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DISTINÇÕES E APROXIMAÇÕES
As distinções mais importantes entre ciência e filosofia situam-se, a meu juízo, nos opostos ciência
como conhecimento regional e filosofia como sistema, ciência como indução e filosofia como
dedução, ciência como experimento e filosofia como experiência, ciência como tecnologia e
filosofia como conceito. Sobre ciência como conhecimento regional e filosofia como sistema, pode-
se dizer que Francis Bacon fez um recorte na tradição filosófica ocidental separando ciência de
filosofia. (Novo órganon, 2014)3 A ideia de filosofia como sistema nasceu quando os pré-socráticos
romperam com a concepção mítica e substituíram-na pela interpretação racional: o logos. Tales de
Mileto, por exemplo, alegou que a água era a arché que sustentava a physis e a explicava
(HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA. REALE; ANTISERI, 1999, cap. II) 4 O conhecimento dos
filósofos pré-socráticos em geral caracterizava-se, portanto, pela simbiose entre ciência e filosofia.
Nessa mesma linha, Sócrates, Platão e Aristóteles distinguiram doxa de episteme. Sócrates fez isso
recorrendo à maiêutica porque considerava que esse método podia levar interlocutor ao
conhecimento verdadeiro. Platão disse que episteme “[…] é mais válida do que a opinião legítima e
difere desta pelos seus nexos”. Aristóteles alegou que ela é o conhecimento demonstrativo
(EPISTEME IN: ABBAGNANO, DICIONÁRIO DE FILOSOFIA). 5 Essas noções de episteme
capitulam o sentido de sistema, isto é, proposições integradas, não-contraditórias à semelhança de
A segunda distinção entre ciência e filosofia ocorreu na inferência e na dedução. A primeira, refere-
se ao experimento científico; a segunda, à filosofia. Aristóteles afirmou que o conhecimento
verdadeiro é o demonstrativo, isto é, decorre da dedução. Por exemplo: todos os homens são
mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal. O termo médio homem opera a conexão
necessária entre as extremidades. Sócrates é mortal porque é homem. Aristóteles afirmava que esse
conhecimento era verdadeiro porque a dedução feita do geral – todo homem – para o particular –
Sócrates – apoiava-se na evidência demonstrável da mortalidade humana. Entretanto, sobre a
indução, Aristóteles disse que era conhecimento provável. Se digo: Juarez, rapaz inteligente, é
estudante de Direito da UFPR; Joana, Marli e Juca, jovens inteligentes, são estudantes de Direito
da UFPR; logo, provavelmente, todo estudante de Direito da UFPR é inteligente. Essa conclusão se
refere a um fato, por isso, é uma probabilidade e não conhecimento verdadeiro. A indução só
afirma a inteligência dos quatro estudantes citados, sobre os demais tanto pode estar certa quanto
pode estar errada. Por isso, Aristóteles afirmou que a indução não é demonstrável, logo não podia
construir conhecimento verdadeiro desse modo (DEDUÇÃO IN: ABBAGNANO, 2007). Todavia,
foi exatamente contra esse argumento que Bacon se levantou. Chamou essa forma de indução de
pueril porque ela decorre de uma observação geral. Para as ciências era necessário experimentos
que permitissem o máximo de eliminações e exclusões para concluir alguma coisa que se referisse à
substância do fato (NOVO ÓRGANON, 2014). Portanto, a segunda distinção entre ciência e
filosofia clássica está na indução para a ciência e na dedução para a filosofia.
A crítica que Bacon fez a dedução e à indução de Aristóteles é pertinente se admitirmos, como ele o
fez, que o ponto de partida é a experimentação controlada. Nesse sentido, falar que Sócrates é
mortal porque todo homem é mortal é tautologia porque se afirma algo que está na premissa maior.
