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"O mindfulness é a ‘espiritualidade do

capitalismo’"
ENTREVISTAS VISÃO
 

27.10.2019 às 19h20





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Divulgacao

Em entrevista à VISÃO, Ronald Purser defende que "o mindfulness


retira das empresas a responsabilidade pelo stresse que causam e
coloca-a nos indivíduos, como sendo algo com que estes têm de
aprender a lidar"

ALEXANDRA CORREIA
Editora

Depois de uma troca de emails, combinámos a entrevista para quando


Ronald Purser, 63 anos, voltasse de um retiro. Este docente de Gestão
na Universidade de São Francisco, na Califórnia, é budista, faz
meditação e é professor de Zen Dharma, ordenado, em 2013, pela
Korean Zen Taego, uma ordem do budismo, religião que estuda desde
1981. Autor de oito livros (incluindo How Mindfulness Became the New
Capitalist Spirituality, editado este ano) e de múltiplos artigos científicos,
Ronald Purser é muito crítico do mindfulness que se pratica no mundo
ocidental, especialmente no âmbito empresarial. Os seus argumentos
são claros: as pessoas usam este tipo de meditação para aprender a
lidar com o stresse, stresse esse que é causado pelo contexto laboral em
que se inserem. Este mindfulness ao jeito de fast-food acaba por dar
uma ajuda às formas mais graves de exploração dos trabalhadores,
dizendo-lhes que o stresse é algo com que têm de lidar. Ponto.
“O mindfulness envia a mensagem de que os indivíduos são
responsáveis pela sua saúde mental, independentemente dos salários ou
das condições de trabalho”, diz. Recordando que este tipo de meditação
era, na sua origem, um modo de vida, “um caminho de desenvolvimento
ético e moral, que levava à sabedoria e à compaixão”, Purser coloca o
dedo na ferida desta sociedade obcecada por aplicações de telemóvel,
nos intervalos da lufa--lufa diária. Depois de um artigo seu
intitulado Beyond McMindfulness se ter tornado viral, Ronald Purser tem
falado sobre o assunto em diversas entrevistas e artigos de jornais um
pouco por todo o mundo. Além de o ler aqui, vale também a pena
espreitar o seu podcast em mindfulcranks.com.
Os efeitos do mindfulness estão sobrevalorizados?
Sim, sem dúvida. Sobrevalorizados e vendidos de forma exagerada. O
marketing vende o mindfulness como se fosse bom para toda a gente e
para qualquer situação.
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E é bom em qualquer situação?


