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Ficha Técnica

Copyright © 2020 by Valentina K. Michael


SUBLIME AMOR – Dinastia Capello
Edição 01 - 2020
Capa: E. S Designer
Revisão: Clara Taveira
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização
prévia por escrito da autora, sejam quais forem os meios empregados.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança dos fatos aqui narrados com pessoas,
empresas e acontecimentos da vida real, é mera coincidência. Em alguns casos, uma
notável coincidência.
Sumário
PRÓLOGO
01
02
03
04
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06
07
08
08
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EPÍLOGO
AMOR, SUBLIME AMOR

Se um dia tiver de escolher entre o mundo e o amor, lembre-se: se


escolher o mundo, ficará sem o amor, mas se escolher o amor, com ele você
conquistará o mundo.

Albert Einstein
PRÓLOGO

MIGUEL

Seis meses antes

— A alíquota destinada à Capello já está especificada nos gráficos,


senhores. — Andrey estava à frente explicando o novo contrato aos
fornecedores. Observei-o dobrar com calma as mangas da camisa e abaixei o
olhar.

— Por mim, parece coerente — Caio Alvorada falou.

— Obrigado, Caio. Fernando, mostre aos nossos clientes e fornecedores


a nossa produção do ano passado — Andrey pediu, e Fernando se levantou.
Estava sem terno, assim como Andrey. Ele passou por mim e se curvou para
colocar um pen-drive no projetor. Fitei seu traseiro e desviei o olhar no
mesmo instante, e, para minha surpresa, Caio Alvorada e Erica, minha
assistente, me observavam.
Instantaneamente, a reunião foi interrompida por batidas na porta, que
se abriu, e Stela espiou para dentro. Todos olhavam naquela direção.

— Senhores, essa é a nossa irmã. — Fernando apontou para a porta. —


Ela é uma das acionistas, mas Miguel, seu marido, a representa.
— Olá. Desculpe interromper. — Ela soou simpática. — Só preciso
falar com meu marido.

Pedi licença, levantei e saí da sala.


Stela só tinha passado aqui para me ver e perguntar se eu iria almoçar
em casa. Eu queria ficar bravo com ela, mas às vezes entendia que tentava
preencher o vazio quando se sentia sozinha a fim de não surtar.

— Você ainda permite que sua esposa faça o que quiser? — Erica
indagou enquanto me ajudava a arrumar a papelada da reunião já encerrada.
Todos saíram, e sempre sobrava para mim a tarefa.

— Sobre o que você fala? — perguntei, concentrado em desligar o


projetor.

— Oras. Ela precisa saber que não pode te interromper durante o horário
de serviço.
Olhei para ela, e havia malícia em seus olhos. Erica segurou minha
gravata e deu um puxão, capturando minha boca em um beijo rápido. Eu a
empurrei em alerta.

— Ficou louca? Aqui dentro, não!

— Você ainda teme algo? — Rodeou meu pescoço com os dedos


longos. — Seu casamento está na corda bamba...
E isso era verdade. Fazia mais de um ano que Stela e eu vivíamos como
amigos. Uma ou duas vezes no mês acabávamos transando. No entanto, a
atração que Erica despertava em mim me deixava quente, explosivo e viril,
como nunca tinha me sentido com minha esposa. Era animador experimentar
esse perigo.

— Eu já te disse que não vamos falar sobre isso aqui, na empresa.


Recostou o quadril na mesa e cruzou os braços. Tinha um sorriso cínico
no rosto. Era difícil controlar Erica, uma vez que estava firme em seu
propósito de me tirar da Capello e de enfim podermos ter liberdade para viver
nosso caso. Era minha assistente há quase três anos, parecia uma modelo.
Alta, loira, sempre alinhada e de saltos. Os cabelos, impecáveis. Suspirei e
abaixei os ombros, me flagrando tenso, quase farto.

— Eu preciso estar com a Stela — declarei. Eu tinha verdadeiramente


um carinho por ela: antes de ser minha mulher, foi minha amiga.

— Eu sei que é uma questão de comodidade e necessidade estar com


ela. — Segurou meus ombros. — Mas você anda abatido, faz tudo nessa
empresa, e não te dão valor. Que sacanagem foi aquela que o velho Capello
fez ao tirar a vice-presidência de você e entregar ao Fernando?
— Fernando é filho dele, Erica! — Tentei afastá-la de mim. Erica
segurou meu terno.

— Esse cara não faz metade do que você faz pela Capello. E agora sua
esposa suga suas energias. É o cúmulo um empresário ter que levar e buscar
crianças na escola.

— São meus filhos... — retruquei.


— E dela também. Ela dorme até as dez enquanto você precisa correr e
trabalhar o dia todo.

Descansei as mãos na cintura e semicerrei os olhos, pensando naquilo.


Nunca tinha olhado por esse ângulo.
— Longe de mim querer plantar intrigas, mas não acha que está na hora
de você crescer? Você pode ser poderoso e continuar sendo pai.

Assenti. Talvez eu precisasse de coragem.


Olhei no relógio de pulso.

— Vamos logo à tal reunião que você quer me levar.

— É isso aí! — Bateu palmas, comemorando minha atitude.

Apesar de farto com o casamento e com a Capello, eu não queria fazer


Stela sofrer. Eu tinha sorte em tê-la. Era um zé-ninguém quando a conheci e a
ajudei a esquecer e superar aquele turco miserável. Ainda por cima, caí nas
graças de João Capello.

***

O lugar o qual Erica me levou era uma casa que parecia ser de alguém
importante. Observei um segurança falar ao interfone e o portão ser aberto
logo após o homem fazer sinal para o carro avançar. A casa era moderna,
havia vidro por todo lado, deixando-a com a uma aparência poderosa no meio
de um jardim bem cuidado.

Uma mulher de uniforme branco nos recebeu e pediu para esperarmos


em uma sala enquanto comunicaria ao patrão a nossa presença. Havia um
piano branco, e eu o estudei, me perguntando que tipo de empresário era
aquele.
— Ele faz o que da vida? — perguntei a Erica, enquanto passava os
olhos pelo ambiente.
— É um investidor.

— Mora sozinho?

— Sim. Solteiríssimo. Vai gostar dele. — Piscou para mim.

Assenti. Ele tinha bom gosto para móveis e quadros. A casa não era fria
e vazia. Parecia ter história, havia objetos bem pensados, que certamente
tinham feito parte de algum momento da vida do dono, não pareciam
escolhidos aleatoriamente.

— Enfim apareceu. — Ouvi a voz e fiquei de pé quando um homem


despontou vindo de fora da casa. Moreno, alto, em forma. Ele vestia apenas
um short de academia e retirava luvas de boxe das mãos. O peito musculoso
brilhava de suor. Ele jogou as luvas por ali e sorriu para mim como um
completo filho da puta. Eu o conhecia. Conhecia muito bem.
— Olá, Miguel, há quanto tempo? — Romulo deu um de seus sorrisos
dissimulados, me fazendo lembrar como foi canalha comigo no passado.
Tinha sido a porra do meu romance perfeito, mas fugiu ao dar o golpe em um
cara rico. Todavia ninguém sabia disso. Nem Erica, nem os Capellos. Apenas
Stela. Ela sabia da minha bissexualidade, e acho que isso a deixava
confortável, achando que eu jamais a trocaria por outra mulher e muito
menos por um homem, já que eu não queria expor esse meu lado.

Eu estava mesmo de coração ferido, olhando para o desgraçado. Ele


tinha me mostrado o melhor dos prazeres carnais, mas se importava apenas
com dinheiro.

— Você está demitida. — Furioso, apontei para Erica e dei passos em


direção à porta, mas ela me segurou.
— Miguel, por favor...
— Eu considero isso uma traição, Erica! — berrei, deixando evidente a
raiva na voz. — Esse cara é um pilantra!

— Ele mudou. Só ouça o que Romulo tem a dizer.


— O que ele te contou? — Eu queria saber até onde Erica sabia sobre
meu outro lado sexual.

— Pouca coisa. O que importa é o presente — ela persistiu, e ele,


calado, me analisava de modo cínico. — Eu vou deixar vocês a sós. — Pegou
a bolsa e voltou a ficar pertinho de mim. — Ouça o que ele tem a dizer, eu
confio que você fará a melhor escolha. — Deu um beijo em meus lábios,
beijou a mão e soprou para Romulo. Só quando ela saiu, me voltei para ele.

Observei-o pedir um uísque, e a funcionária se apressou a nos servir.


— Está tendo um caso com ela?

— Não é da sua conta. O que quer?

— Você é um empresário de sucesso, Miguel — Romulo falou enquanto


a funcionária me entregava um copo de uísque. — Desculpe, tomei a
liberdade de investigar sua vida. — Sentou-se diante de mim. Ele tinha um
porte atlético, melhor do que eu me lembrava, e sua pose continuava
aristocrática.
— E o que viu sobre mim? — indaguei.

— Um homem promissor. — Ele se recostou, bem à vontade —


Estudou em boa faculdade, é conhecido no mercado e está no comando de
boa parte das ações de uma das maiores empresas do mercado alimentício.

— Se pesquisou minha vida, saberia que não tenho ações. — Virei todo
o conteúdo do copo na boca, evitando olhá-lo.
— Sei. São da sua esposa.

— Você não tem a porra da vergonha na cara, não é? — Fiquei de pé.

— Eu estou aqui de volta. — Ficou de pé também. — E me conforta


saber que você não procurou consolo. — Ele se referia a eu não procurar
outros homens. — Não traiu sua esposa, nem a mim.

— O que de fato quer me propor? Eu já digo logo de cara que não vou
dar um golpe em meu sogro.

— E quem disse em dar golpe? Aqui está. — Ele me entregou uma


pasta. — Estou abrindo minha própria empresa e quero uma parceria de peso.
Comigo, você não será apenas representante de ações, será sócio.
— Ideia tentadora, mas não tem como dar certo. Eu não tenho capital
suficiente para investir em uma sociedade.

— Claro que tem. — Ele estava bem perto de mim, era mais alto que eu.
Engoli em seco ao sentir seu hálito — As ações de sua esposa.

— Não. Nem pensar. — Tentei desviar, mas Romulo me segurou.


— Miguel. Calma, rapaz. — Tocou gentilmente no meu colarinho e
desceu os dedos pela lapela do meu terno. — Você vai fazê-la assinar uma
procuração te dando total controle, e então vai dar essas ações como garantia
ao banco, para que possa te emprestar o montante. Sua esposa nem precisa
saber. Depois, a nossa empresa paga o empréstimo e ninguém nunca saberá.

— Enlouqueceu? Os meus cunhados... eles me matariam.

— E você não pode revidar? — A mão de Romulo segurou minha nuca.


— Você é tão forte quanto eles. Você precisa se impor, mostrar que pode
fazer o que quiser. Eu estarei ao seu lado. Ou você é tão fraco e desiste na
primeira oportunidade por puro medo de outros homens?
— Não tenho medo. — Encarei, sem pestanejar, seus olhos.

— Mas você tem que provar. Não mostrar a mim, mostrar a si mesmo
que não tem medo.
Voltei a sentar e olhei com atenção a pasta que Romulo havia me
mostrado. Ele se sentou ao meu lado.

— Você vai ter que pedir demissão na Capello, mas só depois que nossa
empresa estiver de vento em popa.

Comecei a ler. Era muito tentador o que me apresentava. Seria uma


empresa de cosméticos, e tinha toda uma linha planejada e um pré-
lançamento já com destaque no mercado. Era bom demais...
— Não. Está decidido. Não quero negócios com você.

Fiquei de pé, mas antes de dar algum passo, Romulo me empurrou


contra a parede e colocou um joelho entre minhas pernas, sua boca a
milímetros da minha.

— Ei, cara. Me larga! — Bati as mãos em seu peito, e isso o fez sorrir
de modo pervertido. Então, para meu espanto, ele avançou e beijou minha
boca. Fiquei estatelado contra a parede enquanto Romulo me beijava. E, de
repente, eu senti de volta todo o fogo perigoso que me atingiu no passado,
uma explosão de sensações que, de uma forma ou outra, tinham me dado
saudade.
Revoltado com essa incrível capacidade de me tocar internamente, o
empurrei e, com brutalidade, acertei seu rosto com um soco. O ódio do
passado e a raiva do presente me davam combustível. Romulo caiu contra o
sofá e em seguida no chão, e eu fui por cima, montei em seu quadril e bati
mais, muito furioso; ele só se defendia... e ria. Parei ofegante, olhando para o
nariz sangrando.

— É isso aí, cacete. — Puxou meu terno para mais perto. — É disso que
estou falando, desse Miguel enraivecido que não leva desaforo para casa. Se
una a mim, porra, vou te fazer um homem de respeito.
— Você... é louco.

— Sou. E vou te fazer igual. — Puxou minha gravata e beijou minha


boca de novo.

Puta que pariu. Minha adrenalina pulsava com violência, junto com o
tesão.
01

STELA

Dias atuais

Luxúria a engolfava enquanto mergulhava naquele prazer arrebatador;


as unhas passavam pela pele quente e suada, sentindo os músculos duros e
saltados do homem que lhe possuía com paixão.
Sentiu uma mão adentrar seu cabelo e a outra segurar firme em sua
cintura, no momento em que a explosão do orgasmo vinha. Ele a manteve
segura, chupou sua pele, acima dos seios, e beijou sua boca de forma
erótica; aprofundou-se, sua espessura a torturando.

Naquele momento, enquanto dançavam em uma mesma sintonia de


corpos colados, ela olhou para cima e viu o espelho no teto do quarto.

O homem era quase sublime, se não fosse tão infernal. Era quente como
o próprio pecado. Nas costas dele, uma bela tatuagem de flores
entrelaçadas.

***
Mais uma vez acordava com enxaqueca. Teria se tornado crônica?
Geralmente, aparecia pela manhã.

Ainda de olhos fechados, fiz uma massagem na têmpora. Respirei


fundo, sentindo o perfume de um novo dia misturado com o almíscar da
colônia de Miguel, que já saíra para trabalhar. Abri os olhos, passei a visão
pelo quarto e ouvi vozes vindo lá de baixo.

Merda!
Desabei novamente contra os travesseiros. Miguel não tinha levado as
crianças ao colégio? Afastei o cobertor, alcancei o robe na poltrona e o vesti
no caminho para o banheiro. Em frente ao espelho, prendi os cabelos e sorri
ao ver uma marca avermelhada perto do meu seio. Miguel deixou uma marca
em mim. Safado! Ele me paga.

Não é que tivéssemos uma vida agitada na cama, tampouco o sexo era
escasso. Para um casamento de treze anos, eu achava normal transar com meu
marido uma ou duas vezes por mês. Acariciei a mancha avermelhada antes de
cobri-la com base.

Quando, mesmo, ele tinha feito essa marquinha?


Miguel não era afeito de grandes malabarismos, como meus irmãos
aparentemente eram, dando espetáculos na cama para minhas cunhadas, que
não cansavam de elogiá-los, mesmo eu avisando que não queria ouvir. Na
verdade, às vezes, eu tinha de insistir para fazermos sexo. Nos últimos meses,
ele estava tão distante...

Sorri mais uma vez. Eu estava satisfeita com tudo.


Desci as escadas e encontrei, na cozinha, Raquel sentada comendo
cereal enquanto Nathan tentava preparar algo no fogão.

— Nathan! — berrei e corri até ele, impedindo de pegar um copo de


alumínio que fervia. — O que pensa que está fazendo? — Desliguei o fogo e
fui à procura de uma luva de pano. — Onde está a Maria?
— A Maria foi fazer compras, e a Raquel não quis esquentar leite para
mim — ele explicou, carrancudo.

Graças a Deus ele não enfiou um copo de alumínio no micro-ondas.

— Por que vocês ainda estão aqui? — gritei, olhando para minha filha
mais velha. Só então notei que ela estava com fones de ouvido. Arranquei um
dos fones do seu ouvido.
— Mãe! — protestou.

— São oito da manhã, por que ainda estão aqui?

— O papai não quis levar a gente. Ele saiu antes das seis e pediu para o
Nathan te acordar. Ele tentou, mas você não abria os olhos.
De olhos fechados, segurei minha cabeça, me controlando para não
surtar. Miguel só tinha uma tarefa com as crianças, levá-los ao colégio, mas
ainda assim não a tinha cumprido. E ultimamente estava criando uma rebeldia
inexplicável contra mim. Resisti ao impulso de pegar o telefone e ligar para
ele, só geraria confusão e atrasaria mais ainda o que precisava ser feito com
as crianças.

— Os gritos estão indo lá no jardim. — Meu pai entrou na cozinha.

— Bom dia, pai. Desculpe o escândalo. — Às vezes, eu esquecia que


morava com ele, que, além de idoso, odiava bagunça e barulho. Ele passou
por mim, beijou a cabeça de Raquel, que nem se dignou a levantar os olhos
do celular, e, em seguida, assanhou os cabelos castanhos de Nathan.

— Vô, dá um dinheiro aí para merendar no colégio? — Nathan pediu.

— Está faltando dinheiro da merenda, meu pequeno?

— Para de pedir dinheiro às pessoas e vai arrumar sua mochila. Volte


em dez segundos para tomar o leite. — Empurrei-o, e ele saiu correndo da
cozinha. Virei-me para meu pai, que me estudava atentamente. — Ele está
mentindo, Miguel paga mensamente a cantina da escola, ele pode comer o
que quiser lá. Nathan quer juntar dinheiro para comprar o Xbox que não vai
mais ganhar por ter tomado duas advertências na escola.

— Esperto. Parece um bom investidor. Poderá ficar à frente da Capello


quando crescer.
— Só por cima do cadáver do tio dele. Andrey jamais largará a direção.

Meu pai riu e se calou depois de se servir de café. Eu corria de um lado


para o outro preparando o leite de Nathan.

— Parece abatida — ele observou.


Coei o leite, mexi o achocolatado e o deixei no balcão.

— Acordei novamente com enxaqueca, porém tenho a sensação de estar


satisfeita por dentro, sabe? Como... aquela sensação de ter dormido muito
bem e ter tido sonhos maravilhosos, mesmo que eu não lembre de nenhum.

— Ainda está indo na doutora Eliana?


Olhei para Raquel, parecia indiferente à nossa conversa. Até sorria para
o celular.

— Sim. Quer dizer, moderadamente. Ela me propôs terapia de


regressão, mas não sei se tenho coragem.
— Por que, querida?

— Pai... Jamais estarei pronta para encarar meus demônios do passado.

— Estou pronto! — Nathan entrou correndo, já com a mochila nas


costas. Entreguei a ele o copo de leite e empurrei o pote de biscoitos dos que
ele gostava.

— Coma rápido enquanto me troco. Raquel! — berrei, acenando. Ela


tirou o fone.

— Diga, mãe.
— Sem revirar os olhos, mocinha. Vá buscar a mochila, tira essa coisa
da orelha. — Virei-me e corri escada acima.

Em cinco minutos, os dois já estavam no banco traseiro do carro, presos


ao cinto.

— Toma, prenda esse cabelo, não quero que te chamem de Mortícia. —


Entreguei uma presilha para Raquel.
— Meus colegas acham que pareço a Violeta de Os Incríveis. — Ela
sorriu, orgulhosa, e começou a prender os cabelos grandes e lisos, e bem
pretos. — Ah! Eu tenho prova no quarto horário — Raquel informou com a
cara mais deslavada.

— Ah, meu Deus! Obrigada, filha, por deixar sua mãe mais aflita no
trânsito. Que Jesus nos ajude.

Consegui chegar a tempo. Eu era uma boa motorista, medrosa, porém


boa no volante. Especificamente dessa vez, eu tive de correr. Deixei-os na
escola e passei em um parque que sempre visitava quando precisava pensar.
Sentei-me sozinha em um banco e sorri ao ver aquele lugar específico,
que para mim representava muito. O medo estava me abraçando aos poucos,
pressentimentos ruins me envolviam, me dizendo que tudo poderia voltar, e
no momento, não sabia se podia contar com meu maior amigo e marido. Por
que ele tinha se distanciado?

“Qual a comida preferida de vocês na Turquia?”, perguntei a Ulrich,


levando uma colherzinha de sorvete na boca. Bem aqui, nesse banco, quando
éramos jovens.

“Dondurma.” Ergueu o sorvete, mostrando que falava dele. Era


engraçado ouvi-lo falar turco misturado ao português.

“Sorvete? Por isso me convidou?”

“Exato. Pão e iorty não podem faltar em casa de uma turco”,


complementou. Ele não falava iogurte, era iorty.

Ódio me consumiu ao ter essa lembrança. Ele não merecia perdão. Por
tudo que fez comigo... Olhei uma última vez para o nosso lugar, antes de
pegar a bolsa e sair. Eu estava aflita, precisava conversar com alguém, e por
isso escolhi Benjamin.

***

Na casa de Benjamin, falávamos do casamento de Thadeo, que


aconteceria na próxima semana, na própria vinícola. Toda a história do meu
irmão tinha sido quase um conto de fadas. Ele merecia, depois de tudo que
passou, a superação dos traumas e a luta para reerguer o sonho da nossa mãe.

— Nunca achei que era sério esse relacionamento dele com Gema —
Diana comentou, sentando-se ao lado de Benjamin. — Ela parece ser uma
ótima pessoa.
— Sim, ela é — respondi. — Meu pai conhece a família dela, e parece
que, entre eles, Gema é a única que tem os pés no chão.

— Desculpa falar do irmão de vocês, mas precisa ser muito poderosa


para domar Thadeo — Diana alfinetou. — E essa mulher está de parabéns,
está levando aquele ogro para o altar.

— Ah, sim. Aquele lá é bruto que dói. Gema está colocando freio nele
— Benjamin concordou, e eu apenas ri.
Sempre ficava leve e de bom humor quando visitava meu irmão. Como
tínhamos uma ligação maior, era para lá que eu ia quando precisava me
acalmar.

Passei boas horas na companhia dele e Diana, ouvindo-o falar de


quadros, depois fofocas de nossos irmãos e bobeiras da vida.

Cheguei em casa e fui direto para a cozinha. Decidi passar na vinícola


só à tarde ou no dia seguinte bem cedo, para ajudar na arrumação da festa. Eu
não tinha muita coisa para fazer durante o dia, a não ser cuidar da casa e das
crianças, e agora me sentia eufórica para ajudar no planejamento do
casamento de Thadeo. Sentia-me necessária.

— Oi, Maria, o que está preparando para o almoço?

— Oi, Stela. Esperava você chegar para dizer. Seu pai está trancado no
escritório, falando ao telefone, e eu não quis interromper.
— Quais as opções? — Lavei as mãos e me aproximei do balcão.

— Carne de panela, almôndegas ou lombo assado.

— Vou perguntar ao Miguel se ele vem almoçar aqui. Ele odeia


almôndegas.

Peguei o celular na bolsa e toquei no nome dele. Demorou muito para


atender, e quando enfim atendeu, escutei uma voz feminina.

— Pronto — falou.

— Ah... oi? — Ia perguntar quem estava falando no celular do meu


marido, mas apenas sussurrei: — Quero falar com Miguel.

— Miguel não pode atender agora, quer deixar recado?

— Quem está falando?


— Erica, assistente dele.

— Erica, aqui é Stela. Você deve ter visto na tela do celular que era eu.

— Oh, Stela, me desculpe. Estava tão avoada, que nem vi. Vou passar
para ele agora.

— Certo.

— Oi, Stela — Miguel atendeu rapidamente.

Não me chamou de amor.


— Por que sua assistente atende o seu celular? — Eu não queria ser esse
tipo de mulher, que pega no pé, mas a pergunta era inevitável.

— Stela, pelo amor de Deus, vai implicar agora? Estou no meio de uma
reunião. — Pude prever que ele revirava os olhos, Miguel sabia que eu
odiava esse gesto.
— Aposto que Fernando também está, mas jamais deixaria uma
assistente atender o celular dele quando Maria Clara liga.

— Quer saber? Você tem razão. — Notei um tom rude. — Não


acontecerá novamente. Quer dizer por que me ligou?
— Liguei para saber se virá almoçar em casa.

— Sim.

— Por que não levou as crianças ao colégio?

— Porque talvez você também deva ter essa função. Um beijo —


desligou.

Soprei o ar com força e abanei a cabeça, afugentando pensamentos


conspiratórios. Eu não ia encucar com besteiras. Fui para a cozinha.

— Maria, vamos fazer carne de panela — anunciei. — Miguel vem


almoçar em casa, e ele adora.
Está tudo bem, Stela. Seu casamento não está na corda bamba. Tentei
me acalmar, inutilmente. Dentro de mim, uma pergunta pulsava:

O que estava de fato acontecendo com meu marido?


02
ULRICH

Anos antes

Sabe aquela velha história sobre opostos que se atraem? Eu poderia


começar usando isso para explicar tudo sobre Stela e eu. Mas seria tão fácil e
banal dizer apenas que a escuridão se atraiu pelo brilho... Por isso optei pelo
difícil, indo lá no início. Um começo que eu gostaria de voltar e viver
novamente.

Nós nos conhecemos no colégio. Eu tinha dezesseis, e ela, quatorze


anos. Eu era um desertor que tinha acabado de ser transferido novamente para
outra escola, por causa do mal comportamento na anterior, além de ter
acabado de chegar ao país.

Saí da Turquia deixando todos os dogmas que aprendi desde criança


para viver em um país onde não me compreendiam. O idioma era difícil, eu
entendia precariamente, e ainda por cima tinha de fazer companhia ao meu
avô, que estava em uma cadeira de rodas.
Eu era uma sombra escura em volta de mim mesmo, sem conversar com
ninguém, preso em meu próprio mundo de rancor contra tudo e todos.
Principalmente contra meu pai, que havia me humilhado diante de todos. As
chibatadas... o ardor de cada arremesso do chicote não era tão doloroso como
os olhares.

Eu estava em uma turma de alunos enormes, era a turma C. A pior da


escola. Só tinha encrenqueiros, repetentes e aqueles alunos que precisavam
sempre de corretivo. Thadeo Capello era o cara carrancudo no fundo da sala
que não queria graça com ninguém. E eu, ao seu lado, no fundo, igualmente
carrancudo, também não queria graça com ninguém. Éramos parecidos,
afinal.

Então eu a vi: Stela Capello. Era a irmã de Thadeo e sempre aparecia


durante o intervalo, junto com Benjamin, o gêmeo dela.

Ela era simpática, amigável e reservada; tinha um tom tímido


encantador.
Eu só queria que todos se fodessem.

E ela era aplicada e sonhava em ser uma jornalista de sucesso. “Âncora


do jornal da noite”, dizia sempre com brilho nos olhos.

Eu era um cara alto e magro demais que metia medo. Considerado


estranho entre muitos. Corriam rumores na escola de que eu poderia ser
terrorista. Era dois anos mais velho que Stela. Meus cabelos grandes e
desleixados, junto com as roupas folgadas demais, davam um ar mais duro e
valentão à minha aparência.
Ela era o meu oposto.

Sempre enturmada, sorridente e bem vestida. Stela, como o próprio


nome já dizia, era uma estrela, era como uma luz que raiava toda manhã no
meu mundo obscuro. Lá do fundo, eu a olhava discretamente por debaixo da
aba do boné surrado quando entrava na sala para conversar com o irmão.
Thadeo nunca sorria, mas ela conseguia tirar sorrisos dele. Ela tinha mesmo
esse poder.

Eu vinha de uma família extremista religiosa e não tão afortunada, e ela


vinha de uma família importante.
Parecia uma boneca. Seus cabelos soltos tinham uma cor bonita. Eram
dourados ao sol, mas eu sabia que o tom mais comum era um pouco mais
escuro. Um loiro único, um loiro só de Stela, e às vezes desejava poder tocá-
los, como se fosse um manto sagrado que os devotos clamam poder encostar.

A cada dia que passava, eu descobria mais sobre Stela. Calado, no meu
canto, apenas investigando com o olhar, ou no intervalo, observando-a com
as amigas. Eu via coisas que as outras pessoas não viam.

Notei — para minha completa perplexidade — que ela mantinha uma


aparência falsa. Ela se mostrava sorridente, carismática, amigável, mas havia
algo por trás da bela garota que me fazia querer cuidar dela. Algo doloroso
em seu interior que me atraía, pois o que eu mais sabia lidar era com a dor.
Eu a via às vezes sozinha, durante o intervalo, com um olhar baixo e tenso.
Stela escondia algo apenas para si, que a fazia torcer os dedos, quase em
aflição, quando ninguém estava olhando.

Aprendi a observar desde muito cedo por causa da minha vida nem um
pouco tediosa — fui para lugares em que tinha de dormir com um olho aberto
e o outro fechado, para a própria prevenção —, e não foi apenas a beleza e
carisma de Stela que me chamaram a atenção. Sua alma clamava por ajuda, e
incrivelmente eu conseguia notar isso.
***

O dia que enfim nos falamos foi praticamente no fim do ano, eu já


conversava com Thadeo e fui fazer um trabalho na casa dele. Fiquei
impressionado com a mansão luxuosa em que os irmãos Capello moravam.
Por isso eram tão queridos e venerados na escola. Eles eram milionários. Lá
conheci os outros irmãos, os mais velhos, Fernando e Andrey, que acharam
um espetáculo conhecer alguém de outro país. Eu fui o entretenimento,
falando frases em minha língua: mesmo que eles não entendessem nada,
caíam na gargalhada.

— Ei, Turco, fala na sua língua: Fernando é um rola murcha — Thadeo


me cutucou.
— Como é? Rola...? — questionei sem entender. Riram mais ainda. —
O que ser um rola murche?

— Bicho, esse cara é muito comédia. — Andrey passou o braço em meu


ombro e caminhamos para a área da piscina. — Tem que vir mais vezes aqui,
cara. Vou te ensinar a falar umas frases para usar na escola. Tem que começar
a pegar mulher, porra.

Não entendi nem metade do que ele tinha dito.


— Ele é mudo lá na escola — Thadeo passou na nossa frente,
arrancando a camisa e pulando de bermuda na piscina.

— O que Thadeo disse? — indaguei.

— Que você não conversa na escola. Entendeu? — Andrey se colocou


na minha frente gesticulando. — Conversar, bater papo, falar.
— Aah! Entendo. Ele também non fale nada em escola.

— Não se preocupe. Esse cara é meio pirado, ele só confia na gente


aqui.

Mas, naquele dia, Stela também tinha levado colegas para fazer um
trabalho. Eles estavam reunidos na sala quando entrei seguindo Thadeo.

— Só vou na cozinha pegar uma coisinha para a gente comer. —


Thadeo seguiu para outro cômodo, e eu fiquei lá, olhando sem piscar para
ela. Stela me notou pela primeira vez e sorriu, sem graça.
— Você não é o terrorista lá da escola, amigo do Thadeo? — Benjamin
questionou, e os colegas riram.

— Ben! — Stela o cutucou. — Não ligue para ele. — Virou-se para


mim. — Sou Stela. Essa é a Tina. — Apontou para uma menina que sorriu e
deu uma piscadinha. — E essa é a Vivi e meu irmão. — Apontou para
Benjamin. — E Miguel. — Olhei para o carinha magricelo com aparelho nos
dentes.

— E ae, estranho? — o tal Miguel me cumprimentou.

— Sou Ulrich — falei e continuei ali, no meu canto.

— Você está dois anos na nossa frente — Benjamin me estudou com o


olhar. — Pode nos ajudar? O que sabe sobre geopolítica?

— Benjamin, somos os melhores da turma, não precisamos de ajuda.


Acha mesmo que esse cara sabe alguma coisa sobre geopolítica? — Miguel
retrucou.
Eu entendi perfeitamente seu descaso.
Uma coisa que ninguém sabia sobre mim: eu gostava muito de ler e
tinha curiosidade sobre muitos assuntos. E estava aprendendo bem português
lendo muito.

— A estado começa a criar estratégias para administrar sua território —


comecei a falar. — Juntando política e geografia em todo seu abrangência, na
relação de... ah... poder internacional entre estados. São assuntos que
envolvem acordos internacionais e estratégias de cada nação —
corajosamente, eu disse mirando compenetrado os olhos dele.

