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Palestra: A pandemia e a saúde mental da mulher

A tragédia ateniense de Antígona é contemporânea à constituição de


Atenas e de seu sistema legal (entre 534 e 530 a. C.). No centro da tragédia
está a Cidade, que é posta no palco e atua, representa... não somente faz
tragédia no palco... como circunscreve, cria contornos, debate contradições,
produz antagonismos, aparentemente insuperáveis, até ‘decretar’, legalizar
sua própria problemática. O que coloca em questão suas próprias
contradições, revelando... que o verdadeiro tema da tragédia é o
pensamento social... no processo genuíno de elaboração.

Como é possível que o drama de Antígona ainda gere interesse sobre


nós? Talvez porque essa questão esteja associada a questões éticas
levantadas por Sófocles.

Etimologicamente, Antígona significa: aquela que se coloca adiante


de sua família ou do meio em que vive (anti = adiante de + goné =
nascimento ou origem).

Hegel argumenta que Antígona (“aquela consciência que pertence à


lei divina”) e Creonte (“aquela que se sujeita à lei humana”) são em sua
intransigência, ambos culpados, ambos errados, porque ambos abandonam
ou alienam um princípio no momento em que adotam o oposto.

Se retomamos a concepção de lei moral em Kant, ato é máxima de


uma ação que é aceita como máxima universal, em que se acredita que há
uma escolha determinada pela lei que tem a função de reduzir a noção de
universal a uma noção de comum, comum a todos. Neste caso cada um
deve agir do mesmo modo, e assim o ato perde sua conotação ética, sendo
guiado pelas sanções externas.

Lacan insiste na diferença quando nos encontramos diante do


acontecimento da morte. Quando há introdução do “fator letal” há escolha
revolucionária e possibilidade de um ato que não seja de sacrifício à
liberdade nem pertença à estrutura da alienação. A escolha da morte ganha
liberdade, não como escolha. No ponto em que a morte faz interseção com a
liberdade – o ponto em que faz interseção com o sujeito – esta cessa de se
expressar em termos biológicos. A autoridade nesse tema é Freud que
argumentou que a morte para o sujeito é somente “um conceito abstrato,
com um conteúdo negativo”. É por esse motivo que a morte em psicanálise
se torna termo, se torna pulsão, pulsão de morte.

Em “Politizar a Morte”, o penúltimo capítulo de Homo Sacer de


Agamben há referência a um estudo de 1959 em que dois neurofisiologistas
franceses criam um novo, um quarto grau para o coma: coma depassé
(além-coma), um grau de coma, ou incursão da morte sobre a vida, que ao
ser nomeada aumentava uma perda do funcionamento vital, estendendo
desse modo o efeito da morte sobre a vida. A tecnologia por sua vez deu e
dá suporte às ciências médicas em seu propósito de redefinir a morte e
estender seus limites além dos limites já conhecidos. Quando os limites da
morte são estendidos, seu poder de soberania passa a se exercer. É nesse
ponto nodal que comparece a psicanálise, ao constatar que o conceito
“morte” longe de ter-se tornado mais exato, oscile de um polo a outro na
maior indeterminação.

Voltando às considerações próprias do discurso analítico, se


partirmos da premissa de que toda e qualquer noção é incompleta,
especulativa, paradoxal, temos a chance de refletir sobre a nomeação de um
novo termo, de um novo conceito ou sobre o aumento de grau de uma noção
operacional como foi o caso de “além-coma.” Se não houver esse
entendimento a priori, essa mera nomeação de um novo termo, de um novo
conceito pode provocar efeitos de ordem psíquica que aumentam a pressão
sob o aparelho psíquico. É disso que se trata, é do que trata Agamben em
seu texto sobre os efeitos da inclusão da morte na vida pela nomeação.

