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O cheiro de café se misturava ao do verniz da madeira que compunha a

decoração do Café Leblanc, um pequeno estabelecimento comercial no bairro


de Yogen-Jaya. A entrada era denunciada apenas pela pequena placa verde
com escritos em giz branco. Ainda assim, o adolescente de cabelos castanho
claro levemente bagunçados, sentia o cheiro do ambiente que estava atrás da
pequena porta. Ainda assim, não era a madeira do balcão, os estofados das
cadeiras, nem mesmo a leve iluminação do ambiente que vinha a sua mente,
quando o amadeirado cheiro de espresso chegava a suas narinas. Era a cor
escura, as voltas onduladas, o leve brilho nos fios que se recusavam a se
assentar e caiam a frente das lentes dos óculos dele.
Goro Akechi se xingou mentalmente. Desde que esse garoto, esse meliante,
chegou a Yogen-Jaya, tudo o que ele havia feito, tudo que ele havia sacrificado
caiu por terra.
“Eu trabalhei duro a vida inteira para chegar aonde cheguei. O que você fez,
Joker? Joker... joking...he!”
Akechi riu mentalmente da piada com o codinome que seu rival adotava no
Metaverso. Ele? Ele era o Corvo. E como no seu poema favorito, o Corvo
nunca trazia boas notícias. “Nunca mais”. Tomando coragem, ele entrou.
A atmosfera do Leblanc era agradável, era como se a temperatura fria de
outubro ficasse para fora, como se houvesse ali uma barreira que separava o
mundo exterior, frio e cinza, daquele ninho para crianças problemáticas que o
proprietário, Sojiro Sakura havia criado. Ainda assim, devido a sua localização,
Leblanc quase sempre estava vazio, salvo quando Joker e sua trupe estavam
ali.
“Não, não Joker. Akira. Aqui ele é menos do que eu.”
Akechi olhou para o balcão e lá estavam eles, os cabelos negros, pontas
erguidas como uma coroa. Ele entrou e foi até o balcão, instintivamente
tentando não chamar a atenção. Um receio em vão, já que Akira olhou para ele
quase imediatamente, e depois de um suspiro perguntou:
—O que você quer, agora? Não posso participar de nenhum dos seus jogos,
Akechi.
Akechi sorriu antes de responder:
—Sem jogos! Mesmo! Haha. Vou ter minha revanche, mas não hoje.
Akira cruzou os braços e olhou para ele, Akechi tamborilou os dedos no
balcão:
—Ah... um espresso, por favor. — quando o café chegou, ele inspirou o
cheiro e depois sorveu lentamente soltando o ar em satisfação — Sabe? O
café do Leblanc ainda é o melhor, eu realmente preciso perguntar para o Sojiro
onde ele compra os grãos. Tenho certeza de que é um blend... — ele sorveu
de novo — boliviano?
Akira balançou a cabeça em negação:
—Não faço ideia. Antes de vir para cá eu não bebia café.
Akechi riu:
—Ah sim. O garoto do interior. Aposto que apenas chá. Sua família era
tradicional? Puxa, eles realmente iriam ficar chocados de te ver tão...
ocidentalizado.
—Eu não discuto minha família.]
—Às vezes é bom, quando se tem uma para discutir. — Akechi sorveu o café
novamente — Ou duas, como é o seu caso.
—Você está levando essa rivalidade para o lado pessoal demais... achei que
estávamos juntos! — Akira chegou perto de se exaltar o que fez Akechi olhá-lo
fixamente por um tempo e então pousar a xicara de café no pires. O jovem
detetive baixou os olhos para o resto de café. A fumaça ondulava formando as
ondas do cabelo. Goro ergueu-se na direção do olhar de Akira:
—Só até derrubarmos a Sae. Depois disso, os Phantom Thieves deixam de
existir, lembra?
Akira levou a mão aos cabelos bagunçando eles um pouco mais o que fez
Akechi se deter no movimento, mas desviar os olhos rapidamente. Se Akira
percebeu, ele não disse nada, além:
—Qual o seu problema com os Phantom Thieves?
—O que vocês fazem é errado. Não é justiça, é vingança! Vocês não têm
autoridade para isso!
—Ah, certo. Devíamos esperar a justiça prender Kamoshida, e enquanto isso
só contaríamos quantas acabariam iguais a Shiho. A justiça iria atrás do pai de
Haru por forçar ela em um casamento? Ou sequer tentaria ajudar Yusuke?
Akechi baixou os olhos para o café novamente:
—O mundo não funciona desse jeito...