Eles se entreolharam e fizeram um silêncio de trinta segundos enquanto


Miguel conferia no livro. Depois ele apenas assentiu.

— Quer ficar para nos ajudar? — Vivi me perguntou, e antes da minha


resposta, Thadeo passou e me puxou.

— O turco é meu, se virem.

A partir daquele dia, Stela me olhava de outra forma.

Dava um leve sorriso quando entrava na sala para conversar com


Thadeo, e nossos olhares acabavam se chocando. Eu, o louco do fundão, que
tinha bolsa de estudo e era ignorado pela sala toda. Mesmo assim, ela sempre
me cumprimentava, e até ensaiava um aceno de mão às vezes, o que eu
considerava mais íntimo ainda.

Entretanto, as coisas não saíram como eu queria. Em uma sexta-feira,


após o treino dos garotos na quadra, eu voltava do vestiário quando vi Stela
passar rápido pelo corredor, quase correndo. Ela estava pálida, ofegante, e eu
diria que em um altíssimo nível de desespero.
Eu corri até ela e a interceptei, sem nem pensar se eu tinha ou não
intimidade para fazer isso.

— Stela. — Segurei em seu braço. Quando ela se virou e seus olhos


castanhos pousaram em meu rosto e em seguida na minha mão que a
segurava, pareceu levar um choque e se afastou bruscamente. — Está tudo
bem? — indaguei.
— Não te interessa — deu uma resposta grossa e se apressou, voltando a
correr. Seus lábios estavam esbranquiçados, as pupilas, dilatadas. Eu não me
dei por vencido e corri atrás dela, a segurando de novo, e dessa segunda vez
três coisas aconteceram rápido demais: ela gritou para eu largá-la, a
supervisora veio rápido ao nosso encontro e eu vi algo no braço de Stela que
me fez fraquejar. Algo que eu nunca tinha visto.

— Stela...! — a supervisora a abraçou a e levou rápido para uma sala.


Nem mesmo me passou um sermão, como eu achei que aconteceria. A garota
se tremia toda e estava a ponto de desmaiar.

Eu andei sem rumo pelos corredores da escola, e quando me sentei em


um banco do pátio, notei que estava ofegante. Olhei minhas mãos e a imagem
que vi não sairia tão cedo da minha mente.

A bela e doce Stela não era tão perfeita.

Ela colecionava várias cicatrizes retas no pulso. Cicatrizes de gilete,


cortes que provavelmente tinham sido feitos por ela mesma.

***
Dias atuais

Julgamentos sempre me deixavam com a adrenalina a mil. Eu podia


sentir minha espinha fervilhar com a tensão pungente que tomava o ambiente.
O silêncio intensificava o que eu sentia. O promotor estava cuspindo fogo,
sabia que tinha perdido essa.
Olhei para a plateia, vidrada no que acontecia à frente. Não era um
grande espetáculo como acontecia em filmes e séries. Aqui no Brasil, um
julgamento com júri não era tão emocionante. Mas, comigo presente, eu fazia
o possível para deixar a tensão à flor da pele. Ainda mais que esse julgamento
específico estava com grande atenção do público.

Seduzir o júri não era fácil, mas necessário.

Olhei para a ré, minha cliente. Assassinou o marido, que era um policial
federal. E isso deixava as coisas bem mais complicadas, pois as pessoas
tinham a propensão a ter empatia por homens da lei.

— Com essas novas evidências, declaro o julgamento anulado e uma


nova investigação deverá ser aberta, tomando novas vertentes, com base no
testemunho da menor — o juiz falou e bateu o martelo.

A família da ré comemorou, e eu levantei os punhos. Venci mais uma.


Na plateia, Cora, a minha sócia, e alguns estagiários sorriram para mim.

— Como soube que foi a filha que matou o pai? — Cora questionou
quando me encontrou no corredor.
— Faro investigativo. — Acenei para uma pessoa que me
cumprimentou. — Liguei os pontos. — Mais pessoas se aproximaram para
me parabenizar. Continuei explicando o caso para Cora: — Era um
casamento normal, sem queixas da parte dela, e ele não era violento. Além do
que, a ré insistia para eu aceitar a confissão dela de uma vez por todas. Eu
tive certeza de que ela tentava proteger alguém.

A grande reviravolta foi que a menina vinha sendo abusada pelo pai, e
em uma certa noite, o matou enquanto ele dormia. A mãe queria assumir a
culpa para não ver a filha presa.
— Bem perspicaz. O juiz quase não autorizou o testemunho da filha,
que é menor — ela comentou, andando ao meu lado e indo em direção à
saída. Atrás dela, os estagiários do escritório ainda estavam eufóricos com o
julgamento.

— Juro que não tinha uma carta na manga caso ele não autorizasse —
confessei.

Saímos do tribunal e vários repórteres me cercaram, com microfones na


minha cara.
— Eu sou Ulrich Aslan e não entro em uma disputa que eu não possa
ganhar. — Pisquei para a câmera. — Agora, queria ao menos retratação por
tudo que a mídia fez com minha cliente. Vocês deveriam se envergonhar.
Tenham um boa noite.

Saímos do alvoroço de repórteres, e Cora seguiu rumo ao carro dela. Eu


a acompanhei.

— O pessoal do escritório vai se encontrar agora em um bar — falei


com ela. — Não quer ir com a gente?
— Vão se encontrar para quê? — Franziu o cenho. — Vocês, por favor,
não vão me aprontar. — Apesar da advertência, tinha um olhar divertido.

— Fica tranquila. Já previam minha vitória, é só um brinde de


comemoração.
Eu não estava sendo arrogante. Esse caso estava bem noticiado, e eu
cheguei a acreditar que não levaria essa. Nesse momento, apenas alívio me
tomava.

— Não posso — ela falou, olhando para a multidão ainda na porta do


tribunal. — Sabe o que aconteceu com o Jaime. — Isso não era uma
pergunta. Assenti, eu sabia. O estado todo sabia. — Ele está sozinho em casa.
As meninas viajaram, e Gema está na vinícola. Apesar de tudo, estou com ele
até a morte.

— Eu não te julgo. Entendo. E o casamento de Gema? Vocês vão?


— Eu irei, mas ele não poderá. Está com tornozeleira. Bom, vá. —
Esfregou a mão em meu braço. — Divirta-se e comemore sua vitória. Mas
com moderação. Não quero ninguém ligado a mim em capa de revista de
fofoca.

— Pode deixar, não é dessa vez que eles terão acesso a uma nude
minha.

— Odeio essas palavras modernas. — Destravou o alarme do carro e


abriu a porta.
— Nude é o mesmo que foto da minha bunda, Cora.

— Me respeita, sem-vergonha. — Riu e entrou no carro. — Boa noite,


Ulrich.

Acenei, e só quando ela saiu, eu fui para meu carro.


***

Dobrava as mangas da camisa quando entrei no bar. Vi os advogados do


escritório e caminhei até a mesa onde estavam.

— Chegou o homenageado da noite! — um deles gritou, chamando


atenção das outras pessoas do bar. — Direto da Turquia, o sultão dos
tribunais.

— Sultão? E onde está o meu harém? — Puxei uma cadeira de outra


mesa e me sentei com eles. — Boa noite, pessoal.

— Toma aí, cara. — Aluísio, um dos advogados, empurrou uma caneca


de chope para mim. — Como se sente ao ganhar mais uma? Dizem que o
ministério público já vai pedir sua deportação, pois não aguenta mais tanto
drible que você dá. — Todos gargalharam, inclusive eu.
— Cora não pode ouvir isso — falei um pouco mais baixo. — Mas
estou com a coluna toda fodida de tanto carregar esse escritório nas costas. —
Mais gargalhadas, e em seguida um brinde.

A noite no bar progredia muito bem, com bebidas, conversar sobre


besteiras e até reggae, que era o ritmo número um na cidade, mas nunca me
encantou. Eu não era um exímio dançarino, ainda mais de reggae.
— Eu te ensino. — Analu, uma estagiária, se animou e me puxou para o
meio do salão. — Uau, você é muito cheiroso — comentou e se adiantou em
aspirar profundamente perto do meu pescoço.

— Obrigado. Tento ser limpinho.

— Amolece o corpo. — Apertou meu quadril. — Isso, você precisa do


corpo todo solto, apenas uma parte pode e deve estar dura. — Piscou para
mim e mordeu o lábio.

Kahretsin![1]

Uma cantada certeira, à queima-roupa.

A posição era mais ou menos para dançar forró, outro tipo de dança
brasileira que não era meu forte. Segurei na sua cintura, e entrelaçamos os
dedos.

— Isso, agora é só remexer ao ritmo da música, não muito rápido, pode


colocar a perna entre as minhas. — A expressão de malícia não a
abandonava.
Começamos a dançar de um jeito muito estranho, no qual parecia que
ela dançava com um boneco de posto. Eu era uma vergonha nesse quesito.
Mas de uma coisa ela estava certa: eu estava mesmo ficando duro.

— Não bebi nada, se quiser, posso dirigir seu carro até sua casa. — Ela
estava na ponta dos pés para falar no meu ouvido.

— Na verdade...
— Tem namorada? — perguntou, levantando o tom de voz acima da
música.

— Não. Quer dizer... estou em um rolo.

— Rolo é ruim. — Deu uma risada.


— Depende do ponto de vista.

— E por que não oficializa? Nunca vi mulher nenhuma nas suas redes.

— Porque...

— Espero que ela não seja casada. — Ela nem me deixava pensar em
uma resposta. E eu não queria ir por esse caminho. Era o assunto proibido.

— Não.

— Ela está na cidade? — insistiu.

— Não no momento.

— Enquanto você pede para pegar seu carro, vou ao banheiro rapidinho.
— Deu um beijo no meu rosto e se afastou.
Certo. Eu não estava procurando companhia, mas já que caiu nos meus
braços, não podia recusar. Eu quase nunca saía para procurar mulher e levar
alguém para cama, mesmo que os irmãos Capello insistissem que eu era um
vadio rodado. E todas as vezes em que a necessidade de sexo batia, apenas
uma pessoa vinha em minha mente: Stela. E eu sentia ódio de mim por
permitir que ela me tocasse, mesmo estando longe.

Despedi-me do pessoal, pedi para trazerem meu carro e fiquei


esperando. Estava fora do bar olhando o movimento na rua quando fui
surpreendido por uma imagem. Em outro bar adiante, dois homens saíam
rindo, cochichando, quase abraçados. E um deles era o marido de Stela.

Observei-os entrar em um carro, e eu parecia muito doido da cabeça ao


ter a impressão de que eles se beijaram lá dentro. Eu nem tinha bebido tanto
assim...
Mas que caralhos...?
— Vamos? — Analu segurou meu braço, e caminhamos em direção ao
meu carro.

***

Eu morava em um bom condomínio, em um apartamento de cento e


sessenta metros quadrados, o que era muito para um homem solteiro.

A mesa da sala estava abarrotada de papéis sobre o processo do


momento. Eu até dispensei a faxineira essa semana, com medo de que ela
pudesse varrer algo importante, portanto nem parecia a casa de um advogado
promissor. Ou parecia, já que só tinha papel e livro espalhado.

— Não observe a bagunça. Estava metido no caso de hoje...

— Tudo bem. — Ela jogou a bolsa no sofá e olhou em volta.


— Quer beber algo? Tem vinho.

— Pode ser.

Fui à cozinha, peguei um vinho e duas taças. Servi o líquido nas duas e
entreguei uma a ela. Enquanto Analu bebia, sentei e tirei meus sapatos.
Era uma jovem muito bonita. Morena, cabelos encaracolados e corpo
esbelto. Havia muitas mulheres lindas ao meu redor, não apenas lindas, mas
de bom caráter. Eu tinha uma vasta seleção para me ajudar a seguir em frente.

— Não é bem o que eu imaginava. Sua casa — comentou.

— E como imaginou minha casa? — Fiquei de pé, a passos de distância


dela.
— Sei lá. Algo mais... turco. — Deu uma risada, e eu a acompanhei.

— Tem alguns elementos que lembram minha terra. Como aquele


quadro e os lustres, além desse tapete.
— O tapete é lindo. Isso é um alcorão? — Ela aproximou-se do livro
dentro de uma caixa de vidro na estante, que continha dezenas de outros
livros.

— Sim.

Analu se virou, demostrando sua perplexidade, e me encarou.


— Você é mulçumano?

— Sou,, não ortodoxo. Mas, sim, islã é a religião de noventa por cento
da Turquia.

— Ah... seu nome não é turco, então eu supus que fosse um turco falso.
Tipo... quando alguém tem olho puxado e o pessoal chama de japa, mesmo
que a pessoa seja brasileira.
— Ibrahim Ulrich Aslan. Apenas o nome do meio não é turco. Meu avô
era alemão.

— Uau. Bem pitoresco, eu diria.

Aproximei-me mais dela, ficando bem perto e fazendo sua respiração


acelerar. Olhei-a de cima.
— Isso te deixa com medo? — sussurrei.

— Eu não teria medo de alguém com coxas tão bonitas e uma mala de
respeito. — Corajosamente ela sustentou meu olhar e flertou.

Afastei cabelos dela da orelha e cochichei perto:


— E o que devemos fazer?

Analu segurou minha nuca, olhou nos meus olhos e soprou:

— Quero conhecer um outro elemento turco. — E beijou minha boca.

A garota apressou-se em abrir minha camisa enquanto, ansiosamente,


minhas mãos entravam por debaixo de sua blusa, indo de encontro aos seios.
Ela bateu na estante e um porta-retrato quase caiu. Eu o aparei e o coloquei
no lugar. Ao ver a foto, travei.

— Espera. — Segurei o queixo de Analu, afastando-a da minha boca.


— O que houve?

— Eu... eu não posso.

— Você está em um rolo, cara — argumentou. — Não é nada sério.


Você não tem que ser fiel quando está em um caso.
— Eu gosto da desalmada. — Afastei, envergonhado, com a mão
enfiada nos cabelos. — Eu vou me sentir mal amanhã.

Analu estava furiosa; abaixou, pegou os sapatos e a bolsa.

— Ela pode estar com outro nesse momento, sabia?

— Sim, eu sei. — Eu era a porra de um caco de homem sentado de


cabeça baixa.

Ouvi a porta bater e o silêncio me fazer companhia. Passaram alguns


minutos arrastados até eu me levantar para ir tomar um banho e cair na cama.
Olhei para a estante, peguei o porta-retrato e sorri com carinho para a foto.

Na minha mente, uma tenra lembrança.


“Até logo, Estrelinha.” Meu coração pesava ao vê-la se afastar. Ela se
virou.

“Sabe que eu posso nunca mais voltar, não é?”


“Sei”, sussurrei.

“Eu não irei me lem...”

“Eu sei”, eu a interrompi. “Eu farei por nós dois.”

***

— E aí, a estagiária ficou ofendida, ligou para Cora pedindo para não
ser mais minha assistente.

Olhei para Thadeo, rindo, com uma sobrancelha erguida e me fitando.


— Você não tem vergonha de ser tão rodado, Turco? — resmungou,
rindo mais ainda, após ouvir meu relato da noite que não tive com Analu.

— Olha só quem fala. Aquele da manteiga patenteada. — Terminei o


iogurte e enfiei a língua no potinho.

— Tem mais na geladeira, não precisa comer o pote — Thadeo ralhou.


Com o guardanapo, limpei a boca e peguei a jarra de leite.

— Tenho que lembrar de pedir uma novena para agradecer a Deus por
minha irmã estar livre de você — ele frisou.

— Não se preocupe. Stela nunca me daria espaço suficiente para que eu


pudesse reconquistá-la.
— Cara, você já está com trinta e três anos, já está na hora de superar,
constituir família. Na sua religião o pessoal não tem filho cedo?

— Religião não me define. Eu não preciso correr para superar, pois não
sou um perigo para mim mesmo. Sei controlar meus sentimentos. Pode me
passar o pão? — pedi, de olho grande, verdadeiramente faminto.
— Bom dia, garotos. — Gema entrou na cozinha, bela como sempre,
cabelos soltos e vestido longo florido. Era como se trouxesse um toque de cor
por onde passava.

— Bom dia. Vim cedo para ajudar nos preparativos da festa — falei.

— Ah, que bom. Mas... — Olhou receosa para Thadeo. — Outra pessoa
está chegando.
— Quem?

Antes de ela falar, ouvimos o barulho de um carro parando na porta,


mostrando que era alguém conhecido, pois tinha sido liberado no portão pelo
segurança.

— Stela está chegando para nos ajudar — Gema avisou.

— Puta que pariu. — Thadeo revirou os olhos.

— Hoje o dia promete — pontuei, com a xícara nos lábios. E ouvimos a


voz dela:

— Ô de casa, estou entrando!


03
STELA

Eu tinha acabado de deixar as crianças na escola e estava feliz por ter


algo diferente que pudesse preencher minha manhã, sempre mergulhada na
mesmice. Às vezes, cansava ser apenas dona de casa. Eu gostava de me sentir
útil, e, claro, qualquer coisa era uma boa distração para minha mente sempre
tão inquieta. Ajudar a preparar um casamento era o ápice da minha euforia.

Entrei na casa de Thadeo, atravessei a sala e caminhei até a cozinha,


parando abruptamente ao ver quem estava na mesa tomando café com meu
irmão.

Um soco no estômago sempre me atingia quando eu via Ulrich. Meus


nervos tornavam-se frangalhos, e minha garganta secava instantaneamente.
Sua beleza era quase desconcertante, seu sorriso de deboche despertava
minha vontade de estapeá-lo, ao mesmo tempo em que boas lembranças
ameaçavam desabrochar.
Ele tinha bom gosto com roupas, sempre cheirava bem, e me fazia odiar
o fato que meu inimigo era desesperadamente sexy.

E lá estava o maldito sorriso me esperando.

— Bom dia — sussurrei.


Decidi usar uma postura civilizada. Passei por ele, dei um beijinho em
Gema e outro em Thadeo. Quando me virei, Ulrich estava com a bochecha
inclinada em minha direção, esperando um beijo de cumprimento.

Indiquei seu queixo todo sujo de algo branco, provavelmente iogurte ou


manteiga.
— Vá aprender a limpar a barba primeiro antes de tentar provocar.

Ele se assustou de imediato e tocou na barba. Ao perceber que estava


mesmo suja, me brindou com um sorriso cafajeste.

— Eu não consigo ver. Pode limpar para mim, Estrelinha?

— Pode, por favor, não me chamar assim?

— Ok. — Ergueu as mãos. — Já terminei. — Ulrich ficou de pé. —


Vou dar uma olhada no espaço que teremos para montar as bancas para o
buffet. — Desistiu das gracinhas e sorrisos debochados. Essa, eu tinha
vencido fácil.

Observei-o sair e olhei para Gema e Thadeo.


— Ele entendeu rápido hoje. — Sentei-me à mesa, analisando diante de
mim as várias opções para acompanhamento do café. Eu estava disfarçando
minha inquietação.

— O Turco ainda está tenso. Estava envolvido com o caso daquela


mulher que foi acusada de matar o marido policial — Thadeo explicou.

— Ah, sim, vi ontem no jornal. O safado tripudiou em frente às


câmeras. —Lembrar da imagem dele piscando para as câmeras me causava
uma mistura de raiva e nostalgia.
— É o direito dele comemorar — Gema o defendeu.

— Eu tinha certeza de que ela era culpada. E já estava preparada para rir
muito da cara do Ulrich saindo cabisbaixo do tribunal — expus minha revolta
e dei de ombros. — Só desejo ver o ego desse cara abaixo de zero.

— Quem precisa assinar Netflix quando tem uma novela ao vivo


protagonizada por você e o turco? — Thadeo colocou um chapéu na cabeça e
saiu da cozinha. Olhei para Gema, e ela meneou a cabeça.
Depois de tomar café e postergar bastante na cozinha, saí com Gema,
indo em direção aos homens que trabalhavam. Eu enrolei bastante lá,
puxando assunto com Gema e Gioconda só para atrasar e dar tempo de Ulrich
ir embora. Mas tinha sido em vão; lá estava o homem ajudando Thadeo nas
bancas de bebida.

Eu odiava ficar ao lado dele, pois meu corpo sempre reagia de maneira
bizarra sem meu consentimento.

Como a gente pode odiar uma pessoa, ou tentar odiar, mas no fundo
querer olhar para ela?
— O que podemos fazer? — Aproximei-me.

Ulrich me olhou. Estava com belos e caros óculos escuros por causa do
sol.

Que idiota.

— O que podemos fazer? — ele repetiu. — Tenho uma lista enorme de


coisas que você e eu podemos fazer.

— Para de importunar minha irmã ou serei obrigado a pegar a


espingarda — Thadeo ameaçou. Ulrich passou o antebraço na testa, limpando
o suor, jogou beijinho para mim e voltou a segurar uma madeira enquanto
Thadeo a prendia com uma parafusadeira.

O clima ali na vinícola sempre era muito bom e fresco, e o vento trazia o
cheiro da uva que era cultivada não muito distante. Nem mesmo o clima
agradável foi suficiente para me distrair em relação a Ulrich.

— Stela, você e Gema podem forrar aquelas toalhas nas barracas já


prontas — Thadeo falou. — E precisa pregar com grampeador.
— Ah, sim. Faremos isso. — Peguei um grampeador, entreguei a Gema
e peguei outro para mim. Começamos o trabalho, esticando a toalha sobre a
banca e pregando as extremidades para o vento não levantar.

— A coisa entre vocês é bem feia, hein? — Gema instigou, quebrando o


silêncio entre nós duas. Eu a fitei.

— Como?
— Você e o Ulrich. — Ela deu uma olhada rápida para conferir se
Ulrich nos ouvia.

— Thadeo te contou?

— Por alto.
— Eu apenas o ignoro. Faz parte de uma época tão longínqua e
dolorosa, que não quero despertar esses gatilhos.

— Eu entendo. — E ela demostrou um olhar real de compreensão. —


Ele também parece estar cansado, eu notei que essas gracinhas são uma
forma quase desesperada de ter um pouco de você. É mais do que apenas
chamar atenção. É ter você particularmente para ele, em um momento, nem
que for de briga.

— Sério? Percebeu isso? — Parei de grampear e olhei para Ulrich,


trabalhando no pesado, com a classe de um magnata. Eu não consegui
reconhecer dentro de mim o sentimento que me tomou quando ouvi o que
Gema disse.
— Talvez ele esteja se preparando para seguir em frente.

Levantei uma sobrancelha em direção a ela.

— Como assim?

— Não quero fofocar, mas já fofocando, ele ia dormir aqui dias atrás,
mas recebeu uma ligação e saiu. E Thadeo disse que era um caso que Ulrich
estava tendo.

Meu coração falhou uma batida.

— Meu Deus. Que vadio!

— Ele é solteiro, ué.

— Verdade. — Aprumei o corpo e empinei o nariz com firmeza. — Não


me interessa. Não me importo com nada da vida desse homem. Ele que case e
suma daqui. — Minhas palavras não pareciam ter veracidade. Notei um
pequeno tremor, e isso me incomodou.
De repente, senti uma tontura rápida que me fez segurar na banca.

— Stela? Tudo bem?

— Sim. Está. — Sorri para Gema. — É apenas o sol.

— Vou pedir para Gioconda preparar uma limonada para a gente. — Ela
se afastou, e eu suspirei, implorando aos céus para que não tivesse uma crise
de ansiedade ali, na frente deles. Na frente de Ulrich.

O espaço onde aconteceria a festa estava lindo. Trabalhamos a manhã


inteira montando as bancas e, como projetado, tinha ficado tudo perfeito.
Thadeo terminava de prender os varais de luzes quando Ulrich se afastou,
passou por mim, e Gema e fez questão de dar um sorriso em minha direção:
— Vamos refrescar, meninas? — Não esperou resposta e desapareceu
do meu campo de visão.

Dei de ombros e me sentei na sombra ao lado de Gema. Ela pregava


fitas roxas nas tampinhas de potinhos onde seria colocada a manteiga que
Thadeo faria em breve. Cada convidado receberia um, como lembrancinha.
— Que lindos esses os potinhos. — Peguei um e analisei. — O pessoal
vai amar. A manteiga do Thadeo é a melhor.

— Isso é verdade. — Ela gargalhou. Eu, sem entender o motivo da


risada, comecei ajudá-la.

— Vou pegar mais potinhos, esses estão acabando. — Ela ia se levantar,


mas eu a interrompi, olhando para seu pé e pensando que Gema já tinha
ficado muito tempo em pé.
— Descanse. Deixe que eu vou. Onde estão?

— Uma caixa, na mesa lá da área externa.

— Tudo bem. — Levantei e fui naquela direção. Gioconda estava na


cozinha. Espiei, mas nem sinal de Ulrich. Ele teria ido embora? Seria muita
sorte, afinal, eu pretendia almoçar na fazenda e não fazia questão de o ter
junto à mesa.
Abri algumas caixas e encontrei a que continha os potinhos. Estava
prestes a levar quando ouvi barulho de algo caindo na água. Andei até o outro
lado e vi a grande piscina que Thadeo tinha construído. E lá estava Ulrich
nadando. Agora fazia sentido o convite para se refrescar.

Ele não me viu, e não sei o que deu em mim para dar mais alguns passos
naquela direção. De repente, meus olhos estavam vidrados.

Ele foi até a extremidade da piscina, se apoiou e ergueu o corpo para


fora. Estava só de cueca, e eu vi todo seu corpo, principalmente as costas.
Uma enorme tatuagem estampava sua pele.

No mesmo instante, a tontura voltou. Fechei os olhos, e a caixa caiu da


minha mão. Ouvi o barulho dos potinhos encontrando o chão e se espatifando
em cacos.
Na minha mente, uma cena muito viva.

Eu via aquelas costas com a tatuagem pelo espelho no teto de um quarto


enquanto gemia sorrindo, arranhando o corpo masculino que me dava um
prazer visceral, a ponto de querer chorar. Era Ulrich. Ele me segurava e me
possuía com voracidade.

— Stela? Está tudo bem? — Ulrich, seminu e molhado, vinha em minha


direção.
— Não! — Com as mãos na cabeça, comecei a gritar. — Não! De novo,
não. Eu... não consigo respirar... Eu não consigo... por favor.

E caí, sentindo os braços de Ulrich me amparando.

E apaguei.
04
STELA

No passado...

— Aqui está. — Ulrich me entregou um sorvete e se sentou ao meu lado


no banco da praça. — Escolhi chocolate para você e frutas para mim.
Eu estava adorando, nos últimos dias, a companhia de Ulrich. Depois de
o ter tratado de maneira rude na minha última crise na escola, me senti com a
consciência pesada e o deixei se aproximar. E me surpreendi por gostar de
sua presença. Ele era um bom ouvinte. Tinha vontade de saber meus anseios
e problemas, e não era como os outros, que se mostravam indiferentes a meus
dilemas, mesmo estando a um palmo de seu rosto. Não sei de verdade quando
nos aproximamos, mas eu só melhorava com a presença dele.

— Qual é a comida preferida de vocês na Turquia? — perguntei,


levando uma colherzinha de sorvete na boca.

— Dondurma. — Ergueu o sorvete, mostrando que falava dele. Era


engraçado ouvi-lo falar turco com português.
— Soverte? Por isso me convidou?

— Exato. Pão e iorty não podem faltar em casa de uma turco —


complementou.

— Iorty?
— Hmm... se pronuncia iorguty.

— Ah, sim. Iogurte.

— Exato.

— Na minha casa, todos estão enjoados de iogurte. Meu pai traz muito
da fábrica.

— É bom que eu seja amigo de pessoas que tem uma fábrica de leite e
iorty. — Gargalhei, e ele complementou: — Pode enviar para eu todo o iorty
que conseguir, tomo tudo sem enjoar.
Sorri para ele e comi uma colherada de sorvete. Percebi então que ele
olhava diretamente minhas cicatrizes no pulso, e por isso puxei a manga da
minha blusa.

— Nunca vai me falar sobre isso?

— Não me pressione.
— Não vou te jolgar... julgar. Talvez melhor dividir uma dor, se for
pesada demais para suportar sozinha.

— Isso aqui... já aconteceu. Não há mais volta...

— Não podemos refazer passado, mas já pensa que podemos modelar


nossa futuro usando essas dores como base?
Senti meus olhos encharcarem de lágrimas. Mas neguei com um gesto
de cabeça. O que ele entendia de dores?

Ulrich, no entanto, pareceu ler minha mente. Ele me deu o sorvete dele
para segurar.

— O que está fazendo?


Ali, no meio da praça, ele tirou a bata branca que vestia e lentamente
virou as costas para mim.

— Oh, meu Deus! — Com o susto, deixei o meu sorvete cair. Havia
cicatrizes grandes, riscos entrelaçados, marcas de vergalho.
— Sei que seus cicatrizes são provenientes do coração dolorido e da sua
mente inquieta. As minhas vieram da loucura de um domuz... um homem. E
fazem a eu lembrar da minha humilhação.

— E... eu sinto muito. Foi seu pai?

— Sim. — Vestiu a bata novamente. — Stela, o que quero te dizer é que


de forma alguma irei julgar ou tentar te dar um sermão. Eu sei a peso de cada
cicatriz minha e gostaria de conhecer a peso das suas.
Abaixei os olhos, contendo as lágrimas.

— Toda vez que vou visitar minha mãe... eu a amo tanto. Sonho que ela
possa sair da clínica e ficar com a gente. Gostaria de vê-la novamente
colhendo uvas, cantando músicas românticas, jogando um chinelo em um dos
meninos e rezando com a gente em volta da mesa na hora das refeições. Às
vezes, dói tanto, que eu preciso sentir outra dor... para não surtar... Ulrich.

— Se cortar é necessário?
— Eu só preciso da distração da gilete. Meu pai não sabe... apenas o
Ben. E eu o fiz prometer que não vai contar. Ele me entende, pois ele sente
igual. Ele... gosta de brigar com alunos mais velhos, para levar socos e ver se
sente algo.

Ele segurou com gentileza no meu queixo e me fez encará-lo. Limpei as


lágrimas.

— O que houve com vocês, Stela? O que houve com sua mãe?
O flash da lembrança me tomou. Aquele homem em cima de mim, a
mão grande na minha boca... seu peso, seu hálito... Era tudo um borrão, e
quando vinha, ameaçava me sufocar.

— Não. — Joguei o outro sorvete no chão e andei pela grama da praça;


as pernas vacilando. Não, meu Deus! Não! As imagens grotescas perfuravam
minha mente. Eu tentava escondê-las, mas havia gritos... os meus gritos e os
de Benjamin. Caí de joelhos com as mãos na cabeça. A visão começou a
embaçar. — Estou sem ar... Eu não posso respirar. A mão dele na minha
boca... Eu não posso respirar!
— Stela. — Senti braços em volta de mim. — Ei, olha para mim. Você
não está lá, olha para mim, Estrelinha, sou eu, Ulrich.

Eu buscava o ar com todo desespero. A voz de Ulrich estava distante.

— Sinta minha mão em sua nuca, só foque na minha mão, e você


encontra o caminho de volta.
E eu foquei no afago que ele fazia na minha nuca. Meus dedos dos pés e
das mãos, enrolados com muita força, doíam. Mas me foquei no afago. Eu
não estava mais naquele quarto; o rosto de Ulrich se tornava mais nítido, e
meus dedos relaxavam. Eu me vi na praça, caída na grama, e o via me
segurando.

— Oi — ele sussurrou, penteando meus cabelos com os dedos. — Você


está aqui.

Eu nunca tinha conseguido superar uma crise tão rápido. Sempre tinham
que me levar depressa ao hospital. Ninguém nunca havia me feito focar em
outra coisa para escapar do pesadelo preso em minha mente.
— Estou bem — sussurrei. — Estou bem.
— Não totalmente. Chegou o momento de acabar de vez com esses
cortes no seu braço. Se você precisa de distração, então que seja de outro
modo. Venha comigo, Stela.

Eu queria ir para casa, mas o acompanhei. Éramos jovens, adolescentes,


não havia carro, no máximo uma bicicleta. E Ulrich me levou na dele, eu me
sentei na frente, no quadro da bicicleta, sentindo o peito dele bem perto e os
braços como se me cercassem, enquanto ele segurava o guidão.

