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Reivindicando Os Estudos de Filme e Midia Pretos
Reivindicando Os Estudos de Filme e Midia Pretos
Reivindicando
os Estudos de Filme
1
e Mídia Pretos
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Racquel J. Gates e Michael Boyce Gillespie
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Tradução: Kênia Freitas
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Interlocução na tradução: Heitor Augusto
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Historicamente, o estudo da ideia do Filme Preto tem sido uma
empreitada em disputa, perspicaz e produtiva — seja essa uma
questão de capital industrial e a sua delimitação da prática
cinematográfica em termos de lucro, ou a tendência de insistir
que o "preto" do filme preto seja apenas um determinante
biológico e nunca uma proposição formal. De muitas maneiras, o
filme preto como um objeto de estudo espelha a história da
América, a história de uma ideia de raça. À medida que o campo
1
Publicado originalmente em: GATES, Racquel J.; GILLESPIE, Michael Boyce. “Reclaiming Black Film and Media
Studies”. Film Quarterly, Spring 2019, Volume 72, Issue 3, pp. 13-15.
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Racquel J. Gates é professora assistente na College of Staten Island, CUNY. Sua pesquisa se concentra na pretitude
e na cultura popular, com atenção especial aos discursos dos gostos e qualidade dos filmes. Ela é autora de "Double
Negative: The Black Image and Popular Culture" (Duke University Press, 2018) e escreveu vários ensaios sobre
cinema e mídia, alguns dos quais aparecem na Film Quarterly, The New York Times, Television & New Media e The
Los Angeles Review of Books.
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Michael Boyce Gillespie é Professor Associado de Cinema na The City College of New York, CUNY. Sua pesquisa e
escrita se concentram na teoria do cinema, cultura preta visual e expressiva, música popular e arte
contemporânea. É autor de "Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film" (Duke University Press,
2016); co-editor do dossiê “Dimensions in Black: Perspectives on Black Film and Media” para Film Quarterly
(inverno de 2017); e co-editor de “Black One Shot” (verão de 2018), uma série de crítica de arte dedicada à cultura
visual e expressiva negra no ASAP /J (a plataforma de acesso aberto da Association for the Study of the Present
Journal).
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Kênia Freitas é professora, crítica e curadora de cinema, com pesquisa sobre Afrofuturismo e o Cinema Negro.
Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Escreve críticas para o site Multiplot! desde 2012. E integra o Elviras
- Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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Heitor Augusto atua como curador, crítico, pesquisador e tradutor. Por meio de projetos curatoriais, artigos,
cartografias e traduções, Augusto tem contribuído para um tensionamento das hierarquias da(s) história(s) do
cinema.
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Optamos por adotar a expressão “Filme preto” para traduzir “Black film”. Acreditamos que há um sentido
proposital de deslocamento dos autores em usar os termos “Black Film” e não “Black Cinema” (expressão
bastante utilizada por outros pesquisadores dos EUA e mais comumente traduzida por “Cinema Negro”). Esse
deslocamento propositivo do cinema para o filme pode ser percebido tanto nesse manifesto, quanto nas pesquisas
e escritas individuais de Racquel J. Gates e de Michael Boyce Gillespie - criando possibilidades novas de reflexão
no campo relacional cinema e pretitude. Ressoando tal deslocamento inventivo, optamos também pela tradução de
“black” por “preto” (e não “negro”), para reforçar a diferenciação na terminologia [N.T.].
continua a se transformar e mudar, e o estudo do filme preto
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torna-se mais comum, ele é muitas vezes ainda tokenizado pela
indústria. As discussões sobre filme e mídia pretos estão
crescendo em programas acadêmicos (por exemplo, nos
departamentos de Estudos Americanos, Estudos sobre Mulheres e
Gênero, Língua Inglesa) e nos Estudos de Filme e Mídia, mas
estão crescendo ainda mais em espaços não acadêmicos, com
blogs, podcasts e reflexões críticas proliferando-se em um ritmo
acelerado. Nós oferecemos o nosso manifesto, reconhecendo que
os manifestos de cinema nunca sussurram. Suas mensagens
imaginam possibilidades políticas, estéticas e culturais. Eles
exigem e conspiram. Eles questionam e insistem. O que se segue
são expectativas entrelaçadas como preocupações não apenas
para as imagens dos filmes pretos porvir, mas também para o
pensamento sobre a pretitude e o cinema, que esperamos
prosperar e inspirar discussões futuras. Estamos inventando
novos termos de engajamento com os desenvolvimentos atuais
em mente.
Devemos lembrar que, tradicionalmente, o campo dos estudos
cinematográficos foi projetado em torno da centralização dos
homens brancos heterossexuais. Isso forma o alicerce da
indústria fílmica e dos estudos de cinema.
