarem Sequeira e José Carlos de Sequeira; e também marcharam os tenentes de artilharia
no seu dever. Quanto possuo será vosso e com o meu respeito, e valimento vos Belchior Cabreira e Severo Leão Cabreira, irmãos do autor, os quais se foram postar
alcançarei as maiores honras.”. ao Rio Seco, avenida de Olhão para Faro. Eram 2 horas da noite quando o A. foi ter
Estas sedutoras promessas foram repelidas politicamente pelo A., respondendo com seus irmãos para se inteirar de seus sentimentos, não por duvidar deles, porém
“que nunca brandira a espada, nem soltara palavra que não fosse em beneficio a fim de mais cabalmente poder concertar o plano de voltarem as armas que tinham
da pátria, que o mal era inevitável e que Portugal ia a decidir-se e acabar com os contra o inimigo, a quem fingiam servir.
inimigos que nutria em seu peito.”. As repulsas do A. foram iguais para com Mr. No mesmo dia 18, os povos de Olhão souberam que pelo rio se transportavam
Garier, pois que, recomendando ao A., bem como o havia feito o corregedor-mor, bagagens da Legião do Meio-Dia e logo se embarcaram armados, caindo sobre os
dizendo-lhe que, visto a confiança que o povo nele tinha houvesse de o acalmar, por inimigos com tal ímpeto que não só os aprisionaram, mas tomaram-lhes as bagagens
quanto a causa era do grande Napoleão, o qual nunca deixava de premiar largamente que puseram a salvo em Aiamonte, na noite do mesmo dia. É escusado dizer o risco,
os benefícios que lhe faziam.”. Ao que sempre a resposta do A. foi uniforme e uma. que aqueles honrados patriotas correram, porém a justiça da causa e a Providência
Vendo os franceses que pela brandura nada conseguiam e que todas as tentativas os ajudou por maneira que apesar de se haverem os marítimos de Tavira lançado a
eram inúteis e que não podiam angariar o A. a dissuadir o povo que muito nele nado sem experiência ou táctica de guerra, conseguiram os seus fins sem o menor
confiava, não se resolveram logo a usar a força armada que tinham por temerem detrimento.
que o furor daqueles povos tomassem mais calor e ainda procuraram solicitar No dia 19, se aproximou um magote de paisanos armados de fisgas e espadas
outras pessoas para o mesmo fim, porém com o mesmo sucesso, entre as quais se que servia como de avançada. Mr. Garier, que já desconfiava muito do furor
portou bizarramente Joaquim Filipe de Landercet. dos povos e receava a sorte da tropa que comandava, levantando uma bandeira
Todavia, não deixou de haver quem favorecesse o malvado sistema dos inimigos branca como sinal parlamentar, foi ao encontro dos paisanos, aos quais mandou
e, de acordo com o corregedor-mor, fizeram marchar a cavalaria que ali se achava intimar que pretendia falar ao comandante. Os patriotas responderam que não lhe
para Olhão e dissimularam com Faro, talvez para a tempo oportuno poderem dar- podia falar, porém se tinha algum negócio a tratar, o podia fazer com o juiz do
lhe mais profundo golpe. No dia 18, fizeram recolher de Vila Real de Santo António Compromisso, cuja autoridade, julgando Garier que era algum general imediato,
os granadeiros e caçadores da Legião do Meio-Dia e os soldados do batalhão n.º 26 ajustou que iria sem perda de tempo acompanhado do juiz de fora e do corregedor-
para se encorparem com a demais tropa que estava em Faro para atacarem Olhão, mor convencionar quanto convinha para o público sossego.
cuja povoação se achava então defendida somente por 2 peças de artilharia, as Chegou finalmente o termo aprazado para a conferência e esta foi a época
quais tiraram da bataria de Armona. E é incrível que os invencíveis de Marengo ditosa em que de devera sacudir o jugo inimigo. Neste dia de eterna memória para
sucumbissem a um punhado de homens mal armados, postos numa emboscada pelo os algarvios, foi tratar com o povo de Olhão, o comandante francês, o corregedor-
coronel José Lopes de Sousa e por Sebastião Martins Mestre, capitão de milícias de mor, o juiz de fora de Faro e o major Joaquim Filipe de Landercet como intérprete
Tavira. Acossados os inimigos por aqueles honrados patriotas, voltam a Faro para se de Mr. Garier e que então bem comprovou que era um português verdadeiro.
refazerem e armarem novamente debaixo do comando de Mr. Garier, o qual já havia [...]