À tardezinha, ele me levou a outro bairro. Segundo ele, era o caminho


que fazia para a escola. Eu me assustei quando paramos em frente a um
pequeno estabelecimento onde se lia: estúdio de tatuagem. Eu não fazia ideia
do que Ulrich planejava.

— Não se preocupe. O dono é da Turquia, conhece meu avô, ele vai me


ouvir.
— O que está pensando? Eu só tenho quatorze anos.

— Stela, isso é melhor do que ter o pulso coberto de marcas. Você não
vai parar com isso tão cedo, e estou preocupado com sua maneira de distrair a
ansiedade. Vamos escolher um desenho e faremos juntos. Não todo, apenas o
esboço. E toda vez que sentir necessidade de uma pequena dor para distrair,
você vai vir aqui e completar um pedacinho da tatuagem. Eu farei junto com
você.

— Meu Deus, Ulrich. Eu não posso. Se meu pai vir...


— Vamos escolher um lugar escondido que ninguém possa ver. As
costas.

— Eu tomo banho na piscina da minha casa.


— Basta sempre usar maior.

— É maiô.

— Exato. Venha comigo. Hoje será apenas um risquinho. Quando


precisar, viremos juntos aqui e faremos mais um pedacinho. Esse é nosso
segredo, enquanto estiver aqui fazendo a tatuagem, você não será a Stela
boazinha, será a... Estrelinha. O que acha? Aquela que não liga para regras,
aquela que os traumas não podem ferir.

Acabei sorrindo para ele. Porque suas palavras eram tudo que eu queria
ouvir: traziam conforto. Ele se preocupava comigo e tentava buscar uma
solução para meus problemas. Olhei sua mão estendida para mim e a apertei.

— Que eu não me arrependa disso um dia.

***

Dias atuais...

Senti uma lufada gostosa de vento no rosto e abri os olhos lentamente.


Minha cabeça não doía e nem tinha sinal de tontura. Eu me senti aliviada por
isso.

Olhei em volta e nem precisei de muito para perceber que estava em um


quarto de hospital. O cheiro, o ambiente claro, tudo dava indícios.
— Stela, estou aqui. — Ouvi a voz de Miguel e o olhei. Vê-lo deveria
ser como um bálsamo para meu espírito, no entanto, não foi o que senti. Ver
meu marido foi como estar em um sonho bom e acordar para a realidade. Mas
que merda estava acontecendo? Ensaiei um sorriso para ele. Miguel não
parecia preocupado. — O que houve dessa vez? — ele questionou, e o olhar
desconfiado me fez encolher.

— Eu não sei.

— Eu tive que sair correndo da empresa... — O tom era de crítica. —


Tem que se cuidar, Stela. Pelo amor de Deus.

— Desculpa, te dei um susto, querido.

— Está tudo bem. Ah... falando nisso, eu tenho uns documentos para
você assinar. — Escondeu o olhar, mordendo o lábio.
— Documentos? Agora?

— Sim, Stela. São contratos da empresa que precisam da assinatura de


todos os acionistas. Não pode esperar. Precisava disso para hoje.

— Oh... claro. Leve para casa que eu assino, claro, amor. — Apertei sua
mão. E ele apertou de volta. Deu um sorriso morno e se afastou.

— Certo. Vou chamar o médico, dizer que você acordou.

— Miguel... Eu não lembro de quase nada. O que aconteceu?

— Você teve uma crise de pânico, e o Thadeo te trouxe. Ainda bem que
estava em segurança, na casa dele. — Instantaneamente seu semblante se
tornou sombrio. — Estaria morta agora se estivesse dirigindo no momento da
crise.
— Credo, amor. Não me dê uma bronca agora. — Desviei o olhar.
Lembrei então de Ulrich me segurando antes de eu apagar. — Thadeo está aí?

Ulrich também estava?

— Está. Ele e Gema. Vou chamar o médico. — Observei Miguel sair e


olhei para o teto.

Mas que merda...

Ulrich fez a tatuagem, pensei. O maldito... tinha prosseguido com o


trato. Ele não podia ter feito isso e nem tinha o direito. Se nós não tínhamos
mais ligação alguma, por que ele continuou a tatuagem?
E o mais intrigante: eu tive mesmo um sonho erótico com aquele turco
patife? De onde minha mente tinha tirado aquelas imagens?

A porta do quarto abriu, e o médico entrou junto com Miguel.

— Boa tarde, Stela. Sente-se bem? — o doutor perguntou.


— Sim. Estou me sentindo bem.

— Vamos fazer mais alguns exames. Pelo que vi em sua ficha, você já
apresentou quadro parecido, certo?

— Sim. Eu... faço acompanhamento psiquiátrico, e minhas crises


estavam controladas. Não sei o que houve.
— Toma algum medicamento para controlar?

— Sim.

— E tem tomado corretamente?


— Ah...

— Às vezes ela esquece, doutor — Miguel falou na minha frente, me


delatando.
— É algo que não pode esquecer. O que eu posso fazer é pedir a você
que tenha uma consulta imediatamente com sua psiquiatra. Fizemos uma
ressonância, na parte neurológica, está tudo bem com você.

Assenti, apertando a mão de Miguel, enquanto ouvia mais instruções do


médico.

***

— Lembra de algo minutos antes do desmaio? — Ouvi a voz de doutora


Eliana, minha psiquiatra e psicanalista. Eu estava de cabeça baixa, sentada
em um sofá, olhando para um pontinho no meu jeans. E ela ocupava a
poltrona à minha frente. Ajeitei o corpo, encontrando uma posição
confortável, respirei fundo e a encarei.

Eu estava pegando a caixa de potinhos antes de desmaiar.

— Sim, lembro.
— E segundos antes?

Ulrich vindo correndo na minha direção, enquanto eu me desmontava


em algo que já conhecia. Os potinhos quebrados e esparramados diante de
mim pareciam rolar em câmera lenta. Tudo parecia em câmera lenta.

— Sim.
— O que você sentia naquele momento? — Seu tom era brando, e o
olhar, compenetrado.

— Palpitação. — Torci os dedos, amedrontada com os sintomas. — Eu


sentia meu coração a mil por hora enquanto parecia estar sufocando. Como
das outras vezes.

— Sabe o que pode ter causado o gatilho que te fez entrar em crise?

A tatuagem e a lembrança do sonho esquisito. Eu não queria contar isso


para ela, mas era necessário. Ela sabia sobre Ulrich, sobre a existência dele
em minha vida.

— Sabe aquele homem, do passado?

— O Turco? — Seus olhos iluminaram. — Gosto quando fala dele.

— Por quê? — Eu estava surpresa.

— Porque eu vejo emoções cruas em seus olhos ao falar dele.

Balancei a cabeça e me concentrei novamente. Voltei a fitar minha calça


e engoli um nó que tampava minha garganta.
— Pouco antes de desmaiar tive uma lembrança de um sonho erótico
com ele. Tão bizarro...

— Como era essa lembrança?

Desconcertada, me mexi no sofá.

— Bom... foi um flash muito rápido. Era como se eu estivesse na cama


com ele, e isso me afetou muito.

— Interessante. Tem certeza de que foi um sonho?

— Claro, doutora. — Agora me sentia quase insultada. — Eu sou


casada. Eu nutro indiferença por aquele homem. Não há essa hipótese.
— Sim, claro. Desculpe. Eu acho que por hoje é só.

Eu me consultava com doutora Eliana desde os quatorze anos, quando


minhas crises tomaram proporções perigosas. Quando a gilete era uma boa
ideia para ajudar nas minhas dores. Instintivamente toquei em meu pulso.

A doutora me olhava com complacência. Uma mulher de mais ou menos


cinquenta anos, alta, negra, com cabelos castanhos sempre cortados Chanel.
— Eu gostaria muito de fazer uma terapia de regressão com você, Stela.
Estará hipnotizada, não sentirá nada.

— Doutora... sabe que eu ainda não estou pronta. Eu tenho medo do que
possa existir escondido em minha mente.

— É por isso mesmo. Você tem que se libertar dessas caixas fechadas
que você mesma protege.
— Me desespera pensar que eu possa ver com clareza... aquele passado.
Aquele que destruiu minha mãe e aterrorizou meus irmãos.

Ela se levantou da poltrona e se sentou ao meu lado no sofá.

— Sabe, querida? A mente humana é um verdadeiro labirinto. Eu vejo a


sua como um quebra-cabeça em que faltam peças. Talvez você mesma tenha
escondido essas peças como forma de se proteger. Sua mente parece
fragmentada, como se fosse dividida em várias histórias que podem se
conectar depois. E são essas histórias que precisamos recuperar.

— Eu juro que vou pensar. Eu só preciso de tempo.

— Tudo bem. No seu tempo. — Sorriu para mim.

Peguei minha bolsa e fiquei de pé. Miguel me esperava lá fora.


— Vou pedir à secretária que marque seu retorno o mais breve possível.
— Ela me seguiu até a porta.

— Tudo bem. Até mais.


***

Apoiei no braço de Miguel enquanto entrava em casa. Lá dentro, todos


já sabiam, Miguel deveria ter alardeado. Papai estava em uma poltrona de
cabeça baixa, Raquel sentada no degrau da escada, e me cortou o coração vê-
la tão preocupada. Nathan estava deitado de lado, encolhido, no sofá grande.
— Graças a Deus — meu pai sussurrou ao me ver, e Nathan deu um
pulo do sofá.

— Mamãe! — Veio correndo e enlaçou minha cintura. Eu o abracei de


volta, beijando sem parar seus cabelos.

— Você contou para eles? — indaguei a Miguel.


— Tive que contar, né, Stela? Não vou esconder nada dos nossos filhos.
Você é que deve se cuidar.

— Qual é o seu problema? — questionei e o observei revirar os olhos na


minha cara e se afastar. — Estou bem, pequeno — tranquilizei Nathan — Só
foi um mal-estar.

Raquel me observava, ainda preocupada, com as mãos juntas diante do


peito.
— Venha cá, meu bem. A mamãe está bem. — Ela veio rápido e me
abraçou. Senti seu suspiro longo. Depois que eles estavam calmos e me
deixaram, fui sentar com meu pai e lhe contar o que havia acontecido.

— Fazia tempo que não tinha uma crise, filha — ele apontou, e eu
assenti. A última tinha sido uns dois anos antes. — Qual o motivo dessa vez?

Olhei para os lados e senti vergonha ao falar, cochichando para meu pai:

— Ulrich.

— Ah, meu Deus. — Deu um soco no braço da poltrona. — Vou falar


para Thadeo afastar aquele homem de você.

— Não, pai. Não é isso. Eu sei muito bem lidar com ele. Ulrich não é
um perigo para mim. Mas hoje foi diferente. Eu... não sei explicar. Eu o vi e
surtei.
— Falou com a doutora Eliana?

— Sim.

— E o que ela disse?


— Ela insiste na terapia de regressão... Eu vou pensar.

Meu pai apenas assentiu e segurou minha mão, apertando-a forte.

— Saiba que, apesar de parecer fisicamente com sua mãe, você é


diferente dela. Você é bem mais forte.

— Eu sei. — Fiquei de pé, me aproximei dele e beijei sua testa. — Vou


subir, pai. Miguel quer que eu assine uns documentos da empresa...

— Não... não mexa com essas coisas agora. Posso ligar para Andrey e
pedir para ele resolver sem precisar de você.

— Eu vou fazer isso. O Miguel não está muito bem esses dias. Acho que
está sobrecarregado. Ele anda me dando patadas, revirando olhos, sendo rude
com as crianças...
— Eu o compreendo. Miguel se doa muito na empresa. Ele precisa de
férias, vocês precisam de férias.

— Parece uma boa ideia. Nas férias das crianças, vamos planejar.

Cheguei ao quarto, e antes de entrar, ouvi Miguel falar ao celular.


— Está quase tudo certo, Rômulo. — Fez uma pausa e riu. — Eu
também estou. Certo... nos vemos amanhã. Até mais. — Estava sorrindo
quando desligou a chamada, mas ao virar e me ver, parou de sorrir. — Está
escutando minhas conversas? — Sentou-se para tirar os sapatos.

— Eu acabei de chegar. Rômulo?! Não é aquele Rômulo, certo? Seu


amigo picareta da época da faculdade — instiguei. Já que eu não conhecia
nenhum Rômulo no nosso círculo de amigos, só me veio esse à mente.

— Não, querida. É novo cliente. A conversa está indo para além da


empresa. — Miguel levantou-se, sorrindo, e me abraçou. — Em breve vai
conhecê-lo. O que acha de jantarmos fora hoje? Quero te fazer um mimo.
Notei a abrupta mudança de comportamento e isso me incomodou.

— Eu não sei. Ainda estou tonta. As crianças estão tensas, então pensei
em fazer algo para eles.

— Tudo bem. — Deu um tapinha no meu rosto. — Um jantarzinho em


família cai bem. Vou sair para me exercitar um pouco e deixar os documentos
para você ler e assinar.
— Miguel, eu não vou ler uma montanha de papel. Será que meus
irmãos não podem fazer isso?

— Podem, Stela. Eles já sabem o conteúdo dos documentos. Pode até


ligar para eles. Mas você precisa assinar.

— Então eu não preciso ler — contestei. — É coisa de família, confio


no Andrey e em você.
— Você quem sabe. De qualquer forma, darei uma cópia para seu pai
ler.

— Ótimo. — Bati palmas, contente. — Papai vai adorar se inteirar. Vou


tomar um banho, chegue rápido para o jantar. — Beijei seus lábios e senti em
sua camisa um perfume diferente que eu já tinha sentido desde o hospital.
Algo dentro de mim remexeu inquieto. Como se me avisasse, um estalo de
desconfiança.

— Mudou de perfume? — questionei, cheirando a gola da camisa,


mesmo sabendo que era meio impossível, já que eu comprava os perfumes
dele.
— Ah... sim. É novo. Eu o deixo na empresa.

— Esse é muito mais cheiroso e másculo. — Observei e franzi o cenho


o encarando. Eu sabia do segredo de Miguel e de repente comecei a imaginar
coisas.

— Sim, másculo. Porque eu sou homem. — Piscou para mim e afastou-


se indo para o closet. Eu continuei no mesmo lugar olhando-o, encasquetada.
Eu me encarei no espelho. Eu me achava bonita. Não extraordinária,
mas uma mulher comum que se cuidava. Passei os dedos nos cabelos loiros
meio castanhos e me despi devagar, sem querer encontrar ali, acima do seio, a
mancha de duas noites atrás. Por fim, eu a olhei, pensando no flash de
imagens que tive antes de desmaiar.

Não era possível.


Eu me despi, fechei os olhos e puxei o ar com força assim que vi minhas
costas cobertas com a tatuagem idêntica à de Ulrich.

Miserável.

Saí do banheiro, o quarto estava mergulhado em silêncio. Ainda


enrolada na toalha, peguei o envelope com os documentos que Miguel
deixou. Dentro, um calhamaço de papel. Na primeira folha, vi o título:
“CONTRATO DE FORNECIMENTO DE PRODUTOS LACTICÍNIOS”.
Deu preguiça só de ler isso. Eu poderia ligar para Andrey e dizer que eu
assinaria depois.

Peguei a caneta e rubriquei todas as folhas, assinando no final. Guardei


tudo novamente e fui me vestir.
05
ULRICH

Acho que eu dava a milésima volta na sala da casa de Thadeo esperando


por notícias quando ele entrou com Gema. O filho da mãe não tinha
permitido que eu fosse com eles, para não criar intrigas desnecessárias com
Miguel. E eu tive de concordar, porque eu seria capaz de bater no infeliz se
ele me impedisse de vê-la...

Eu estou tão preocupado...


Kahretsin! Eu poderia tê-la ajudado, como fazia no passado. Eu
poderia...

A porta se abriu, e eu corri até lá.

— E então? O que houve? Como ela está? — interceptei Thadeo.

— Bem. — Thadeo jogou-se em um sofá, soltando todo o ar dos


pulmões em uma lufada longa, e Gema sentou-se ao seu lado. — Stela tem
esses surtos desde novinha, você mesmo lembra. Fazia tempo que ela não
tinha esses troços.

— Mas ela vai ficar bem — Gema complementou, me olhando com


compreensão.

Sim. Eu me lembrava muito bem quando presenciei uma das crises pela
primeira vez. Eu a ajudei e tornei-me necessário para ela. Jamais me
perdoaria por não ter segurado a mão de Stela naquela época, quando mais
precisou. Jamais perdoarei o destino por ter me obrigado a me afastar dela.

— Que bom — falei — Eu fiquei muito preocupado. Ela já está em


casa?
— Ela já deixou o hospital e foi ao consultório da psiquiatra.

— Ótimo. Bom, eu preciso correr, pois tenho uma reunião às cinco.


Qualquer coisa, me ligue.

— Tudo bem. — Ele se arrastou do sofá, feito um javali cansado, e me


seguiu até a porta. — Estou só o trapo — reclamou. — A arrumação de hoje
cedo, somada à tensão, me deixou dolorido e rígido.
— Você ao menos tem alguém para te fazer uma massagem. — Apontei
para Gema sutilmente com o queixo.

— Ah, sim. — Sorriu com malícia. — Mal posso esperar. Vai logo
embora.

— Deixe-me te perguntar algo. — Abaixei o tom de voz.


— Diga.

— Já notou algo estranho com Miguel?

— Miguel? — As sobrancelhas dele ergueram. — Ele é todo estranho.


— Bom... tem razão. Acho que estou imaginando coisa.

— Imaginando o que, cacete?

— Vou prestar mais atenção e tirar minhas dúvidas. Até mais.

Enquanto dirigia, saindo da vinícola, pensei no que poderia ter


acontecido para Stela surtar. Eu sabia de cada passo de Stela e sabia que essas
crises de pânico só aconteciam quando surgia algo relacionado ao passado
conturbado que sofrera com a mãe. Ou será que algo novo surgiu como um
gatilho?

Em meu apartamento, tomei um banho e passei o barbeador elétrico só


para aparar a barba. Abri o closet e analisei as peças.
Uma calça esporte fino preta e uma camisa branca. Perfeito. Cuidar da
aparência era algo que eu fazia com precisão, gostava de investir muito nisso.

Dei uma última olhada nas notícias do dia antes de sair.

A mídia toda estava voltada para o julgamento de ontem. O rosto da


minha cliente estava em vários sites e jornais. E em alguns, havia também
minha foto e vídeos de entrevistas que eu havia dado. Eu mantinha um limite
no orgulho pelo meu trabalho.
Cheguei ao prédio de advocacia, e enquanto subia pelo elevador, percebi
que ainda estava tenso pelo que havia presenciado mais cedo, ao ver Stela
desmaiar em meus braços.

Antes de me encontrar com Cora e os outros advogados, corri para o


banheiro. Eu tinha de falar com Stela antes, ou não conseguiria me
concentrar. Eu precisava ouvir sua voz, nem que fosse para escutar alguns
insultos.

— Oi — ela atendeu.
— Oi, Stela, sou eu, Ulrich.

— Por que está ligando no meu celular? — Seu tom de voz aumentou,
ela estava perplexa. — Quem te deu meu número?

Sorri ao ouvi-la feroz.


— Faz tempo que roubei seu número no celular do Thadeo. Como você
está?

— Estou bem. Foi só uma crise...


— Como daquelas...

— Sim, Ulrich, como no passado.

— Entendi. O que a psiquiatra falou? São seus traumas voltando?

— Eu não tenho que te dar satisfação. — Foi um resmungo rude.

— Só fiquei muito preocupado. Então... tudo bem. Eu fico feliz que


esteja bem.

— Ah... espera! — Impediu-me de desligar.


— Diga.

— Você fez a tatuagem.

— Como?
— A tatuagem nas costas — falou baixinho. — Aquilo era... íntimo. Por
que continuou com ela? Por que a fez, mesmo que não tivéssemos mais nada?

— Porque eu te prometi que faria junto com você. E se você completou


toda a sua tatuagem, é porque sentiu muitas dores durante esses anos. Eu fico
triste por não ter estado perto para te ajudar.

— Eu tenho um marido.
Suas palavras foram um punhal em meu peito.

— E eu espero muito que ele te ajude e te faça feliz, ou eu caço o infeliz


no fim do mundo. Até qualquer dia, Estrelinha. — Antes que respondesse,
desliguei.
Soprei algumas vezes, olhei meu reflexo no espelho e sorri. Estava
pronto para mais algumas horas de trabalho.

Quando voltei da Turquia, Stela já namorava com Miguel, e para minha


surpresa ela tinha continuado com a tatuagem, assim eu continuei a minha
também. Eu gostava de pensar que o desenho nas nossas costas era uma
ligação inquebrável, mesmo que para ela não devesse representar nada sobre
mim.

***

Quatro dias se passaram com uma rapidez que eu não esperava. Eu tinha
tanto para fazer no escritório e praguejava contra o relógio, que tinha
decidido competir com o Flash. Fui convidado para dar algumas palestras
para as turmas de direito na faculdade, o que me deixou extremamente
eufórico. Além disso, Cora e eu já estávamos trabalhando em um outro caso e
tivemos de fazer uma pequena pausa nos estudos, pois, enfim, havia chegado
o dia do casamento do Thadeo.

— Nos vemos lá? — indaguei a Cora, enquanto pegava minhas coisas


sobre a mesa.

— Sim. Estou indo ao salão onde Gema e as madrinhas estão se


arrumando. Preciso ao menos de uma hidratação no rosto.
— Certo. Vou antes para atestar que o noivo não surte.

Ela riu e saiu junto comigo.

— Faça isso. Minha filha já fugiu de um casamento, não quero o noivo


fugindo dessa vez.
— Mais fácil Thadeo laçar ela caso tente fugir. — Eu conhecia meu
amigo muito bem. E nunca tinha ouvido falar em paixão de touro, até ver de
perto. Thadeo estava disposto a atropelar tudo por Germânia.

Em meu apartamento, tomei um bom banho, demorado, e aproveitei


para passar o barbeador no saco. Não sabia o que a noite estava reservando
para mim. Ultimamente eu estava bem requisitado.
O treino de pernas estava dando muito resultado. Minhas coxas estavam
belas, o tórax, trincado, e braços quase tão admiráveis como os do deus
Apolo. Pena que a única pessoa que eu gostaria de ver desfrutando do meu
corpo preferia ver o Cão.

***

— Eu tô com falta de ar — Thadeo resmungou, sentado na cama já em


seu traje de noivo.

— Cara, acalme-se. Daqui a pouco volta a suar e ferrar com o traje. —


Entreguei a ele um copo de água. Thadeo recebeu e me olhou, havia
preocupação nos olhos.
— Será que ela não merece algo melhor?

Sentei-me ao lado dele na cama.

— Melhor que você? Ela pode encontrar, mas vai penar. Você foi a
primeira pessoa que disse “olá” para mim nessa cidade. Carregou nas costas a
promessa que fez à sua mãe, respeita seu pai e ama os irmãos. Gema é, na
verdade, sortuda. Assim como você é sortudo por ter encontrado uma mulher
como ela.
— Obrigado, Turco.

— Vamos, pessoal? — Andrey olhou o relógio em seu braço. — Ulrich,


esquece. Thadeo não vai desistir do casamento para ficar com você —
debochou. Fiquei de pé e esbocei uma expressão de tristeza.
— Mas que merda. Meu plano de me aproximar da família para seduzir
Thadeo foi por água abaixo. — Dei a mão para Thadeo, ajudando-o a ficar de
pé, e recebi dele um abraço e uns tapas em minhas costas. — Lá se foi sua
chance de ter um amante turco — falei.

Rindo, se afastaram, saindo do quarto. Benjamin estava calado, me


olhando, e quando fui passar, colocou uma mão em meu peito.

— Tudo bem? — Eu sabia sobre o que ele se referia.


— Sim. Tudo sob controle. Se houver algo de diferente, você será o
primeiro a saber.

— Certo. Já liguei para a doutora, depois te conto.

Assenti e saí com ele do quarto.

***

Durante o casamento, eu estava atento a tudo e nem um pouco


indiferente à Stela. Desde o dia em que ela desmaiou nos meus braços, eu não
a tinha visto. E hoje, me surpreendeu por estar tão deslumbrante. Meu pobre
coração remendado — mas ainda regado de esperança — não parava de bater
por ela.

— Vai ficar aí se empanturrando, e nem vai dançar comigo? —


Gabriela, a irmã de Gema, e meu par como padrinhos, indagou chegando
perto de mim.

— Hum... — Limpei a boca rapidamente e sorri para ela. — Só espera


um minutinho? Não podemos ignorar uma mesa tão deliciosa. — Ela fez
pouco caso para a comida e bebericou a taça de champanhe, sem desviar os
olhos de mim.
Ajeitou minha gravata e sorriu de modo pervertido.

— Você é todo gostosão, cara de safado, ricaço, cheiroso que dói e está
solteiro ainda. Não entendo. Gosta de mulher, não é? — Foi logo na lata.

Semicerrei os olhos para ela. Eu não estava ofendido. Eu conhecia


minha sexualidade e sabia o que eu era, portanto uma única pergunta não me
ofenderia. Só estava intrigado.
— Não fode. Há uns dois anos eu dormi com seu irmã gêmea. Ela já
deve ter contado.

— Já, sim, mas eu espero que seu pau possa me responder essa
pergunta. — Lambeu os lábios. — Nos vemos depois. — E se afastou.

— Parece que já tenho uma foda agendada... — resmunguei e voltei a


analisar a seleção de salgados.
— Foda é palavrão.

Olhei para baixo e vi um menino. Devia ter uns oito ou nove anos.
Olhos escuros atentos, me fitando. O filho de Stela.

— Foda? Eu quis dizer bodas. O mesmo que casamento.


— Meu pai falou que você é um ene... enegumeno.

— Energúmeno — corrigi — Seu pai usa palavras da era medieval para


me atacar?

— O que é energúmeno? — Quis saber.

— Tem várias interpretações. Como, por exemplo... — Abaixei diante


do rosto dele e falei, compassado e baixo: — Possuído. Pelo. Capeta. Bu! —
gritei, e o menino deu um pulo, com olhos saltados. Eu não devia ser maldoso
com uma criança, mas era filho de Miguel, não pude resistir.

Uma adolescente, muito linda em um belo vestido, apareceu de repente


e segurou no braço dele.

— Nathan, a mamãe está te procurando. — Ela olhou para mim e


ergueu uma sobrancelha. — Você é o amigo do tio Thadeo — observou. —
Minha mãe falou que você é de outro país.
— Exato. Sou da Turquia.

— É muito longe. — Ela deu um meio sorriso. — Temos que ir, meu
pai não gosta que falemos com você. — Ela se desculpou com um olhar, pela
sinceridade ou pela ordem do pai.

— Tudo bem. Até mais, crianças.

— Me chamo Raquel. Vamos, Nathan. — Deu as costas sem esperar


que eu dissesse algo. Observei os dois se afastarem e me flagrei com um peso
no peito. Stela não olhou mais para o passado e seguiu em frente com a vida
perfeita, com direito a filhos. Ela não olhou mais para mim.

E, pelo jeito, ensinava desde o berço sobre a minha má fama.

Balancei a cabeça, expulsando esse tipo de pensamento. Eu tinha que


estar feliz por ela estar feliz.
Hum... coxinha de carne seca. Isso ia me fazer feliz. Salivei e escolhi
algumas para meu prato. Quando mordi uma, ouvi ao meu lado:

— Não quero que converse com meus filhos. — Revirei os olhos ao dar
de cara com Miguel.
— Mas que caralho! Será que não vou poder degustar uma coxinha em
paz?

Miguel me olhou de cima a baixo, e eu o fitei, desconfiado.

— Pois não? Quer tirar uma foto para olhar com mais tempo?

— Você sempre foi patético. — Ele sorriu de modo sarcástico. — Com


essa pinta de amigo da vizinhança...

— Ah, eu mereço. Bem na hora da comida.

— Você pode ter conquistado todos os Capellos, inclusive Benjamin,


mas Stela escolheu a mim, teve filhos comigo.
— É verdade. Você tem a Stela, e eu tenho os quatro machos Capello.
— Franzi o cenho, imitando um olhar especulativo. — Espero que não tenha
inveja disso.

— O que está tentando sugerir? — Avançou na minha direção.

— Está tudo bem por aqui? — Thadeo brotou do nada. Mais curioso que
preocupado.
— Só estou tentando matar a fome — respondi mostrando meu prato
cheio.

— E eu fazendo alguns alertas. — Miguel bateu no meu ombro. —


Acho que entendeu meu recado.

Isso me irritou.
— Não, eu não entendi porra de recado nenhum. — Eu me postei bem
na frente dele, lembrando-o que eu era maior. — Vai fazer o quê?

— Calma aí, rapazes. — Thadeo atravessou entre a gente. — Não na


minha festa. Outra hora, eu posso até incentivar, mas agora não.
— O que está acontecendo? — Foi a vez de Stela se aproximar.

— Ah, que ótimo. Reunião de ensino médio. — Minha voz já denotava


impaciência. — Fiquem à vontade, vou sentar e esvaziar esse prato. Minha
religião não permite discutir de estômago vazio.

Muita gente já tinha ido embora. E tínhamos de ir todos, já que Gema e


Thadeo passariam a noite de núpcias na casa da vinícola. Dancei com
Gabriela, participei dos brindes, e do brinde dos homens, tiramos fotos, pedi
à Gioconda para fazer uma marmita de salgadinhos e docinhos para eu levar,
peguei dois potinhos de manteiga como lembrancinha e meti no bolso.
Aproveitei cada momento da festa. Sentia-me exausto, mas feliz.

Estava me servindo de vinho quando Stela veio andando em minha


direção, meio desconfiada, olhando para os lados, como se estivesse prestes a
fazer algo errado e alguém pudesse ver.
Pegou uma taça e me esperou servir. Em seguida, estendeu a mão,
pedindo a garrafa. Passei para ela.

— Então está tendo um caso. — Foi uma afirmação com cara de


pergunta. Encarei-a incrédulo.

— Falando comigo? Já deve ter bebido bastante para ter esse rompante.
Ela ignorou meu comentário. Estava com uma expressão bem
característica de alguém pronta para briga.

— Eu fico feliz, porque enfim vai me deixar em paz. Parar com as


provocações. Deixar meu marido em paz.
Olhei bem dentro dos olhos dela.

— Sim, estou tendo um caso. — Stela engoliu seco quando confirmei.


— E eu espero que evolua para algo sério.

— E eu espero que você, enfim, se afaste. Acho que uma mulher vai te
colocar nos eixos.
— Você por acaso estaria com ciúmes? — Bebi o vinho calmamente.

— Ciúmes? — Riu. — Eu? Ciúmes de você? Coloque-se no seu lugar.


Você é um vadio sem escrúpulos que transa com essa cidade toda. Se não for
com o estado...

— Se não for com o país — debochei.


— Você se torna cada dia mais patife.

Segurei seu braço e a puxei bem para perto de mim, as bocas quase
coladas. Stela me encarou, surpresa, os olhos saltados. Ela era linda para
cacete.

— A mulher que tem um caso comigo é muito sortuda de ter o melhor


sexo que esse país já viu. Ela chora e sorri de prazer quando eu passo minha
língua grande demoradamente na boceta dela e me arranha todo quando meu
pau desliza para dentro com calma. Modéstia à parte, sou grosso, e ela
sempre quer todo... Ah, como vocês falam? Atolado até os bolas. Isso! E
vamos juntos, aumentando o ritmo.
— Porco. Me largue. — Puxou o braço com força.

— Eu a chupo como se fosse um potinho de iogurte, e sempre deixo


minha marca. Ela adora. Bem aqui... — Toquei no meu peito. — Bem acima
do seio. — Pisquei para Stela e me afastei.
— O quê? — gritou às minhas costas. — Por que disse isso? — Segurou
minha camisa. — Me fale, por que disse justamente isso?

Ela estava desesperada, havia medo em seus olhos.

— Vá cuidar de sua vida, Stela. Que eu cuido do resto. — E voltei a


andar queimando de raiva, tesão e com um gostinho de vitória.
06

MIGUEL

Senti beijos em minhas costas e sorri, acordando. Espreguicei-me e me


virei de frente, encontrando Rômulo tão nu quanto eu. Droga! Acabei
dormindo na casa dele.

