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indefinido (Anaximandro)
dessa mudança?
e
o ser (Parmêônides), Qua! a razão compreensão intuitiva da natureza das generalizações (teore-
mas, leis) e explicações da ciência, tanto formal quanto empí-
Historiadores da filosofia sugeriram várias explicações. Tica, formando o que eu gostaria de chamar de uma idéia da
Urma delas seria a de que, tendo sido os gregos durante essa ciência. Considerando isso, minha sugestão é a de que a filoso-
fia grega nasceu da aplicação dessa mesma idéia da ciência a
época, principalmente devido ao comércio, expostos a culturas
muito diversas, as quais veneravam outros deuses, eles teriam questões de ordem especulativa, que antes eram abordadas
exclusivamente pela religião, como a questão da natureza últi-
perdido a convicção acerca de suas próprias explicações mito-
lógicas, Essa explicação é certamente inadequada, posto que ma de todas as coisas ou da adequada atitude humana diante da
não faltam exemplos de culturas que foram expostas a outras existência; e princípios como a água, o indefinido e o ser
sob essa perspectiva, tentativas especulativas de marcar o lugar
sem que isso afetasse minimamente as suas crenças e explica-
de generalizações científicas, Não é sem razão que o primeiro
ções religiosas. Uma melhor explicação é a de que os pensado-
filósofo da tradição ocidental, Tales de Mileto, foi também um
res gregos, tendo importado dessas outras culturas conhecimen-
cientista e um astrônomo competente, que uma vez previu um
tos científicos (geométricos, aritméticos, físicos e astronô
das
resposta
é;
um procedimento investigativo é conjectural (ou () acordo quanto à adequação das questões (muitas
de psex
especulativo) sempre que a possibilidade de consenso quanto questões filosóficas, suspeita-se, não passam
doproblemas resultantes de confusões verbais),
aos seus resultados não se encontra à vista. Essa é, como vere-
mos, a diferença fundamental entre filosofia e ciência: en-
quanto em ciência é fácil
obter um consenso, um
que abrange domínios de questionamento nos quais a possíbi- tar nenhuma esperança de alcançar um consenso verdadeiro,
lidade de alcançar um livre acordo consensual era inexistente.
O caráter conjectural da filosofia explica por que ela cos-
ficando limitados àsdiscussões aporéticas típicas da filosofia.
As considerações feitas até aqui sugerem que tentemos
tuma ser um empreendimento essencialmente argumentativo e esclarecer a natureza da filosofia por similaridade e contraste
aporético: onde não se pode alcançar consenso sobre os resul- com a ciência, Não obstante, é necessário notar que isso
só se
tados, o que resta é formular hipóteses e discutir as suas possí faz possível pela adoção de uma concepção suficientemente
veis consequências. O caráter conjectura! da filosofia também Tiberal de ciência, diferente das concepções reducionistas que
progresso lincar em seus domínios. O da ciência,
explica a falta de nos foram impostas pelos filósofos tradicionais
um
fato de filosofia não alcançar consenso quanto aos seus re- extrapolaram ilicita-
a principalmente pelos positivistas, que
sultados tem o efeito de
vas tornam-se nela praticamente
que comparações interteóricas decisi-
impossíveis: geralmente se
mente para todo equalquer domínio
vel conclusões tiradas da investigação
da ciência
de
atual
ciências
ou possí.
particulares
concorda que a mecânica relatívista é superior à mecânica new.
toniana, dado que o seu poder explicativo é maior - pois esses
desenvolvidas, como
afísica (Kar! Popper, por exemplo, acha-
va que a teoria da evolução não deveria ser
considerada cier
são resultados da ciência. Mas muitos não concordam que o tífica por não ser decisivamente refutável, como seria o caso
da teoria da retatividade). Sentimos que nossa idéia
da investi-
nominatismo proposto Berkeley fornece explicações mais
por
variado para
plausíveis do que o reatismo platônico-aristotélico pois essas
—
co “consensualizável”!, Sob essa maneira de ver, a característi- semelham às requeridas por Júrgen Habermas para o que ele
ca mais marcante, comum a
toda e qualquer ciência, tanto em-
pírica quanto formal, é que ela é constituida de generalizações
chama de situação ideal de fala (ideale Sprachsituation)*. Isso
significa que uma comunidade crítica de idéias deve satisfazer
consensualmente admitidas como verdadeiras pelos membros a condições asseguradoras da liberdade e racionalidade das ava-
de uma comunidade cientifica de idéias, Ora, essa concepção liações dos resultados das investigações, como:
de ciência, além de encontrar-se em perfeita consonância com
aquilo que casualmente e naturalmente tendemos a chamar de (i) a condição de fazer possível entre os membros da
ciência, parece ideal para contrastar ciência com filosofia, por comunidade de idéias uma discussão crítica orienta-
recorrer à idéia de consenso e por não hipostasiar nenhum ob- da para a verdade e livre de qualquer coerção, no sen-
tido de excluir pressões que não sejam as da própria
jeto ou método específico, Além disso, essa concepção não de-
racionalidade dos argumentos,
Ve ser confundida com as famigeradas negações socializantes
da objetividade da ciência, posto que critérios de objetividade (ii) a condição de que os membros da comunidade de
(como
própria
averificabilidade) precisam
comunidade científica.
ser
a ela adicionados pela
idéias tenham livre acesso a informações e idêntica
possibilidade de atuação,
(iii) a condição de competência e equivalência no trei
Contra essa vaga idéia de ciência como conhecimento pú-
blico consensualizável pode ser feita a seguinte objeção. Há mento dos membros da comunidade de idéias.