Isso significa que o estudo do filme preto, qualquer que seja a
definição de filme preto, como uma prática e um produto, tem
sido constantemente tratado como um adicional ou um derivado
em vez de algo integral (por exemplo, a infame "Semana Racial"
em qualquer curso de Introdução ao Cinema / Mídia). Devemos
aprender, reconhecer e ensinar que a pretitude tem sido central
na história do cinema desde o nascimento do meio, não
começando apenas com “O Nascimento de uma Nação” (The
Birth of a Nation, D. W. Griffith, 1915). Devemos ensinar Oscar
7
Originário da palavra “token”, o processo de tokenização racial diz respeito às formas de inclusão e visibilidade
simbólicas, superficiais e exploratórias das pessoas pretas e das suas expressões artísticas, intelectuais e culturais
[N.T].
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Micheaux, mas também a Lincoln Motion Picture Company e as
longas histórias dos primeiros e não sobreviventes filmes pretos,
que estudiosas como Jacqueline Stewart, Pearl Bowser, Allyson
Nadia Field, e outros, esforçaram-se para trazer à luz. Além
disso, um maior foco no trabalho de mulheres pretas e cineastas
queers promoverá a descentralização necessária das tendências de
perspectiva dos estudos de cinema e, em última análise,
contestará os significados categóricos estreitos atribuídos ao
filme preto. O estudo do filme preto deve ser sempre um ato
rebelde.
Devemos parar de nos referir a todo filme ou texto midiático
preto significativo como o "primeiro", apagando assim o
trabalho e as contribuições intelectuais de todos os que vieram
antes.
A empolgação em torno de filmes como “Corra!” (Get Out, Jordan
Peele, 2017), “Moonlight: sob a luz do luar” (Moonlight, Barry
Jenkins, 2016), “Pantera Negra” (Black Panther, Ryan Coogler,
2018) e, mais recentemente, “Sorry to Bother You” (Boots Riley,
2018) tende a produzir um discurso do excepcionalismo, dos
“primeiros” (“primeiro filme a fazer X”). A discussão crítica em
torno dos filmes tende a enquadrá-los tacitamente em termos de
um cenário de cinema branco, sugerindo que o valor destes
filmes está na sua capacidade de parecer e soar como filmes
padrões (ou seja, brancos), rompendo os seus laços com a
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história do filme preto e distanciando-os dos filmes pretos
"não-excepcionais" no presente. Como uma nota final, o
trabalho vibrante e perspicaz do “New Negress Film Society”, um
9
coletivo de mulheres pretas cineastas (Nuotama Bodomo , Dyani
Douze, Ja’Tovia Gary, Chanelle Aponte Pearson e Stefani
8
Nesse trecho há uma ambiguidade de escrita perdida na tradução entre “história do filme preto” e “história
preta do filme” [N.T.].
9
No texto original, publicado em 2019, a diretora ganense aparece citada como Frances Bodomo (sendo o nome
creditado em seus filmes até aquele momento). Desde então, Bodomo optou pelo uso do seu primeiro nome
“Nuotama”. Respeitando essa predileção, adotamos no corpo do texto essa mudança [N.T].
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Saintonge), prospera de maneira contrária à insistência
tacitamente orientada para a indústria do excepcionalismo do
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cinema preto.
Devemos ser críticos e desconfiados de ensaios acadêmicos,
painéis e outras atividades sobre o filme preto que não se
engajam substancialmente com ou citam conhecimento oriundos
de estudos de cinema e mídia.
Como é possível discutir o filme preto sem levar em consideração
os debates e as investigações que continuam a fornecer o
momentum crítico que constitui o discurso do filme e mídia
pretos? A experiência universal de assistir filmes dá a falsa
impressão de que nós somos todos igualmente conhecedores das
histórias, das teorias e dos contextos dos filmes. Além disso, essa
prática torna invisível a existência de estudos de cinema,
transformando o filme em algo que qualquer um pode "fazer".
Ter uma opinião sobre um filme não constitui um treinamento
em cinema e mídia.
Devemos insistir em estar atentos às questões da forma do filme,
em vez de focarmos apenas no conteúdo.
Concentrar-se nas convenções do cinema Disney/Marvel pode
nos ajudar a apreciar como o “Pantera Negra” revisa e perpetua o
cinema de super-heróis advindos dos quadrinhos. Pensar através
das modalidades de ficção especulativa preta e do Afrofuturismo
em “Sorry to Bother You” ajuda a fundamentar a crítica incisiva e
surrealista do filme sobre o capital, raça e classe. O que significa
entender “Infiltrado na Klan” (BlacKkKlansman, Spike Lee, 2018)
como fantasia do Blaxploitation e historiografia visual do cinema
americano? O pensamento que emerge ao se pensar em “Se a rua
Beale falasse” (If Beale Street Could Talk, 2018) de Barry Jenkins
10
Para mais informações sobre o “New Negress Film Society”, ver: https://newnegressfilmsociety.com/. [N.A.]