Rômulo tinha um grande poder de persuasão, e eu era propenso a cair


em seu charme. Merda! Ele sempre conseguia.
— Bom dia — sussurrou e se deitou sobre mim, os corpos meu e dele se
entrelaçaram em um abraço gostoso.

— Stela deve estar preocupada — sussurrei e olhei em seu relógio de


pulso. Seis e meia.

— Ela deve estar dormindo ainda.


— Não. Ontem ela estava com muita raiva, acho que Ulrich a provocou
novamente na festa. Ele tem um poder impressionante sobre ela.

— Eu a entendo. — Rômulo deu um sorriso malicioso. — Aquele cara é


muito gostoso.

— Vai tomar no cu! — Tentei empurrá-lo de cima de mim, mas Rômulo


me segurou.
— Calma, Miguelzinho. — Riu da minha cara. — Não estou falando
nenhuma mentira. E espero que ele a acolha quando nosso plano estiver
finalizado. Stela vai ficar devastada.

— Não. Eu vou encontrar uma forma de não a ferir. Eu não quero vê-la
sofrer.
— Não é meio tarde para se preocupar com ela?

Persistindo, tirei-o de cima de mim e me sentei na cama.

— Eu cansei dela, daquela casa e daquela família. Você me mostrou que


eu poderia crescer e ser independente. Porém tenho filhos, e não vou ferir a
mãe deles. Deixe que eu tomo conta dessa questão. Já temos a assinatura da
procuração, era o mais importante.
— Sim. Tudo bem, deixo em suas mãos. — Ele beijou rápido minhas
costas e se levantou. — Venha tomar café comigo.

Levantei e peguei minha cueca.

— Tem falado com Erica sobre o plano? — perguntei, vendo-o vestir


um short.

— Sim, falei ontem. Ela não desconfia que a gente transa. Você devia
terminar o caso com ela. Eu sou ciumento. — Rômulo deu um sorriso para
mim e saiu do quarto.

Sentado na cama, eu refleti sobre o que estava fazendo e as escolhas que


estava tomando. Eu sabia que tinha muito a agradecer a Stela e sua família.
Mesmo que os irmãos dela nunca tivessem sido meus amigos, nos
tolerávamos, e eles me aceitaram no seio familiar como um integrante.

No último ano para cá, Stela e eu nos afastamos bastante. Eu acordava


no meio da noite, e ela não estava na cama e, várias vezes pela manhã,
preferiu amanhecer no sofá lá embaixo.

Durante os anos, eu a ajudei e Stela me ajudou. Tivemos filhos e uma


vida boa juntos. Mas eu queria seguir minha felicidade, e Rômulo me fez ver
que não a encontraria ao lado de Stela.
Ele e eu estávamos passando os melhores dias de nossa vida, e juntos.
Sexo gostoso, papos cúmplices, planos perfeitos. Era uma vida que eu
poderia desfrutar sem deixar de ser um bom pai.

Eu ia usar as ações dela e devolver sem que soubesse. E só depois


pediria o divórcio. Sem machucá-la.

Quando saí do quarto e cheguei à cozinha, Rômulo cantarolava,


colocando a mesa do café. Ele tinha dispensado a cozinheira para podermos
ficar à vontade. Sentei-me à mesa, me servi de café e esperei que ele se
sentasse também.
— Está bem feliz — observei.

— Sim. Porque eu sei que tudo será diferente amanhã.

— E o que de diferente vai acontecer? — Peguei uma das torradas e


passei geleia.

— Miguel, coloque na sua cabeça que tudo que eu faço é para o seu
bem. Eu sinto muito por isso, será doloroso, mas você precisa encarar e me
escutar.

— Sobre o que está falando?

Ele soprou efusivamente.


— Eu sempre desconfiei, mas nunca te alertei, pois estávamos distantes
todos esses anos. Porém agora que estamos juntos, minha missão é abrir seus
olhos.

— Ah, caralho! — Deixei a torrada de lado. — Perdi a fome. Me fala


logo.
— Lembra na época da faculdade, quando fomos doar esperma e o seu
foi reprovado e ficamos caçoando de você?

— Sim... aonde quer chegar?

— Cara, eu marquei um exame para você em um laboratório que é bem


confiável. Um exame para descobrir se você é ou não infértil.
Fiquei calado, encarando-o, absorvendo suas palavras, e acabei rindo.

— Você só pode estar de sacanagem. Eu tenho dois filhos, porra.

— É justamente aí que quero chegar.


— Rômulo! Vá se ferrar! — Levantei na hora, tentei sair da cozinha,
mas ele entrou na minha frente, me segurando. — Isso você não vai colocar
na minha cabeça. Na... na... época da faculdade, a mulher da clínica explicou
os motivos do sêmen sair mais ralo, sem um bom número de
espermatozoides. — Eu já estava com um alto grau de desespero na voz. —
Acredita que até mesmo se você se acostumar a apoiar notebook no colo pode
dar interferência...?

— Eu sei, claro, pode ter sido um erro naquela época. Mas, cara, eu
sempre percebi que aquela menina nunca pareceu com você ou com a Stela.
Será que nunca passou isso pela sua cabeça? — Sacudiu meu ombro. — Uma
mínima suposição?

Afastei-me dele, andando em círculos.


Sim. Tinha passado pela minha cabeça. Várias e várias vezes. Não pela
aparência dela — afinal tem cabelos pretos como eu —, mas por causa das
circunstâncias. Ulrich havia voltado da Turquia, Stela estava abalada, e nos
casamos rápido. Só depois fiquei sabendo que ela se casou grávida. Mas eu
tinha o Nathan para certificar que eu não era estéril.

— Mas o Nathan... — balbuciei.


— A cara do Benjamin. O que é normal — Rômulo retrucou.

— Impossível. Não, isso não! Stela... ela nunca faria isso. Ela é certinha
demais. E se não forem meus filhos, de quem seria?

— Do Aslan?
— Ah, vá se foder. Stela prefere dormir com Satanás a tocar naquele
cara.

— Será mesmo? Eu sugiro que você faça um exame mais apurado sobre
esterilidade. Só para ter certeza, e não conte nada a ela. Esse será nosso
trunfo.

— Meu Deus, não! — Eu estava embarcando no plano louco de


Rômulo, ia dar um golpe em Stela e na Capello, mas eu gostava de verdade
dos meus filhos. Pensar que tinha a chance de não ser pai transformava cada
célula do meu corpo em pura fúria.
— Ei, me escute. — Ele me segurou. — Estou aqui para consertar as
coisas. Me deixe tomar conta de tudo, me deixe tomar a dianteira. Você não
precisa mais ter pena dela. Olha o que essa mulher te fez.

— Caralho... Rômulo... Eu não posso crer nisso.

— Eu só preciso que me dê carta branca para eu agir. Você não tem


nada mais a perder. Os filhos podem não ser seus. Todavia vamos usá-los
para forçar Stela a fazer o que quisermos. Ela dá a vida pelas crianças.
— Como assim? O que pretende?

— Apenas me dê permissão de agir. Você nem precisa aparecer. Stela é


tola, ela vai cair direitinho.
Refleti sobre tudo isso. João Capello praticamente implorou para eu
casar com a filha dele antes de concluir a faculdade, como era meu plano. E
depois descobri que ela estava grávida. Se algo aconteceu, aquele velho
miserável sabia e acobertou a safadeza da filha. Virei-me para Rômulo e senti
meu olhar tornar-se frio.

— Pode fazer. Pode tomar a frente.


07

STELA

Miguel tinha simplesmente desaparecido. Na noite anterior, nos trouxe


da festa e disse que ia resolver algumas coisas no escritório do meu pai,
porém quando acordei pela manhã, ele não tinha voltado para a cama e nem
estava na casa.

E eu precisava dele. Precisava de alguém que tivesse raiva de Ulrich,


para que eu pudesse falar mal e a pessoa concordasse comigo.
Eu precisei de calmante para dormir. Aquele patife desgraçado deve ter
visto a marca no meu seio quando desmaiei e usou isso para me desestruturar.
Queria bater no infeliz. Ele não tinha um pingo de escrúpulos. Segurei
minhas mãos trêmulas enquanto andava pelo quarto.

Eu esperava ansiosamente que tudo desse errado no caso dele e a mulher


o abandonasse como ele fez comigo.

Merda, merda, merda.


Eu o odiava. Ou melhor, eu tentava odiá-lo, mas sempre me sentiria
atraída, incapaz de apenas ignorar.

Mas... e se tivesse uma forma de tirá-lo de uma vez por toda da minha
mente? E se... eu pudesse enfim encarar as lembranças com Ulrich e
conseguir superar?

Feliz com minha ideia, peguei o celular e toquei em um nome. Começou


a chamar.
— Oi.

— Doutora Eliana? Sou eu, Stela. — Meu Deus, eu estava muito


agitada.

— Oi, Stela, está tudo bem? — Percebi sua voz ganhar um tom curioso.
— Aconteceu algo?
— Desculpe ligar em um domingo de manhã no seu celular pessoal.

— Tudo bem. Diga do que precisa.

— Eu aceito. Eu quero tentar novamente a regressão e descobrir o que


minha mente esconde.

Puxei um jeans qualquer do closet e me vesti. Prendi meus cabelos


sendo mais bruta que ágil. Na bolsa, joguei tudo que achei necessário e saí
sozinha, sem avisar a ninguém. Apenas pedi para Maria preparar o café das
crianças quando acordassem. Doutora Eliana tinha ficado tão eufórica com
minha ligação, que pediu para eu ir imediatamente ao consultório.

Quando cheguei, ela estava lá, na companhia de um homem enorme. Ela


já havia preparado a sala e estava lendo a minha pasta.
— Este é meu filho. Só veio me acompanhar, pois não estou podendo
dirigir. Ele vai ficar lá fora.

— Tudo bem. — Acenei para o homem, e logo ele saiu. Sentei-me à


frente dela. Instantaneamente, o medo me tomou. Eu estava sendo
precipitada?

Esta não era a primeira tentativa de regressão; tentei aos dezessete anos,
o ano em que Ulrich voltou. Tentei aos dezoito — quando me casei — e
depois eu parecia bem com meu casamento e meu bebê, parecia curada.
Nunca mais tentei. E agora, estaria tomando a atitude correta?
— Stela? Tudo bem? — Levantei o rosto ao ouvi-la me chamar. Tentei
não transparecer o terror que já me antecipava.

— Oh... eu... não sei.

— Me conte o que houve que a fez mudar de ideia dessa forma.


— Doutora, eu quero de alguma forma superar aquele homem.

— Ulrich, o turco?

— Isso. Eu quero poder olhar para Ulrich e não sentir nada mais do que
desprezo. — De repente, tinha lágrimas nos meus olhos. — Porque não é
fácil suportar essa instabilidade em meu coração. Tem algo dentro de mim
que me puxa com uma força bruta em direção a ele. — Com a voz baixa,
quase sussurrando, completei: — Eu fico trêmula ao lado dele.

— Querida. — Ela falou, o olhar compadecido. — Você já sabe, a


regressão vai te dar todas as memórias do passado que sua mente insiste em
bloquear, e você poderá encará-las com a maturidade de hoje. Você poderá
combatê-las. Quando há um passado muito traumático, o inconsciente trata
aquilo como memória não ativa, não resolvida, e isso pode sempre ser
ativado com gatilhos. Por isso suas crises.

— Eu não queria agora ver meu passado traumático. Apenas tirar o


Ulrich daqui. — Bati com o indicador em minha cabeça.

— Stela, ele não foi algo traumático para você. O que temos que
resolver é a raiz do seu problema, que começa lá na vinícola, na sua infância.

Fechei os olhos, constatando que tremia. Acho que tinha chegado o


momento de combater a mim mesma.
— Tudo bem. Vamos tentar mais uma vez. Talvez ele esteja ligado a
meu trauma, e se eu curar o trauma, esqueço Ulrich junto.

— Eu devo te adiantar que algumas síndromes e transtornos não têm


cura, mas sim tratamentos.

— Acha que eu tenho algum transtorno que...?


— Sim, eu acho, mas vamos estudar isso com calma. Você precisa
relaxar. Tire os sapatos e deite-se ali. — Indicou o divã. Eu fiz o que ela
pediu e deitei, sentindo o coração pulsar em meus tímpanos. — Geralmente
temos que iniciar a regressão com a anamnese, que é uma entrevista sobre a
vida do paciente, mas já tenho tudo sobre você aqui. Por isso vamos para a
segunda fase, que é o relaxamento. — Ela fechou as cortinas, acendeu um
abajur e caminhou até um aparelho que parecia um relógio. — Vou ligar esse
pêndulo, e você vai se concentrar no som das batidas dele.

— Tudo bem. — Fechei os olhos.

As batidas começaram. Eram suaves, pareciam um sino distante. Eu


foquei apenas naquele som, esvaziando minha mente, controlando minha
respiração e sentindo meu coração acalentar.
— Stela, eu estou aqui com você — doutora Eliana falou. — Você não
será hipnotizada, terá controle sobre sua consciência. Apenas deixe-se levar
por esse som. Pense na primeira coisa boa que te faz recordar a infância.

— Cheiro de uva. O abraço da minha mãe tinha cheiro de vinho.

— Concentre-se nesse cheiro. Imagine uma escada à sua frente. A cada


badalada do pêndulo, você sobe um degrau. Relaxe, ouça minha voz e as
badalas. Tudo do tempo presente está desaparecendo, apenas o cheiro da
infância existe.

Deixei minha mente me levar até uma escada espaçosa, de madeira,


talvez. O corrimão era entalhado. Eu lembrava com clareza do cheiro de
vinho que quase sempre estava na casa inteira. Também tinha o fim da tarde,
quando minha mãe adorava ir para o lado alto da vinícola para ver o sol se
pôr. Às vezes, íamos com ela.

— Suba o degrau, Stela. — Ouvi a voz da doutora e subi. — Suba o


segundo degrau. — E eu subi. Conforme as badaladas iam me puxando, me
atraindo, eu caía mais ainda em relaxamento. A doutora me levou até o
derradeiro degrau. Na minha mente, brotou a imagem da sala do casarão da
vinícola, lá embaixo eu estava na escada que levava aos quartos.

— Stela, onde você está?

— Não... — sussurrei, amedrontada. Lá estava a porta branca com uvas


desenhadas. Eu pude sentir todo meu corpo ser tomado por um arrepio
sombrio. Nas vezes em que tentei regressão, sempre paralisava nesse ponto.
— Você precisa se concentrar nas badaladas, me diga onde está. O que
está vendo?

— O corredor. O quarto de porta branca com uvas desenhadas.

— Tudo bem. Você está segura, você está aqui comigo. Caminhe até a
porta.
— Não — choraminguei. — Não posso abri-la.

— Vamos fazer um exercício. Toque em outra porta e abra-a. Me diga o


que vê.
Eu podia caminhar em minhas lembranças. O corredor estava silencioso;
toquei em outra porta, onde ficava o quarto de Thadeo. Abri, e tudo estava
em ordem, como minha mãe sempre deixava. Tudo muito arrumado. Mas
então comecei a escutar gritos, vindo do quarto em frente.

— Não. — Eu me mexi desesperada no divã. — Meu Deus, não! Eu


posso ouvir...
— Stela, mantenha o controle, concentre-se nas badaladas.

— Eu estou ficando sem ar. Eu estou ficando tonta.

— Não está. Volte para o corredor calmamente.


As imagens estavam distorcidas em minha mente. As lembranças
pareciam dançar, e então o corredor não era mais o corredor. Era uma rua
escura, estava chovendo, e eu andava ali, sem rumo, com um vestido de festa.
Minha festa de quinze anos. Minha mãe estava morta naquela noite. Meu
olhar era vazio, enquanto eu apenas caminhava como se não tivesse controle
do meu próprio corpo. Sentei-me na mesma hora no divã com olhos saltados
e a mão na garganta.

Doutora Eliana pegou água para mim e se sentou ao meu lado.

— Respire fundo. Mantenha a calma e deixe sua mente voltar aos


poucos à realidade.
Ela me deu tempo para me recompor e só depois questionou:

— O que você viu? O que te fez saltar assombrada?

— Não estava mais na casa. Eu tive outro lapso; a lembrança do dia em


que minha mãe faleceu. Era aniversário de quinze anos meu e do Ben. —
Encarei doutora Eliana. — O estranho é que eu não lembro de isso ter
acontecido. Não lembro de estar sozinha andando sem rumo em uma rua, no
meio da chuva.

— Interessante. O que se lembra do dia em que sua mãe morreu?

— Mais cedo, eu fui mostrar a ela meu vestido de debutante, minha mãe
adorou e chorou ao me ver tão linda. À noite, no meio da festa, nos ligaram
da clínica, ela teve um enfarte. Depois me lembro de ir procurar o Ulrich, e
ele... ele tinha me abandonado. Então já era o dia seguinte, e eu estava em
minha cama.

— Há uma grande falha nessa memória. Você teve um branco. É como


um vídeo no qual apagaram um pedacinho no meio. Já sentiu algo parecido
com isso? De não se lembrar que tenha feito algo?

— Eu... — Lembrei dos flashes eróticos com Ulrich que minha mente
me mostrou. Não era possível. — Não, doutora.
— Certo. Vamos ter que continuar com as sessões. Vou te dar tempo
para digerir o que viu hoje. Quero que fique atenta. Se alguém disser que
você fez algo, e você não se lembrar, deve me contar. Está dormindo
normalmente?

— Estou, sim. Essa noite dormi pouco, meu irmão se casou, então...

— Normal. O estresse pode tirar o sono. Amanhã peço à secretária para


te ligar com a data do retorno.
— Tudo bem, doutora. Obrigada. Eu acho que essas sessões serão muito
eficientes.

— Serão, querida. Vamos juntas descobrir coisas importantes.


Respostas para suas perguntas.
***

O domingo passou triste e enfadonho. Miguel estava muito distante,


tanto de mim como das crianças, e eu também não queria conversar. Não
contei para ele sobre a sessão. Queria antes digerir tudo sozinha. Eu andando
na chuva na noite da minha festa? Eu não me lembrava disso.

Decidi que iria contar a meu pai na segunda-feira, quando Miguel não
estivesse em casa.

— O papai nunca mais levou a gente na escola. — Raquel comentou, no


banco de trás do carro.

— Seu pai está meio confuso. — Tentei ser evasiva. Não queria
preocupar eles com minhas intuições.

— Ontem ele me xingou porque peguei o celular dele para jogar e


quando tocou, eu atendi. Era o amigo dele. — Nathan relatou.
Mas que merda estava acontecendo com Miguel?

Levei as crianças na escola, e estava voltando, quando recebi uma


ligação. Toquei no painel do carro, era um número desconhecido.

— Oi.
— Stela Capello?

— Isso, quem fala? — Era uma voz feminina.

— Seu marido marcou um horário para você com o advogado dele.


Você deseja vir saber o que está acontecendo?
— O quê? — Precisei frear o carro para não bater, tamanho meu susto.
— Advogado? De quê? Sobre o quê?

— Precisa vir para a gente explicar. Posso te passar o endereço?


— Claro — falei sem pensar. — Pode dizer. — Digitei no GPS e
desliguei a chamada. O que Miguel estaria aprontando? Advogado de que,
meu Deus?

Era um belo prédio. Construção nova e não muito alta. Acho que uns
dez andares. Não gastei muito tempo admirando o prédio. Estacionei o carro,
surpresa por ter conseguido logo de cara, já que eu era péssima nisso.
Entrei e me identifiquei na portaria, dizendo que haviam me ligado. O
recepcionista confirmou e pediu que eu subisse até o décimo andar.

No elevador, pensei em como fui burra de não ter avisado ninguém que
estava vindo para um encontro com alguém que não conhecia. No último
instante, mandei uma mensagem para Maria Clara com o endereço onde
estava.

A porta abriu, joguei o celular na bolsa e saí do elevador. Uma mulher


elegante, sentada atrás de uma mesa, sorriu para mim.
— Stela Capello?

— Sim, sou eu. — Tudo estava cada vez mais estranho, e a curiosidade
me deixava corajosa.

— Me siga, por favor. — Levantou-se da mesa e caminhou para uma


porta.
Ela abriu a porta, falou algo para alguém lá dentro e fez um gesto para
eu passar. Passei por ela, e quando olhei, me tremi por inteiro ao ver Rômulo
em uma bela cadeira executiva. Estava quase como eu me lembrava, só que
um pouco mais velho. Eu enrijeci instantaneamente quando a secretária
fechou a porta, me deixando com ele.

O sujeito ficou de pé, deu a volta na mesa, e sorrindo, estendeu a mão


para mim.
— Stela. Há quanto tempo. — Ele sempre tinha sido galanteador. E, no
passado, quase levou Miguel para a cadeia por causa de seus golpes.

— O que você quer e porque mandou me chamar? — Eu me mantive na


defensiva. Nem toquei em sua mão.

— Porque enfim chegou o momento de você saber de tudo. Sua vida de


minutos atrás não existirá mais.
08

STELA

— Onde está Miguel? Eu não tenho nenhum assunto a tratar com você.
— Fui incisiva, e ele deu um belo sorriso. Rômulo era um homem muito
bonito, seu porte atlético e suas roupas sempre bem escolhidas, com um
sorriso charmoso, eram armas que ele usava para ludibriar as pessoas. Mas eu
não cairia no seu joguinho de quinta categoria.

— Ah! Senhora Medeiros. — Ele suspirou, passando o olhar pelo meu


corpo. — Uau, você é muito elegante, Miguel tem bom gosto. Sente-se, por
favor. — Indicou uma cadeira. — Quer tomar algo? Um café, uma água...
— Não. Eu não quero... eu só quero saber onde está Miguel e o que está
acontecendo.

— Você vai precisar se sentar, meu anjo. — Sua voz era grave e tornou-
se branda. — Estou preocupado com sua saúde mental. Venha aqui. — Ele
me segurou e me guiou até a cadeira. Sentei. Deu a volta e sentou-se de volta
na cadeira executiva, à minha frente.

— Sou o novo sócio do seu marido, e também estou fazendo bico de


advogado.
Lembrei de ter flagrado Miguel falando ao celular com um tal de
Rômulo. Ele tinha mentido para mim, estava mesmo conversando com aquele
especificamente.

— Sócio? Sociedade de quê? Miguel não me contou nada...


— Eu não quero ser agressivo, mas preciso que compreenda. Será um
susto para você, mas creio que vai superar. Você é forte e nova, tem uma vida
inteira pela frente.

Segurei com força minha bolsa e tentei controlar minha tensão. Meu
coração era um tambor. E tive medo de desmoronar.

— O que está falando?


— Sobre o divórcio. O seu divórcio. — Ele foi incisivo.

Suas palavras pareciam vagas em minha mente. Eu continuei olhando-o,


amedrontada, apertando com força minha bolsa em meu colo.

— Eu... Nós não vamos... nos divorciar.


— Ah, vão, sim. — Ele deu uma risada cortante. — Vão porque eu sou
bem competitivo e ciumento. — Calmamente tirou algo de um envelope e
empurrou sobre a mesa para mim. — Eu não vou dividir o meu homem.

Dessa vez, suas palavras ativaram memórias de um segredo de meu


marido que eu o ajudei a guardar. Eram fotos, e elas comprovavam o que
imaginei. Fiquei de pé, com o grito entalado na garganta. Senti o sangue fugir
do rosto, eu devia estar pálida. O susto fez todo meu corpo entrar em pane, eu
parecia paralisada.

Na foto, Miguel aparecia na cama com Rômulo.


— Eu sei, está um horror. — Ele foi debochado. — Eu não sou
fotogênico enquanto estou transando. Mas tem vídeo, se você quiser. — Ele
estava muito à vontade com a situação.

— Não. — Agora eu tinha lágrimas nos olhos. — Não. Meu Deus. Não!

— Ok, sem vídeo, então.

— Onde está Miguel? Que merda é essa? Eu exijo explicações.

— Querida, conhece seu marido, ele foi seu amigo, mas precisa deixar o
homem ser livre. — Ele pegou uma foto entre todas e estendeu para mim. —
Ele gosta de algo mais... rude — Na mão dele, uma foto de Miguel amarrado
na cama, vendado, enquanto Rômulo o chupava. Miguel sorria.
Sentindo tontura e o fôlego ficando cada vez mais curto, solucei. Em
uma busca desesperada de me curar de Ulrich, eu cheguei a afirmar que
Miguel era meu amor verdadeiro. Eu confiei nele, eu o idolatrei, deixei que
ele visse minha alma quebrada.

— Temos filhos juntos... — Levantei o rosto e mirei o homem, que


esbanjava um olhar compadecido. — Por que ele fez isso com a família?

— Eu sei, princesa. Eu sei. — Rômulo fez um carinho em meu ombro.


— Eu vou pedir uma água para você. — Ele fez o pedido no interfone e me
deu tempo para digerir. Fiquei imaginando aquele turco patife rindo de mim
quando soubesse o que meu marido estava fazendo. Ele debocharia da minha
dor.
A água chegou, tomei um gole, e só quando estava com a respiração
melhor, eu o encarei.

— Divórcio...? O Miguel quer isso?

— Ele não quis te fazer sofrer. Não quis te confrontar e ser maldoso
com você. Por isso eu estou fazendo isso. Agora temos que falar de negócios.
— Negócios? — Minha garganta apertou.

— Olha só, você acabou assinando documentos muito importantes que


aquele safado te manipulou para assinar. Eu sei, ele não presta, e prometo que
vou dar um corretivo nele.
— Documentos? O... o quê?

— Você passou uma procuração para Miguel dando a ele total poder
sobre suas ações, a economia de vocês, afinal tinham conta conjunta, seu
carro, só ficou mesmo sua parte na herança, caso seu pai faleça, e sei que
você não vai desejar isso.

— Não! — Berrei. — Eu não... fiz... — Já estava de pé, com as mãos


nos cabelos. Eu me sentia em um precipício, prestes a desabar. Eu estava
perdendo todas as minhas forças.
— Fez, sim. — Ele sorriu, vitorioso. — Nesse momento você não tem
nada próprio.

— Um caralho. — Berrei, peguei minha bolsa no chão. — Eu vou ligar


para meus irmãos. Isso é um golpe asqueroso, você está acostumado a isso e
eu vou te denunciar, seu desgraçado. — Bati na mesa sem parar, a fúria me
cegando. — E Miguel vai se ferrar também se isso for verdade.

Rômulo continuou sentado, parecendo apreciar minha queda.


— Sobre seus filhos, Miguel vai entrar com um pedido de guarda, afinal
temos prova que você é instável emocionalmente, até mesmo faz
acompanhamento psicológico. E agora, sem um tostão, fica difícil sustentar
duas crianças.

Isso foi uma facada em meu peito. Meus filhos eram tudo em minha
vida. Eles eram a única linha que me mantinha sã, para não surtar e acabar
como minha mãe em uma clínica. Essa suposição sempre me assustava, eu
não queria terminar como ela...

Com a visão turva e a respiração falha, caminhei para a porta. Tentei


abrir minha bolsa para pegar o celular.
Antes de eu chegar à porta, Rômulo me interceptou e me levou de volta
para a mesa.

— Me larga! Não toque em mim. — Me debati e acertei um chute na


perna dele.

— A riqueza do seu pai não vai adiantar muito, a não ser que ele faleça.
Você sem nada, se valendo da bondade de seus irmãos, juiz nenhum vai te
dar guarda de duas crianças. — Continuou provocando.
— Eu posso muito bem trabalhar para sustentar meus filhos.

— Você é doente, mentalmente instável, pode ser um perigo para você e


seus filhos.

Sem querer escutar mais, peguei uma foto, coloquei na bolsa e voei em
direção à porta. Ele foi mais rápido, novamente, e dessa vez tirou a chave e
enfiou no bolso.

— Me deixe sair.

— Calma. Eu tenho a solução para seus problemas. Vamos barganhar.

— Eu não quero ouvir uma merda de palavra da sua boca. Me deixe


sair.
— Você pode reverter isso, confie em mim. Só temos alguns pedidos
para te fazer.

Ofegante, molhada de lágrimas, com o coração quase saindo pela boca,


fiquei em silêncio, o olhando. Talvez ouvi-lo seria o caminho mais rápido
para eu ir embora.

Ele foi para a mesa e pegou uma pasta azul.


— Os papéis do divórcio. Você vai embora da cidade, as crianças vão
entrar de férias agora e você vai ficar todo o mês fora, só até meu negócio se
concretizar, porque se ficar aqui, seus irmãos vão acabar te pressionando para
você falar. Não vai falar um “a” para seus irmãos ou para qualquer pessoa
que possa vir tomar suas dores. Você precisa ser madura e encarar isso
sozinha.

Em seus sonhos.

Limpei as lágrimas, estava com medo, porém, a raiva era maior. De


repente, me sentia adolescente novamente, sem saber que caminho seguir. A
diferença é que eu não estava sozinha como naquela época.
— Não deve reclamar a procuração — Rômulo continuou. — Miguel
tomará conta dos seus bens, como ele já faz, e para te proteger, se algo
acontecer com ele, tudo volta para você. Em troca, terá um divórcio bem
sucedido, a guarda dos filhos será sua e continuará com mesma renda que
você recebe atualmente. Mas tem que decidir isso agora. — Colocou uma
caneta na minha frente. Eu não chorava mais, a raiva aplacava cada emoção
fraca. — Se sair por aquela porta e tentar contactar alguém, essa proposta se
perde e iremos para a guerra.

— Eu posso contestar essa procuração na justiça.

— E dizer o quê? Que assinou no calor do momento? Que nem leu o


que assinou? Que não tem sanidade o suficiente para tomar decisões? Será
mais fácil ainda provar sua incapacidade de cuidar das crianças. Se você
tomar a procuração do Miguel, ele fica com as crianças. É uma escolha sua, o
que é mais importante para você?

Meus filhos são o mais importante.

Eu poderia tentar enfrentá-lo o que seria inútil. Era melhor optar por
fingir e conseguir sair daqui logo.

— Vamos, querida, seu casamento já acabou. Assine o divórcio agora.

Puxei a cadeira e sentei-me. Abri a pasta como se ali tivesse um bicho


pronto para pular em mim.

Li algumas linhas da primeira folha. Era mesmo o divórcio. Meu castelo


de fantasia acabava lentamente conforme eu lia, uma linha de cada vez. A
dor era dilacerante.

Estava tudo lá especificado. Sobre Miguel abrir mão da guarda das


crianças, sobre ele continuar tomando conta do meu patrimônio. Na
separação, ele ainda levava a casa em que moramos no início do casamento e
o carro dele.

— Eu posso deixar um advogado ler? Só para me dar um


esclarecimento...

— Lembre-se das crianças, querida. Assine o divórcio, resolva isso


agora e terá os filhos. Saia daqui sem assinar, e Miguel vai entrar na justiça.
Deve sair hoje mesmo da cidade, deve ficar ao menos um mês fora, sem que
ninguém saiba o motivo.

Ok. se ele queria tanto uma assinatura, ele teria uma bela de uma
assinatura.

Terminei, joguei a caneta no chão, fechei a pasta e deixei lá em cima.


Contente, Rômulo nem verificou, correu para a porta e a abriu para mim.
Quando eu saí na rua, cambaleando, senti a angústia dolorosa tirar meu
fôlego. Fui andando pela calçada, sem ter um rumo. Levantei minha mão,
ainda trêmula, e olhei a aliança. Com a mão na boca, chorei na calçada.

Eu estava recostada na parede de um prédio, as pessoas passando e


olhando para mim. Abri a bolsa e peguei o celular. Mal conseguia segurar o
aparelho. Olhei minha agenda. Eu não queria falar com meus irmãos por
telefone.

Desesperada, sem qualquer pensamento lógico, cliquei em últimas


ligações atendidas e vi a de Ulrich, dias atrás. Toquei para chamar, e ele
atendeu depois de vários toques, eu estava quase desistindo.
— Estou em meio a um audiência, mas para ouvir seus insultos, estou
sempre disponível. — Ele foi irônico. Ao ouvir sua voz, eu desabei ali na rua
encostada na parede. Merda. Chorei copiosamente ao telefone.