feito armar também 60 homens, resto do regimento de artilharia portuguesa, pois
que os mais soldados nossos estavam destacados nas fortalezas contra o inimigo
comum, frase usual entre os franceses. Marchou esta pouca tropa portuguesa, com
efeito, na noite do dia 18, com duas peças comandadas por Francisco António de
124 Olhão, Junho de 1808. 125
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

Doc. 6: I. F. L. (Joaquim Filipe de Landerset), Breve Noticia da Feliz nossas Bandeiras”; e fazem ressoar os vivas á nossa Augusta SOBERANA, ao nosso
Restauração do Reino do Algarve e mais successos até ao fim da marcha do PRINCIPE, e a toda a Real Família. Aceita o coronel a eleição e, para mais afervorar
exercito do Sul em auxilio da capital, Lisboa, Nova Officina de João Rodrigues o entusiasmo, faz logo arvorar as reais bandeiras. Manda igualmente recolher
Neves, 1809.171 da Barra de Armona duas peças de 6 com os artilheiros de pé de castelo que as
guardavam e a pólvora que havia no paiol da próxima fortaleza de S. Lourenço,
[...] e envia a um João Gomes Pincho com ofício ao comandante da esquadra inglesa
Neste tempo, sucedeu no Porto a prisão do general Quesnel e mais franceses que se achava fundeada em frente do lugar da Figueirita, em Espanha, pedindo-
por Bellesta. Junot, em Lisboa, por ardil e não por força, surpreende, desarma e lhe o auxílio das armas e munições. Entretanto, não cessavam os sinos de tocarem
aprisiona a tropa espanhola e toma este motivo para, no edital de 11 de Junho, que a rebate, convocando os povos das serras e ordenanças de cavalo, que em um
faz afixar por todo o reino, afeando o procedimento espanhol e desculpando o seu, momento acodem á ordem do seu capitão José Martins da Beira, assistente no
convidar a nação portuguesa a unir-se com ele e com as suas tropas contra aqueles mesmo lugar de Olhão. Assim, com tão poucos meios para a defesa, estando a maior
mesmos cuja causa era já comum. Para isto se serve das expressões mais soberbas e parte do povo inerme e outra mal armada, empreende atrevidamente sustentar-se
arrogantes e, julgando talvez que desta sorte voluntariamente correriam às armas, e repelir os ataques do inimigo, fazendo postar guardas avançadas.
anelando a honra de serem companheiros dos valorosos soldados de Marengo, Antes deste facto, na noite de 12, festejando a véspera do dia de Santo António,
Austerlitz, Jena e Friedland, não reflectiu que semelhante política era um motivo haviam os de Olhão aclamado o Príncipe Regente Nosso Senhor e arvorado a
demais para encolerizar o nobre carácter português, que não sofre no valor e brio bandeira portuguesa no topo de um grande mastro enramalhetado que cravarão na
quem se lhe anteponha. terra, à roda do qual de mistura com os cânticos que usam dedicar ao santo, fizeram
A experiência provou logo esta verdade, pois que, afixando-se o referido edital ressoar os vivas à sereníssima Casa de Bragança, e foi tão geral o contentamento e
ao lado da porta da igreja matriz de Olhão, pequena terra de pescadores no Algarve, forte o entusiasmo de que se possuíam ao verem soltas as reais quinas que, a terem
uma légua distante da cidade de Faro, no solene e memorável dia 16 de Junho de então quem os dirigisse, teriam voado às armas como fizeram três dias depois.
1808, em que a igreja celebrou a festa do Corpo de Deus, indo para a missa o coronel [...]
José Lopes de Sousa, que vivia retirado na mesma terra, e notando o concurso do No dia 17 pela manhã, fez-se público em Faro o acontecimento do dia
povo atento à sua leitura, com intrépida resolução, rompe por entre ele, lança mão antecedente em Olhão. O corregedor-mor francês, conhecendo as poucas forças
do papel afixado, rasga-o, pisa-o e, voltando-se para o povo cheio de entusiasmo, que tinha para sossegar aquele lugar e que, pela distância em que estavam as mais
lhe increpa o sofrimento, duvidando de que fossem portugueses. Gritam todos “que tropas tardaria o auxílio, receando além disso que Faro também se declarasse, fez
o eram e estavam prontos a mostrá-lo”, dando as vidas pela Religião, pelo PRÍNCIPE chamar o corregedor, juiz de fora, o coronel de artilharia e o major Joaquim Filipe
e pela Pátria. Nisto sabem que principia a missão, entram na igreja e durante ela de Landerset, e pretendendo que o dito Major passasse ao mencionado lugar, a
sente-se o continuado sussurro dos circunstantes. Acabado o santo sacrifício e fim de restabelecer a tranquilidade, prodigalizou-se para isto toda a qualidade
saindo o dito coronel, o povo, que tinha concorrido, excitado com a novidade deste de promessas, as quais todas ele recusou, pretextando motivos para escusar-se,
sucesso, grita em altas vozes, “que quer ser livre, que ele os comande, que se arvorem as como conseguiu. Então, o corregedor lhe pediu que o informasse do espírito dos
habitantes de Faro e, respondendo-lhe o mesmo major que não havia que temer,
que todos estavam em bom ânimo, ele replicou, perguntando-lhe se queria ficar por
171. Este exemplar, que se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal, está incompleto, com apenas 8 páginas.
Porém, o texto encontra-se transcrito, na íntegra, em Alberto Iria, op. cit., pp. 457-476. Aqui, apenas apresentamos eles responsável, ao que lhe tornou o major que não, porque não se admiraria que
a parte que respeita à revolta de Olhão.
