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Vestígios de Heráclito e Espinosa no

Humanitismo de Quincas Borba

Ensaio de Chrystian Revelles Gatti (crisogatti@gmail.com) Santa Maria, RS*

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em seu primeiro sermão no livro que leva seu nome, o filosofo Quincas Borba
apresenta sua religião (ou filosofia?) do Humanitismo declarando Humanitas como "o
princípio da vida que reside em toda parte". A curta afirmação do personagem esconde uma
gama de implícitos fundamentais que serão aqui investigados mediante um exercício de
comparação com duas grandes correntes da História do Pensamento.

Primeiramente, a afirmação de um "princípio" ou "fundamento" de onde procedem


todas as coisas nos remete às pretensões dos primeiros filósofos, os pré-socráticos,
propositores da arché1, isto é, da ideia de uma gênese una (como o primeiro filósofo, Tales de
Mileto, para quem o elemento Água era a substância primordial de onde se originaram todos
os seres). Mais adiante, mostraremos como toda a pregação do filósofo do Humanitismo está
repleta de traços do pré-socrático Heráclito de Éfeso, que declarou o Fogo como elemento
fundamental da vida e do Cosmos.

Heráclito propôs um princípio universal da vida e do movimento, perfeitamente


representado pelo elemento Fogo. Heráclito de Éfeso é conhecido como "o filósofo da
mudança", por sua famosa frase: "tudo flui, nada permanece". O "tudo" a que se refere não é a
essência íntima das coisas, mas a multiplicidade aparente dos fenômenos, seus ciclos e
metamorfoses. As coisas particulares são passageiras, mas não a própria força da vida, que é
puro movimento e mudança. O fogo só se manifesta onde tiver o que incendiar, ou seja, sua
"coisa em si" não pode ser apalpada e só acontece no mundo pelas manifestações pontuais
onde queima e transforma o objeto no qual foi atiçado, que lhe serve de "veículo". Da mesma
maneira, a "mudança" enquanto essência não pode ser agarrada, apesar de agir por toda parte
em todas as coisas e todos os seres. Mais à frente, caro leitor, você verá que a relação de
Humanitas para com os seres viventes é muito semelhante à que acabamos de expor.

Heráclito de Éfeso foi o primeiro a declarar que o jogo dos contrários da existência
(dia-noite, guerra-paz, vida-morte, saúde-doença, juventude-velhice etc.) compõem um

*
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Letras da UFSM.
1
Termo grego que significa "fonte" ou "raiz".
ordenado jogo em que cada um só afirma sua identidade em oposição à natureza do outro, e
destas relações é composta a dinâmica universal do movimento. Os divergentes, quando
isolados de sua contraparte diamétrica, tornam-se uma abstração incompreensível. Que seria
da ideia de "Pai" sem a do "Filho"? Da "Vida" sem a "Morte"? "Saúde" sem Doença? É um
grande paradoxo que todos os pares de opostos sejam, no fundo, faces da mesma moeda,
porque só existem em função do Outro, construindo assim uma Totalidade. Mantenha esta
lógica em mente, caro leitor, porque nos esclarecerá a grande veneração com que o filósofo de
Machado trata os fatos "hostis" da existência (luta, doença, velhice, morte etc.).

Além de afirmar uma arché, ou seja, uma mesma origem para todas as coisas, outro
ponto nos chama atenção naquela primeira e breve declaração do personagem – a de que este
princípio "reside em toda parte", postura que caracteriza nosso filósofo como um pensador
antidualista. As correntes dualistas postulam a divisão entre corpo e mente, como a filosofia
cartesiana2, ou entre as formas e ideias (como os platônicos e seus seguidores), ou ainda entre
matéria e espírito, no caso da metafísica cristã. Quincas Borba é, portanto, herdeiro da
metafísica monista da qual foi Bento de Espinosa o maior expositor. Para Espinosa, essa
separação não existia fora da imaginação humana, e todas as coisas não passam de diferentes
arranjos de uma única e mesma substância universal. Ora, Quincas Borba também dirá mais
adiante, com suas próprias palavras, que o princípio universal do Humanitismo – Humanitas –
é, além de origem, a substância idêntica e universal de que os seres são constituídos.

Espinosa foi o filósofo que "desantropomorfizou" Deus e viu a Natureza como uma
totalidade substancial dentro da qual tudo quanto existe é parte integrante. Para Espinosa, a
representação de Deus como criador antropomórfico era a projeção de nossa própria
imaginação – é o homem que, pensando Deus, o esculpe à sua imagem e semelhança. Falar
em um Criador seria falar em algo distinto da Criação, e, se Criador e Criação fossem coisas
distintas e separadas, não haveria Onipresença e nem Unidade – contradição destrinchada por
Espinosa ao longo do primeiro capítulo de sua Ética. Se houver qualquer coisa distinta de
Deus, haveria algo que Deus não abrange e, consequentemente, Ele não seria Absoluto.
Portanto, para sua condição de Totalidade, é necessário que Deus seja imanente na Substância
que compõe a Natureza, o Homem e o Universo, sendo a força por trás de tudo que foi, é e um
dia será. Ora, nosso personagem não só postula uma Substância Universal como, também à
maneira de Espinosa, a diviniza como a força motriz que anima a Natureza e todos os seus
entes viventes.