— Stela? O que está acontecendo? Onde você está? — Quanto mais eu


chorava, mais desesperado ele ficava. — Stela, fale comigo... se estiver na
rua, pare e peça ajuda.

— Eu... sou... eu sou uma vergonha... fraca.


— Não diga isso, você não sabe a força que tem. Me fale onde está, eu
chegarei aí em minutos. Como pode dizer que é uma vergonha se para mim
você é e sempre será minha Estrelinha?

Chorei mais ainda ao ouvir isso. Eu queria poder voltar no tempo e


mudar o passado...

— Por que me deixou, Ulrich? Por que teve que ir embora?


— Stela, eu vou ligar para seus irmãos se não disser onde está. Por
favor, poderá só me insultar quando eu chegar aí, só me diga...

A voz dele foi ficando cada vez mais longe e a rua diante de mim bem
embaçada. Acho que fechei os olhos, não sei. Mas ao abrir novamente eu
soube que tinha que ir buscar as crianças na escola.

***

— Mamãe, o que houve? Estava chorando? — Raquel questionou,


preocupada, sentada no banco traseiro com o irmão.

— Nada, não, filha. A gripe parece que me pegou. Adiantamos as férias!


— falei, e os dois gritaram, comemorando. Dirigi para casa, agora com mais
cuidado. E a primeira coisa que vi foi Miguel colocando uma mala no porta-
malas do carro dele.

— Crianças, vão arrumando a mala de vocês, vou conversar com o


papai. — Os dois não se importaram muito e entraram. Quando fiquei
sozinha no jardim com Miguel, ele me olhou com revolta nos olhos, como se
eu tivesse feito algo terrível para ele, e não ao contrário.
— Eu não queria que acabasse assim — falou, tirou o controle do bolso,
abriu o portão e o jogou para mim, mostrando que não precisaria mais. Ele
estava se desligando da nossa vida. — Espero que tenha feito a coisa certa,
Stela, como meu advogado lhe instruiu. — A raiva me queimou ao escutar
isso.

Eu perdi a compostura, fiquei cega de ódio e voei para cima dele.

— Desgraçado! Porco! Eu vou acabar com você!


Miguel me segurou e me empurrou contra o carro.

— Por que fez isso com sua família seu nojento? — sussurrei, sendo
pressionada com força por seu corpo. — Mas quer saber? Você nunca serviu
de porra nenhuma.
— Pode liberar sua fúria. Já falei para Fernando e Andrey sobre sua
escolha de me dar o divórcio. Todos vão pensar que partiu de você, da sua
instabilidade emocional. E sabe que não deve contar a verdade para ninguém.

Empurrei-o com força e tentei bater novamente usando minha bolsa.


Miguel tentou se defender, me empurrou, e eu acabei caindo.

Eu vi então alguém vir correndo lá do portão. Eu estava tonta, apoiei no


carro para me levantar e ouvi um barulho alto e seco, e Miguel caiu do meu
lado. Ele tinha acabado de levar um soco de Ulrich.
08

ULRICH

— O que você estava fazendo com ela? — eu berrava, sacudindo


Miguel no chão. — Eu te avisei inúmeras vezes que te arrebentaria se fizesse
ela sofrer! — Soltei-o, e ele se levantou, tropeçando e ofegante, tampando o
nariz que sangrava. Em seguida, se recostou no carro, me encarando com
olhos alarmados.

— Seu filho da puta. — Furioso, tentou revidar, mas eu desviei, segurei


seu braço nas costas e o joguei contra o carro, pressionando seu rosto na
lataria.
— Some agora daqui, antes que eu perca meu réu primário com você.
— Soltei-o, e cambaleando, Miguel ajeitou a roupa, limpou o nariz
novamente e olhou para Stela. Ela estava de pé, braços cruzados, e uma puta
expressão de vingança, estava adorando vê-lo apanhar.

— Então é assim? — Miguel gritou. — Gostou de ver seu cãozinho de


guarda me bater?

— Você ouviu o que meu cãozinho de guarda falou: vaza! — ela


retrucou friamente, longe de parecer a Stela rotineira. Eu não desviava meus
olhos dela, embasbacado. Miguel entrou no carro e saiu com velocidade.
— Está olhando o quê? — Stela sorriu, maliciosa. — Fico tanto tempo
fora, e é assim que me recebe?

— Estrelinha?
— Vamos, você precisa me dar cobertura. — Ela se virou e andou ereta,
altiva, e imponente, toda cheia de si, em direção à porta.

***

Um ano antes...

— Ei, cara, senta-se aí. — Benjamin me recebeu amigavelmente como


sempre.

E eu previa que, dentro de minutos, tinha chance de ele estar em cima de


mim, tentando me agredir. Puxei o ar com força e sentei diante dele. Diana
estava trabalhando, e Maia, na escola, eu tinha escolhido o momento perfeito
para falar com o Capello mais ligado à Stela.
— Cara... eu precisa de sua atenção — falei com seriedade.

— Diga, Turco. Tem toda minha atenção.

— É sobre sua irmã.


— O que tem a Stela? Aconteceu algo? — Um breve pânico tomou seus
olhos. Eu tinha de tranquilizá-lo antes de falar.

— Não. Ela está bem, muito bem. O que eu vou te contar... preciso que
aja com cautela e que me ajude a solucionar o problema.

— Certo. Pode dizer.

— Há exatos treze anos, Stela me fez uma visita durante a noite. Eu não
entendi nada, afinal nem estávamos nos falando. Porém não debatemos sobre
nossa desavença, apenas transamos.

— O que está dizendo, porra?

— Ela foi convincente naquela noite e apenas pediu para que eu a


amasse, tirasse dela a sensação de solidão que sentia, e eu achei que era uma
recaída e que estávamos fazendo as pazes. E então ela não falou mais
comigo.
— E o que isso tem de tão estranho?

Levantei, e com os dedos cruzados atrás na nuca, andei pela sala de


Benjamin. Ele me acompanhava com os olhos.

— Porque ela voltou a me visitar no ano seguinte, quando já estava


casada. E mais uma vez, só pediu para que eu a ajudasse a tirar aquela
sensação de solidão e perda. Ficamos mais uma vez, e mais outra. Era raro,
uma vez no ano, no máximo.

— Está dizendo que minha irmã traía Miguel com você, porém em
público ela te desprezava e te humilhava?

— Pois é. Eu não entendia, e até achava muita safadeza da parte dela.


Teve uma noite em que eu fiquei muito furioso e não quis ir para a cama com
ela e a mandei embora. Só que, nesse ano, as visitas dela durante a noite
estavam muito frequentes. E no dia seguinte, era como se eu fosse o pior
vilão. Ela ia me visitar e se recusava a falar do passado, a acertar as coisas
entre a gente. Queria apenas desabafar sobre os problemas dela e depois sexo.
Então, por isso, estou vindo te falar, porque eu não sei o que está
acontecendo. Talvez tenha relação ao problema dela...

— Cara, que bizarrice. Quando foi a última vez que isso aconteceu?
— Essa noite... — sussurrei, escondendo o olhar.

— Mas que porra, Ulrich! — Bateu nas pernas e se levantou. — O que


você está fazendo com minha irmã, cara?

— Eu? Só estou seguindo a porra do meu coração...

— Ou da rola, né?

— Não me acuse de uma merda dessa. Stela é muito mais que um


pedaço de carne para mim. Até mesmo quis ir embora, voltar para meu país,
porque minha consciência pesa com a possiblidade de estar me aproveitando
de algum problema dela. Não é sonambulismo, pois ela está muito
consciente, ela fala sobre o marido, fala sobre momentos que vivemos, fala
sobre os irmãos... Eu não estou me aproveitando dela.

— Eu sei quem pode nos dar uma luz. A terapeuta dela. — Benjamin
pegou a carteira, o celular e caminhou rumo à porta. — Vamos falar com ela
agora.

***

— Sentem-se, por favor. — A doutora nos recebeu com curiosidade


quando Benjamin se apresentou à secretária, dizendo quem era. — Em que
posso ajudar?
— Conta para ela, Turco. — Benjamin me cutucou. — Conte tudo. — E
eu falei tudo. Desde o primeiro encontro, até a noite passada.

— Tudo indica que estamos diante de um caso de Transtorno


Dissociativo de Identidade, ou o popular “dupla personalidade” — a doutora
diagnosticou, semicerrando os olhos. Meu coração pareceu falhar no peito.
— Como em O Clube da Luta? — Benjamin questionou.

— Basicamente.

— Meu Deus... — Ele estava perplexo e assustado. — E o que pode


acontecer com minha irmã, doutora? Tem cura isso?
— Não tem cura, mas tem tratamento, para amenizar as dissociações.
Pelo que está me contando, a personalidade dupla apenas busca o que é
desejo inconsciente da Stela. — Ela olhou para mim. — No caso, encontrar-
se com você.

— E a Stela tem noção disso? — balbuciei. — Ela pode ter lembranças


do que a outra personalidade faz?

— Não. Ela jamais saberá sem ajuda. Mas pode acontecer alguns
flashbacks, e ela pode interpretar como um sonho. Mas pode recuperar as
memórias da outra personalidade através de tratamento.
Ela levantou-se, foi até uma estante e procurou algo. Ficou alguns
segundos lá e depois voltou com um livrinho e me entregou.

— Leia isso, para entender melhor. Eu acredito que houve um ponto da


vida dela em que aconteceu a primeira dissociação, uma maneira de Stela se
refugiar. Ela estava incapaz de enfrentar aquele problema, e a segunda
personalidade assumiu.

— Devemos falar para ela? — Levantei os olhos do livrinho e encarei a


mulher.

— Na verdade, temos que falar. Uma merda que vou omitir isso da
minha irmã. Desculpe o palavrão, doutora. — Benjamin levantou-se,
exasperado.
— Benjamin...

— Doutora, ela é casada. Miguel, apesar de um babaquinha, às vezes fez


bem à minha irmã, ele cuida dela, dos bens dela... têm filhos juntos.

— Não podemos simplesmente confrontá-la com essa informação. Pode


ser prejudicial para Stela. Ela pode ficar paranoica, confusa. Precisamos
começar um tratamento, ela mesma precisa descobrir as lembranças da outra
personalidade.
— Eu vou ficar de braços cruzados? — ele insistiu. — Stela confia em
mim...

— Eu vou convencer Stela a voltar para a terapia de regressão —


doutora Eliana falou, tentando acalmá-lo. Em seguida, virou-se para mim. —
Como se sente, Ulrich?

Encarei a doutora, ainda absorvendo tudo que acabara de ouvir. Tinha


vezes em que nem mesmo havia sexo entre Stela e eu. Só ficávamos de
bobeira, falando sobre o dia a dia ou vendo um filme. Eu nem estava mais
saindo com mulher alguma, pois Stela poderia não se lembrar, mas eu
lembrava de nossas noites, e não queria ser um filho da puta que passava a
noite com ela e depois ia ficar com outra.
— Benjamin tem razão. Eu não quero enganá-la. E agora me sinto mal,
como se eu estivesse me aproveitando desse transtorno dela. Mas, por outro
lado, eu gosto quando ela aparece, desabafa comigo e passamos um tempo
juntos.

— É nobre da sua parte em não querer enganar a personalidade


dominante, a Stela. Eu vou encontrar a forma perfeita para que ela tenha
conhecimento do que está acontecendo. Mas você deve, sim, recebê-la e
mantê-la a salvo quando ela está com essa personalidade que não
conhecemos e não sabemos do que é capaz.
— Eu preciso ir. Quero pensar com mais cuidado. — Fiquei de pé.

— Eu também preciso digerir toda essa confusão antes de decidir sobre


qualquer coisa — Benjamin falou, notavelmente aflito. Eu entendia seu
desespero, Stela e ele tinham um laço forte, e foi por isso que eu recorri a ele.

— Tudo bem. — Ela pegou dois cartões, deu um para mim e outro para
Benjamin. — Me liguem se perceberem qualquer coisa de diferente, vamos
monitorá-la. Ninguém aqui vai enganá-la, vamos trabalhar para ajudá-la. —
Doutora Eliana virou-se para mim. — Você é o porto seguro dela. É o único
lugar que Stela recorre quando dissocia, não pode virar as costas nesse
momento.
Eu apenas assenti, segurando o livrinho com força. Eu descobri que
amava também a personalidade que sempre ia me visitar. Ela era espontânea,
bebia cerveja no gargalo, via filme de terror, era forte e decidida e gostava da
minha companhia. E eu queria conquistar a outra Stela, quebrada,
introvertida, insegura, mas que também era apaixonada pela vida.

***
Dias atuais

— Ei, ei. — Segurei no braço de Stela, interrompendo-a antes de entrar


na casa. — Quando aconteceu? Quando você apareceu?

— Stela não aguentava mais, e tive de assumir. Mas ela foi esperta, não
assinou porcaria nenhuma, só escreveu “vá se foder” em todas as folhas,
fechou a pasta e saiu. — Gargalhou. — Nesse momento, o desgraçado já
percebeu que foi passado para trás.
— O que está acontecendo? Assinou o quê? Tem que me contar tudo —
exigi.

— Venha. Temos pouco tempo.

— Quarto bacana — falei observando o quarto de Stela, onde eu jamais


tinha entrado até então. Olhei a cama de casal ,e meu coração apertou.
— Se tivesse tempo, eu ia estrear essa merda de cama com você. Esse
antro de santidade da minha outra face... — ela falou em frente ao espelho,
juntou os cabelos em um rabo de cavalo e começou a passar um pó no rosto.
— Miguel foi embora, não vai mais voltar.

— Que merda está acontecendo? Por que chorava ao telefone?

— Eu vou resolver tudo isso sozinha. Você só vai precisar me dar


cobertura, mas sabe o que eu gostaria de verdade nesse momento? Ligar para
cada um dos meus irmãos, contar tudo e só os observar indo moer os dois
safados na pancada. Eles teriam que me devolver tudo na base da dor.

— Ei, Estrelinha. — Segurei-a pelos ombros. — Olha para mim,


acalme-se. Não vamos fazer nada de sangue quente. Me conte o que houve.
— O filho da puta deu um golpe e é bissexual, isso eu já sabia, mas
agora está tendo um caso com um pilantra — resumiu, de forma atropelada.

— Miguel? Miguel é bissexual?

Então eu não estava louco, o vi mesmo beijando outro homem dentro do


carro.
— Exato... deve ter manjado muito sua bunda, porque, convenhamos,
você tem um bundão. — Deu uma piscadinha e voltou a se encarar no
espelho.

— Agora eu fiquei bem relaxado em saber que seu marido olhava minha
bunda.

— Ex-marido. Eu nem estaria tão brava se fosse só a traição. —


Apontou o pincel para mim. — Mas ele ameaçou tomar a guarda das
crianças, me chamou de doente mental e ainda disse que o divórcio deveria
ser assinado e que eu precisava ir embora da cidade sem falar nada com
ninguém, até os negócios dele se concluírem. — Ela riu de forma raivosa. —
Mandou a Stela ir embora da cidade e não falar com ninguém, acredita?
Jamais vou aceitar isso. Desejo tanto bater no infeliz do Rômulo...
— Esse Rômulo... quem é?

— Um pilantra do passado que voltou para azucrinar minha vida. Eu


tenho uma foto dele mamando o besta do Miguel. Posso mostrar ao juiz em
uma possível audiência.
— Só piora, por Alá.

Ela abriu a bolsa, pegou uma foto e estendeu na minha cara.

— Puta que pariu. — Puxei a foto e analisei com cuidado a cena. —


Que escroto do cacete. Não quer dar uma passadinha na doutora Eliana? Ela
deseja falar com você, com a Estrelinha.

— Oh, meu gostoso. Será que não entendeu que tem um pilantra feroz
vindo atrás de mim porque o passei para trás?

— Calma, venha aqui. — Puxei-a e a fiz sentar na cama. Em seguida,


me sentei ao seu lado. — Vamos entender isso. Não vamos fazer nada fora da
lei. O que houve de início?
— Miguel fez Stela assinar uns documentos e tomou tudo, incluindo as
ações da Capello.

— Andrey e Fernando já sabem?

— Você acha que se eles soubessem Miguel estaria vivo?


— Ok. Você pode contestar essa assinatura na justiça, ainda mais com
depoimentos da doutora Eliana, com a posse de todo o seu histórico.

— Acontece que Rômulo, amante do Miguel, colocou os meus filhos na


jogada. E disse que se contestar, Miguel tomaria os filhos na justiça, alegando
enfermidades mentais.

— Faz sentido. — Acariciei a barba, pensativo. — Seria uma árdua luta,


mas certamente ele não venceria. Você teria os melhores advogados.
— E aí ele disse que só não requisitaria a guarda se eu fosse embora da
cidade por um mês e assinasse os papéis de divórcio e não contasse nada para
meus irmãos ou qualquer pessoa. Na verdade, os dois morrem de medo dos
meus irmãos. Thadeo sozinho resolve o problema.

— E o que você fez?

— Stela, com esperteza para ganhar tempo, rubricou VSF em todas as


folhas e assinou “Stela de Vá Se Foder Capello” na última. Fechou a pasta e
deixou sobre a mesa. É uma questão de tempo para ele descobrir e tentar
algo.

— Boa! — Dei uma risada. — Fez bem. É muito cedo para contar para
irmãos, porque eles vão atropelar Miguel sem raciocinar. Vamos armar um
plano. Miguel acabou de sair de casa, temos prova da traição dele, e esse
pilantra me deu uma ideia. Vamos te colocar como se estivesse indo para
uma viagem de férias com as crianças.

— Ulrich, eu não vou fugir e deixar esse imbecil sair ganhando.


— Não é fugir. Só precisamos de tempo para montar o processo contra
ele. Vamos deixar recados na caixa de mensagem do próprio Miguel, apenas
para provar depois que você tentou contactar. Será como se você estivesse
precisando dele e ele tivesse evaporado. Também vamos deixar recado no
celular do seu pai e do Benjamin. Será seu álibi que não está fugindo, está
apenas precisando de férias, e seu marido te abandonou, qual juiz vai querer
dar guarda para um homem desses?

Ela riu e bateu palmas, em seguida me deu um abraço.

— Estava com saudades de você... — sussurrou. — Stela e eu —


emendou.
— Ela ficou puta de ciúmes — falei, rindo. — Ciúmes dela mesma.

Ouvimos alguém bater na porta, nos afastamos, e eu fiquei de pé


prontamente. Era a filha dela. Raquel olhou desconfiada para mim e em
seguida para a mãe.

— Mamãe... para onde vamos? É praia ou esquiar? Eu não sei o que


colocar na mala.
— É um resort — eu falei. — Leve roupa para banho, tem parque
aquático.

— Por que você está aqui? — ela questionou.

— Porque Ulrich é o novo amigo da mamãe. Acabei de fazer as pazes


com ele. Venha, vou te ajudar com a sua mala. — Fez sinal para que eu
esperasse e saiu do quarto, levando a menina.
Olhei em volta, vi a mesa de maquiagem repleta de coisas bonitas e
caras. Stela era vaidosa, nas duas personalidades. Na cabeceira, um porta-
retrato com uma foto dela e Miguel no dia do casamento. Virei a fotografia
para baixo. Fui até o closet, abri e percebi que a parte de Miguel estava vazia.
Ele tinha mesmo saído e ninguém tinha noção do tamanho do alívio que me
tomou. Peguei meu celular, tirei algumas fotos da parte vazia e saí do closet.

Stela arrumou suas coisas em tempo recorde. Depois ligou para Miguel,
e como esperávamos, ele não atendeu. Então, no aplicativo, ela deixou um
áudio:

“Oi, Miguel, o que está acontecendo? Por que suas roupas sumiram do
closet? Você não atende minhas ligações. E nossa viagem, como tínhamos
planejado? Estou te esperando com as crianças no aeroporto, querido.
Apareça, estou preocupada.”

— Pronto. Isso aqui é apenas para o caso de ele alegar que você fugiu
com as crianças. Vamos?

— Estou pronta. — Ela segurou minhas mãos. — Tome conta de tudo,


por favor. Stela jamais pediria sua ajuda, eu sei que você fará o que é certo.
— Eu farei.

— Não precisa ir conosco... você tem seu trabalho.

— Claro que eu preciso. Imagine Stela voltar s si e se ver sozinha em


um avião sem saber para onde está indo? Eu posso ligar para Cora, e ela toma
conta de tudo para mim.
— Sabe que quando ela voltar a si e te ver vai surtar e te xingar de tudo
que é nome, não é? — Rimos juntos. Eu já imaginava a cena.

— Eu posso aguentar. Além do mais, vou levar minha cueca com a


descrição: “vai ter que me engolir”. Ela vai querer atirar em mim.

Mais uma vez gargalhamos juntos.


— Eu vou amar ver isso.

— De qualquer forma, eu consigo dobrar a Stela. Amo vocês duas. —


Beijei a testa dela e recebi um abraço apertado. Nós nos afastamos rápido
para que ninguém visse.

— Estava pensando — falei enquanto descíamos as escadas —, Miguel


sabe que Thadeo tem gosto peculiar com a manteiga?
— Para. — Ela suprimiu o riso.

— Sei lá... — continuei. — Se ele gosta de homem também, deve gostar


da modalidade anal... Então, se ouviu Thadeo falar da manteiga no cu, deve
ter ficado...

— Cala essa boca. — Ela gargalhou. — Olha em que você está


pensando em um momento desse, Ulrich!

— Desculpa. Só que um dia eu vou precisar contar isso para o Thadeo.

Ajudei com as malas, colocamos tudo no meu carro, e quando entrei no


lado do motorista, as crianças estavam intrigadas, buscando entender o que
acontecia.

— Ulrich vai nos dar uma carona. Depois ligo para o papai — ela
explicou.
— Olá, crianças — cumprimentei.

— Nós não gostamos de você. — Nathan cruzou os braços de forma


petulante.

— Nathan! Que modos são esses? — A mãe o reclamou e ele deu de


ombros. Ao lado dele, Raquel me encarava desconfiada.
— E por que não gostam de mim? — Resolvi instigar.

— Porque o nosso pai disse para a gente não gostar.

— Ah, sim. entendi. Vocês nem vão me conhecer para tirar seus
próprios conclusões?
— Por que você fala errado? — Nathan indagou, ainda com a expressão
fechada, mas o cenho franzido.

— Sou turco, nasci na Turquia e as vezes, derrapo na português.

— Por que você vai com a gente? — Raquel parecia cansada de


conversa boba e queria uma resposta contundente.
— Porque eu não sou tão mau como seu pai achava. Talvez vocês me
vejam como inimigo, mas não estou aqui para tomar o lugar de ninguém,
apenas ajudar.

Ela relaxou os ombros e soprou o ar longamente.


— Podemos ao menos tentar sermos amigos durante a viagem? —
Insisti, dando um sorriso de confiança.

Os dois balançaram a cabeça concordando.

— Nós vamos para a Turquia? — Nathan questionou.

— Sabe que não é uma má ideia? — Gargalhei. — Mas, no momento,


vamos para um lugar mais perto. Vocês vão gostar. — Liguei o carro, e
partimos.
09

STELA

Antes de abrir os olhos, já sentia a cabeça explodindo de dor. A


enxaqueca novamente. Coloquei o travesseiro na cabeça e me virei,
afundando o rosto no colchão e desejando ficar ali até a dor melhorar. Mas,
contra a minha vontade, comecei a reviver com rapidez os momentos
anteriores. O encontro com Rômulo, o choro na rua, e...

Abri os olhos e afastei o travesseiro. E o quê? Não lembrava de mais


nada.
Eu estava em uma cama, o quarto ainda coberto por um tom escuro, e
havia alguém ao meu lado. Instantaneamente o pânico me tomou. Era outro
episódio de esquecimento, como das outras vezes em que acordei no sofá na
sala e não sabia como tinha ido parar ali.

— Miguel? — Toquei de leve nas costas largas. Não obtive respostas.

Meu bom Jesus.


Afastei o edredom que me cobria, agradecendo mentalmente por estar
vestida com um pijama que eu reconheci sendo meu. Saí da cama e afastei a
cortina, me certificando que lá fora já era dia. Abri as cortinas totalmente
deixando a luz entrar no quarto.
Era um lugar totalmente desconhecido. A aflição fazia meu coração
disparar no pescoço. Pela televisão na parede, o banheiro e um frigobar, dava
para presumir que era um quarto de hotel. Olhar pela janela não ajudou
muito, pois não reconheci o lugar.

Mas que merda.


— Miguel? — chamei-o novamente, ainda dormia de costas para mim.
Era impressão minha ou tinha algo em suas costas...

Minha respiração estava entrecortada. Com suspense, dei a volta na


cama. Sim, era uma tatuagem nas costas...

Não podia ser.


Cheguei na frente dele e puxei o cobertor, descobrindo o restante das
costas. Ele se assustou e tirou o rosto do travesseiro olhando para mim.

— Aaahh! — gritei, me afastei e bati as costas com força no painel da


televisão. Assustado, Ulrich sentou-se na cama. A cara amassada, os cabelos
assanhados, e os olhos semicerrados me olhando.

Peguei uma pequena obra de arte que tinha ali e apontei para ele, em um
gesto de defesa.

— O que... que você fez comigo? O que está fazendo aqui?

Ele massageou os olhos, demostrando tranquilidade, e em seguida se


espreguiçou. Estava seminu, o patife. Olhei seu peito forte e os bíceps
saltados e engoli em seco.

— Que susto, mulher. Achei que já era o al-Din[2].


— Onde eu estou? E por que está aqui comigo? O que você fez? Fala!
— eu berrava não de raiva, mas de medo e confusão. Eu estava assustada
comigo mesma, sem saber o que eu poderia ter aprontado, não lembrava de
nada. Nem em um milhão de anos pensei que poderia acordar em uma cama
ao lado dele.

— Stela, mantenha a calma e abaixa essa coisa. Você está em um resort.


— Um resort? Como...? Por quê?

Ele afastou todo o cobertor e jogou as pernas para fora da cama. Graças
a Deus, vestia uma calça moletom.

— Você... me obrigou a transar? — gaguejei de olho nele, ainda


mantendo distância e com a minha arma branca improvisada apontada.
Ulrich me olhou e suspirou.

— Não, querida, não transamos. Não era um clima propício. Mas tenho
fé que um dia você vai conhecer o ataque turco.

— Então diga logo por que estou aqui! Você me sequestrou para me
seduzir?
Ele ficou de pé.

— Bom, parece que eu tenho um exemplo a seguir, que é o de


Fernando, seu irmão. Eu iria te sequestrar te chamando de abacaxi e... há um
porém... — Ele levantou um dedo como se acabasse de lembrar de algo. —
Tem duas crianças com a gente que me impediriam de fazer isso. —
Caminhou para uma porta, que só reparei naquele momento, e a abriu,
fazendo gesto para eu me aproximar.

Com cautela, dei alguns passos e espiei de longe. Era outro quarto, com
duas camas, reconheci Raquel em uma delas.
— Ainda mais com uma menina tão desconfiada como a sua e uma
tagarela como o menino — Ulrich finalizou a explicação de modo divertido..
Eu passei rápido por ele, entrei no quarto e observei cada um deles. Dormiam
como anjos, a televisão ainda ligada. Desliguei a televisão, e voltei feito uma
arara para o outro quarto. Ulrich me esperava. Enorme, descomposto, sem
camisa e cheiroso até quando acordava. Que inferno de turco.

Ignorei e mantive distância. Com a mãos na cabeça, eu tentava entender.


— Eu não lembro como vim parar aqui.

— Não? Costuma ter esses episódios de esquecimento?

Lembrei da doutora Eliana dizendo sobre a minha mente dar um branco


às vezes. Voltei a encarar Ulrich. Passei os olhos pelo seu corpo, por puro
descuido, e acabei olhando na direção do pênis. Uma elevação considerável
aparecia no moletom. Mas que droga! Eu tinha de aprender a ignorar.
Ele percebeu, com certeza. Vi seu lábio subir discretamente para cima.
Vadio desgraçado.

— Mas por que estava dormindo na mesma cama que eu?

— Porque só tem uma aqui. Durante o sono, você até tentou me acochar
por trás, mas não deixei. Se quiser tocar no homem, tem que valorizar antes.
— Deu uma risadinha patética e foi para o banheiro. Antes de entrar, decidiu
falar sério: — Acho melhor você ligar para sua médica e contar o que houve.
— Que cidade é essa?

— Fortaleza, Ceará.

Ele estava certo nessa parte. De alguma forma, que eu ainda ia fazer
Ulrich me contar, eu tinha chegado aqui e não lembrava como. Como ele
pôde me convencer a viajarmos juntos?
Encontrei meu celular e vi também algumas malas. Havia roupas
minhas em uma delas. Lembrava que eu planejava mesmo sumir da cidade
com as crianças e por isso tinha ido buscá-las na escola.

Ah, entendi! Ulrich me seguiu. Certeza.


Liguei para doutora Eliana, e quando ela atendeu, contei tudo. Sobre a
pressão que Rômulo fez, sobre lembrar de ir buscar as crianças na escola,
mas que havia acordado naquele momento em um resort no Ceará com Ulrich
e meus filhos.

— Stela, você confia nesse homem?

— Bom...
— Acha que ele pode te fazer mal?

— Não. Isso tenho certeza.

— Então vou te pedir para ficar mais um pouco aí e relaxar antes de


voltar e passar em uma consulta comigo. Aconteceu de novo, sua mente
apagou parte das lembranças, mas podemos recuperá-las com a regressão.
Está disposta a continuar?

— Sim, doutora. Dessa vez, irei até o fim.

— Que bom, querida. Quando voltar, me ligue. Pode ficar tranquila,


vamos resolver esses problemas que você vem enfrentando.

— Obrigada, doutora.
Ulrich saiu do banheiro e me olhou curiosamente.

— Ligou para ela?

— Sim. — Fui à minha mala e escolhi às pressas um vestido florido que


estava por cima.
— E o que ela disse? — Ele estava a porra de um gato, com as mãos na
cintura, me observando.

— Não é da sua conta. — Fui má, porque estava com raiva dessa minha
propensão a admirá-lo.
— Tudo bem. — Jogou as mãos para cima, se rendendo, e na minha
frente tirou a calça, jogando-a sobre a cama. Fiquei petrificada, e quando se
virou, vi os dizeres no cós da cueca: “Vai ter que me engolir”.

Enfiou os dedos nos cabelos, jogando-os para cima, e caminhou para


uma mala. Em seguida a pegou e a colocou na cama. Eu ainda estava parada,
encarando-o.

— O quê? — Abriu os braços se exibindo. — Está enfim percebendo o


que perdeu?
— Inferno! — berrei e fui para o banheiro.

No banheiro, me controlei, contando até trinta. Recompus a respiração,


tirei o pijama e coloquei o vestido. Só saí quando estava completamente
arrumada. Ulrich estava numa boa, sentado em uma poltrona. Vestia jeans
claro, tênis baixo e uma camiseta comum que modelava seu peito largo e seus
braços.

— Você me seguiu, não é? Eu já pretendia viajar com as crianças...


Ele ficou de pé.

— Vamos ao restaurante, tomar café, para eu poder te esclarecer tudo.

— Mas e as crianças...?
— Deixe um recado para Raquel. Mesmo que eu ache improvável que
eles acordem agora.
E eu fiz isso, pois estava muito curiosa para saber o que houve no dia
anterior e até que ponto contei para ele. Deixei o bilhete em cima do celular
dela, pois sabia que era a primeira coisa que pegaria.

Eu estava muito desconfortável ao lado de Ulrich. Fazia anos que a


gente não ficava assim, tão perto e sozinhos.
Dentro do elevador, ele recostou de braços cruzados, me olhando.

— Está olhando o quê?

— Sua beleza. Quer namorar comigo?


— Ah, vai se lascar. — As portas abriram, e eu saí na frente. Ulrich me
acompanhou. E para complicar as coisas, colocou óculos escuros, o que
triplicava o auge da beleza.

Havia duas mulheres na mesa do buffet que o encararam


descaradamente e ainda cochicharam. Ulrich, nem aí.