126 Olhão, Junho de 1808. 127
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

não só em Faro mas todo o Algarve e reino se levantasse, tendo eles franceses dado encarregado pela moléstia do general da direcção das tropas, este fez marchar um
tantos motivos para descontentar a nação. Ao que replicou de novo o corregedor- obus conduzido por alguns artilheiros franceses e ordenou ao coronel de artilharia
mor: “Que todos estes males seriam depois recompensados com os grandes Caetano António de Almeida, mandasse dois oficiais com duas peças e cinquenta
benefícios que Napoleão o Grande faria a Portugal, quando viesse o novo rei”. Mas soldados para a Quinta do Rio Seco, um quarto de légua distante de Faro; medidas
ele finalmente respondeu: “Que os portugueses julgavam do futuro pelo presente e absolutamente de defensiva, para evitar a reunião do povo de Olhão com o de Faro,
que mais queriam ser governados pelo seu príncipe do que pelo maior monarca do já a esse tempo sobejamente irritado com a notícia de ter corrido sangue português.
mundo”. Concluída desta sorte esta conferência, em todo o dia procurou, sem efeito, Foi, então, nomeado para comandante das ditas tropas, o tenente Belchior Drago
o mesmo corregedor-mor algumas pessoas que se encarregassem de tranquilizar Cabreira, o qual, recusando publicamente aceitar o comando, como impróprio do
Olhão e manter o sossego de Faro, enquanto expedia ordens, como depois se soube, carácter português e de fiel vassalo, e com outras expressões que lhe fazem a maior
para que as marchas forçadas se reunissem todas sobre Olhão e Faro. honra, por fim o aceitou, manifestando a sua repugnância. Protestou, porém, que se
Na noite deste mesmo dia, chegou ao dito lugar de Olhão o enviado João Gomes chegasse a haver acção contra os seus patrícios, tomaria o acordo que lhe inspirava a
Pincho, com cento e trinta espingardas que recebeu da Junta de Aiamonte, a quem sua honra e o seu patriotismo, para o que já levava na algibeira a gola com as armas
tinha recorrido por não ter o chefe da esquadra inglesa aquele abastecimento. reais.
Em sua companhia veio, então, o capitão de milícias de Tavira, Sebastião Martins No memorável dia 19 de Junho, receoso o capitão francês do espírito irrequieto
Mestre, a quem tinha encontrado a bordo da mencionada armada, na diligência de dos habitantes de Faro e sabendo, talvez, que nesse dia não podia ser auxiliado pelo
semelhante requisição que mui judiciosamente tinha ido fazer, a fim de aproveitar corpo da Legião do Meio-Dia que só a vinte, como veremos, entrou em Tavira, se
a ocasião oportuna contra os inimigos da Pátria. afoitou a adiantar-se das suas tropas em direitura do caminho de Olhão; e logo que
No dia 18 de manhã, constando ao coronel José Lopes de Sousa que vinham avistou uma pequena guarda avançada de alguns paisanos, a distância quase de
embarcados os franceses da guarnição de Tavira em três caíques para reforçarem tiro de espingarda, lhes acenou com um lenço, chamando-os com muita confiança.
a de Faro, e sendo instado pelo povo para que os fosse atacar, nomeou para esta Três desses paisanos, notando esta franqueza, se resolveram caminhar para ele, a
expedição o capitão Sebastião Martins Mestre, o qual, com alguns paisanos fim de saberem o que pretendia. Querendo-se pois aproveitar da ocasião, entrou a
armados, em um caíque, atacando subitamente os inimigos, rendeu os três caíques, persuadir-lhes, da forma como que se pode fazer entender, que o general francês
aprisionando setenta e sete soldados, três oficiais de patente e um quartel-mestre, estava pronto a perdoar àquele povo, logo que ele se tranquilizasse e reconhecesse
todos da Legião do Meio-Dia, com uma grande quantidade de bagagens, que tudo o governo francês; que a pesca havia de ser favorecida e todos seriam indemnizados
conduziu ao porto de Olhão. Sabendo-se logo depois que vinham marchando por dos males que haviam padecido; que bem lhe parecia, enfim, que o autor de tudo
terra cento e oitenta e cinco granadeiros e caçadores da mesma legião da guarnição era o coronel José Lopes de Sousa mas que deste mesmo nada pretendia, senão que
de Vila Real, e querendo o povo influído correr novamente a atacá-los, o mesmo ele se ausentasse daquele lugar. Os paisanos lhe responderam que dariam parte
capitão os conduziu ao combate, o qual se principiou a meia légua do lugar, no sítio ao povo e que ele não teria talvez dúvida de anuir ao que se lhe oferecia, sendo a
da ponte de Quelfes, sendo por fim o inimigo acossado e perseguido com perda promessa afiançada pelos ministros portugueses.
