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LANÇAMENTO

UM HOMEM CONECTADO COM SUA REGIÃO


Leia trechos do livro ‘Brasileirismos e conexões com Gilberto Freyre’, do antropólogo Raul Lody, publicado pela
Cepe Editora

TEXTO RAUL LODY


05 DE MAIO DE 2020

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O sociólogo Gilberto Freyre


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[conteúdo na íntegra | ed. 233 | maio de 2020]

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Sou um Gilbertiano

Estar no Recife sempre foi uma rica experiência, e mais ainda quando visitava Gilberto Freyre no
seu gabinete da Presidência do Conselho do então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais,
onde o encontrava, geralmente, no período da tarde.

O gabinete era totalmente forrado com um carpete roxo, cor preferida de Gilberto, e que de certa
maneira combinava com o seu anel de ametista (lilás).

Conhecer Gilberto, certamente, foi iniciar uma profunda imersão no Brasil; principalmente no
Nordeste, em Pernambuco e no Recife.

Há em Gilberto uma concepção afetiva com a sua região, o Nordeste; e sempre as conexões entre
cultura e ecologia orientaram o criador da tropicologia: o homem situado no trópico. E, assim, em
1937, pela primeira vez em língua portuguesa foi publicada a palavra ecologia, no seu livro
Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.
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Germinal é Nordeste como é Casa-grande & senzala, em profundo diálogo que valoriza e, ao mesmo

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tempo, expõe em profunda crítica o homem e a região. Então, ler Nordeste e Casa-grande &  senzala,
e poder comentar com o autor, Gilberto, fortaleceu, ampliou e certamente emocionou, fazendo com
que o meu olhar, após cada conversa, fosse reconstruído. Tudo fluía como um depoimento ilustrado
na capacidade descritiva, diria iconográfica, de Gilberto.

Fui descobrindo, então, que Gilberto fez, ou melhor, faz como ninguém um cotejamento sociológico
e antropológico entre estética e caráter. Creio que nesse verdadeiro processo de sedução há um
sentido vigoroso de esteta, de historiador, de cronista; de viajante da sua própria vida, em torno da
família, de ancestrais, de engenhos, de casas-grandes, de senzalas, de capelas, de festas de santos,
de cozinhas; de receitas de doces.

Como mesmo dizia Gilberto: “Sou de Apipucos e sou do mundo”. E, assim, formalizava e deslocava
seus conceitos entre o que é local e o que é universal. Ainda, o seu tempo, que é tríbio — passado,
presente e futuro —, fazia com que cada conversa fosse integrada, nova, já vista, e por vir.

Assim, sempre atual é Casa-grande & senzala, e há possibilidade de rever e de reescrever


conceitualmente teias tão complexas por serem recorrentes ao tempo tríbio e a uma curiosidade de
menino, como se diz no Recife, com certa trela. Com esse tempero as conversas fluíam, e eu sempre,
ao me despedir, já estava ansioso por outra conversa.

Entre tantas conversas e visitas, o conhaque de pitanga. Bebida criada por Gilberto para poder,
assim, celebrar de maneira personalizada na sua casa de Apipucos, afetivamente, Santo Antônio de
Apipucos.

Ao tomar o meu primeiro conhaque de pitanga, servido cerimonialmente por dona Madalena,
mulher de Gilberto, senti-me membro de uma quase confraria, pois o conhaque selava um pacto de
afeto. Inesquecível foi este sábado, do qual me lembro detalhadamente, contando ainda com a
presença de Fernando, filho de Gilberto.

Nesse processo de chegada, e de fortalecimento de laços profissionais e afetivos, pude ampliar o


meu conhecimento, visitando de maneira profunda a casa de Apipucos, instalada em pedaço de
Mata Atlântica e próxima a um braço do Rio Capibaribe. Os jardins quase florestais, ao gosto de
Gilberto; um misto de plantas ornamentais e pomares confirmavam o espírito da tropicologia, tudo
cheirava a Brasil.

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Raul Lody e Gilberto Freyre em 1982. Foto: Divulgação

Ainda sobre a casa: os azulejos portugueses que contavam a história de Nossa Senhora, a mobília
densa e sólida de madeiras nacionais; pinturas, desenhos, gravuras, em abundância; cristaleiras,
porcelanas orientais, prataria; santos da devoção, em destaque Santo Antônio; e a magnífica
biblioteca que dominava todos os espaços do andar térreo.  Assim, constatei o acervo precioso de
livros, revistas, originais, que se integram à vasta criação de Gilberto. Preferencialmente, nós que
lemos e gostamos da obra e a valorizamos também como antecipações históricas e antropológicas.

Nesses últimos 10 anos, 1977–1987, pude acompanhar mais de perto o mestre e, a cada visita, a cada
conversa, surpreendia-me com a sua mocidade e a sua alma transgressora, fértil e até chocante para
os padrões mais avançados da nossa sociedade. Assim é Gilberto Freyre, sempre conjugado no
presente do indicativo.

— É Gilberto, sempre Gilberto.

Em 1980, próximo ao Carnaval, fui visitá-lo em seu escritório, na agora Fundação Joaquim Nabuco.
E lá, sentado, circundado por telas de Vicente do Rêgo Monteiro e Cícero Dias, e inundado de papéis
e livros, estava Gilberto. Vendo-me, abriu-se em amplo abraço.

Muito interessado na minha visita, perguntou-me sobre os meus planos para o Carnaval. Relatei-os
rapidamente para não interromper o precioso tempo de Gilberto, porém o brilho dos seus olhos
transpirava numa adolescência decisiva como os passos do frevo, do furor do mela-mela, da doçura
dos blocos de pau e corda das ruas do Recife, e confidenciou-me: “Adoro me vestir de palhaço no
Carnaval”. Então, declarei a Gilberto que a minha fantasia era de marinheiro, e nos meus planos
para o Carnaval estavam o Galo da Madrugada e os antigos maracatus de baque virado, Elefante e
Leão Coroado.

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