— Você só faz isso para se sentir o tal, não é? — resmunguei.


— Fazer o quê? — Vi suas sobrancelhas se erguerem por cima dos
óculos. Em seguida olhou para o lado e viu as mulheres. — Bom dia,
senhoritas — cumprimentou.

Ok. Ele não estava fazendo nada, eu é que estava sendo ranzinza. Virei-
me com a cara fechada para as mulheres, querendo dizer para elas pararem de
encher a bola desse cara.

Escolhemos algumas coisas na mesa de comida e nos sentamos. Eu não


tinha um pingo de fome, apenas preocupação.

Ele tinha escolhido um copo duplo de leite puro. E eu me lembrei de


como ele gostava de iogurte e leite. Observei-o beber e em seguida partir um
pão para encher de bobagens: queijo, presunto, peito de peru.

— O que eu te contei? — perguntei.


— Tudo. Sobre Miguel e o tal Rômulo. — Deu a primeira mordida no
sanduíche improvisado.

— Eu te contei... sobre o Miguel ser...

— Sim, sobre ele gostar de observar minha bunda no sigilo. Sobre o


divórcio que você não assinou...
Envergonhada, coloquei as duas mãos no rosto. Estava só esperando o
berro de Ulrich debochando por minha queda. Olhei por entre os dedos, e ele
mastigava tranquilamente, me fitando.

— Zombou de mim?

— Como?
— Você zombou quando soube de tudo isso? Gritando na minha cara
que achava bom o que me aconteceu, só para eu pagar o que te fiz...

— Esperava isso de mim? — Limpou a boca e bebeu mais um pouco de


leite.

— Basicamente. — Beberiquei o café.


— Na verdade, eu dei um bom soco no nariz do infeliz, pois eu tinha
deixado claro o que aconteceria se ele te fizesse mal.

— Bateu no Miguel?

— Sim. Depois peguei você e as crianças e sumimos no mundo. Rir de


você era a última coisa que eu desejaria fazer.
As palavras dele me deixaram sem graça. Desviei o olhar. Ulrich teve
uma postura madura, resolvendo um problema que era meu.

— Eu devia estar muito pirada para ter te contado tudo.


— Na verdade, sim. Você estava bem puta de raiva e era a própria
Estrelinha. Você foi corajosa.

— Eu gostei de escrever vá se foder como assinatura.

— Isso foi fantástico. Eu quero te ajudar. Não vamos permitir que


Miguel saia dessa ganhando.
— Eu não sei o que fazer... tenho medo de ele usar as crianças.

— Ele não teve consideração nenhuma pelos filhos ou por você. E ele
tem sorte que seus irmãos ainda não souberam de nada.

— Thadeo poderia machucá-lo. O que tem planejado?


Se fosse há alguns dias e alguém me contasse, eu não acreditaria que
estaria sentada diante de Ulrich, querendo conselhos para que decisão tomar.

Ele limpou os lábios e me contou resumidamente que eu ia ficar


afastada até estar tudo pronto para entrar com a contestação da assinatura na
justiça. Também disse que eu ainda estava casada com Miguel e tinha uma
prova da traição dele. Ele não iria conseguir tomar meus filhos.

— Você foi esperta em não ter assinado o divórcio.


Assenti.

— Eu preciso encontrar uma forma de contar para as crianças sobre a


separação. Você vai pedir outro quarto para você?

— Logico que não.


— Não podemos continuar dividindo a mesma cama.

— Por quê?

— O que meus filhos vão pensar, Ulrich?

— Eles já estão pensando. Nathan me perguntou se eu vou ser o seu


namorado, igual a mãe do colega dele. E Raquel está de cara virada para
mim, como se eu fosse o destruidor de lares.

— Ah, meu Deus! Preciso encontrar uma forma de informá-los sem


criar um trauma.
Nesse momento, meu celular tocou. Abri a bolsa e vi no nome de
Raquel.

— Oi, filha.

— Mãe, Nathan está enlouquecido querendo sair do quarto.


— Estou chegando aí. Aguarde só mais um instante. — Desliguei e
olhei para Ulrich. — Pode ficar aqui até eu conversar com eles?

— Claro. Arranque de uma vez esse curativo, antes que Miguel tenha a
oportunidade de distorcer tudo. Eles são inteligentes e vão entender.

Pela primeira vez, dei um breve sorriso para ele, por compreender a
situação. Mas eu ainda ia expulsá-lo do quarto.
Ou talvez não.

***

Cheguei no quarto, Nathan estava tentando falar com o serviço de


quarto, e Raquel, ajeitando os cabelos em frente ao espelho.

— Ei, vocês dois. Venham aqui. — Sentei-me na cama, e os dois


vieram. Sentaram comigo, me olhando com atenção. Encarei minha filha e
dei um rápido sorriso, mas por dentro dolorido. Eu nunca quis que esse dia
chegasse, mesmo achando que era questão de tempo acontecer.
— O papai não vem? — Nathan perguntou, creio que já imaginando que
essa conversa séria sobre Miguel.

— Vocês dois já devem ter percebido que o papai não veio, e que nos
últimos dias ele esteve bastante afastado.

— O Ulrich é seu namorado, mãe?


— No passado fomos namorados, mas agora não somos. E prometo que
vocês seriam os primeiros a saberem se algo assim acontecesse. E não é sobre
isso que quero falar. Ele não tem nada a ver com o que a gente vai conversar.
O que quero dizer é que chegou aquele momento chato que o casal precisa
seguir caminhos opostos.

— Você e o papai vão se separar? — Raquel questionou, abraçando o


próprio corpo.

— Mas, mãe...! — Nathan exclamou, contrariado, fazendo cara de


choro.
— Querido, a vida dos adultos é muito complicada para vocês
entenderem. O pai de vocês fez algumas escolhas ruins que me magoaram.
Não há uma terceira pessoa culpada por isso, Miguel escolheu trilhar um
caminho que afastou ele e eu.

— E o que ele fez? Ele tem uma namorada?

— Não, não tem. E vocês não precisam saber dos nossos dilemas agora.
Vão saber mais tarde. Venha aqui, vou contar uma história sobre mim.
Cheguem mais perto. — Recostei na cabeceira e abracei um de cada lado. —
Meus pais também se separaram.

— O vovô João? — Nathan indagou.


— Sim, exatamente. E então fomos morar com nossa mãe, lá na vinícola
do tio Thadeo.

— Que ainda não era do tio Thadeo?

— Ele, o tio Andrey, Fernando, todos eram crianças. A vinícola era da


nossa mãe.
Contei para eles as minhas melhores lembranças daquela época. Eu
sempre conseguia percorrer aquelas memórias sem pisar na parte
aterrorizante. Evitei falar do fim trágico de minha mãe, mas deixei claro
como os filhos poderiam ter pai e mãe morando em lugares diferente e ainda
assim viverem felizes.

Eu os ajudei a se vestir e desci, acompanhando-os para o restaurante


onde Ulrich ainda estava na mesa. Cada um escolheu o que queria comer. O
semblante estava cabisbaixo, as crianças estavam tristes. Permaneceram em
silêncio até Nathan dizer:

— Meu pai vai morar em outra casa, agora — confidenciou para Ulrich.
— Está muito triste com isso?

Eu apenas observava a interação entre eles.

— Um pouco. — Deu de ombros. — Mas vou poder ver ele sempre.


— É, vai, sim. Por que a gente não vai dar uma volta e conhecer a
cidade?
Nathan apenas assentiu, sem olhar para Ulrich.

— Vou pegar geleia — anunciou e levantou-se da mesa.

— Quando foi que você namorou com minha mãe? — Raquel


perguntou de supetão a Ulrich.

— Raquel! — gritei, advertindo-a.

— Ah... faz muita tempo. — Ulrich balbuciou.

— É... éramos praticamente crianças — completei.

— Olha isso. — Ele abriu a carteira, pegou algo e colocou na mesa


diante de Raquel. Ela pegou e vi um sorriso brotar em seus lábios.

— É a mamãe?
— Sim. Na festa de quinze anos.

Curvei para o lado e espiei a pequena foto onde estavam Ulrich e eu


dançando a valsa de debutante. Eu estava impressionada por ele guardar na
carteira aquela foto.

— O cabelo dela era lindo. E você era muito magro. — Raquel terminou
a análise e devolveu a foto para ele. — Você gostava dela?

— Raquel!

— Eu sempre gostei — ele respondeu, olhando para mim.

— É como eu disse, filha, a vida dos adultos é muito complicada, e às


vezes o casal precisa seguir caminhos opostos.
No rosto de Ulrich havia apenas mágoa. Ele olhou mais um pouco a foto
e a guardou. Ele tinha a força de cem guerreiros, mas às vezes desabava como
um frágil bibelô.
10

STELA

Anos antes

— Como é a Turquia? — perguntei a Ulrich, andando com ele ao redor


da praça. Ele empurrava uma bicicleta cargueira meio velha, a qual usava
para fazer entregas para o avô que fazia pães e biscoitos caseiros.

— Meu país é um lugar lindo — ele falou após pensar um pouco,


escolhendo as palavras. — Eu nasci em Capadócia, perto das rochedos. A
casa de meu mama era uma das entalhadas nas paredes.

— Entalhada? Como assim?


— Porque antepassados criavam casas em rochas, como cavernas. E elas
ainda existem até hoje.

— Nossa. Morava em uma caverna? — Franzi o cenho, provocando


uma risada nele.

— Evet.[3] Tem hotéis nas pedras e atrai muitos turists.


— Que legal. Um dia eu queria conhecer.
— Você vai conhecer. Comigo. — Ulrich parou de andar e me puxou de
leve para junto do seu corpo. Ele era muito alto e tinha de abaixar para que
seus lábios tocassem os meus. Eu estava apaixonada pelo meu turco magrão.
Tinha acabado de completar quinze anos, e minhas colegas odiavam o fato de
que eu escolhi um entregador de biscoito, magrelo e alto, em vez de ter
escolhido um dos caras do time de futebol da escola, garotos lindos, fortes,
alguns ricos.

No fundo, eu achava que nenhum deles aceitaria nada comigo por causa
da fama de mau que meus irmãos carregavam. Os garotos tinham medo deles,
principalmente Ulrich, que era amigo do Thadeo, mas tinha receio que
descobrisse que ele estava ficando comigo.
Todavia Ulrich que me entendia, ele conhecia minhas dores e não media
esforços para me ajudar. Era ele quem segurava minha mão quando a
ansiedade atingia o limite e ameaçava me derrubar. E era ele que ia comigo
na clínica visitar minha mãe e que me consolava depois enquanto eu morria
de chorar.

Ele afastou os lábios dos meus. Mexeu em meus cabelos, exibindo um


olhar encantado.

— Um dia, queria mostrar a você a revoada de balões, na Capadócia. Eu


não sei se terei dinheiro o suficiente para alugar um balão e te levar pelos
ares, mas podemos só subir nas rochas e ver.
— Eu vou adorar qualquer um dos dois. — Fiquei na ponta dos pés para
beijá-lo novamente, mas ouvi chamarem meu nome. Era Miguel. Eu me
afastei de Ulrich e andamos até ele.

— Stela, seu pai está te chamando. E disse que é agora.

— Meu pai? — Olhei meu relógio de pulso. Eram três da tarde. O que
ele queria comigo às três da tarde? Geralmente ele só conversava com a gente
na hora do jantar.

— Sim, eu fui à sua casa e ele está preocupado.


— Tudo bem, já estou indo.

— Aceita uma... como se diz, ajuda para te levar...? — Ulrich


questionou.

— Carona?

— É. Isso. Aceita um carona? — Ulrich montou em sua bicicleta. —


Vamos, Estrelinha, sente-se aí na frente.

Olhei para a parte de levar a carga, que ficava na frente da bicicleta.

— Você pode cair, Stela — Miguel alertou.


— Respeita, moleque. — Ulrich interveio. — Sou piloto professional.

— A palavra correta é profissional — Miguel o corrigiu, e Ulrich


apenas deu de ombros.

Que se dane.

Eu sabia mais que todos que arranhões contavam histórias. Montei na


bicicleta, e Ulrich deu a partida. Era muito estranho viajar na frente e não na
garupa ou no quadro.

— Engole poeira, Miguel — Ulrich berrou, debochado, aumentando a


velocidade.

— Meu Deeeus! — e eu gritava, segurando tão forte, que achei que


meus dedos quebrariam. Era mais uma experiência emocionante em minha
vida, antes tão pacata e tediosa.
Quando chegamos em casa, Ulrich nem entrou, só me deu um beijo de
despedida e foi embora. Eu entrei sem esperar Miguel, que vinha atrás. Corri
pelo jardim, subi as escadarias da frente e empurrei a grossa porta de
madeira.

— Stela! — Miguel gritava, me seguindo. Como eu conhecia meu pai e


sua intolerância para desobediências, não esperei por ele.
Andrey vinha da cozinha quando entrei. Estava acompanhado de uma
garota, que não era sua namorada oficial. Carregava uma tigela enorme de
pipoca na mão. Ela levava duas latinhas de Coca.

— Onde está o pai?

— No escritório. Não fale que estou recebendo visita. Vamos. — Subiu


correndo com a menina em direção aos quartos.

Fui para o escritório. Bati de leve na porta e empurrei. Meu pai era um
homem alto e bonito. Sempre muito elegante. Já passava dos sessenta, mas
parecia bem mais novo.

— Oi, pai. Estava me procurando?

— Oi, querida. Não. Está tudo bem?

— Sim. Achei que tinha mandado me chamar.

Eu ia matar o Miguel.
Ele recostou na cadeira executiva e me analisou por segundos. Tirou os
óculos e massageou os olhos.

— Não mandei. Mas já que está aqui, quero perguntar: estava


novamente com aquele rapaz?
— Ulrich? Sim, estava.

— Ele te faz bem e te respeita?

— Sim, pai. Ulrich é uma pessoa boa. Desde que começamos os


passeios à tarde, eu me sinto melhor. Minha ansiedade abrandou, e sempre
que tenho aqueles episódios... ele consegue me ajudar.

— Eu fico feliz em ouvir isso. E saiba que só permito essa amizade de


vocês porque ele te faz bem. Mas apenas amizade. Saiba que não é do meu
agrado que fique com um pé-rapado como ele. Além de você ser nova para
namoro, ele é de outro país. Um país islâmico.

— O Ulrich não segue à risca os dogmas dessa religião. E mesmo que


seguisse, para mim não teria importância.
— Você é nova, querida. Entenderá tudo no futuro. Sua festa de quinze
anos é semana que vem, eu não quero surpresas, haverá pessoas importantes
lá.

— Eu sei. Bom... tenho um dever de casa para fazer. Até o jantar, pai.

— Até logo, filha. Colocou os óculos e voltou a se concentrar em uma


papelada à sua frente.

Saí do escritório e fiquei parada, pensando nas palavras do meu pai. Eu


sempre soube que ele jamais aprovaria um namoro com Ulrich, mas eu estava
determinada e iria passar por cima de tudo para continuar a me encontrar com
ele. Se depois não desse certo, é porque o destino quis assim.
11

ULRICH

Dias atuais

Terminei de passar protetor no rosto e saí do banheiro. Stela ainda


estava no quarto, indecisa enquanto analisava a roupa no espelho. Usava algo
como um vestido folgado e transparente por cima do maiô. Passei bons
segundos observando-a. A mulher que eu aprendi a amar de longe.

Mas não pensem que fui um idiota que se sentou de boca aberta e a viu
seguir a vida.

Mesmo amando-a em silêncio, eu aceitei minha derrota e também segui


a minha vida, e foi bem movimentada. Eu sempre desejei estar ao lado de
Stela em cada conquista, segurar sua mão em cada dor e rir com ela nos
momentos bons, mas não foi a mim que escolheu para esses momentos.
Enquanto Stela dava à luz, eu conhecia baladas ao redor do Brasil. Quando
ela ensinava os filhos a andar ou falar, eu fazia mulheres gritar de prazer em
alguma cama de motel. Enquanto arrumava as crianças para ir para a escola,
eu estava com um mestrado concluído e entrando em uma das agências de
advocacia mais respeitadas.
Mas então as visitas da Estrelinha ficaram frequentes. E minha vida
parou só para esperá-la, porque eu jamais a trairia, mesmo que não se
lembrasse. Eu passei a aceitar as migalhas, e às vezes — podia parecer
estúpido — tinha medo de Stela não voltar mais.

— Ficou ótimo. Escolha esse, por favor. — Ela se virou para mim e não
conseguiu esconder a surpresa ao me ver só com um short de banho. Passou
os olhos pelo meu corpo, e em vez de ficar furiosa como sempre fazia,
voltou-se a encarar no espelho.

— Não sei se são modos de uma mãe... Nem sei por que essa coisa
estava na minha mala.

— Uma mãe de trinta anos, e mesmo que fosse de sessenta, poderia


vestir o que te faz bem. — Stela estava insegura, eu podia ver em seus olhos.
Fui até ela e segurei em seus ombros. Seus olhar cravou no meu pelo espelho.
— Por trás de uma mulher bem resolvida, existe ela mesma. — E no caso de
Stela, era literal, existia uma versão bem segura de si lá dentro.

Stela estava paralisada, me olhando. Depois passou os olhos pelo


próprio corpo. De repente, virou-se e deu um tapa em minha mão.
— Me largue. O que você entende de empoderamento feminino? Trata
as mulheres como um pedaço de carne, ficando com todas elas e as largando
no dia seguinte — acusou com raiva.

— Elas tem que ir embora no dia seguinte. Até porque, aqui no Brasil,
não é permitido um homem ficar com várias mulheres definitivamente. —
Acariciei meu queixo, elaborando um tom pensativo. — Mas minhas terras
têm histórico de sultões com haréns gigantescos. — Dei alguns passos na
direção dela, Stela afastou-se até bater as costas no espelho. Olhos saltados.
Segurei na sua cintura, fazendo uma pressão sutil com meu polegar e
deixando minha mão ao lado de sua cabeça. Ela respirou profundamente. —
Meu harém seria tão pobre, teria apenas duas mulheres: Você e você mesma.

— Então seriam três, afinal, você é casado. — Ela me encarou


corajosamente.
Esse assunto me desestabilizava, e ela sabia. Engoli em seco.

— Divorciado, você sabe.

— Pouco me importa sobre sua vida. — Espalmou a mão em meu peito


e me afastou. Ela tinha ficado muito mexida com minha proximidade. Eu não
queria pressioná-la, mas saber que ainda existiam faíscas de nossa paixão era
esperançoso para mim.
Stela pegou outra coisa na mala e foi para o banheiro. Saiu de lá
vestindo outra roupa.

— Vista alguma coisa, as crianças podem ver sua tatuagem e supor


coisas. — Pegou a bolsa, o chapéu e foi para a outra porta. — Vocês dois.
Vamos descer para a piscina.

— Mas, mãe...

— Agora, Raquel. Não trouxe você para um resort para ficar deitada
mexendo no celular.

Eu desci depois de Stela. Antes tive de atender à chamada de Benjamin,


que me ligava desde mais cedo.
— E aí, cara? — Sentei-me na cama.

— Ulrich, Stela está com você? Escutei uma mensagem dela dizendo
que ia viajar em férias, mas Miguel veio aqui procurá-la.
— Sim, está comigo. Fique tranquilo, ela e as crianças estão seguras.

— As crianças? Onde vocês estão? O que houve?

— Te conto mais tarde. Agora preciso ir. — Eu sabia, por convivência,


que não podia contar nada para esses Capellos explosivos, ou colocariam
tudo a perder. Eu queria pegar Miguel sem que ele esperasse.

A piscina era imensa e estava bem movimentada. O local de recreação


era o coração do resort. Os bares estavam cheios, assim como os brinquedos
do outro lado. Um pouco mais afastada, embaixo de um coqueiro, Stela
estava com as crianças. Passava protetor nas costas de Nathan, antes de ele
correr e pular na piscina em um salto perfeito.

Raquel passava o próprio protetor, depois falou algo com a mãe e se


afastou para se deitar em uma espreguiçadeira, mais interessada no celular.
Peguei um drinque no bar. Nem sabia o que era, vi na foto e pedi. Veio
em uma taça enorme, era multicolorido e tinha morango, canudinho e
pequeno guarda-sol como enfeite. Provei, e era bem alcoólico, mas gostoso.

— Olá, senhorita. — Cheguei perto de Stela e me sentei na


espreguiçadeira ao lado.

— Não enche. — Deu uma olhada na minha camisa florida aberta no


peito e voltou a encarar o livro.
A minha espreguiçadeira estava em uma altura perfeita, puxei os óculos,
que estavam no alto da cabeça, e suspirei, admirando a movimentação à
minha frente. Stela tentou se concentrar no livro, mas fechou-o, mantendo o
dedo marcando a página.

— O que está bebendo?

— Não sei. Mas é gostoso, quer provar? Deixo você colocar a boca no
meu canudo.

— Patético. — Enfiou a cara no livro novamente. Eu continuei na


cadeira, saboreando meu drinque, que era mesmo muito saboroso. Já estava
decidindo se ia ou não pegar mais uma taça.
Impaciente, Stela deixou o livro de lado de novo.

— Eu não entendo essa sua tara em me provocar, porém diz que gosta
de mim. Com esse deboche, você só vai conseguir minha raiva.

— É melhor conseguir algo de você do que nada, não é? Devia ser mais
forte. — Tirei o canudo da taça, chupei-o sob o olhar interessado dela, comi o
morango na ponta e bebi o restante do drinque.
— Eu sou forte. — Sentou-se na espreguiçadeira, me encarando.

— É mesmo? — Ergui minhas sobrancelhas de forma irônica. — Você


não se arrisca. Estava acomodada na vida perfeita de mulher casada e mãe de
família. Até o seu sonho você enterrou.

— Mas é o que sou. Uma mãe de família.


— Só porque é mãe não precisa ser besta. Olha o que você permitiu que
Miguel e aquele outro cara fizessem em sua vida.

— Eu fui enganada. — Contestou com a voz elevada.

— Porque você não teve postura firme com Miguel e desabou na


primeira oportunidade que eles te pressionaram. Eu lembro como me ligou,
derrotada. — E abriu brecha para a outra personalidade tomar providências,
pois não conseguiu sozinha. Disso, só eu sabia.
Stela não protestou. Ela me encarava com cara fechada, mas foi como se
tivesse aceitado a crítica. Olhou para Raquel um pouco mais afastada da
gente, com um fone de ouvido nas orelhas. Em seguida, voltou a me fitar.

— Não é uma questão de escolha...

— A questão está nos pequenos detalhes. Você é medrosa até mesmo


para se vestir. — Com o queixo, apontei o vestido que ela trocou. — Sair da
rotina, tentar algo novo. E eu consigo facilmente te tirar do sério porque é
fraca para lidar comigo. Entretanto, por dentro, sei que é mais forte do que
imagina.

Ela pareceu chateada, e eu sentia muito por fazê-la ficar assim, mas
Stela tinha de tomar a dianteira da própria vida.

— Por que está me falando essas coisas?


— Porque eu quero uma mulher que saiba cuidar de si e que vai me
encarar à altura, nas provocações e na cama.

— Eu não vou nunca para cama com você.

— Tecnicamente já foi, afinal dormimos juntos essa noite. Mas é


melhor não afirmar o que não sabe.
Voltei a recostar na espreguiçadeira, deixando-a de lado. Eu sabia que
Stela ainda me encarava, abalada com o que tinha escutado.

— Tudo bem — falou. — Vamos jogar. Me proponha qualquer coisa.


Eu posso fazer o que eu quiser e demostrar que sou corajosa. Posso tirar essa
roupa e pular na piscina agora mesmo.

— Hum... fácil demais. Não seria tão formidável, já que é o que todo
mundo está fazendo. Vou pensar em algo e te falo.

Acabei dormindo na espreguiçadeira, quando acordei, Stela já tinha


saído. Por um instante, tive medo de ela ter ido embora do resort para um
lugar longe de mim. Corri para o quarto e respirei com alívio ao ouvir os
gritos de briga.

— Eu quero ir embora, como vou ficar sem computador, mãe?


— Eu nem sei para que você trouxe notebook para um resort. Vai
relaxar. Fica só enfiada nessas coisas. — Stela estava concentrada procurando
algo bom de assistir na televisão enquanto brigava com a filha.

— Mãe! — berrou e voltou correndo para o outro quarto, batendo a


porta em seguida.

— Se bater a porta de novo, eu vou aí, mocinha.


— O que houve? Guerra familiar?

— Adolescência. — Revirou os olhos. — O notebook deu defeito. Essa


menina vive para tecnologias e tem sangue quente, então para ela tudo é
desaforo.

— Posso ver o que houve... — ofereci.


— Não se mete — alertou. — Além do mais, ela vai te dar um pito se
for mexer com ela. O melhor é deixar, que daqui a pouco volta às boas.

Sem ouvir o conselho dela, empurrei a porta e entrei. Nathan estava


jogando no celular e Raquel na outra cama, com o travesseiro na cabeça.

— Tudo bem, amigão? — Toquei no pé de Nathan.


— Tô jogando. — Em outras, palavras: “me deixe”.

— Certo.

Passei por ele e fui até a outra cama. Tirei o travesseiro de cima da
cabeça de Raquel, e ela me olhou assustada.
— Me deixe! — berrou, achando um desaforo eu ter ido incomodá-la. E
tentou tomar o travesseiro de volta.

— Calma, baixinha. Virou um pinscher igual sua mãe? O que houve? —


Olhei em volta e vi o notebook no chão. Peguei-o. — Foi isso?
Ela sentou na cama e abraçou o travesseiro. Balançou a cabeça
positivamente, dizendo que o motivo do estresse era mesmo o notebook.

— Ah, nada como um jogo no computador, não é? — Sorri para ela, e


como não ganhei um sorriso de volta, contestei: — Ou ficar nas redes sociais.

— Isso eu posso fazer no celular.


— Oh! Entendi. Precisa do notebook para cuidar de suas ações na bolsa
de valores.

Os lábios dela se curvaram brevemente. De cabeça baixa, resmungou:

— Escrever. Às vezes, escrevo para distrair.


Sem que ela visse, eu estava pasmo, observando-a. Ela tinha um talento.
Escrever era algo fantástico e isso devia ser estimulado. Stela sabia disso?

— É maravilhoso isso. Precisa continuar escrevendo, ouviu?

Então me olhou e balançou a cabeça positivamente. Sentei-me na ponta


da cama.
— Bom, vamos ver qual o problema de bichinho.

— Ele está travando e muito lento — ela relatou.

Dei uma rápida olhada nas configurações e já constatei o motivo.


— Seu computador não tem o principal: antivírus.

— E isso é ruim?
— Digamos que ele está doente e precisa da vacina. — Acessei o
programa do antivírus, peguei minha carteira, escolhi um cartão de credito e
fiz a compra do programa.

— Você comprou alguma coisa — questionou, abismada.


— Um bom antivírus não pode ser baixado pirata. Esse vai te dar
suporte de um ano. Agora, ele precisa de tempo para limpar o computador e
reiniciar em seguida. — Coloquei o notebook na mesinha de cabeceira. —
Mais calma?

— Sim. Obrigada — sussurrou, impressionada.

— Não tem de quê. — Quando me levantei da cama e me virei, Stela


estava parada na porta do quarto, recostada, assistindo tudo. Desviou o olhar
e saiu rápido, me deixando desconfiado com o gesto.

***

Quando a noite chegou, Stela ainda tentava me convencer a mudar de


quarto. Eu, como não nasci ontem e era mais esperto que um coelho, fui à
recepção e usei meu charme para pedir ajuda a uma recepcionista.

— Minha esposa quer um quarto maior, porém gostei tanto do que


estamos. Daqui a pouco a trarei aqui e preciso que você diga que os quartos
estão lotados.

— Senhor, não podemos...


— É um favor. Um favor para um marido que só quer divertir sem se
mudar. Tudo bem?
Enfim ela sorriu timidamente.

— Tudo bem.

Minutos depois, eu desci com Stela. Ela estava puta de raiva. E eu sabia
que a raiva maior era por não conseguir ser imune a mim.

— Pode deixar que eu falo com eles. — Desfilou decidida na minha


frente. Eu caminhei calmamente atrás, com as mãos nos bolsos, e ainda
pisquei para a jovem atrás do balcão, para ela se lembrar do nosso trato.

— Como assim já está lotado? — Cheguei perto a tempo de ver Stela


chocada.
— Pois é, senhora. Época de férias enche muito. Não temos mais
quartos sobrando.

— Está vendo, querida? — Toquei no ombro de Stela. Vamos ficar


naquele mesmo. Já estamos bem instalados.

— Ah, me larga. — Bateu na minha mão e voltou para o elevador.


Mexi os lábios falando “obrigado” para a jovem. Estava saindo quando
vi algo no balcão. Um folheto. Peguei um e dei um sorriso ao encontrar o
desafio perfeito para Stela.

— Um parque de diversões, agora à noite. — Mostrei o panfleto na cara


dela.

— Sabe que eu odeio essas coisas. — Ela nem me deu muita atenção,
continuou dobrando roupas, arrumando as malas dos filhos.
— É por isso mesmo. Você odeia porque sente medo de todos esses
brinquedos. Aceite o desafio, ou vai querer só confirmar que é uma medrosa?

— Para de me chamar de medrosa, cacete! — Puxou o panfleto da


minha mão, amassou e acertou na minha cara.

— Isso é um sim?

— Pode apostar.

***

MIGUEL

— Rômulo, você precisa manter a calma.

— Manter a calma? — gritou, andando pelo quarto. — Olha o que sua


esposa espertinha fez com a gente. Ela nos fodeu, Miguel.
Eu ainda não acreditava que Stela pudesse ser tão corajosa a ponto de
não assinar o divórcio e ainda sumir com as crianças. Ela estaria com Ulrich?
Hoje eu o procurei no escritório e disseram que ele não ia aparecer pelos
próximos dias.

Depois de tudo, será que ele ia sair ganhando?

— É questão de tempo para os irmãos saberem e tentarem nos parar


judicialmente.
Rômulo não conhecia mesmo os Capellos. Eles não iriam tentar nos
parar judicialmente, mas sim na pancada. Sentei-me na cama com as mãos no
rosto. Eu joguei toda minha vida fora e ainda dei chance de Ulrich ter o que
sempre quis: a minha mulher. Que merda fui fazer? Se esse plano de Rômulo
desse errado, eu esperava que ele tivesse dinheiro para nos sustentar, ou
iríamos para a sarjeta.

— Tentou ligar novamente para o menino?


Eu não tinha ligado ainda. Mas menti para Rômulo dizendo que sim.

— Vou ligar de novo. Nathan vai me falar onde estão.

— Então faça isso logo. Eu tenho um plano para obrigar a Stela a voltar
urgentemente, mas não quero usar isso ainda.

— E o que é?

— Apenas faça a sua parte.


12

STELA

— A mamãe odeia parque de diversões. E não deixa a gente brincar em


nada, com medo de cair — Nathan comentou quando descemos do carro
alugado e nos deparamos com um gigantesco e colorido parque. As luzes dos
brinquedos piscavam, havia música, gritos de alegria e o barulho aterrorizante
dos brinquedos.

Fiquei gelada, petrificada, encarando todo o espetáculo à minha frente.


Eu já tinha ido a parques, sim, mas as vezes em que fui com meus irmãos,
jamais ousei encostar em um desses brinquedos. Acho que sempre são
amedrontadores para quem tem medo de altura.

— Mas na última festa do leite Capello, você a desobedeceu e torceu o


tornozelo no touro mecânico — Raquel contestou. — Por isso ela não deixa.

— Porém hoje está liberado se divertir. — Ulrich chegou por trás,


abraçando os dois ao mesmo tempo.

— Posso ir no Terminator? — Nathan vibrou, eufórico. Segurei


imediatamente a mão dele.
— Não sei o que é isso, mas já tem nome de coisa ruim. Portanto, a
resposta é não. Vamos logo, antes que eu mude de ideia. — Segurei na mão
de cada um e os puxei. Ulrich logo nos acompanhou.