de alguns soldados que ocultou. Da nossa parte, só houve um velho morto fora da Contente o capitão com esta resposta, voltou a Faro e fez chamar a casa do
acção e dois rapazes. general o corregedor, e juiz de fora da terra e o major Joaquim Filipe de Landerset
Este corpo de granadeiros e caçadores franceses reuniu-se a meia légua de Faro e lhes contou o sucedido, ordenando aos ministros que o acompanhassem para
e, dando o seu comandante logo parte do sucesso ao capitão de artilharia francês falarem às pessoas que o mesmo povo havia de enviar para tratar a composição e
128 Olhão, Junho de 1808. 129
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

ao major para que servisse de intérprete entre ele e os ministros. Procurou quanto algumas instâncias, conseguiu em fim separar-se e tomou com os ministros a estrada
pode o dito major escusar-se mas sendo forçado a partir, assim mesmo se demorou de S. Luís, por onde marchavam os franceses a passo acelerado. Achava-se o capitão
tempo bastante para protestar a violência que se lhe fazia. Chegando finalmente ao Sebastião Cabreira e seu irmão, o primeiro tenente Belchior Drago Cabreira, com
lugar em que estavam as tropas portuguesas, que comandava o primeiro tenente algumas peças sobre um alto que descobria aquela estrada. Aparecendo os franceses,
Belchior Drago Cabreira, renovou os seus protestos perante ele e a tropa, dizendo: apesar de pouca gente que havia na bateria, com intrépido valor e patriótico zelo,
“Que só ia servir de mero intérprete e que não ficava responsável pelas promessas e atiraram sobre o inimigo, fazendo-lhe um fogo tão vivo que o obrigaram a retirar-
boa fé dos franceses, em que não confiava”. O capitão francês, mal chegou à Quinta, se, entrando por baixo do mesmo fogo na cidade os ministros e o sobredito major.
chamada do Chantre, meia légua de Olhão e a pouca distância da sua tropa, mandou O inimigo tomou outra estrada, na qual, achando a mesma resistência da parte
por um paisano português avisar o povo, o qual, com pouca demora, enviou algumas do primeiro tenente Severo Cabreira, amedrontado, abraçou o partido de mudar
pessoas em que confiava. Depois de terem conferido e de lhes serem anunciadas de projecto, deixando exposto o seu quartel-general ao furor popular e, com tal
pelos ministros as mesmas promessas ditadas pelo capitão, todos se mostraram precipitação, que abandonou o obus que trazia.
inclinados à pacificação, declarando o deplorável estado em que se viam por falta [...]
de mantimentos e por não terem quem os dirigisse militarmente, havendo na noite Eis aqui, finalmente, como se efectuou a feliz restauração do Reino do Algarve
antecedente o capitão José Lopes de Sousa e o capitão Sebastião Martins Mestre e eis aqui uma fiel e breve exposição dos sucessos mais interessantes em que os
passado a Espanha a pedir auxílio à Junta de Sevilha e Aiamonte e achando-se neste algarvios mostraram o nobre e leal patriotismo que os animava, sendo gerais em
meio tempo governados pelo prior daquele lugar de Olhão, cujo zelo e patriotismo todas as classes, em todos os indivíduos os briosos e elevados sentimentos com que
eles tanto louvavam. À vista destas razões, concluíram, por fim, que mandariam no todos unanimemente concorreram para a causa pública, uns com os seus braços,
dia seguinte, a Faro, pessoas capazes de para tratarem definitivamente. outros com os seus bens e cabedais. A Olhão deve, portanto, pertencer a glória
Enquanto isto se passava, o espírito dos habitantes de Faro cada vez mais se de ter sido o primeiro em manifestar o seu valor e a sua fidelidade, e a Faro de ter
acendia, chegando ao maior auge de calor com o falso rumor que se espalhou de se lançado os fundamentos da restauração de todo o Reino do Algarve, pois que sem a
haver principiado o combate contra Olhão e de que as tropas portuguesas tinham energia desta nobilíssima cidade, tudo se haveria frustado e aquela mesma heróica
tomado o partido da sua nação, havendo ficado o tenente Belchior Drago Cabreira povoação teria sido vítima da sua incomparável lealdade.
ferido ou morto. Mas esta mesma glória com justiça deve pertencer ao excelentíssimo general
[...] conde monteiro-mor pela consolidação da grande obra da nossa liberdade e da nossa
É neste tempo informado o capitão de artilharia francês por um piquete do independência, pois que sem as suas luzes e o seu não vulgar patriotismo, talvez
levantamento do povo de Faro e ordena que logo marchem as suas tropas sobre que o ciúme e as intrigas houvessem destruído logo na sua origem este sublime
a cidade, vistas as intenções pacíficas dos habitantes de Olhão. Percebendo isto padrão da glória portuguesa. Assim, em todo este notável concurso de maravilhosos
o major e retirando-se à parte com o medo de ser suspeito, avisa a novidade aos acontecimentos e suas circunstâncias, acharemos sem prejuízo a mão poderosa de
enviados daquele lugar e lhes aconselha que voltem ao povo e o persuadam a que uma Augusta e Divina Providência que, ainda não esquecida das grande promessas
todos peguem em armas. Imediatamente montou o capitão a cavalo em companhia feitas em Ourique ao nosso primeiro fundador da monarquia, também não está
dos ministros e do dito major, o qual, conhecendo o iminente perigo em que se ainda cansada de nos defender e conservar como nação livre, talvez em atenção às
achavam entre semelhante gente, uso do estratagema, estando já próximo da magníficas virtudes do melhor dos príncipes da Terra.