comunidades políticas, religiosas ete., nas quais o consenso é É verdade que condições como essas nunca são completa-
josto de cima para baixo, excluindo a possibilidade de ava-
mente satisfeitas, Todavia, só uma satisfação mínima de seme-
liação crítica das questões. Exemplos notórios disso foram as Ihantes condições é capaz de possibilitar o estabelecimento de
intromissões de ideologias políticas no que poderia ou deveria
consenso verdadeiro, o único adequado à racionalidade
contar como ciência na Alemanha nazista e na antiga União científica. De fato, os cientistas realizam ciência tendo uma co-
Soviética. Ora, parece que, segundo a caracterização acima, os
munidade crítica de idéias em mente (mesmo quando ela de
resultados dessas intromissões ideológicas devem ser admiti-
fato não existe), e, quando ouvimos a notícia de uma nova des-
dos como pertencentes à ciência, uma vez que foram consen-
coberta científica, sempre acreditamos nela sob o pressuposto
sualmente aceitos como verdadeiros por uma comunidade cien- de que a comunidade científica esteja satisfazendo a condições
tífica. Por conseguinte, a concepção consensualista de ciência
Acima sugerida não é suficientemente detalhada para permitir
como as mencionadas em medida suficiente. Com isso pode-
mos aperfeiçoar a idéia liberal de ciência como um conheci-
nos separar de modo explícito ciência de ideologia.
mento criticamente consensuali caracterizando o essen-
solução que proponho para esta dificuldade consiste em
|,
AA
cial do empreendimento científico como se segue:
aplicar aqui uma distinção entre verdadeiro e falso consenso,
baseada em umamelhor caracterização do que pode ser enten- Ciência: Uma investigação visando obter um conjunto de
dido como uma comunidade de idéias apta a produzir ciência. generalizações não-triviais, que venham à ser acei-
Quero chamar tal instituição de comunidade crítica de idéias, tas como consensualmente verdadeiras pelos m
tendendo-a como aquela que satisfaz a condições que se as- bros de uma suposta comunidade crítica de
(a chamada comunidade científica),
“PublicKnowtedge: an Essay Concerning the Soctal Dimension of Science, London, 4. Ver 1, Habermas: IWahrfeitstheorien, em H. Fahrenbach (ed), Wirklichkei
1968, cap. 2 (trad. bras. Conhecimento piiblico, Ed. Itatizis/USP, Paio, 1979),
São
nd Reflexion, Franikfint, 1973,
10 UMA INTRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA À FILOSOFIA NATUREZA E DIVISÕES DA FILOSOFIA u
Isso pode não ser ainda uma definição suficientemente de- Mas não é tanto o contraste, e sim a semelhança entre as.
talhada, mas já serve para o estabelecimento do contraste ade- caracterizações propostas, que é mais notável. Através dela, as
quado com a filosofia. Eis como podemos caracterizar a con- supostas diferenças de objeto ou mesmo de método entre filo-
jectura filosófica, por semelhança e contraste com investi; a sofia e ciência se desvanccem, Tudo o que pertence à filosofia
início
pode passar a pertencer à ciência se puder ser estabelecido um
acordo sobre pressupostos que seja suficiente para possibilitar
Uma investigação visando obter um conjunto de consenso livre acerca dos resultados,
generalizações verdadeiras, a qual é realizada por Com efeito, essa transição tem sido constatada repetida-
membros de uma suposta comunidade crítica de mente ao longo da história, No quase tudo era filosofia:
idéias (a comunidade dos filósofos), mas só na Os gregos sequer tinham uma outra palavra para a ciência.
medida em que essa comunidade não encontra Muitas questões que outrora pertenceram à filosofia mais tar-
meios de alcançar um acordo consensual sobre de passaram a pertencer à ciência. Vejamos alguns exemplos.
1a verdade dessas generalizações, Hoje os astrônomos sabem que a Terra é um planeta que gira
em torno do So! pelas leis da inércia e da gravitação. De uma
Um ponto a ser notado acerca dessa caracterização é que forma puramente especulativa, o filósofo grego Anaximan-
também o exercício da filosofia pressupõe uma comunidade dro (século VI a.C.) antecipou vagamente essa idéia ao suge-
crítica de idéias apta à discussão (mesmo que em alguns casos, rir que a Terra seria um cilindro que flutua no espaço vazio,
como os de Vico, Peirce ou Nietzsche, de maneira contrafac- sem pender nem para um lado nem para o outro, por estar a
tual). De fato, uma acusação repetidamente feita à filosofia me- meia distância dos outros astros”. A científica das
investigação
dieval é a de que ao assumir a dogmática cristã como inques- particulas subatômicas pela física contemporânea substituiu as
tionável ela falhou em realizar plenamente esse ideal. hipóteses especulativas que os filósofos atomistas Leucipo e
O contraste entre as caracterizações de ciência e filosofia Demócrito mais de dois mil anos atrás já haviam lançado acer-
propostas nos leva à conclusão de que a filosofia é o que pode ca da existência de uma
multiplicidade de entidades invisi-
Ser feito nos impenetráveis domínios em que a ciência enten- —
5.
Apud posfácio de Allan Wood ao iivro de Bertrand Russell, Meu
a
Tgcxos de segundo sendo à
grau 9. Vera the Reader”, em J. Ce
PIO-
“Epistle to
dignssão algo mis extensa dessas idóiss, ver meu livro The Understanding, London, 1974 (1690),
Teca
SSptical Muqui: Towarde a Global Aeee,
Lenham, 200:
u UMA INTRODUÇÃO CON MPORÁNEA À FILOSOFIA NATUREZA E DIVISÕES DA FILOSOFIA 15