—Acho que agora ele funciona.
Houve um silêncio no local, mesmo a televisão ligada parecia estar distante e
não ser mais que um ruído branco. Goro olhou em volta:
—Onde está o gato falante?
Akira apoiou as mãos no balcão:
—Ann convenceu Mona a ir em um petshop. Olha, o que você veio fazer
aqui? Não foi para tomar café ou perguntar do Morgana. Se não veio brigar
novamente, o que você quer?
Goro ficou em silêncio, ele queria gritar, mas não faria isso. Ele queria agarrar
aqueles cabelos negros. Ele queria mostrar quem era o melhor, ele queria...
impressioná-lo? Akira, porém, continuou:
—Todas as conversas, todos os encontros, aquele duelo... fale logo o que
tem para me falar Goro Akechi! — Akira se debruçou sobre o balcão olhando
na direção de Akechi, se havia um jeito de se forçar a não ruborizar, era o que
ele estava fazendo naquele momento, mas ele percebeu algo. As pupilas
dilatadas de Akira, a respiração pesada, as mãos vermelhas tremulas.
—Não parece ser eu que tenho de fazer isso. O que você tem para me dizer,
Akira?
—Você está sonhando se acha que eu vou tomar a iniciativa disso! Você
começou a vir atrás de mim!
—Ah, você não é o garoto maravilha dos Phantom Thieves? O primeiro de
tudo?
—Você devia parar de falar dos Phantom Thieves!
—Me obrigue! — Goro falou fitando-o nos olhos. A respiração dele próxima
fazendo com que os óculos de Akira embaçassem. Os dedos arranhavam o
balcão tentando se aproximar. Quem agiu primeiro, nenhum deles sabe, mas
estavam juntos agora. Os lábios enfim se tocando e buscando um a língua do
outro. As mãos agarrando os tecidos dos casacos. Então, terminou.
Akira e Goro se entreolharam, as roupas desarrumadas. A respiração
ofegante. Ambos ainda se olhavam, os corpos ainda se inclinavam desejando
um o toque do outro, mas seus donos lutavam.
—Satisfeito? — Akira perguntou. Mas Goro apenas sorriu desafiante:
—Eu que pergunto. Teve o que queria?
Akira se afastou elevando a voz:
—Você veio aqui atrás disso!
—Mas você se aproximou! — Akechi falava enquanto ajeitava o blazer. Akira
limpava os óculos embaçados — Aproveite. Não vai ter mais do que isso.
Akira olhou para ele:
—Isso é um desafio?
Goro apenas sorriu para ele:
—No seu caso, sim. Para mim, parece que eu só tenho de estalar o dedo.
Akira colocou os óculos e tirou outros dois espressos, entregou um para
Akechi e bebeu do outro um gole longo e demorado, então respondeu:
—Não fui eu quem atravessou metade da cidade só para isso.
Akechi ficou em silêncio, e o ar do Leblanc pela primeira vez pareceu frio e
pesado. O ruído branco da televisão aos poucos ganhou os contornos de falas
compreensíveis, alguma notícia sobre os mental shutdowns. Aquilo atraiu a
atenção de Akira que desviou o olhar de Akechi para a repórter que mostrava
fotos da mãe de Futaba, o diretor da escola Shujin e o pai de Haru. Goro abriu
e fechou a boca diversas vezes, segurando o impulso de quebrar o gelo. Na
televisão, entrevistados acusavam os Phantom Thieves de causarem os mental
shutdowns. Akechi usou aquilo para iniciar a conversa de forma neutra:
—Eles não sabem o que estão falando. Eu... nós vamos pegar o culpado
dessa vez.
Akira terminou seu café e se apoiou no balcão próximo a Akechi, isso fez o
coração do garoto disparar, se aconteceria de novo, dessa vez ele não tomaria
a atitude. Akira teria de fazer isso. Mas não houve uma aproximação de Akira,
ao invés disso ele fez uma pergunta direta:
—Goro, por que está com a gente?
Akechi sentiu um alívio imenso, apesar da pergunta ser incisiva. Ele preferia
responder a isso a ter de estar na posição de tomar ou não a iniciativa:
—Como assim? Vocês são os Phantom Thieves! Se alguém precisa de ajuda
nesse caso são vocês.
Ele riu, mas Akira continuou encarando-o, os óculos refletiam a imagem de
Akechi espremida e encolhida, ali ele parecia uma criança e Akira parecia
muito maior do que era. Muito maior do que ele.