cidade, de se oferecer juntamente com os ministros para pacificar o povo. Depois de
130 Olhão, Junho de 1808. 131
O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

enérgicos como naturais e cristãos. Foi publicada com novas aclamações ao Príncipe
Regente, à Real Casa de Bragança, à religião e à pátria. Mas isto não bastava, era
necessário fazer frente aos diferentes corpos inimigos que guarneciam o Algarve,
Doc. 7: José Acúrsio das Neves, História Geral da Invasão dos Franceses e à primeira voz se poriam em marcha para suspenderem na nascença os passos
em Portugal e da Restauração deste reino. Excertos sobre o levantamento de da revolução. Estes corpos eram os mesmos que em outro lugar referi: legião do
Olhão. 172
meio-dia, um batalhão do regimento 26, uma companhia de dragões e outra de
artilheiros. A maior parte destas forças estava ainda em Mértola, nas fronteiras
[...] do Alentejo; mas desta posição era-lhes fácil o retrocesso para as partes de Olhão:
Achava-se retirado em Olhão o coronel (hoje marechal de campo) José Lopes de o resto fazia as guarnições de Tavira e Vila Real de Santo António, observando a
Sousa, governador que então era de Vila Real do Algarve, e encaminhando-se no fronteira da Espanha e ao mesmo tempo uma esquadra inglesa, que andava por
dia do Corpo de Deus, 16 de Junho, à igreja matriz daquela terra, para ouvir missa, aquelas águas comboiando a expedição do general Spencer, e existiam uns 200
viu muito povo amontoado a ler um papel que se achava afixado ao lado da porta franceses em Faro, para fazerem a guarda de Maurin, a cujas ordens estava também
da mesma igreja. Ele se aproximou para também o ler e vendo que era a célebre o regimento português de artilharia do Algarve.
proclamação de Junot, datada de 11, sobre o desarmamento dos espanhóis, cuja Mandou Lopes buscar duas peças de artilharia que se achavam assestadas na
insolência o indignou, assim, como devia indignar a todos os bons portugueses, ilha da barra de Armona, guardadas por pés de castelo, com as suas munições e
lançou-lhe a mão e a rasgou e pisou com os pés, voltando-se para os circunstantes e pólvora que havia no paiol da fortaleza de S. Lourenço na mesma barra de Faro. Tudo
increpando-os que já não eram portugueses, e com outras expressões semelhantes; isto foi dito e feito: os momentos eram preciosos, porque de Olhão a Faro é somente
estes, ainda que homens rústicos e de grosseiro trato, enchem-se de entusiasmo e uma légua, e tudo ficava perdido se os franceses pudessem antecipadamente
furor, protestam, juram que são portugueses, que vingarão tantos ultrajes feitos à dar providências que privassem os nossos destes pequenos socorros com que
religião, ao soberano e à pátria e fica decidida a revolução. principiaram a defensiva.
Entram na igreja a ouvir missa, acabada a qual fazem no adro a mais afectuosa Expediu também nesse mesmo dia um ofício ao comandante da esquadra
aclamação do legítimo soberano, convertendo-se em anátema a expressão de viva inglesa a pedir-lhe armas e munições, objectos que já de antemão tinha ido procurar
o Imperador com que rematava o édito e ouvindo-se em lugar dela os gritos de viva o capitão Sebastião Martins Mestre que, animado dos mesmos sentimentos que
a nossa Rainha; viva o nosso Príncipe; Deus dê saúde ao nosso Governador, que deve ser Lopes e que os outros fiéis patriotas que se lhe agregaram, se prevenia desta forma,
o nosso General, e outros semelhantes. É o que se chama voltar-se o feitiço contra o para aproveitar a primeira ocasião oportuna para o rompimento. Mestre ainda se
feiticeiro; e aqueles a quem o célebre mágico, que desde Lisboa pensava sustentar achava a bordo quando chegou o emissário de Lopes, que era João Gomes Pincho;
todo o reino na sua obediência com palavras, convidava a unirem-se aos franceses e como o comandante da esquadra lhes não pode dar o socorro que pediam, eles
contra os espanhóis e ingleses, não cogitaram senão de afiarem as suas espadas incorporaram-se e partiram com tanta prontidão para Aiamonte, que no dia
contra os primeiros. seguinte à noite chegaram de volta a Olhão com 130 espingardas que lhes forneceu
Logo no mesmo dia fez José Lopes afixar por editais uma proclamação, em a junta daquela cidade.
que a arte não brilhava, mas que falava aos corações, exprimindo sentimentos tão Os franceses de Faro nada tinham intentado pelos meios da força, porque
se não julgavam assaz poderosos, mas recorreram a termos conciliatórios, que é
172. Utilizei a edição: Obras Completas de José Acúrsio das Neves, vol. 2, Porto, Edições Afrontamento, [s.d.], pp. o mesmo que dizer aos da perfídia, enquanto cuidavam em reunir as guarnições
139-150.