Não. O problema está justamente aí. O mindfulness é vendido como se
fosse uma panaceia para qualquer estado mental de ansiedade. Não é
bom para toda a gente, e os estudos começam a mostrar que pode,
aliás, causar ainda mais ansiedade e que a meditação mindfulness tem
efeitos adversos para algumas pessoas. Mas, com isto, não quero dizer
que seja completamente inútil ou desprovida de qualquer benefício.
Diz-se que um dos benefícios é que as pessoas tomam o controlo
das suas emoções…
Estou mais preocupado com a forma como o mindfulness tem sido usado
em determinados contextos como uma forma de controlo social. Falo, por
exemplo, do ambiente empresarial, em que o mindfulness é usado como
um meio de substituir o fardo, ou seja, de levar os trabalhadores a
adaptarem-se e mesmo a assimilar determinadas condições de trabalho
numa cultura empresarial que é ela própria a causa de tanto stresse. Ou
seja, o ónus passa a ser dos indivíduos, e o mindfulness é usado para
manter um sentimento de pertença e statu quo em vez de ajudar as
pessoas a, coletivamente, trabalhar para que haja mudanças estruturais
nas condições de trabalho a que estão sujeitas – e assim reduzir o
stresse. Assim, estes problemas laborais ficam reduzidos a uma questão
individualizada, como se fosse uma questão de lifestyle com que a
pessoa tem de lidar, e não uma questão social e política. Assim, focando-
nos no stresse, podemos ser ensinados a ser mindful em vez de
olharmos para as condições subjacentes que nos causam tanto stresse.
Como se a culpa fosse dos trabalhadores.
Certo. Retira da empresa a responsabilidade pelo stresse que está a
causar e coloca-a nos indivíduos. É por isso que eu chamo
ao mindfulness a “espiritualidade do capitalismo”. Se olharmos para
o mindfulness promovido pelas empresas – e estas são mesmo
iniciativas da gestão –, parece, na superfície, que é uma situação em que
todos ganham: podemos aumentar a produtividade mantendo os
trabalhadores mentalmente em forma. Mas, ideologicamente, isso
funciona como um instrumento para a autodisciplina.
Porque trabalhadores felizes são mais produtivos…
Bem, isso tem sido uma ideia da gestão desde há 60, 70 anos, que vai e
vem em diferentes momentos. Mas o mindfulness envia a mensagem de
que os indivíduos são responsáveis pela sua saúde mental,
independentemente dos salários ou das condições de trabalho.
Então diz que esta doutrina da “autorresponsabilidade” está a
distrair-nos dos problemas reais…
Sim. E já há muito tempo. Houve um académico (não recordo o nome)
que cunhou o termo self-helpism (autoajuda), e que coloca os problemas
a nível do indivíduo. Isso quer dizer que as soluções também são
formuladas a esse nível. Isso molda a forma como refletimos sobre os
problemas reais, colocando-os no plano do não político, privatizando a
luta pelo bem-estar.
Vê-o como um instrumento de desigualdades nas empresas?
Sim, mantém as relações de poder desiguais que caracterizam as
empresas e organizações capitalistas. Basicamente, reproduz estas
relações de poder através da ilusão da autodisciplina.
Na opinião publicada há quem chame ao mindfulness “uma
revolução”, como a Time, por exemplo. É mesmo revolucionário?
O que é que o mindfulness muda radicalmente para ser considerado
revolucionário? Ao contrário, acho-o bastante conservador e harmonioso
com os valores liberais.
Mas se de facto resulta, se faz as pessoas mais felizes, o que
interessa que seja um “instrumento do capitalismo”, como diz?
O que quer dizer com “de facto resulta”? Em que contexto?
Se de facto reduz o stresse…
Isso é o que é apelativo no mindfulness; dizer que é uma técnica que
resulta em qualquer contexto para qualquer objetivo. Ao mesmo tempo, é
bastante problemático. Resulta com que propósito? O Exército norte-
americano pode dizer que resulta para melhorar a performance dos seus
atiradores de elite… A questão de fundo é que o movimento
do mindfulness está a ser usado para dizer que é o indivíduo que tem de
se adaptar às condições políticas, sociais e económicas, que a mudança
tem de ser feita dentro da própria pessoa. O que oculta a importância da
ação coletiva. O mindfulness é um pobre substituto para a real mudança
das organizações, agarrando nos problemas estruturais e reformulando-
os como problemas psicológicos.
No entanto, parece libertador poder controlar os nossos próprios
níveis de stresse.
Sim, as pessoas ficam com a ilusão de que estão realmente a fazer uma
escolha usando estas técnicas. Só que os promotores
do mindfulness estão ligados às empresas, às organizações, privadas e
públicas. Se vendem os workshops e cursos às empresas, não vão
querer tornar-se um problema para as mesmas colocando questões
difíceis. Não são uma ameaça para o statu quo ao dizer que o stresse
pode ser gerido dentro da nossa cabeça e não interrogando as causas.
“O stresse é privado, é um problema teu, é um fator que pode ser gerido
dentro da tua cabeça” – isso é apenas uma narrativa, e muito limitada,
falhando no reconhecimento do contexto da vida das pessoas. Um
indivíduo não é um átomo, é também o seu contexto social e político. Por
outro lado, normaliza o stresse, naturaliza-o e diz às pessoas: “Olha, o
stresse é algo com que tens de lidar, então descobre por ti como lidar
com ele, seja através do mindfulness, ioga, o que quer que seja.” Por
isso é tão atraente para as empresas e os governos que tentam reduzir
os programas e o orçamento da assistência social.
Vê o mindfulness no plano político.
Sim, tornou-se político porque individualiza todas as questões. Promove
a ordem e a harmonia social dentro das empresas persuadindo as
pessoas de que o stresse que sentem deve-se simplesmente à sua
incapacidade de ser mindful, de controlar as suas emoções. O que pode
levar um indivíduo a culpar-se por não ser capaz: “Se toda a gente
parece estar a beneficiar com o mindfulness, então devo ter alguma
coisa de errado.” Mas é muito popular porque é vendido com o foco no
campo médico, como uma ideia de bem-estar, uma técnica terapêutica
de automonitorização, autorregulação, auto-otimização. Assim é fácil de
vender.
Não é consensual a cientificidade do mindfulness como técnica
terapêutica?
Há uma grande diferença entre o que os média dizem e o que os artigos
científicos dizem. Muitos estudos tiveram conflitos de interesses e o que
se está a descobrir agora é que os resultados foram inflacionados. A
verdade é que o entusiasmo pelo mindfulness está bem acima do que a
comunidade científica tem dito sobre esta técnica. Vendem-no com uma
aparência de cientificidade para o tornar credível. Como acontece com
qualquer nova dieta que apareça no mercado. Mas não é o caso. Tem-se
provado que esses estudos científicos têm inúmeros problemas
metodológicos que estão a ser expostos.
Fala contra a exploração dos trabalhadores no mercado livre…
O que eu digo é que as corporações têm responsabilidade pelas
condições de trabalho. Porque hão de descartar essa responsabilidade
atirando-a para o campo dos problemas mentais? Além disso, ainda
usam o mindfulness no campo das relações públicas. Promovendo
programas para os seus trabalhadores, fá-las parecer empresas
benevolentes. É como as empresas de petróleo e de químicos a
aparecer em anúncios de televisão a dizer que estão muito preocupadas
com o ambiente…
Estamos então a “consumir” mindfulness como quem vai almoçar
ao McDonald’s?
Sim, de facto. O mindfulness é apresentado como uma cura rápida e fácil
para o stresse. Como uma fast-food espiritual.
Você faz meditação…
Sim. Mas não tem nada que ver com o mindfulness que é praticado nas
empresas.
E é professor de Dharma. O que é isso?
É um passo no percurso de um professor na tradição da escola budista.
É ainda possível espalhar pelo mundo o mindfulness original, na
sua versão “lenta”?
Não é possível voltar atrás no tempo. Mas é importante ter consciência
de que o mindfulness veio de um contexto social, cultural e político
completamente diferente do que o temos agora. Apareceu há séculos na
Índia e o seu propósito não era apenas tirar o stresse e fazer com que as
pessoas se sentissem um pouco melhor, mas percorrer um caminho
espiritual que incluía muitas outras coisas além da meditação per si. Um
caminho de desenvolvimento ético e moral, que levava à sabedoria e à
compaixão. O contexto original do mindfulness era baseado na libertação
espiritual que pretendia reverter as causas do sofrimento dos seres
humanos. Era uma tradição monástica e as pessoas dedicavam-lhe toda
uma vida; e não apenas três minutos por dia através de uma aplicação
qualquer. Não era sobre o “eu”; pelo contrário, era uma forma de se
libertar das fronteiras do “eu”. O que vemos agora é um mindfulness
como terapia centrada no “eu”, no bem-estar, algo reduzido a uma
competência. É muito diferente.

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