Freud em Além do Princípio do Prazer declarou que o objetivo da vida


é a morte. No entanto, há um paradoxo em Freud ao dizer que a pulsão de
morte é um conceito especulativo constituído para ajudar a explicar que a
vida tem como alvo a morte, mas isso é somente parte da estória, a outra
parte se revela por um segundo paradoxo: a pulsão de morte obtém
satisfação por não atingir seu objeto, seu alvo, seu objetivo. A inibição que
previne a pulsão de alcançar seu objetivo é entendida pela teoria freudiana
como sendo parte da própria atividade da pulsão. O paradoxo da pulsão de
morte é: enquanto o objeto (Ziel) da pulsão é a morte, a própria atividade da
pulsão é de inibir a realização de seu objetivo; a pulsão como tal é
zielghemnt (alvo orientado), é inibida ou sublimada, “a satisfação da pulsão
através da inibição de seu objetivo” é a verdadeira definição da sublimação,
o que contraria a compreensão vulgarizada de que a sublimação é pura
substituição de um desprazer, de um mal estar. Portanto sublimação não é
algo que acontece com a pulsão sob determinadas circunstâncias, é o
próprio destino da pulsão.

Hegel considerava o ato de Antígona do ponto de vista da morte. Seu


ato, argumentava, tratava não da vida, mas do morto, “o indivíduo”, o que
tem desdobramentos teóricos sobre conceitos do universal e do particular. E
Freud? Freud criou um campo de saber a partir de um termo, o inconsciente,
que é uma suposição, afinal os termos e noções são suposições. Os
pensadores se desdobram em defender e sustentar suas ideias. Freud os
evidenciou através de uma prática clínica que deu a palavra às mulheres.
Como dizia Ana O., uma clínica de “limpar chaminés”, uma cura pela
palavra. E Antígona? Até hoje seu ato tem efeitos, ou o ato de Sófocles em
sua escrita. Voltemos à Antígona.

Antígona ilustra o que Freud designa sob o termo “perserverança”


com todas as conotações éticas que a palavra reúne. Ela persiste com
firmeza em seu propósito em sua decisão de sepultar seu irmão. Entre Hegel
e Lacan há uma significativa diferença na leitura do que diz o “Coro”. Para
Hegel o ato de Antígona é o de tornar Polynices um “membro da
comunidade... que o queria destruir”. Pelas leis da cidade ele deveria ser
deixado insepulto, seu corpo seria exposto e se decomporia. Lacan,
psicanalista, que se dizia o mais freudiano de todos, porque soube ler sua
obra, e com perseverança preservava os fundamentos da psicanálise e de
sua clínica diz sobre o ato de Antígona e o canto do Coro: o ato de Antígona
foi um ato de amor ao irmão de sua família Até que instituía um ato de
ruptura com a comunidade. De Antígona se requer ou se a obriga pela
própria pulsão a sustentar seu ato, que é indiferente aos critérios da
comunidade, tais como “a opinião dos outros”.

A ética da psicanálise não trata da relação com o outro, como consta


dos tratados sobre ética na contemporaneidade. Trata do sujeito que como
Antígona passa por uma reviravolta no momento do encontro com o real de
um acontecimento inesperado. O imperativo ético de Lacan: “Não desista de
seu desejo” propõe uma insistência em que o sujeito obstinadamente se
reconcilia com sua própria história.

A perseverança de Antígona até o fim ou o momento de conclusão do


ato que necessariamente a fará se “autorevirar” contrasta com a conversão
de Creonte ao progresso e à modernidade. Voltando a Agamben, que foi mal
compreendido em sua última entrevista no início da pandemia, porque
discorre sobre o estado de exceção e a concepção do Homo Sacer, a vida
nua, daquele cuja vida é insacrificável porém matável é preciso alertar que
este paradigma vem se tornando um paradigma da atualidade. Um espaço
onde todos são Homo Sacer, cuja vida é matável, mesmo sendo
insacrificável. Se Lacan argumenta que Creonte representa o poder
soberano que não conhece limites, Creonte, ao cercar Polynices, além do
limite da morte, prefigura a ciência moderna que cerca o sujeito além da
morte, “aparentemente” sem limites, alargando e estendendo o grau dos
estados de saúde que podem levar à morte, infinitamente extensíveis, como
no exemplo dos neurofisiologistas franceses que nomearam o ‘coma
depassé’, o além-coma.

Vivemos nos dias de hoje uma ruptura em todos os sentidos,


institucional, política, epistemológica. Vivemos os efeitos dessa ruptura.
Devemos, não só as mulheres, insistir em nosso desejo e em nossa
resistência para reconstruirmos juntos, todas e todos, novos paradigmas que
se inscrevam no processo civilizatório.
Ivanisa Teitelroit Martins
9 de março de 2021

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