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O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

de Tavira e Vila Real para caírem sobre Olhão. O corregedor-mor convocou o Olhão era um pequeno lugar, apenas conhecido pelo nome; o Príncipe Regente
corregedor da comarca, o juiz de fora de Faro, o coronel do regimento português e o lhe fez a mercê de dar-lhe o foro de vila em princípio de recompensa pela lealdade
major Joaquim Filipe de Lendercet para que fossem, pelo seu respeito e autoridade, e serviços dos seus habitantes nesta gloriosa empresa: estes, e os de algumas
convencer e tranquilizar os chamados rebeldes. Corriam entretanto os paisanos da miseráveis aldeias circunvizinhas, que tão heroicamente romperam os ferros e
serra e outros lugares vizinhos a engrossar os nossos; e sabendo-se que os franceses começaram a revolução, não passavam de uns pobres pescadores ou camponeses.
de Tavira marchavam por mar, em três caíques, para se unirem aos de Faro, é o Povos da Europa! Aprendei dos pescadores do Algarve lições de valor e de fidelidade!
povo quem pede ao seu governador que lhe permita o ir combatê-los. O governador Contudo, este pequeno povo via-se só no campo, e as suas pequenas forças
consente, e dá o comando da expedição a Sebastião Martins Mestre. não tinha proporção com as do inimigo uma vez que este pudesse pôr em acção as
Marcham os nossos em um caíque, e o mesmo é encontrarem os inimigos que que ainda lhe restavam. Nesta triste situação, Lopes e Mestre resolveram-se partir
apresá-los e voltarem a Olhão com a sua presa, que consistia nos 3 caíques, 77 para Espanha, a solicitar socorros da junta de Aiamonte e do governo supremo
soldados, 3 oficiais de patente, 1 quartel-mestre, as suas armas e grande quantidade de Sevilha, conduzindo consigo os prisioneiros e as bagagens que puderam levar,
de bagagens. Não foi menos importante para Olhão o aprisionamento dos três para porem tudo a salvo. Foi uma resolução tão sábia e prudente com útil à causa
caíques franceses do que em outro tempo o fora para os romanos o das três naus do Soberano e da pátria, mas não deixou a maledicência de derramar sobre ela os
rostradas que Duílio ganhou aos cartagineses: aumentou prodigiosamente aos seus venenos. Houve invejosos que a notaram de cobardia; mas os invejosos têm de
nossos os meios de defesa, porque lhes deu armas e munições de que tinham uma calar-se à face do público reconhecido e imparcial que respeitará sempre a Lopes e
grande falta, e evitou uma junção dos inimigos, que nos teria sido fatal. Duílio teve Mestre como os ilustres chefes da Restauração do Algarve.
uma coluna em Roma, os nossos algarvios merecem um monumento em Olhão. É certo que o povo de Faro andava já muito agitado, porém não só não tinha
Não tiveram tempo os nossos guerreiros para receberem os devidos aplausos rompido, mas o Senado da câmara desta cidade, dominado e oprimido pelos
pela sua vitória, porque apenas chegaram a terra souberam que outro corpo inimigo, franceses, mandou afixar em Olhão um tristíssimo edital, em tudo contrário ao
de 185 granadeiros e caçadores dos que guarneciam Vila Real, caminhavam por de Lopes, dirigida a sufocar os movimentos da restauração a que chamava o mais
terra com o mesmo destino de se unirem aos de Faro. Triunfantes sobre o mar, os tumultuoso e escandaloso atentado contra a segurança da nação, de que aquele Senado
nossos correm a acossar também os inimigos sobre terra, sendo ainda comandados era sabedor com bastante mágoa sua, no tempo em que este reino tinha as mais bem
por Mestre. Foram esperá-los dali a meia légua, na estrada por onde deviam passar, fundadas esperanças da sua independência, exortando consequentemente aquele
e o combate principiou junto à ponte de Quelfes. Se se tivessem podido reprimir povo a tirar-se da cegueira em que se achava e que era ainda tempo de dissipar, não
os primeiros ímpetos do povo, o encontro seria provavelmente muito fatal aos sendo seguido semelhante partido por pessoa alguma, antes procurando as pessoas
franceses, por causa das emboscadas que os esperavam entre ribanceiras; mas os daquela cidade os meios justos de persuadir aos seus parentes e amigos, residentes
paisanos mostraram-se muito cedo, e os inimigos tiveram tempo de acautelar-se: em Olhão, a que abraçassem o bem que se lhes propunha, obedecendo a quem
foram continuando a sua marcha, em pelotões, fazendo fogo de retirada, e fizeram governava e apartando de si os males eminentes a que estavam expostos. Ainda
alto a meia légua de Faro, mandando aviso ao seu general, e tendo sofrido alguma dizia mais o edital: increpava aqueles valorosos restauradores da pátria de fazerem
perda, que ocultaram. Dos nossos somente saiu contuso o Mestre, e foram mortos com que a fiel nação portuguesa viesse a ser marcado com o ferrete infame da
fora da acção um velho e dois rapazes. ingratidão. Que blasfémia! Lavemos, se é possível, esta grande nódoa da câmara de
Julgarão os meus leitores que não tiverem conhecimento do país que Olhão é Faro: o ferrete infame é bem conhecido neste edital; ele só podia vir imediatamente
uma cidade considerável, que foi um grande povo o que praticou estas belas acções: de uma mão francesa. Os camaristas lhe prestaram as suas assinaturas; mas também
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O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

o algos fere a vítima e não é senhor do braço que move cutelo. Não increpemos pois
com repreensões amargas aqueles que o assinaram, bastam-lhes os remorsos, a dor
acerba que terão sentido de serem os instrumentos maquinais dos pérfidos tramas
de nossos opressores, expondo em nome de um povo fiel e valoroso sentimentos Doc. 8: João Coelho de Carvalho, “Invasão Francesa no Algarve”.
diametralmente opostos aos que animavam os seus corações. Que o eram, muito Excertos sobre Olhão173
breve se fez patente pelo que aconteceu em Faro. [...]