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como uma adaptação cinematográfica que processa visualmente
o texto de James Baldwin também deve considerar como esse
processamento ocorre junto com um componente sônico
conseqüente. É importante pensar nos princípios formais que
permeiam as obras experimentais/de vanguarda (por exemplo,
Kevin Jerome Everson, Cauleen Smith, Christopher Harris,
Ephraim Asili) para apreciar a gama de capacidades estéticas
evidenciadas pela ideia de filme preto. “Random Acts of Flyness”
(2018) do Terence Nance modela um sentido alternativo de
serialidade televisiva antológica, uma produção que abunda em
experimentação formal e coletividade. Ele reencena o conceito do
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programa televisivo da madrugada [late-night show] com um
trânsito surrealista entre formatos e modalidades. A
inventividade do “Strong Island” (2017) de Yance Ford requer
apreciar como o filme redefine a forma documental com a sua
construção requintada de um arquivo e com a abordagem direta
de Ford. Além disso, o filme permanece imune à recuperação
humanista ou sentimental em sua consideração do luto familiar,
injustiça e as maneiras anti-negras em que a branquitude sempre
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opera como a árbitra da verdade.
Devemos ir aos festivais de cinema. Devemos acompanhar os
programadores de filmes.
Os filmes pretos prosperam em arenas outras que não o multiplex
padrão. O que pode significar dar tanta atenção a esse contexto
quanto ao burburinho industrial/comercial? Este é especialmente
o caso em 2018, com a programação de Greg De Cuir e Kevin
Jerome Everson para o Flaherty Seminar; o brilhantismo contínuo
de Maori Karmael Holmes dirigindo a sétima edição do BlackStar
13
Film Festival , na Filadélfia; a contínua circulação do programa
11
Formato de programa da televisão estadunidense da madrugada, que em geral se caracteriza pela centralidade de
um apresentador humorista, comentários bem-humorados dos acontecimentos diários, entrevistas com
convidados, esquetes de comédia e apresentações musicais [N.T].
12
Inspirado pelos comentários pós exibição feitos por Yance Ford no Museu de Arte Moderna, no programa “New
Directors/New Films Series”, em 19 de março de 2017.[N.A.]
13
Fundado em 2012, em 2020, o BlackStar Film Festival realiza a sua nona edição [N.T].
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itinerante “Black Radical Imagination” de curtas
experimentais/de vanguarda, co-fundado por Erin Christovale e
Amir George e atualmente programado por Darol Olu Kae e
Jheanelle Brown; o African American Film Festival do Museu
Nacional da História e Cultura Afro-Americana, Smithsonian; a
programação de filmes de Ashley Clark no Brooklyn Academy of
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Music. Em particular, os programas de Clark neste ano foram
oportunidades produtivas e colaborativas para apreciar
expansivamente o cinema. A série “Fight the Power: Black
Superheroes on Film” (“Lute contra o sistema: super-heróis
pretos no cinema”) moldou o lançamento iminente de “Pantera
Negra”; a série “On Whiteness” (“Sobre a branquitude”) da
BAMcinématek e do Instituto de Imaginário Racial (Racial
Imaginary Institute) estava conectada ao Simpósio “Whiteness”
na Kitchen; e a série “Say It Loud: Cinema in the Age of Black
Power, 1966–1981” (“Diga bem alto: o cinema na era do Poder
Preto”) estava conectada à exibição “Soul of a Nation” (“Alma de
uma nação”) no Museu do Brooklyn.
Devemos parar de defender a representação como um marcador
do progresso racial e, em vez disso, começar a nos concentrar nos
temas e ideias com os quais essas representações se engajam.
Por tempo demasiado, ambos os estudos acadêmicos e o
populares do filme e mídia pretos se concentraram muito
estreitamente na mera presença de corpos pretos, tanto na frente
quanto atrás da câmera. Corpos pretos não são se equivalem à
pretitude. Pretitude não necessariamente se equivale à libertação
ou à reabilitação preta. Um estudo do filme e mídias pretos que
apenas iguala a inclusão de realizadores e personagens pretos a
uma prática cinematográfica revolucionária nunca efetuará
verdadeiramente uma transformação, mas antes, simplesmente
justificará uma história de corpos pretos trabalhados por e
14
Para mais sobre o Black Radical Imagination, ver: http://blackradicalimagination.com; e Tiffany Barber e Jerome
Dent, “Urban Video Project: Interview with Curators of Black Radical Imagination,” LightWork, 20 de março de
2015, www.lightwork.org/tag/black-radical-imagination/. [N.A.]
6
trabalhando para a branquitude em níveis ideológicos e formais
(por exemplo, blackface, cinema de questões sociais…). A
historiografia do filme preto não precisa ser uma fantasia de
progresso. Talvez, a ambivalência possa ser um bom lugar para
começar.
Se o reavivamento do debate sobre representação deve ocorrer,
então pelo menos releiam o Stuart Hall.
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