— Compreenda a mãe de vocês — Ulrich começou. — Uma vez, ela


vomitou porque foi no carrossel. E nem era pequena, já tinha quinze anos e
saiu de lá carregada.
Nathan gargalhou estrondosamente, e Raquel me olhou, esperando que
eu revidasse.

— Para de zombar de mim na frente dos meus filhos.

— Ok. — Ulrich levantou as mãos. — Deixe que eu compro os tickets


para os brinquedos.
Entramos no parque, e, de certa forma, me senti desconfortável ao lado
do homem que passei grande parte da minha vida rechaçando e enxotando
para longe. Ulrich foi o fantasma que me perseguiu e estava lá continuamente
para me lembrar da escolha que fiz tão precocemente. Agora, vê-lo comigo e
com as crianças, sem Miguel por perto, era estranho e quase aflitivo.

Na verdade, eu estava com medo de mim mesma. Medo de que eu


pudesse legitimar a presença dele, começar a me acostumar.

— Por enquanto, cinco para cada. Não se afastem um do outro. —


Ulrich deu os tickets para cada um. Nathan gritou comemorando, afinal
nunca teve controle dos próprios tickets. E Raquel apenas olhou com pouco
caso e colocou na bolsinha a tiracolo.
— Eu vou na roda-gigante — Nathan berrou.

— Raquel, vai com seu irmão — ordenei.

— Mãe! Eu não sou babá!


— Minha filha, você tem que se divertir também. — Ajeitei a tiara no
alto de sua cabeça. — Além do mais, não precisa fazer nada, só sentar e ver o
tempo passar. Pode até tirar umas fotos para mostrar às amiguinhas.

— Vamos com eles — Ulrich opinou. Eu estava prestes a negar, quando


me interrompeu de modo debochado: — Ou aceitou o desafio de vir aqui só
para confirmar minha tese que é medrosa e não se arrisca?
Arrepiei ao vislumbrar a roda-gigante imensa. Era meu pesadelo de
adolescência. Lembro uma vez em que Thadeo ficou de pé no banquinho de
uma roda-gigante e eu quase morri de gritar lá do chão, olhando-o, achando
que ia cair.

— A mamãe tem medo de altura — Nathan explicou. Ulrich também


sabia, mas tinha um sorriso espertinho banhando o rosto, me desafiando.

Merda! Eu corria o risco de desmaiar e passar vexame.


Encarei-o.

— Vamos nós todos — decidi.

— Vou tirar uma foto para mostrar ao tio Ben. — Nathan era tão
ridiculamente debochado como os tios. Não estava nem ligando para meu
pavor. Deixei os dois irem na frente e fiquei um pouco atrás com Ulrich.

— Eu ganho essa merda de desafio que você propôs e, como prêmio,


você nunca mais me provoca. Nunca mais.

Ele parou de andar. E estava ainda sorrindo cinicamente. Ulrich me


estudou por uns segundos e mordeu a merda do lábio perfeito. Desviei o
olhar.

— O desafio é uma noite no parque sem recusar nada — frisou.


Meus punhos fecharam com a raiva que bombou em cada veia do meu
corpo. Olhei para a roda-gigante, a casa dos horrores, o tal Terminator que
Nathan citou. Eu queria esfregar na cara de Ulrich como eu podia, sim, fazer
o que quisesse. O orgulho falou mais alto.

— Fechado. Uma noite no parque sem recusar nada.


— Mas, se você perder, eu escolho meu prêmio.

— Eu não vou para a cama com você — devolvi antes de Ulrich


terminar de falar.

— Esse medo constante que você tem de transar comigo só me faz


pensar que você tem muita curiosidade e desejo de provar o famoso leite
turco.
— Ah, seu... filho de uma... Vá se danar. — Girei nos calcanhares e
comecei a me afastar, mas ele me segurou.

— Tudo bem, desculpa. — Estava rindo de mim. — Meu prêmio será


um jantar só nós dois, onde eu quiser.

Esse cafajeste ia me levar para jantar em um quarto de motel. Já estava


prevendo. Ulrich sempre foi previsível. Revirei os olhos.

— Fechado. — Estendi a mão para ele.

— Que mão é essa? Não sabia que na Turquia a gente sela um trato de
outra forma...?

— Quê?
— Assim. — Ele me puxou, e esbarrei sem equilíbrio no corpo alto e
duro. Ulrich logo me enlaçou com seu braço forte, enroscou a mão nos meus
cabelos soltos e os puxou.

Eu acho que, no fundo, eu queria. Sim, claro. Afinal, eu poderia ter


resistido, ter batido nele, ter gritado. Mas apenas fiquei encarando-o,
boquiaberta, e quando sua boca atacou a minha, pude ouvir um pequeno
gemido... vindo de mim.

Mas que merda, Stela.


Ele me apertou com um braço e segurou meus cabelos com a outra mão.
Eu deveria ter surtando de ódio, mas aproveitei e deixei que sua língua
indecente invadisse a minha boca.

Que inferno de beijo gostoso.

Lembrei das crianças, que poderiam nos ver, e isso me deu forças.
Empurrei-o e levantei a mão para uma bofetada, mas ele desviou a tempo.
Em seguida, passou o polegar nos próprios lábios e afastou-se.
— Que saudade que eu estava de beijar essa sua boquinha nervosa.

— Dá próxima vez que fizer isso, meu sapato vai beijar sua boca! —
gritei, parecendo histérica, como se não tivesse aproveitado o beijo. — Seu
patife.

— Eu vou com Raquel e você vai com o Ulrich — avisei a Nathan na


fila para subir na roda-gigante. Ele não se importou, só queria saber de subir
logo. — Deixem os tickets preparados para entregar ao moço.

Atrás de mim, Ulrich me cutucou. Não queria graça com ele, mesmo
assim me virei.
— Aqui está o seu ticket. — Ele me entregou um. De má vontade,
peguei e, quando me virei, Nathan correu na frente e subiu com Raquel. O
operador da roda-gigante travou a cadeira deles.

— Ei! Nathan. Eu vou com ela...

— Tarde demais... — Ulrich sussurrou e segurou meus ombros. — Eu


fiz gesto para o garoto correr e ir com a irmã. Você vem comigo.

— Meu Deus! Você é muito irresponsável. Eles não podem ir sozinhos!


Cada um tem que estar com um adulto. E se caírem? Nathan, voltei aqui.
Agora!

— Stela, calma. Eles vão ficar bem. — Ulrich me empurrou para a fila
andar. Sentei-me em um banco, e ele se sentou ao meu lado. O operador
travou nosso assento.
— Nathan! Fique sentado, ou vai levar umas cintadas — gritei no vão,
sem saber se ele me escutava. Quando a roda-gigante começou a movimentar,
agarrei com força a barra, os olhos saltados. Meu Deus, me ajude!

Ulrich ria sem parar.

— O menino é encapetado — falei. — Se ele cair, você me paga.


Ele passou o braço no meu ombro, e, de repente, me vi confortável no
abraço. Odiei sentir conforto. Sem falar que ele tinha um perfume muito bom.
E todas nós sabemos o valor multiplicado de um homem cheiroso. Mesmo
sendo aqueles que tecnicamente devem ser odiados.

— Essa é a volta de quinze anos atrás que você me deve — Ulrich falou.

Olhei-o de esguelha.
— Não acho que ficou nada pendente entre a gente.

— Não ficou? — Ele riu, meio nervoso. — Você tem a pachorra de


dizer que não ficou? Nunca nem quis ouvir o meu lado. Você só me
crucificou, e fim.

— Com base em fatos. Nada vai mudar o que você fez. E eu não quero
falar disso agora.
Fechei a cara e cruzei os braços. Daquele jeito que crianças birrentas
fazem. Ouvi Ulrich respirar fundo, se acalmando.

— Ok. Nada de falar do passado. Eu pedi a Cora para elaborar um


processo para você contestar a sua assinatura nos documentos. O que
pretende fazer em relação a Miguel quando voltar?

— Eu não sei. Quero conversar com ele.


— Conversar? Ainda vai dar chance para ele?

— Não é chance. Mas eu não preciso ouvi-lo?

— Estranho, afinal não é do seu perfil ouvir pessoas que cometeram


deslizes com você. Eu nunca tentei te dar golpe, já ele...
— Ele é pai dos meus filhos.

— Mas você precisa se impor. Estamos aqui trabalhando sua coragem e


força. Lembre-se sempre da regra do amaciante. — Deu um sorriso de lado.

— Amaciante? De que está falando?


— Amar a si antes.

Fiquei em silêncio após o trocadilho. Eu não pretendia mesmo conversar


com Miguel, mas de uma forma bem mesquinha, senti vontade de falar isso
só para ferir Ulrich.

Querem saber por que eu queria feri-lo?


Porque eu gostei do beijo. E gostei do abraço dele e do seu cheiro. E eu
odiava dar o braço a torcer em relação a esse homem.

A roda-gigante parou para as pessoas lá embaixo poderem subir e


descer. O banco sacudiu, e eu agarrei a coxa de Ulrich sem pensar.
Estávamos parados no alto. Fiquei dura, de olhos fechados, ainda segurando
na coxa.
— Abra os olhos, veja que vista maravilhosa. — Ouvi sua voz bem
pertinho. — Eu vejo o céu e lembro das noites na Capadócia.

Abri os olhos e vislumbrei a noite estrelada. Tinha uma lua enorme e o


céu negro salpicado de pontos brilhantes. Era mesmo lindo. Estava tão alto,
que eu pensei que se esticasse a mão, tocaria nas estrelas.

— Um dia você irá comigo.


Olhei para o rosto de Ulrich, bem perto.

— Eu, não...

— Vai, sim. Me deixe sonhar. — Sem que eu esperasse, deu um beijo


na ponta do meu nariz e voltou a olhar o céu. E eu continuei fixada em seu
rosto, tão próximo.

Vá ser lindo assim lá no inferno.

***

Esperei Ulrich comprar os algodões-doces, Nathan de um lado e Raquel


de outro, cada um escolhendo o que ia comer. Mais uma vez me senti
desconfortável. Vê-lo perto da Raquel sempre me dava essa aflição
inexplicável.
Havia um segredo. Um segredo que apenas eu sabia e que poderia ser
loucura da minha cabeça. Era loucura. Quando eu descobri que estava
grávida, as datas do sexo com Miguel não batiam, afinal ele estava fora da
cidade, e tínhamos mais de dois meses sem nos ver.

E então nasceu uma menina com olhos que sempre me faziam lembrar
outra pessoa. Os cabelos tão pretos, que brilhavam, não como os de Miguel,
mas como os de outra pessoa.

Meu coração sempre acelerava ao pensar nisso.

***

Anos antes

Os enjoos não passavam. E meu desespero só aumentava. Caminhei sem


parar pelo quarto. Eu nem mesmo tinha dormido a noite toda, tamanha a
aflição. Na cama, um envelope e um papel.

Não podia ser o que estava escrito ali. Não tinha como. Miguel acabara
de passar em uma faculdade em outra cidade e ia ficar lá até conseguir
transferir o curso para cá. E por isso estávamos há mais de dois meses
distantes.

Mas naquele exame de laboratório estava claro: positivo. Eu estava


grávida. Usamos proteção da última vez que dormimos juntos. Não
queríamos filhos agora.
Pensei em pedir ajuda a Benjamin. Mas ele era muito rude, ia querer
tirar satisfação com Miguel. Eu tremia, sozinha, indecisa.

Ulrich estava de volta à cidade. O desgraçado... estava de volta. E a


safada veio atrás dele só para esfregar na minha cara. Eu jamais o perdoaria.
Peguei o papel e saí correndo do meu quarto, sabia que meu pai
acordava cedo para ir para a empresa. Cheguei à cozinha, ele tomava café.
Assim que me viu, já soube que havia algo errado.

— Filha...

— Pai, preciso da sua ajuda.

— Como você pôde ser tão irresponsável, Stela? — gritava comigo no


escritório ao ver o resultado do exame. Eu estava encolhida na cadeira,
chorava assustada. Eu não queria um filho. Eu não tinha condições de cuidar
de uma criança.
— Eu sinto muito... eu não queria.

— De quantos meses?

— Não sei... faz mais de dois meses que não vejo Miguel... Mas a gente
se cuidou. Sempre tomamos cuidado.
— Será possível que não baste seu irmão me desobedecer e se isolar
naquela merda de vinícola, agora você também? Meu Deus! É seu futuro em
jogo, minha filha. Você acabou de entrar na faculdade, como pode ter sido
tão relapsa?

— O que eu vou fazer, pai?

— Pensaremos nisso depois. Arrume-se, vamos agora a um


ginecologista.

Senti vergonha instantânea em ir a um ginecologista com meu pai.

— Pai...

— Agora, Stela.

Naquela mesma manhã, fiz um ultrassom, e para meu desespero,


descobri que estava de cinco semanas, o que não batia com o tempo que
Miguel e eu nos encontramos.

De volta à minha casa, meu pai andava de um lado para outro na sala,
pensando, enquanto eu permanecia sentada na poltrona tentando encontrar
uma solução.

— O filho não é do Miguel — ele concluiu, enfim, o que já me


amedrontava.

— Como assim? Não tem como ser de outra pessoa... — Imaginei logo
o que ele estava supondo e já emendei: — Ulrich e eu estamos brigados.
— Você ficou bêbada e acabou na cama com ele. E o filho da mãe se
aproveitou disso e você não se lembra.

— Pai... não. Ulrich pode ser tudo, mas jamais me desrespeitaria dessa
forma.

— Não importa como tenha acontecido. Você não vai dizer um “a” para
ele.
— Para o Ulrich? — Mas eu tinha de questioná-lo...

— Nem comenta com ele. Vou providenciar com urgência a


transferência de Miguel para uma faculdade daqui, e vocês vão casar esse
mês ainda.
— Casar? — Fiquei de pé em um pulo. — E minha faculdade?

— Pensasse nisso antes. Farei de Miguel um homem respeitado, meu


braço direito na Capello, seus irmãos o respeitarão. Ele é manipulável, vou
empurrar esse filho para ele. Será um bom pai.
13

ULRICH

Arranquei outro tufo do algodão-doce de Stela, e ela o puxou, na


tentativa de me impedir.

— Para de pegar meu algodão. Por que não comprou um para você?
— Porque somos um casalzinho dividindo a algodão-doce.

— Só em seus sonhos. — Ela olhava sem piscar para os carrinhos bate-


bate. Eu podia ver o receio em seus olhos, mas eu a estava desafiando a
continuar. Podia parecer uma coisa tola, mas enfrentar medos cotidianos e
básicos poderia ajudar Stela quando tivesse de enfrentar algo mais grave.

Além do mais, nunca era tarde para se divertir um pouco. Eu estava com
quase trinta e quatro anos, já com minha carreira consolidada, assim como
Stela, aos trinta e um, já era mãe de duas crianças, porém eu estava me
deliciando de usufruir esse momento com ela. Um momento que não tivemos
na juventude.
— Próximos! — o homem gritou, e eu dei um empurrãozinho em Stela.
Nathan correu pela plataforma, escolhendo um carrinho. Raquel entrou de má
vontade.

— Como faz? — Stela indagou, nervosa. — É como dirigir um carro


normal? Eu sou péssima no trânsito.

— Exatamente. Entra logo. — Puxei sua mão e entramos juntos. Ela


correu para um amarelo, e eu peguei o verde do lado.
Mal sentou, e uma criança malcriada acertou Stela em cheio.

— Meu Deus!

— Acelere, Stela. — Saí com o meu, dando gargalhadas. — Vou vingar


do pirralho por você. — Fui atrás da criança que bateu nela e bati em cheio
na lateral do carrinho dele, fazendo-o girar e bater na grade de proteção. O
menino nem ligou, apenas riu. Stela ainda estava lá, no mesmo lugar,
tentando entender os pedais.
Ela estava lá parada, e eu não resisti, fui em sua direção e bati em seu
carrinho.

— Qual o seu problema? — berrou, revoltada. Então conseguiu dar


partida e tentou me alcançar. Eu ria, ela mordia o lábio de raiva, vindo atrás
de mim. Nathan veio e a atacou. Ri mais ainda do solavanco que Stela tomou.

Raquel foi atingida por um garoto adolescente e sorriu, tímida, para ele.
O minipaquerador jogou beijinho para ela.

Não pude deixar de relembrar do meu passado com a mãe da garota,


quando tinha mais ou menos a mesma idade. Porém Raquel não parecia com
a mãe fisicamente e mostrava-se em algumas situações mais brava que a Stela
mirim do passado. Encostei em Nathan.

— Te dou cinquenta reais para perseguir aquele pivete.

— Cem reais — negociou.


— Certo, vá logo.
Satisfeito, vendo Nathan o infernizar, voltei a rodear Stela. Nem em um
milhão de anos eu poderia acreditar que um dia estaria com ela fazendo algo
tão corriqueiro e divertido. E eu desejei que essa noite durasse mais.

Saímos dos carrinhos bate-bate e fomos direto para a fila da casa dos
horrores. Stela relutava, como nos outros brinquedos. Toquei em sua mão e
percebi que estava gelada.
— Não vou. — Tentou sair da fila, mas eu a segurei.

— Se não for, vai perder o trato — avisei.

— Enfie esse trato no... — Antes de terminar de falar, lembrou-se dos


filhos perto e só fechou a cara.
— Ou então iremos no Terminator. — Apontei para o brinquedo que ela
se recusava até mesmo a olhar.

— Onde será o jantar? — Ela me encarou.

— Surpresa. Vai desistir mesmo? Tão fácil? Prefere passar pelo martírio
de jantar comigo?
Ela analisou a casa dos horrores, pensativa.

Todos sabiam que no fundo eu torcia para ela desistir porque eu preferia
jantar com ela.

— Que seja. Uma hora jantando com você não deve ser pior do que
estar aí dentro.
Gargalhei e fiz uma breve comemoração. Saí da fila com Stela. Raquel e
Nathan não aceitaram sair e continuaram.

— Raquel, não deixe seu irmão sair do carrinho. Mas se parar no meio
dos trilhos, corra o mais rápido que puder.
— Que espécie de conselho é esse? Se o carrinho parar?

— Nunca assistiu filme de terror?

— Sim, e acreditava nisso nos meus quinze anos.

Ela só me lançou um olhar de indiferença e ficou de olho nas crianças,


até os dois entrarem em um carrinho e passarem pela porta de entrada da
casa.

— Venha aqui. — Puxei-a.

— Não, Ulrich. Preciso esperar por eles.

— Eu sei. É aqui em frente. — Mostrei uma barraquinha de jogos. Com


cautela, ainda olhando para trás, ela foi comigo.

— Acerte a boca do palhaço e ganhe uma pelúcia — o rapaz falou sem


muita euforia. — Quanto mais alto estiver o palhaço, o prêmio é maior.
— Ótimo. — Dei a ele um ticket, e o sujeito me entregou três bolinhas.

— Estrelinha, meu amor, pode ir escolhendo a pelúcia que você quer —


falei com Stela.

— Vai me dar uma pelúcia? — De braços cruzados e má vontade, me


olhou de cenho franzido. — Já tenho trinta e um anos, Ulrich.
— Nunca é tarde para um mimo.

— Por quê?

— Porque é isso que os caras fazem, não é, garoto? — perguntei ao


jovem atrás da bancada.
— Exatamente. Os boys presenteiam as namoradas com uma pelúcia.

— Eu não sou sua...


— Escolha logo, baby.

— Baby? Mas que mer...?

— Ela quer a ovelhinha ali em cima — eu a interrompi antes do


palavrão sair.

— Vamos torcer para você ganhar a ovelhinha para a dama.

Eu me posicionei, joguei a primeira bolinha. Foi certeiro, dentro da


boca. Mais uma, fora. E a terceira, antes de jogar, empurrei-a para Stela.

— Quer dar um beijinho para me dar sorte?

— Joga logo essa merda. — Revoltada, tomou a bola da minha mão e


acertou no painel, sem nem olhar. E para nossa surpresa, a bolinha entrou.

— Ganhou a ovelhinha. — O cara festejou, Stela revirou os olhos, e eu


sorri debochado. Peguei a pelúcia e entreguei para ela.
— Vai se chamar Estrelinha — falei. E por um momento, alguns
milésimos de segundo, ela sorriu para a ovelhinha.

Voltamos para frente da casa dos horrores. Stela olhava atentamente


para a pelúcia, então encarou meu rosto.

— Sobre aquela indireta que jogou, no casamento de Thadeo... falando


da mancha acima do meu seio. — Olhou em volta, as crianças ainda não
tinham saído. — Por que falou aquilo?
— Tem alguma importância para você?

— Ulrich, seja sincero, por favor. Alguma vez na vida, eu já transei com
você e estava inconsciente, ou bêbada, ou dopada, ou qualquer coisa que eu
possa não lembrar no dia seguinte?

— Eu jamais me aproveitaria de você estando bêbada ou dopada. Mas...


Eu estava prestes a contar que, sim, a gente já havia transado várias e
várias vezes sem que ela pudesse lembrar. Mas ali não era o lugar ideal para
isso, e devia contar na presença da doutora Eliana. Eu odiava omitir para
Stela, e queria mesmo falar, porém, naquele momento, as crianças saíram da
casa. Ambos morrendo de rir. Stela esqueceu de mim e foi recebê-los.

Eu fiquei de longe observando-os. Eram felizes juntos, uma família que


se completava, uma bolha que eu não fazia parte e que nem sabia se um dia
poderia fazer. Sempre imaginei como seria ter filhos com ela, poder cuidar e
ensinar muitas coisas, fazer diferente do que meu pai fez comigo. Mas agora
pensava que Miguel sempre estaria no meio. Esse lugar era dele, mesmo que
se separasse de uma vez por todas de Stela.
Eu ainda me agarrava a meu mantra: ficar feliz com a felicidade dela.
Mesmo que doesse a cada instante.

— Ulrich, lá dentro tinha um Drácula enorme que parecia você. —


Nathan aproximou-se de mim, arrancando-me do devaneio. Dei uma risada.

— Está me tirando, moleque? Não tinha um esqueleto pequeno se


parecendo com você?
— Eu não sou um esqueleto. Eu sou grande para minha idade e vou
ficar tão grande como meu tio Thadeo. Vou puxar ferro até explodir.

— Nathan! — Stela o repreendeu.

Assanhei os cabelos dele, concordando que era melhor que ele crescesse
igual aos tios em personalidade, e não herdasse nada de Miguel.
Comemos cachorro-quente no parque e fomos embora sem experimentar
o Terminator. Nathan foi impedido de subir por ser criança, e Stela não
autorizou e até ficou aliviada ao descobrir que eles não poderiam subir no
brinquedo. O garoto ficou muito puto, emburrado, e não quis dar uma
voltinha no carrossel.

Chegamos ao hotel exaustos. Stela fez os dois trocarem de roupa e


colocaram um pijama. Eu também entrei no banheiro e me troquei. Quando
saí, Stela tinha se arrumado na velocidade da luz.
— Ulrich — Nathan saiu do outro quarto. — Compra um filme para a
gente.

— Nathan! — Stela gritou com ele. — Eu sou sua mãe, por que não me
pede?

— Porque você sempre diz não, e Ulrich dá tudo que a gente quer.
Dei um sorriso para Stela e entrei no outro quarto com ele. Para assistir
um filme lançamento na televisão, tinha de pagar uma quantia. Eles
escolheram o que queriam ver, e eu coloquei o filme para ser cobrado na
conta do quarto.

— Ulrich, você trabalha? — Nathan perguntou, ao meu lado, enquanto


eu mexia na televisão.

— Trabalho, sim.

— Onde?

— Eu sou advogado.

— Advogado? E isso ganha muito dinheiro?


— Ele só pensa em dinheiro. — Raquel avisou lá da cama dela. Estava
penteando os cabelos longos e lisos. — Ele vive pesquisando as profissões
que mais dão dinheiro.

— Você tem que fazer o que gosta, garoto. Porque fará bem feito e te
trará mais recompensas.

— Gosto de jogar.

— Todo mundo gosta de jogar. Mas um dia você descobrirá o que quer
fazer. Ou pode só trabalhar na empresa da sua família.

— Eu queria tirar leite das vacas lá na fazenda do tio Fernando. Mas


meu pai quer que eu fique no escritório com ele. Eu odeio números.

— Você não vai fazer o que seu pai quer. — Ouvimos a voz e viramos
para a porta onde Stela estava. — Venha aqui, meu pequeno. — Puxou
Nathan, levando-o para a cama. O garoto deitou, e ela sentou ao lado dele. —
Você vai fazer o que deseja. O meu pai tentou comandar a vida de cada filho.
Eu mesma fui obrigada a fazer coisas porque era o que ele queria. Mas, no
fim, todos eles seguiram o que o coração mandou.
Eu estava observando-a, e nossos olhares se chocaram. Eu me
perguntava o que ela tinha feito sob ordens do pai. Eu sabia como seu João
conseguiu se intrometer na vida de cada um, e naquele momento fiquei com
uma pulga atrás da orelha.

Eu os deixei no quarto e fui para o outro. Precisava ligar para Cora e ler
um pouco sobre um caso que eu a estava auxiliando. Uma hora mais tarde, já
cansado, me preparei para dormir. Estava no banheiro, gargarejando
enxaguante, quando vi Stela chegar na porta do banheiro.
— Nathan me confidenciou que Miguel ligou para ele.

— Por Alá! — Limpei a boca e virei-me para ela. — E disse onde


estamos?

— Ele não sabe exatamente em que cidade estamos. Mas falou o nome
do resort.

— Se quiser, podemos ir para outro lugar pela manhã.

— Eu acho que devo ir embora. Preciso resolver de uma vez tudo isso.
— Stela foi para o quarto e sentou-se na cama. Eu a segui e me sentei ao lado
dela.

— O novo acordo de divórcio está pronto. Nesse, você fica com a


guarda das crianças e ele precisa te devolver o controle das ações da Capello.
E terá direito a parte de alguns bens do casal.

— E se ele não aceitar? Acha que Rômulo perderá tão fácil assim?
— Existem leis, Miguel não tem que aceitar ou não. Ele assina ou o
divórcio vai para o litigioso, que poderá ser prejudicial a ele.

Ela assentiu. Estava evitando me olhar, mas, quando me fitou, ficou


ruborizada.

— Gostou da noite de hoje?


— Indiferente para mim. — Deu de ombros.

— Mentirosa. Você amou. Por que não joga esse orgulho para o alto e
me devora logo?

Ela se levantou da cama.


— Eu até tento te suportar, mas você se esforça para me deixar com
raiva.

— Você fala como se me odiasse, Stela, quando nós dois sabemos que
não. — Arranquei minha camiseta, atraindo seu olhar guloso. Stela me
mostrou o dedo do meio e foi para o banheiro. Quando saiu, eu já estava
deitado.
Ela deu a volta na cama, deitou-se bem afastada de mim e olhou em
volta. Eu agi com esperteza e escondi o outro edredom.

— Esse cabe nós dois. — Levantei o cobertor, em um gesto


convidativo, para ela.
— Dai-me paciência, senhor. Prefiro passar frio. — Encolheu-se de
costas para mim.

— Uma porra. — Fui para cima dela e a agarrei, nos cobrindo com o
cobertor.

— Ulrich, o que está fazendo? Saia de cima de mim.


Saí de cima dela, mas mantive o abraço. No meio da cama, um de frente
para o outro, debaixo do mesmo cobertor. Stela estava ofegante, me
encarando de olhos saltados.

— O abraço está gostoso?

— Idiota.
— Está gostoso, não está? Uma posição perfeita.

Ela se recusou a responder, apenas ficou me olhando sem tentar me


afastar.

— Foram essas pequenas coisas que perdemos, Stela. Mas se você


deixasse, eu poderia nos fazer feliz...
— Não quero falar sobre nós dois. Nada que posso remeter ao passado
ou ao que poderíamos ter sido — foi incisiva.

— Tudo bem. Vamos apenas ficar aqui, agarrados, e dormir. Ou prefere


fazer outra coisa?

Ela ficou calada. Parecia ter um duelo dentro de si mesma. Seus olhos
vidrados em minha boca.

— Inferno — sussurrou.

— Inferno? — Dei uma risada.

— Você é um grande babaca, Ulrich. Eu não vou te perdoar por me


forçar a fazer isso.

— Fazer o quê?

Demostrando uma breve revolta, avançou e beijou minha boca como se


tivesse sede e eu fosse um belo copo de água gelada. Stela segurou meu rosto
e aprofundou o beijo, devorando com vigor minha língua, puxando com os
dentes meus lábios. Meu coração parecia subir e descer, batendo forte no meu
pescoço e na minha rola. Em segundos, meu pau estava enorme e duro feito
rocha. E quando ela deixou minha boca e beijou meu pescoço, aspirando em
seguida, eu fiquei louco. Enfiei minhas mãos nos cabelos de Stela e a puxei
de volta para minha boca.

Em segundos, ela já estava sobre mim, as mãos ansiosas no meu peito,


descendo pelo me tórax.

Mas, de repente, ela se afastou e se sentou na cama. As mãos no rosto.

— Está tudo bem?

— Eu te odeio. Como eu posso ter tanto tesão por um cara patife como
você? — Virou-se e me surpreendeu, desferindo alguns tapas em mim. —
Seu desgraçado. Por que me fez sofrer tanto? Você fica com milhares de
mulheres e nunca mais... se lembrou. Apenas esqueceu completamente do
passado e agora me cobra algo?

— Espera. Está dizendo que eu fiquei com milhares de mulheres e


simplesmente esqueci você?
— Para um homem é mais fácil seguir esse caminho. Esquecer uma só
para ter várias. Eu não devia discutir sobre isso...

— O que queria que eu fizesse, Stela? — Minha voz ficou um pouco


mais ríspida — Você se casou, teve filhos, vivia feliz e me odiava
escancaradamente. Eu devia mesmo ter te ignorado por todos esses anos, mas
não fiz. Eu ainda estou aqui, o mesmo Ulrich, te esperando, como havia
prometido. — Pulei da cama e vesti a camiseta.

— Onde vai?

— Não me acuse de ter te esquecido quando andei às margens de sua


vida, como um maldito idiota à espera de uma migalha, enquanto você se
doava apenas a Miguel.

Dessa vez, fiquei muito puto. Andei em volta da piscina. Estava vazia, e
a noite estava fria e nem um pouco confortável para alguém de pijama.
Sentei-me em uma espreguiçadeira. Se um guarda não chamasse minha
atenção, eu dormiria aqui. Olhei as estrelas e tive uma breve raiva de Stela,
apesar de não conseguir ficar irritado por muito tempo.

Coloquei o braço nos olhos e praguejei algumas obscenidades em minha


língua natal.

Era mesmo um coração idiota. Eu poderia ter só comido muitas


mulheres e seguido a minha vida. Eu queria ter a natureza fria do meu pai.
Mas isso não aconteceu.
— Oi. — Assustei-me e tirei o braço dos olhos. Era Stela. Ela se
aproximou, meio sem graça e se sentou na pontinha da espreguiçadeira em
que eu estava. — Estrelinha quer saber se você pode me desculpar. — Ela
sacudiu a ovelhinha de pelúcia na minha cara. Acabei sorrindo. Mas que
porra de homem fraco.

— Diga a ela que eu sempre acabo te desculpando.


— Me diga... Como se sentiu todos esses anos? Porque, para mim,
sempre pareceu que faltava uma parte. Eu não fui sempre feliz...

Sentei-me na espreguiçadeira, e ficamos lado a lado, sentados.

— O dia em que Thadeo ligou para mim dizendo que era oficialmente
tio, que você tinha dado à luz... eu deixei tudo e voltei para a Turquia.
— Por que fez isso?

— Eu precisava de um conforto para curar a dor que eu sentia. Era um


momento lindo para você, um momento eterno, que mudaria para sempre sua
vida. Porém o que me fez derramar lágrimas foi por eu não fazer parte
daquele momento.

— Ulrich...
— Eu sentia raiva e tristeza, mas também alegria por tudo ter corrido
bem com você. — Dei uma risada seca. — E estranhamente uma grande
curiosidade em ver o bebê. Mas você jamais me permitiria conhecê-lo. No
caso, conhecê-la, era a Raquel.