[...] Foi nestes dias que Junot mandou afixar editais, convidando os portugueses
Na manhã do dia 19, conservando-se ainda as coisas neste estado, o capitão a atacar a Espanha revolta. Um semelhante edital, posto no dia 16 de Junho na
francês Garier, que comandava o campo, receoso dos sucessos e desconfiando talvez porta da igreja paroquial de Olhão, enfureceu de tal modo os ânimos daquele povo
de que poderia ser atacado antes de receber o reforço que esperava, adiantou-se da que, tomando por cabeça o coronel José Lopes, governador de Vila Real, que então
sua tropa pelo caminho de Olhão e pôde, por acenos e demonstrações amigáveis, se achava no dito povo, se puseram em defesa contra os franceses, fazendo vir as
atrair à fala alguns paisanos. Entrou a persuadir-lhes que o general francês estava peças de artilharia que tinham na fortaleza de S. Lourenço. Parte da guarnição de
pronto a perdoar àquele povo, contanto que se tranquilizasse e obedecesse ao seu Faro, que ainda se conservava, convidou o coronel de artilharia a atacar com a tropa
governo: prometeu-lhes que a pesca seria protegida (era levá-los pelo seu fraco, aquela povoação. O coronel anuiu mas a tropa ia de má vontade e muito menos
porque da pesca tiram aqueles povos a sua principal subsistência), que seriam nisto convinha o povo de Faro. Também por anuir ao general francês e corregedor-
indemnizados dos males pretendidos, e que até se perdoaria a José Lopes, sem mor, a Câmara da cidade mandou afixar editais em Olhão, persuadindo o povo a
que dele se pretendesse mais que o ausentar-se daquele lugar. Não mostraram os que se aquietasse. E porque nada se julgava bastante, foram convidadas algumas
paisanos grande repugnância, respondendo que dariam parte ao povo, o qual não pessoas caracterizadas e com relações na dita povoação, a fim de lhes persuadir
teria talvez dúvida em anuir ao que lhe propunham, contanto que a promessa fosse que não fossem por diante com a revolta. Mas ou porque uns não aceitaram a
afiançada pelos ministros portugueses. comissão ou porque outros a não puderam efectuar, receando ambas as partes a
Muito contente com esta abertura de negociações, Garier partiu para Faro; falta de cumprimento nas promessas, os magistrados da cidade tomaram sobre
e em consequência do que expôs foi então mandada com ele a deputação dos si a reconciliação que foram persuadir mas nenhum efeito resultou porque nesse
ministros e de Lendercet para a conclusão do acordo. Por ausência de Lopes e de intervalo se levantou o povo de Faro e, porque não havia com quem tratar negócio
Mestre, governava-se o povo pela direcção do zeloso prior de Olhão: mandaram-se série e seguro, estando ausente o acima referido governador, cabeça da revolução,
alguns sujeitos da terra para conferirem com os ministros; mas, enquanto estavam por ter ido conduzir a Sevilha os prisioneiros franceses feitos em o dito lugar de
parlamentando, sobreveio um novo acontecimento que não só rompeu a negociação Olhão.
mas decidiu a pronta expulsão dos franceses de todo o Algarve. O povo de Faro No dia 18 de Junho, tentaram os franceses atacar Olhão, mas o povo, mal
levantou-se logo que viu a cidade quase sem inimigos, bem como a mola apenas armado, resistiu, havendo por ambas as partes alguns mortos e feridos, não
desembaraçada de um peso estranho que suprimia a acção. constando quantos morressem da parte dos franceses. Consta que do povo de
[...] Olhão, neste encontro ou escaramuça, morreu um velho, por loucura, pois se foi
meter entre eles, e ficou ferido outro em um braço que ficou cortado de todo e

173. In Francisco Xavier de Athaide Oliveira, Biografia de D. Francisco Gomes do Avelar, Arcebispo-Bispo do Algarve,
Porto, Typographia Universal, 1902, pp. 179-184.