A dedução Aristotélica tem sentido restrito à cognição do filósofo que de um dado geral de
realidade concluiu algo particular. Como a natureza é muito mais esquiva, o raciocínio dedutivo se
torna inútil. Era preciso outra forma de investigação da natureza que só a indução feita a partir de
experimentação controlada pode facultar. Isso não implica que a crítica de Aristóteles à indução
esteja superada. Esse problema foi levantado por David Hume e depois por Karl Popper, Thomas
Kuhn e Paul Feyerabend.
A terceira distinção entre ciência e filosofia é que aquela se apoia no experimento enquanto esta na
experiência de uma descoberta casual ou mais geral. Bacon pôs o experimento, isto é, a observação
controlada que pretende responder a um problema específico de cunho social ou da natureza como o
meio idôneo para se obter o conhecimento científico. Segundo ele, o experimento diferia da
experiência porque enquanto essa era casual e devido a isso justificava-se por argumentos
dedutivos, aquele apoiava-se num problema posto no horizonte de uma hipótese que por meio do
experimento poderia ser confirmada ou rejeitada. Os resultados divulgados seriam provisórios e isso
daria o caráter dinâmico da ciência e o distanciamento de dogmatismos (NOVO ÓRGANON,
2014). Portanto, a distinção entre ciência e filosofia também ocorre no método porque enquanto a
ciência recorre ao método experimental para investigar um problema específico e daí afirmar algo
sobre ele, a filosofia recorre ao discurso mais geral a partir de situações da vida e, por isso, não
controladas.
A separação dos campos da ciência e da filosofia como proposta por Bacon levou a uma diferença
de status do conhecimento no qual a ciência ocupou o primeiro lugar e a filosofia foi posta num
nível subalterno. Hoje, essa assimetria está superada porque a epistemologia contemporânea,
especialmente, na crítica do indutivismo eliminou essa diferença.
A quarta distinção entre ciência e filosofia é que o conhecimento científico visa à produção
tecnológica enquanto que o conhecimento filosófico, o conceito. Francis Bacon considerava que a
ciência tinha em vista o bem-estar humano na medida em que o conhecimento fosse transformado
em instrumento de intervenção da natureza. Na Nova Atlântida, imaginou uma cidade fictícia na
qual reinava a igualdade e a justiça. Nela não havia fome, as doenças eram controladas e a
longevidade foi alcançada. A ciência ocupava um lugar destacado na cidade porque os mercadores
da luz tornavam o conhecimento um instrumento a favor da vida na medida em que dominavam os
fenômenos da natureza e os usavam para o bem de todos. 6 Esse ideal de ciência defendido por
Bacon continua sendo a pretensão da razão científico-técnica. A filosofia, por sua vez, é logos
porque pesa o grau de veracidade dos argumentos antes de admiti-los como verdadeiros ou falsos e,
em geral, não faz experimentos ao modo da ciência. Além disso, ela desdobra-se sobre si criando
novos problemas para facilitar a compreensão do mundo. Na medida em que a filosofia trabalha a
crítica e a reflexão formulando e reformulando ideias, ela é um pensamento tipicamente conceitual.
Portanto, ciência e filosofia operam em campos próprios e, por isso, são conhecimentos distintos
um do outro.
Feitas as distinções entre ciência e filosofia, segue-se para as aproximações. A nosso juízo, estas
são, sem a pretensão de esgotar as possibilidades, ciência como descrição ativa dos fatos e filosofia
como hermenêutica, ciência como leis gerais indutivas e filosofia como lógica, ciência como
técnica e filosofia como ética.