— Eu já falei. — Akechi começou — Dois coelhos... tiramos Sae da distorção
que ela entrou, e capturamos o culpado. Os Phantom Thieves deixam de
existir. E tudo se resolve. Você não acredita em mim.
Akira suspirou:
—Eu deveria? Você nos chantageou até aqui.
—Você percebe que não são os únicos com acesso ao metaverso? Eu tive
acesso, vocês tiveram. Não sabemos quem está distribuindo isso. Ou quem
mais ganhou. Parar o que está acontecendo é evitar que abusem disso.
Como... não me olhe assim, vocês não abusaram do poder, ajudaram pessoas,
ok. Mas a pessoa por trás dos mental shutdowns sim! Você sabe que eu tenho
razão, Akira! — Goro fez uma pausa e Akira o olhou no fundo dos olhos —
Você sabe que eu tenho razão nisso. Suas amigas perderam entes queridos
por causa dele.
Akira se abaixou próximo do balcão na direção de Akechi:
—É bom que você não esteja armando para nós, Goro.
Akechi sorriu erguendo as mãos:
—Eu nunca usaria uma tragédia familiar para proveito próprio! Esqueceu? —
Akira ainda sério respondeu:
—Só não quero que eu e meus amigos sejamos feitos de peões nesse jogo.
Akechi sorriu erguendo uma sobrancelha:
—Não somos peões, Akira. Eu e você somos rainhas, as peças mais
poderosas do tabuleiro. A rainha negra e a rainha branca. — Ele falou
apontado de Akira para si mesmo. Então ele riu e Akira perguntou:
—O que é engraçado?
—Você me chamou de Goro, duas vezes.
—Você me chamou de Akira, primeiro.
Os dois se encararam por um momento, se perdendo em detalhes no outro.
Para Akechi, eram os óculos que o refletia pequeno diante do líder dos Phatom
Thieves. Para Akira era o sorriso do garoto a sua frente e seu comportamento
seguro de si. O cheiro do café amadeirado do Leblanc voltou, o ar frio passou
para o calor aconchegante do ambiente familiar.
“Como seria fazer parte dessa família?” — ele se arriscou a pensar. Mas seus
pensamentos foram cortados por uma voz familiar, quase um miado:
—Oh, é Akechi e Akira! Talvez devêssemos ficar um pouco mais lá fora, Lady
Ann.
Na entrada do Leblanc estavam Ann, usando uma saia escura e meia-calça
junto com um casaco leve e na bolsa que ela trazia a tiracolo, um gato preto,
com algumas manchas brancas e uma gravata. Ambos olhavam para os dois
garotos debruçados próximos um ao outro.
—O que vocês dois estão fazendo? — Ann perguntou com um sorriso maroto
no rosto. Rapidamente os dois se separaram, Akira balbuciou alguma coisa
sobre os Phantom Thieves e apontou para a televisão. Akechi apenas sorriu e
disse:
—Apenas discutindo sobre nossa rivalidade. Não é?
Akira sorriu e concordou, mas Ann e Morgana olharam para os dois com
olhos enfastiados. A garota acabou falando:
—Sério? Ainda com essa coisa de melhores rivais?
Goro e Akira disfarçaram um leve rubor, o jovem detetive tirou alguns yens do
bolso e pagou pelos cafés. Depois fingiu limpar garganta e tentou parecer
polido e formal:
—Bom, Kurusu, obrigado pelo café. Ótimo como sempre. Ah, acho que
discutimos tudo que precisávamos sobre o plano. Então... nos vemos...
—Nos vemos por aí. — Akira completou rapidamente.
Goro fez uma rápida reverencia a eles e se despediu de Morgana e Ann
saindo para o ar frio do ambiente externo. Ann se sentou ao balcão e pediu um
espresso. Morgana saltou da bolsa e se colocou ao lado da garota. A jovem
modelo apoiou o cotovelo no balcão e o queixo sobre a mão e afinando os
olhos e um sorriso perguntou:
—Quem tomou a iniciativa no beijo? — A pergunta fez Akira derrubar o café e
quase queimar a mão. Quando olhou para eles, ambos estavam sorrindo.
As ruas estavam desertas como sempre eram nesse horário em Yogen-Jaya.
Ele olhou uma última vez para o Leblanc e sentiu o cheiro do café amadeirado.
À medida que se distanciava, o odor ficava mais longe na memória, assim
como a imagem das mechas negras que dançavam como a fumaça do
espresso. Goro se permitiu tocar de leve os lábios e sorrir.

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