2
Do racionalista francês René Descartes.
Ousaremos especular aqui, caros leitores, que nestes dois fundamentos (Heráclito e
Espinosa) se encontra o gérmen de toda a subsequente estrutura do sistema filósofico e
religioso de Quincas Borba – as posteriores conclusões derivam com solidez do perfeito
casamento destas duas doutrinas, e das quais o Humanitismo pode ser um filho bastardo cujas
feições e trejeitos acusam os progenitores.

A FILOSOFIA METAFÍSICA DO HUMANITISMO

Ainda no livro que leva seu nome, o filósofo declara que Humanitas "precisa comer".
Enfatizamos aqui uma contradição que nos servirá de chave para entender a aceitação com
que o personagem trata os conflitos da existência, como a guerra e a predação. Se Humanitas
é o próprio Princípio da Vida – substância de todas as coisas – então não pode nutrir-se senão
de si. Consequentemente, é só por meio deste peculiar canibalismo (que poderíamos aqui
melhor conceituar como uma relativa autofagia) que perpetuará e expandirá sua existência.

Ainda que a perpetuação de Humanitas implique no desaparecimento de um ou outro


ente particular, esta perda garantirá a continuação do princípio maior (da mesma maneira que
pouco importa para nosso organismo as inumeráveis células incessantemente descartadas e
recicladas para seu bom funcionamento). É assim que os conflitos do ser individuado só são
conflitos quando observados pela perspectiva particular da criatura (ente), e nunca do criador
(que o origina) pois, do ponto de vista do Humanitismo, importa somente a expansão e
perpetuidade de Humanitas (e, para isso, todas as coisas lhe servem de meio).

Humanitas precisa comer. Portanto, o indivíduo não-iluminado pela revelação do


Humanitismo sentirá o mundo, em todos os seus conflitos, doença, velhice e morte, como um
verdadeiro inferno de hostilidades sem fim, numa perpétua luta de todos contra todos (os seres
competem no Tempo pelo Espaço e, como seu princípio originário, também "sentem fome").
Mas, para Quincas Borba, aqueles mesmos aspectos – repulsivos em uma primeira vista –
deveriam ser louvados tanto quanto (e ao lado de) a vida, o nascimento, a beleza e o prazer,
pois são partes indispensáveis da totalidade do mundo e da vida, dentro da qual os opostos são
glorificados enquanto faces de uma só dança cósmica, valsa impiedosa da realidade.

Rejeitar um ou outro fato desta totalidade seria rejeitar um aspecto da própria


Substância Universal – uma grande heresia para o filósofo, porque blasfema contra a essência
da vida mesma. A continuidade de Humanitas importa mais que a de qualquer um de seus
fenômenos manifestados (os seres), porque estes são incessantemente gerados e devorados,
enquanto aquele é, em si mesmo, a raiz e substrato de toda a vida e existência.
Quincas Borba chega ao ponto de louvar a guerra no famoso exemplo das tribos que
competem pelas batatas. Caso seguissem o valor hipócrita e egoísta da paz, morreriam ambas
de inanição. Mas, confrontando-se impiedosamente, sacrificando o Eu ou o Outro, consolidam
e perpetuam a espécie pela vitória do grupo mais bravo e apto, garantindo a transmissão e
aperfeiçoamento da vida mesma – o que é, em verdade, a derradeira vontade de Humanitas,
em detrimento daqueles indivíduos particulares. Assim, tudo aquilo que gera sofrimento aos
olhos do indivíduo, ou até mesmo seu perecimento, tem sua razão de ser e é incapaz de atingir
a Humanitas, que devora a si mesmo através de todas as coisas e todos os seres.