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O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

com uma estocada que o passou das costas ao peito, que dizem fora dada por um rio, ficando pouca gente em terra.174
português que acompanhava os franceses, cujo nome se cala por não estar provado o É coisa pasmosa ver o modo com que a Providência acudia por este povo.
seu crime, se bem já está mais que convencido da sua maníaca adesão ao sistema e Daquilo de que o povo se servia para se acautelar do perigo, certo e evidente, disse
máximas dos franceses. se servia Deus para o livrar. Postos os barcos em linha, muita gente dentro deles
Esperamos que o governo vingue a nação por este atentado e actos de e outros já abarracados na ilha, fez supor aos franceses que os ingleses em grande
semelhante natureza. número estavam já em terra, desembarcados da esquadra que andava à vista. As
Além destes, constou que os franceses mataram algumas pessoas que estavam mesmas mulheres com as suas mantilhas encarnadas de que muito usam, fizeram
descauteladas pelos campos, que, em boa fé, se não retiravam por não serem supor aos franceses que ali estavam tropas inglesas cujo uniforme é encarnado
partidistas do povo de Olhão. Isto aconteceu na ponte de Quelfes, onde os franceses em alguns regimentos. Ainda mais admirável é uma particular circunstância,
que vinham de Tavira unir-se aos de Faro contra Olhão, foram atacados por paisanos presenciada pelos portugueses que acompanhavam os franceses que, por isso,
que, por medo e ignorância militar, os não derrotaram de todo; emboscados foram testemunhas do seu susto e também com eles se persuadiam, pelo que viam,
deitaram muito mal a primeira descarga e, fugindo logo, deixaram só os dois chefes da realidade da presença das tropas inglesas. É o caso. Rodeiam Olhão pelo norte
que os comandavam. Foi aqui onde os franceses mataram um cegador ocupado em muitos valados, cheios de piteiras; estas, com o orvalho da manhã, dando-lhe o
seu trabalho e, dos franceses no combate, só consta que morresse um ou dois. sol ao nascer, ficam com certo luzidio resplandecente, pelo que se persuadiram
Antes destes dois encontros, tiveram os pescadores de Olhão a temeridade os franceses, à vista disto observado com os seus óculos, que eram as armas da
de atacar alguns barcos que vinham pelo rio de Tavira para Faro com a bagagem tropas inglesa. Ainda aqui não param os motivos de admiração. Para se capacitar
do exército, guarnecidos com sessenta soldados. Foram tomados sem resistência de todo se havia ou não tropas inglesas em terra, mandam espias a examinar; estas
porque os franceses ignoravam o levantamento e os supunham pescadores que iam encontram algumas pessoas daquela povoação e, sendo perguntadas em diversos
para a pesca. lugares, ouvem as respostas de que as tropas inglesas tinham desembarcado. Ainda
Por ocasião deste aprisionamento, resolveu o chefe da revolução José Lopes, não contentes, mandam um fingido parlamentário a Olhão, o qual procura logo
governador de Vila Real, conduzi-los ele mesmo a Sevilha, a fim de tratar com a informar-se com disfarce se havia ali tropas inglesas e a guarda que lhe recebeu o
Junta daquele reino algum meio de defesa que não havia em Olhão. recado respondeu que, na verdade, havia muita gente inglesa.
Muitos críticos, e talvez com razão, censuraram esta retirada do governador, Nada disto seria para admirar para os franceses, homens prevenidos com um
deixando aquele povo entregue a dois comandantes pouco instruídos na arte militar, terror pânico a respeito dos ingleses e em um país que odiava os franceses. O que
na ocasião em que ali era indispensável a sua presença, por onde inferiram que ele, mais é para admirar é que os próprios portugueses, os mais inteligentes, estavam
contando com a vitória dos franceses, aproveitasse esta ocasião para se retirar e, na convencidos do mesmo. O cónego Manuel do Coito, homem lido e bem conhecido
verdade julgar outra coisa não parece acerto, à vista do estado daquele povo, sem nesta cidade por bom crítico, este mesmo quis persuadir a quem isto escreve que
armas nem munições e numa total ignorância militar. Eram homens que nunca em Olhão havia ingleses, pois oficiais desta nação pelas fardas encarnadas tinham
pegaram em espingardas e só depois da revolução é que tomaram algum exercício e, sido conhecidos na Horta do Rio Seco e no Montinho de José da Beira, no dia 18 à
portanto, com esta gente, esperar vitória da tropa francesa e artilharia portuguesa, tarde. Esta era pois a comum persuasão em Faro, no dia 19.
era rematada loucura. O mesmo povo, ainda os mais ignorantes, conheceram o No dia 18, marchou a tropa portuguesa para auxiliar a francesa contra Olhão.
evidente perigo e, por isso, no dia 18, dormiram todas as famílias nos barcos em o Isto foi mal visto pelo povo de Faro, que logo principiou a dar sinais do que queria

174. Ataíde de Oliveira acrescenta aqui uma nota, alegando que não partilhava desta opinião.
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O levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época

fazer. Nessa tarde foram atacados com impropérios o corregedor-mor e o cônsul


francês, Pascoal Tuvi, que, com justo fundamento, se ausentaram de Faro nessa
noite para Loulé a segurar suas pessoas e dinheiro, donde, voltando no seguinte dia
à tarde, foram atacados junto a S. João da Venda; e depois de alguns tiros de pistola
escaparam porque errou a espingarda a um paisano. Fugiram para Loulé e daí para
Lisboa.
[...]
Bibliografia e Fontes
140 Olhão, Junho de 1808. 141
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