A primeira aproximação entre ciência e filosofia é que aquela faz uma descrição ativa dos fatos e a
filosofia realiza a interpretação desses fatos. Claude Bernard, disse que “a simples constatação dos
fatos nunca chegará a constituir uma ciência” porque dados sem interpretação são vazios. Para
fazerem sentido, eles precisam ser concatenados adequadamente (BERNARD, 1984, I, 1, § 4 o )9. A
hermenêutica capacita o cientista a interpretá-los num todo coerente ao qual o nome ciência seja
adequado. Sobre isso, Claude Bernard disse que “pode-se juntar fatos e observações, mas isso não
levará à compreensão de nada”. Por exemplo, os experimentos feitos para descobrir a configuração
genética do coronavírus da Covid-19 não parou na sua descoberta. Foi preciso interpretar esse dado
comparando, excluindo, incluindo outros que estavam fora para que a informação pudesse levar à
descrição clara da ação do vírus no corpo humano e daí poder criar os instrumentos efetivos para
reduzir sua letalidade. Como disse Claude Bernard: “para aprender é preciso, necessariamente,
racionar sobre o que se observou, comparar os fatos e julgá-los com outros fatos que servem de
controle” (BERNARD, 1984, I, 1, § 4 o ). Portanto, a hermenêutica é fundamental para que os dados
de experimento científico ganhe aplicação e sentido social. Se a descrição ativa dos fatos é a fase
final de um experimento científico e se a sua interpretação é necessária para que os fatos sejam
percebidos no conjunto e como bem social parece adequado concluir pela aproximação entre
ciência e filosofia.
Aos cultores da tradição filosófica como sistema pode parecer que a filosofia cedeu o lugar de
honra, onde esteve sentada desde o seu surgimento na Jônia no século VI a.C., para a ciência e
humilhada sentou-se mais abaixo atuando como mera coadjuvante daquela. Esse incômodo pode ser
resultado de mero preconceito dogmatista decorrente da ideia da filosofia regina de todos os
saberes. A filosofia como amor ao saber inclina-se muito mais à ação colaborativa na construção de
um mundo humano do que à defesa intransigente de um trono que não existe mais. Ademais, a
filosofia não está impedida de ser ela mesma quando assim o desejar. Portanto, a ciência e a
filosofia, nesse caso filosofia como hermenêutica, são saberes que se complementam na árdua tarefa
de decodificar os códigos dos fenômenos humanos e da natureza.
A segunda aproximação entre ciência e filosofia é que aquela estabelece as leis gerais indutivas
encontradas no experimento enquanto que a filosofia contribui com a Lógica. Conforme Francis
Bacon indicou, a ciência tem um caráter operacional que decorre necessariamente de dados
coletados do experimento (BACON, Novo órganon, 2014) 10. Ele está dizendo que todo
experimento científico tem como finalidade a intervenção na natureza ou na sociedade. Intervir
significa mudar o curso do fenômeno de modo positivo sem deixar de considerar os resíduos
negativos da intervenção. A descrição de como isso ocorre precisa ser posta num texto claro,
coerente e preciso. Nessa hora, o cientista necessita da Lógica. Aristóteles, a meu juízo, ainda é
A terceira aproximação entre ciência e filosofia é que aquela é técnica e esta é ética. Na Nova
Atlântida, Francis Bacon imaginou uma cidade na qual o império da técnica era capaz de facilitar a
vida do homem porque lhe dava poderes para organiza, transformar e superar a natureza (BACON,
2008).13 A utopia baconiana decorreu de sua compreensão de ciência, apresentada no “Novo
órganon”, como experimento controlado cujo fim era instrumentalizar o ser humano para exercer o
domínio do mundo. O método experimental inaugurado por Francis Balcon veio a ser chamado de
Positivismo por Saint-Simon e Augusto Comte. A ideia por detrás do termo é o esvaziamento de
buscas de causas primeiras e finalidades últimas para os fenômenos. Eles devem ser aceitos e
examinados exatamente como aparecem, como dados cujas leis podem ser descobertas por
experimentos adequadamente elaborados. Comte romantizou a ciência a tal ponto que a fez guia da
A tese que propus no início dessas linhas foi se compreensão qualificada das distinções e
aproximações da relação Ciência e Filosofia, então formação técnica e humanística do discente de
19 PIAGET, Jean. Para onde vai a educação? 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
20 BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP No 2, 22 de dezembro de 2017. República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 22 de dezembro de 2017.