A dor e a morte são ilusões que só existem aos olhos de um ego que toma a si mesmo
como princípio e fim. Cabe notar que, de fato, para o indivíduo, o si mesmo é tudo o que tem
– sendo o homem a mais perfeita individualização desta força universal e cega de Humanitas,
ele é criado em sua semelhança, tendo, portanto, no seu âmago, um microcosmo de tudo
aquilo que Humanitas emana de sua essência – potência, desejo, prazer, vida e fome. Isto nos
leva a alargar a dimensão da afirmação feita nas Memórias Póstumas de que o Humanitismo
"ligava-se ao Bramanismo". Para o Bramanismo, a essência dos entes individuais está sujeita
à metempsicose, isto é, transmigra através de sucessivas encarnações. De forma análoga,
Humanitas se encarna através de todos os seres particulares a que deu origem, vive através
destes e descarta-os, quando conveniente para sua expansão em potência. Para o
Humanitismo, Humanitas é como uma mesma alma que encarna e anima a todos os corpos,
mas separada, individuada e fragmentada pelo Tempo e Espaço dentro dos quais se manifesta.
Esta hipótese tornaria um pouco mais clara a enigmática afirmação do filósofo de que
Humanitas seria, no fundo, o mesmo homem "repartido por todos os homens".

A aparente impiedade de Borba se desfaz quando consideramos que o sujeito e o alvo


de todos os atos possíveis tem de ser sempre e fundamentalmente o mesmo. Logo, o predador
que devora a presa não passa de Humanitas que se nutre de Humanitas por necessidade. A
egoidade é ilusão, um devaneio efêmero que conduz a uma percepção distorcida da realidade.

Nas Memórias Póstumas, o filósofo diz com suas próprias palavras que "o algoz que
executa o condenado" é "Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei de
Humanitas". Podemos então inferir que, no exemplo do vencedor das batatas, o ponto de vista
que ali enxerga um conflito penoso é o erro interpretativo que olha o mundo pela referência
do ego, e não da verdadeira unidade subjacente de todas as coisas. Para Borba, todas as
aparentes tensões transfiguram-se em um esplendoroso espetáculo de arranjos e rearranjos de
Humanitas através do Tempo e do Espaço, modelando, dissolvendo e remodelando
indivíduos, e permanecendo intacto enquanto substrato de todos eles. Deste ponto de vista
iluminado, tudo que há é apenas o Humanitismo em seu desdobramento glorioso. Humanitas,
enquanto essência íntima, está além de todos os seres. Os transcende e engloba apesar de,
paradoxalmente, deles depender para manifestar-se e realizar-se efetivamente no mundo.

Os olhos do Eu enxergam o mundo pelo caleidoscópio da egoidade e, por isso, o


deturpam e interpretam de maneira errônea. Humanitas, a raiz, é permanente e uno, enquanto
os indivíduos, seus frutos, são impermanentes e interdependentes. Disso decorre que as
categorias dentro das quais os entes se encadeiam (tempo, espaço, causa, efeito etc.) só fazem
sentido para eles mesmos, mas nunca para Humanitas, que não está a elas submetido. Ora,
como explicar a lei da raiz nos termos do fruto? Deve-se conhecer a extensão a partir do
centro, e não o inverso, como fazem os hereges que revoltam nosso filósofo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto Humanitas existe por e para si, os entes particulares não possuem
substancialidade, ou seja, só existem enquanto seres relativos. A exemplo desta relatividade,
citamos a relação pai-filho – o pai só existe com relação ao filho, que por sua vez só existe
com relação ao pai. Ambos vem a ser mutuamente, constroem-se um ao outro e não possuem
originação independente (separada). O mesmo se dá com predador e presa, vítima e algoz,
juventude e velhice, saúde e doença, e todos os outros aparentes pares de opostos. A
existência de um sempre pressupõe a do outro. Logo, amar a um e rejeitar o outro é fatiar a
unidade da Substância Universal e blasfemar contra o Princípio do qual somos todos
originados – é, enfim, uma revolta melindrosa da criatura contra seu criador, e assim
entendemos não só a acusação que Borba faz às heresias, mas a celebração incondicional que
faz da vida em todos os seus aspectos, inclusive aqueles que tomamos por repulsivos e hostis.

Quincas Borba está longe de ser uma mera figura jocosa. Seu sistema metafísico,
articulado pela genialidade machadiana, não pode de maneira alguma ser reduzido a uma
mera crítica ideológica ou sociológica da sociedade burguesa. Através de seu personagem,
Machado nos legou esse profundo e peculiar sistema filosófico do Humanitismo que, avesso
aos fantasmas das ideias platônicas e especulações teológicas, nos fornece uma verdadeira
filosofia da afirmação da unidade do Mundo e da Vida, da Reintegração Universal dos Seres.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo:
Moderna,1994. (Coleção Travessias).
______. Quincas Borba. São Paulo: Ática, 1980. (Série Bom Livro).
ESPINOSA, B. Ética. Tradução de J. de Carvalho. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Coleção Os Pensadores.
SANTOS, Maria Carolina Alves dos. A lição de Heráclito. Trans/Form/Ação. Universidade
Estadual Paulista, Departamento de Filosofia , v. 13, p. 01-09, 1990. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/11449/10652>.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4.ed.


São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

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