Stela estava calada, me fitando. Havia cumplicidade em seu olhar. Ela


abaixou a cabeça.

— Eu posso compreender. Mesmo que eu não queira, acho que preciso


te contar algo...
— Ei, vocês. — Viramos para trás. Um segurança vinha em nossa
direção. — Não podem ficar aqui. Essa área é fechada à noite.
— Tudo bem, já estamos saindo.

Fiquei de pé e estendi a mão para ela. Stela segurou e ficou de pé.


Voltamos para o quarto, eu peguei o outro edredom e joguei para ela, e só
então nos deitamos na cama.
— Obrigada — ela sussurrou no escuro.

— Pelo quê?

— Porque, mesmo apesar de tudo, você tratou as crianças muito bem.


Elas gostam de você.
— Estou treinando para quando for padrasto delas.

— Imbecil.

Dei uma risada, e pela primeira vez em anos, Stela riu comigo.
14

STELA

Empoleirada em uma poltrona, vi o dia nascer.

Ulrich estava feliz quando enfim sucumbiu ao sono; nos encaramos


calados até ele adormecer, e eu continuei acordada observando seu rosto na
fraca luz que banhava o quarto, vinda de uma luminária na parede.
Nunca esperei que pudesse ficar tão perto dele novamente, em uma
trégua declarada, mas silenciosa, que dei quando vi a raiva banhar seu rosto
na noite anterior. Quando ele vestiu a camiseta e saiu, senti uma espécie de
perda. Afinal, nunca na minha vida vi aquela raiva em seus olhos direcionada
a mim.

Eu não queria ser má com ele, mas também não queria dar brecha,
conhecia meu coração. Conhecia cada espaço reservado para o amor que eu
senti por ele e sei a propensão que tinha a desejá-lo.

Eu dormi pouco, apenas umas horas, e já estava ali, sentada, rodeada de


contradições.
O que houve em meu passado? Como a minha gravidez surgiu, se não
foi com Miguel? Isso me atormentou durante todos os anos de Raquel, mas
agora, naqueles dias, estava sendo pior, por causa da proximidade de Ulrich.
Eu pensei em contar a ele minha suposição. Mas não fazia sentido
insinuar um assunto tão sério, sendo que não transávamos desde a volta dele
da Turquia, anos atrás. Porém eu sabia do meu histórico de esquecer as
coisas, essa viagem para o resort era a maior prova de que eu poderia fazer
coisas e ter um branco depois.

O que eu devo fazer, meu Deus?


Desci da poltrona e fui até o outro quarto. O frio da manhã envolvia o
ambiente, e Nathan, como sempre, estava desembrulhado. Eu o cobri e olhei
Raquel, que tinha dormido com o celular na mão. Tirei-o, coloquei na
mesinha e fiquei uns segundos admirando minha filha; a boca bem
desenhada, o nariz...

Afastei-me e saí do quarto. Quando encostei a porta, Ulrich se assustou.


Olhou ao seu lado e quando não me viu ali, rapidamente sentou na cama. Mas
ao me encontrar de pé diante da porta, acalmou-se.

Ele era muito belo e sexy até quando acordava, mesmo com os cabelos
totalmente assanhados. E acho que era isso que lhe dava charme, fofo e muito
erótico. Passou a mão nos cabelos e conferiu a hora no celular ao lado.
— Está tudo bem? Correu da cama? Espero que eu não tenha feito
nada... um chute, um peido...

Acabei rindo.

— Deixa de ser idiota. Está tudo bem. Apenas enxaqueca — menti. Ele
relaxou, deitando-se novamente, e eu voltei para a cama. Ele se virou,
deitando de lado para me olhar.
— Stela Capello sem querer me agredir logo pela manhã? O que houve?

— Estou preocupada.
— Com o divórcio? — Arrastou-se e recostou nos travesseiros, quase
sentado.

Também.
— Sim. Benjamin já me ligou, meu pai me ligou. Todos estão querendo
respostas. Acho que vou embora logo após o café.

— Você quem sabe. Se achar que está preparada para enfrentar tudo,
nós vamos.

— Eu acho que consegui digerir muito rápido o golpe que ganhei do


homem que acreditei amar. O baque maior já passou.
— Oi? — Ele se curvou para cima de mim com a mão em concha no
ouvido. — Você disse: o homem que acreditei amar?

— Sim, eu...

— Espera. — Pegou o celular, tocou na tela e o colocou perto da minha


boca. — Pronto, está gravando, pode falar de novo.
— Meu Deus. — Empurrei com força o celular, lutando para não rir. —
Por isso que quero te bater a maior parte do tempo. Isso não quer dizer nada.

— Para mim, sim. — Ele afastou o cobertor e saiu da cama. Em sua


calça de moletom, o contorno de sua ereção matinal. Senti-me enrubescer.
Desviei o olhar até Ulrich entrar no banheiro.

Foi trabalhoso tirar Nathan da cama, mas consegui, e assim


conseguimos descer às oito para tomar café enquanto a camareira arrumava o
quarto — Nathan emburrado, com o capuz do moletom enfiado na cabeça, e
Raquel parecia bem, ela não tinha problema em acordar cedo.
— Está gostando da viagem, amigão? — Ulrich tentou puxar conversa
com ele, na mesa enquanto comíamos.

— Está tão boa como abraçar um porco espinho — respondeu com a


boca cheia. Eu sabia que ele estava zangado por ter de acordar cedo sem
precisar ir para a escola.
— Que rapaz mal-humorado, estava tão alegre ontem...

— Me dê um Xbox, que eu volto a sorrir. — Deu duas mordidas


grandes no pão recheado e uma golada de leite por cima.

Ulrich encarou-me.
— Um Xbox é um pagamento muito alto para conseguir um sorriso do
pequeno príncipe — ironizou.

— Ele não vai ganhar, pois fez travessura na escola e levou suspensão.

— Enquanto a Raquel ganhou celular novo e vai ganhar uma festa de


quinze anos que será tão grande, que já começou a planejar agora.
Raquel limitou-se a jogar um beijo para Nathan, pirraçando-o.

— Ah, que legal. — Ulrich se animou visivelmente. — Espero ser


convidado.

— Vou convidar, sim — ela concordou — Você é bonito e gentil, um


dos poucos adultos legais. E ainda tem sotaque que vai entreter minhas
colegas.
— Raquel — alertei, horrorizada com sua fala, enquanto Ulrich
gargalhava. Ela deu de ombros.

— Alguém que reconhece meus predicados. Se não tiver um


pretendente para a dança de debutante, posso me voluntariar, sei dançar
muito bem.

Engoli em seco, lembrando da minha festa quando eu dancei com ele.


Ulrich não pareceu compartilhar da mesma lembrança.
— Ulrich, festas de quinze anos não são mais como antigamente —
avisei.

— Ah...

— Raquel vai entrar em um vestido de princesa, levada pelo... — Na


mesma hora paralisei com o que estava prestes a falar. — Levada pelo...
— Meu pai — Raquel completou. — E depois, lá na frente, eu trocarei a
sapatilha rosa por saltos altos prateados, e o vestido perde a saia de princesa,
virando algo mais adulto.

Ela explicava, mas Ulrich tinha percebido meu mal-estar. Ele me


encarava enquanto a menina falava.

— Eu imagino como deve estar se sentindo — ele falou enquanto


andávamos pela área externa, onde pessoas já começavam a se aglomerar
para apreciar o resort. — Falar sobre algo que vai acontecer daqui a dois
anos, sendo que você e o pai dela estão nessa situação delicada. O divórcio...

Eu apenas concordei, calada.

— Mas, até lá, tudo estará resolvido. Ela vai ter a festa que merece.

— Eu preciso te perguntar algo... — Parei de andar e, de braços


cruzados, o encarei — E quero que seja bem sincero. — Eu estava séria, e
meu semblante o intrigou. Era o assunto que fazia minha cabeça ferver há
anos. Sentei-me em uma cadeira, em uma mesinha com guarda-sol, e quando
Ulrich puxou a cadeira para se sentar, o celular tocou.
— Atenda — incentivei. Eu não queria distrações quando começasse o
assunto.

— É o Benjhamin. Um momentinho. — Afastou-se e ficou de costas


para mim, falando.
Ok. Eu vou apenas perguntar a ele se houve alguma vez que transamos
e que eu não lembre. É isso. Será rápido. As crianças estão se divertindo,
esse é o momento.

Ulrich voltou e me encarou quase perplexo. Estava meio pálido.

— Stela...
— O quê? Que cara é essa? — Dei um pulo da cadeira, quase
derrubando-a. — O que o Benjamin queria?

— Sente-se aqui. — Ulrich me puxou e me fez sentar novamente. Puxou


uma cadeira e se sentou bem pertinho de mim.

— Benjamin pediu para te avisar... seu pai passou mal.


— Oh, meu Deus! — Tampei a boca com as mãos.

— Ele está estável, sendo cuidado. Seu João sofreu um AVC, agora,
pela manhã.

***

MIGUEL
Eu estava ficando na mansão de Rômulo esses dias. Ontem tive uma
briga feia com Erica quando descobriu que eu estava tendo um caso com ele
e ameaçou contar todos os nossos planos para Andrey. Então eu a demiti e
ponto final. Eu devia esperar uma vingança por parte dela a qualquer
momento, mas Rômulo me prometeu que daria um jeito na minha ex-
assistente.

E eu sempre estava propenso a confiar no cafajeste. Ele sabia como me


convencer. Enquanto tomava uma ducha, sorri, lembrando de nossa noite
quente, que foi até a madrugada.
Ele não estava na cama quando acordei e nem na casa. Perguntei à
governanta, e ela me disse que Rômulo saíra cedo. Como ele era um homem
cheio de besteiras na agenda, não me perturbei, apenas me arrumei e fui para
a empresa, onde eu ainda estava no meu cargo, graças à Stela, que não abrira
o bico para os irmãos. E isso me preocupava. Ulrich estava com ela —
Nathan me contou —, e certamente o turco maldito estava bolando um plano
para me atacar.

Rômulo teria uma carta na manga? Eu esperava que sim.

Às oito da manhã, cheguei à empresa e encontrei uma movimentação


estranha. Passei pela minha sala e a secretária estava acabando de chegar,
mas conversava de forma nervosa com outra secretária. Então vi Andrey
passar correndo, com o celular na orelha. Corri atrás e o encurralei no
elevador.
— O que houve? Que correria é essa?

Quando ele me viu, raiva tomou seu semblante.

— Cara, onde está a Stela? Onde você e minha irmã estavam essa
manhã?
— Eu... estava... a Stela viajou de férias com as crianças. Vou logo em
seguida.

— Meu pai acabou de sofrer um AVC. Vocês o deixaram sozinho! —


acusou. As portas do elevador abriram, e ele foi logo falando ao celular: —
Thadeo! O pai sofreu um AVC... Mano... precisa correr para o hospital.
Abalado, voltei para a minha sala e me sentei na cadeira, perplexo. Eu
não sabia o que pensar. Meu coração batia descompassado. Eu gostava de
verdade do velho, ele foi um pai para mim durante todos aqueles anos.
Éramos inseparáveis.

O toque do meu celular interrompeu minhas divagações. Era Rômulo.

— Rômulo...
— E aí? Já soube?

— Do seu João?

— Sim. Gostou?
— O quê? Gostou de que, porra?

— Cara, ele quase morrendo no hospital é um motivo para a Stela voltar


e a gente pressionar. E ninguém vai ter cabeça para pensar em ações ou
divórcio nesse momento.

Levantei, fechei rapidamente a porta e fui para a janela.


— Rômulo, nós planejamos algo discreto... sobre o que está falando?

— Eu fiz o velho passar mal — revelou, cheio de orgulho. — Bati na


casa dele essa manhã, ele me recebeu, e eu contei tudo, mostrando provas.
Todos os detalhes que você fez com a filhinha dele e do golpe na empresa
dado pelo genro em que ele confiava. E agora Stela estava sumida no mundo,
com os filhos. O velho desabou na mesma hora. — Gargalhou, e eu gelei,
apavorado.
15

ULRICH

As crianças não sabiam por que tivemos de voltar rapidamente. Stela


estava apática quando arrumou as malas, como se estivesse em modo
automático, sem chorar, e eu imaginei que ela poderia dissociar a qualquer
momento, dando espaço à Estrelinha.

Na outra poltrona do avião, Raquel encarava a mãe dormindo em meu


ombro. E eu não fiz nada para encobrir a cena e nem tentei ludibriar. A
menina era inteligente e já estava desconfiando de algo entre mim e a mãe.
Eu juro que não queria que uma criança sofresse todas as consequências das
escolhas dos adultos.

Ela dormiu por horas, e quando acordou, apenas se levantou e foi ao


banheiro sem falar nada. Quando voltou, eu percebi um olhar diferente.

— Acha que ele descobriu algo e por isso sofreu um AVC? — ela me
perguntou enquanto retocava a maquiagem com um espelhinho que tirou da
bolsa.

— Estrelinha?
— Sim, meu querido. Essa notícia trouxe para a Stela todas as
lembranças ruins do que ela passou... Ela não está forte o suficiente.
Por um momento, eu queria que fosse a Stela que estivesse ali,
encarando de maneira firme essa situação. Mas eu achei melhor assim. Ela
não passaria todo desconforto de esperar notícias na sala de espera de um
hospital.

Descemos no aeroporto, já perto das três da tarde. Passamos na casa de


Benjamin, para deixar Raquel e Nathan, e foi a primeira vez que a outra face
de Stela encontrava um dos irmãos.

Ele estava pasmo, encarando-a.

— Mano, para de me olhar dessa forma como se eu fosse um E.T. —


Ela passou por ele e foi alertar as crianças para não serem malcriadas e
obedecer à Diana.

— É... ela? A outra? — Benjamin sussurrou para mim.


— Sim. É a personalidade extrovertida de sua irmã.

— Caramba. E essa convive normalmente com você? Ela não tenta te


bater?

Na cama, sim.

— Ambas gostam de mim, mas só uma tem coragem de falar.

— Vamos. — Ela voltou. — Mano, fique tranquilo, nosso velho é forte.


Ele vai sair dessa. — Deu força a Benjamin, e ele apenas assentiu.

Chegamos ao hospital, e todos já estavam lá. Thadeo e Gema, Fernando


e Andrey. Miguel não estava, e eu achei bom mesmo, ou iria expor o sujeito
ali só para ver os irmãos darem uma surra. Já estava no hospital mesmo, já
ficava internado.
— Onde você estava, Stela? — Andrey se levantou e já veio em nossa
direção. — Que irresponsabilidade é essa? Você foi morar lá para cuidar dele.

— Ei! Alto lá, meu querido! — ela berrou na cara dele. — Você
também é filho. O Fernando também é filho e cuida da nossa fazenda, para
onde o pai poderia ter ido. Ou você acha que sua responsabilidade é apenas
gerir a empresa e posar de bonitão? Olha como fala comigo!
Todos nós estávamos perplexos com a resposta dela. Andrey,
boquiaberto, Fernando, de pé, sem saber o que dizer, Gema e Thadeo se
entreolhando. Então ela percebeu que Stela jamais seria tão explosiva e
abaixou o rosto entre as mãos e imitou um pranto. Eu soube que ela estava
interpretando, e acho que Benjamin também. Ele a levou para uma cadeira, e
Gema apressou em ir buscar água para ela.

— Ela está em choque. — Coloquei a mão no peito de Andrey. — Ela


avisou ao Benjamin que estava indo viajar.

— É verdade, Andrey. Stela não tem culpa.


Andrey se sentiu culpado, sentou-se ao lado dela e fez carinho em suas
costas.

— Desculpa, maninha. Você está certa, nós cinco temos deveres. —


Todos eles se juntaram para consolar Stela. De braços cruzados, eu observei.
Desde sempre ela foi tratada como um cristal frágil, e eu tinha quase certeza
de que era por causa disso sua dificuldade em encarar momentos difíceis.

Pouco depois, o médico veio informar que seu João estava estável, mas
ainda sedado, e que ele só precisava descansar. Eu e os irmãos convencemos
Stela a ir embora e esperar em casa.

Ela não quis buscar as crianças, e pediu para eu levá-la em casa.


Benjamin emprestou o carro, pois ia ficar mais um pouco no hospital, assim
fomos ela e eu. Na mansão de seu João, quando estávamos sozinhos, ela me
olhou meio sonolenta, ainda dentro do carro.

— A viagem foi muito boa.


— Eu adorei — concordei.

— Stela quer voltar... tenho que ir agora.

— Eu esperarei por você e por ela.

— Ah, merda. Você é tão fofo e gostoso. Stela precisa provar.

Ri e beijei seus lábios. Suspirou e fechou os olhos. Dei a volta no carro,


abri a porta e tirei-a de dentro. Levei-a em meus braços, para dentro da casa,
subi as escadas e a deitei na cama. Tirei meus sapatos e subi na cama, para
esperar a consciência de Stela voltar.

Ah! Por favor! Eu não sou um paspalho idiota correndo atrás de uma
mulher que nem liga para mim, ou um bundão amando platonicamente. Às
vezes, era, sim, um fardo. E eu já me senti cansado dessa condição dela. Mas
que espécie de homem eu seria se a abandonasse só por não ser a mulher
perfeita sem problemas que iria apenas me amar sem empecilhos e fazer sexo
quente todas as noites?
Dizem que às vezes o amor requer sacrifícios, e parece que caiu em meu
colo o dever de encarar o fardo. Stela tinha um coração gigante, e me cortava
por dentro saber como ela sofria com seus problemas psicológicos.

Talvez essa fosse a minha missão: estar aqui por ela.


16

ULRICH

Abri os armários da cozinha da mansão do seu João. Eu não tinha


comido quase nada o dia todo. Na verdade, belisquei alguma coisa durante o
voo, mas geralmente eu odiava comida de avião e ingeria apenas o
necessário.

Deixei os armários de lado e abri a geladeira. Hum... bastante iogurte


Capello. Como nos velhos tempos, quando eu frequentava essa casa. Esse era
o lado bom de ser amigo de empresários do leite. Peguei também uma
caixinha de leite Capello, queijo e um pão de forma que estava lá dentro.
Quem guarda pão de forma na geladeira?

Olhei um potinho de manteiga, e a etiqueta indicava o nome de Stela.


Sorri, lembrando do Thadeo e sua especialidade diferenciada.

— Ei! Quem é você? — Ouvi atrás de mim e me virei assustado, quase


derrubando as coisas. Nesse momento vi uma mulher parada na porta,
tentando esconder o olhar de horror ao se deparar com um estranho na
cozinha.
— Ah... Oi... eu sou...

— Ele está comigo, Maria. — Stela chegou, e vi o exato momento em


que a mulher respirou com alívio.

— Stela, precisa de algo? Daqui a pouco começarei o jantar.

— Por enquanto, não, Maria. Obrigada, pode ir embora mais cedo hoje.
As crianças estão... — Olhou para mim. Ela não sabia onde estavam os
filhos.

— Estão na casa do Benjhamin e provavelmente...

— Jantaremos lá — ela completou minha fala. A mulher assentiu, deu


uma última olhada em mim e nos deixou sozinhos. Depositei as coisas no
balcão e puxei uma cadeira para Stela se sentar.
— Está tudo bem? Você apagou.

— Ah... meu Deus, de novo! Preciso urgente ir ver doutora Eliana.


Como está o meu pai?

— Estável. Acabei de chegar do hospital. — Omiti que ela também


estava lá.
— Eu preciso ir agora vê-lo. — Stela tentou dar meia-volta na cozinha,
eu a segurei.

— Sua presença lá não vai adiantar em nada. Seu pai é forte. Ben está lá
no hospital, as crianças estão com Diana, relaxe um pouco. — Deixou que eu
a guiasse até a cadeira.

Stela passou os olhos pelas coisas que eu selecionei e depois me fitou,


desconfiada.
— O que você está fazendo aqui?

— Vim ver como você estava. E como ainda dormia, decidi beliscar
alguma coisa. Está com fome? — Abri as gavetas, à procura de talheres e
depois em busca de copos.

— Não. Só estranhamente enjoada.

— Deve ser o voo. Quer um queijo-quente?

Stela direcionou para mim uma expressão pasma, como se eu tivesse


oferecido caviar.

— Sabe fazer?

— Por que o espanto? — Dei as costas para ela e fui procurar uma
frigideira. — Um homem solteiro tem que saber se virar.

— Eu acho que me acostumei com Miguel não sabendo fritar um ovo.

— Seu parâmetro de comparação é muito pobre. Miguel, seu João,


Andrey, só homens que receberam tudo nas mãos. Por favor, eu não estarei
aqui para verificar, mas não deixe o Nathan crescer dessa forma.
— Não estará aqui? — indagou.

— Aqui... na sua casa, na sua rotina.

Só um milagre me faria ter a chance de fazer parte da rotina dela e das


crianças.

— Nathan é a cópia dos tios. Tem a mesma personalidade de Benjamin.


— Ela levantou-se e ficou ao lado do fogão, me observando enquanto eu
passava a manteiga de Thadeo nas fatias de pão de forma. — Às vezes, penso
que ele seguirá exatamente os mesmos passos: ir para a empresa só para
agradar a Miguel e meu pai.

— Já estamos em 2020. Ninguém é obrigado a parar a vida para agradar


os outros. Além do mais, eu gostaria que a mais interessada na empresa fosse
justamente a neta que seu João desprezou.
— Está falando da Maia? Ele não a desprezou. Só não queria que
Benjamin se envolvesse com a mãe dela.

— Isso para mim é desprezar. Pena que ele não estará aqui para vê-la
sentar-se na cadeira da presidência.
— Você fala com convicção. Ela pode querer seguir a pintura, como
Benjamin, ou pode ser a Alice, filha do Andrey, que assumirá a Capello. A
menos provável é Raquel. Miguel ficava pressionando-a para tornar-se
médica, mas ela me disse certa vez que gostaria de ser promotora.

Isso me fez virar surpreso para fitar Stela.

— Ora, ora. Ela fará direito, terá todo meu apoio, e quando formar, eu
poderei encaminhá-la nesse meio bem disputado, como um padrinho.
Stela sorriu sem graça e assentiu, mas rapidamente mudou de assunto.

— Não seria melhor fazer isso na sanduicheira?

— Não. O melhor queijo-quente é feito na frigideira. Assim. — Eu tinha


colocado as fatias de pão de forma com manteiga viradas para baixo. —
Agora vai o queijo, e cobre com outra fatia de pão com manteiga passada na
parte de cima. — Pressionei um pouco com uma espátula, tampei a frigideira
e esperei um pouco. Stela assistia a tudo com atenção. Tirei a tampa, virei os
sanduíches, e tampei mais um pouco.
— Uau. Muito bom. — Minutos depois, ela elogiou, sentada em uma
banqueta alta do balcão, comendo o sanduíche. Servi leite puro em um copo e
passei para ela.

— Hum... — Engoliu e negou com o dedo. — Não bebo leite assim,


puro.

— Não? Isso é um insulto às pobres vacas.


— Odeio leite. A Capello continua mandando porque meu pai gosta e
também Nathan, que parece um bezerro. Se deixar, toma leite com Toddy o
dia todo.

— O garoto conhece as coisas boas da vida. — Comemos calados o


sanduíche de queijo. Depois peguei um iogurte na bandeja. Stela me assistia,
tomando água gelada.
Esvaziei em segundos um potinho de sabor morango e peguei outro.

— Hum... os naturais são os melhores. — Mergulhei a colher


novamente no potinho, enfiei na boca e a lambi em seguida. Stela engoliu em
seco e desviou o olhar.

Saí do meu lugar e fui até ela. Mergulhei a colher novamente e levei até
seus lábios.
— O que está fazendo?

— Te dando iogurte. Abre o boquinha.

— Vai ganhar um soco — advertiu.


— Não importo. Abre. — Ela não estava com raiva, quase sorriu, mas
manteve a expressão dura. — Vamos, é pecado recusar iorgute.

— É iogurte — ela me corrigiu, e eu enfiei a colherada em sua boca.


Stela engoliu e lambeu os lábios. E isso mexeu para cacete comigo. Que se
dane se eu acabasse levando um soco. Curvei-me sobre ela e beijei seus
lábios. Foi quase um beijão de língua, mas me afastei, e nosso olhar colidiu.
Não falamos nada, apenas nos olhamos. Stela estava arfando e, em um
impulso, puxou minha camisa, voltando a me beijar.

Envolvi sua boca com meus lábios e apreciei o arrepio gostoso percorrer
meu corpo ao sentir a maciez e quentura de sua boca.
Stela abraçou meu pescoço, e eu a tirei da banqueta alta. Suas pernas
automaticamente envolveram minha cintura, e isso causou uma loucura em
meu coração, que acelerou como se eu festejasse em uma rave.

Eu a coloquei sentada sobre o balcão e deslizei a boca pelo seu queixo;


mordi a pontinha e desci para o pescoço. Stela usava um vestido que tinha
quatro botões abaixo da gola. Com as mãos trêmulas, os abri e me deparei
com os seios cobertos por um belo sutiã de renda.

Cacete, eu me perco demais por essa mulher.

Parei e enfiei as mãos nos cabelos, penteando-os para trás, em um gesto


nervoso.

— Não é o momento. Não quero me aproveitar disso.


— Talvez eu queira fazer uma loucura para não ter que lidar com todos
esses problemas — retrucou.

— É assim que me enxerga? Uma válvula de escape?

— Eu não quis... dizer isso. Só estou dizendo que não irei te acusar de
nada. Não sou mais a garotinha de quinze anos, Ulrich. Se você ainda está
aqui, é porque eu o quero aqui.

Ela estava assustada, mas vi puro desejo em seus olhos. Possivelmente


Stela estivesse assustada justamente pelos seus desejos. Eu me lembrava de
quando ela dissociou pela primeira vez e foi me visitar, pedindo que eu a
fizesse esquecer os problemas.

— Talvez não aguente as consequências de brincar comigo. — Toquei


em sua coxa, e olhamos juntos para minha mão.

— Talvez eu queira me arriscar. Voltarei a ficar com raiva de você


amanhã.
Sorrimos juntos. Um sorriso cúmplice que brilhava o olhar.

— Ah, Stela... faz tempo que espero sua autorização para te dar um
ensinamento na cama. — Toquei sua cintura e a apertei.
— Ensinamento...? — Sorriu, tentando suprimir um arfar.

— Sentir o poder de um turco. — Com meu polegar, fiz um carinho de


leve, abaixo do seu seio. — Você corre sério risco de se viciar. Não é metade
do que está acostumada a ter... na sua vida cotidiana.

— Quando você se tornou tão depravado e baixo? — sussurrou.


— Desde o dia em que você me empurrou em um poço sem fundo. — E
a beijei novamente. Dessa vez não havia mais retorno. Peguei-a do balcão e
caminhei para fora da cozinha, sem me afastar do beijo, que era quase
desesperado.

***

STELA

O que eu estava pensando? Simplesmente não sabia. Depois de tantos


problemas, parecia coerente dar vazão ao meu desejo carnal. Miguel tinha
conseguido destruir toda a afeição que sentia por ele ao longo desses anos, e
nada estava ainda resolvido entre mim e Ulrich — tínhamos entre nós, na
verdade, uma vala de assuntos inacabados. Eu não ia simplesmente me tornar
sua amiga. Porém, naquele momento, eu consegui prender cada uma dessas
conjecturas na minha mente.

Eu só o queria.

Não pensei em nada, tranquei lá fora todos os problemas. Mesmo


internado, meu pai estava bem cuidado. Eu queria um momento para eu
viver.

Em segundos, chegamos ao meu quarto, trombando nas paredes,


arrancando nossa roupa, sem parar de nos beijar. O desespero de anos a fio
sem nos tocar.

Eu fiquei de joelhos na minha cama, ofegando, vendo-o tirar os sapatos


e depois a camisa. Engoli em seco ao vê-lo arrancar o cinto e descer o zíper
do jeans. Quando Ulrich abaixou a calça e a cueca volumosa apareceu, um
desejo insano nasceu em mim. Algo que jamais senti: eu queria mordê-lo,
chupá-lo, lamber. Arranquei meu vestido pela cabeça e esperei Ulrich se
aproximar.
A gente parecia não saber como proceder. Ele estava de pé diante da
cama, e eu, de joelhos. Apenas o fogo do desejo nos movia.

— Vire de costas — pedi, e ele prontamente, atendeu, e pude ver sua


tatuagem idêntica à minha. Sorri, emocionada. Com o dedo, percorri o
desenho que tinha sido feito sobre suas cicatrizes, das chibatadas que levou
do pai, em praça pública. Quando toquei em um risco, ele se virou e segurou
minha mão.

Eu entendi que não era o momento de pensar sobre isso. Nada sobre o
passado. Então encostei mais um pouco e, um tanto sem graça, beijei seu
peito. Era quente e forte, havia poucos pelos salpicados, e o que mais me
chamava atenção era o sutil caminho que partia do umbigo e sumia na cueca.
Poderia parecer uma louca, mas aspirei o cheiro dele.
Quando levantei o rosto, Ulrich sorria descaradamente.

— Foi pega no flagra apreciando o inimigo. — Tocou o polegar no meu


umbigo e o desceu. Eu acompanhava com o olhar, a respiração ficando mais
pesada conforme Ulrich se aproximava da minha calcinha. E friccionou o
dedo sobre a peça de renda, me fazendo tremer. Ulrich a puxou de lado, só
um pouquinho, e brincou ali, subindo e descendo o dedo, pressionando de vez
em quando. Eu já estava toda ensopada, pateticamente entregue.

Ainda estava em pé diante de mim, e, para meu espanto, puxou-me para


junto a seu corpo, com um braço e sorriu. Ulrich se mantinha preso em meus
olhos quando seu dedo percorreu novamente minha vagina, brincando:
entrou, não entrou, quase chegou ao clitóris e não o tocou. A boca máscula,
com um sorriso cínico, bem perto de mim. Não resisti, avancei e o beijei.

Ulrich parou de brincar com o dedo e o usou para puxar a cueca. Eu


olhava em seus olhos quando senti bem ali, no meio das minhas pernas, a
dureza de seu pau. Ele apertou-me mais contra seu corpo, mordeu meu
queixo e forçou a ereção contra minha calcinha quente, implorando por mais
toque. Era só a promessa do que ele poderia fazer. Olhei para baixo.

Caramba, ele é lindo de todas as formas.

Riu e me empurrou para a cama. Estava totalmente presa a uma bolha na


qual só existíamos nós dois. Nada do mundo lá fora poderia nos tocar.

Ulrich retirou totalmente a cueca e subiu na cama, de joelhos diante de


mim. Sob meu olhar excitado, segurou a pênis e movimentou-o, descobrindo
a glande, que brilhava molhada por sua excitação.

Puta que pariu. A cabeça rosada, e certamente pulsando. Até as bolas


eram bonitas, devidamente raspadas. Ele estava muito grande e babando,
assim como eu.
Ele tirou minha calcinha e afastou para olhar.

— Tudo só para mim. Pronta para sentir o desespero da minha língua e


a potência do meu pau? — Deu um sorriso travesso, passou a língua em seus
lábios e não esperou eu responder. Segurou meus joelhos, os afastou e
mergulhou ali no meio.
Colocou toda a língua para fora e passou em toda a extensão da
minha vagina. Bem demorado, saboreando o gosto. Arfei segurando nos
lençóis e ele repetiu movimento. Apenas lambendo superficialmente. Me
contorci aflita na terceira lambida, e ele deu um sorriso de triunfo
continuando apenas lambendo.

— Merda...

— Xiu. Acalme-se. — riu satisfeito — Já está chorando? Eu nem


comecei. — E ele não parava, continua lambendo, e me olhando, querendo
ver a minha reação. E quando eu não suportava mais só as lambidas longas,
ele beijou demoradamente chupando com vontade. Os dedos também
entraram na festa. Como se fosse uma caricia, afastou com os dedos os lábios
vaginais, colocou o polegar na boca, deixo-o úmido e o esfregou bem
demoradamente no tecido sensível que latejava implorando.

Eu gemi alto e ele não respondeu. Estava com a boca muito ocupada me
chupando como um vampiro devora sua presa. Em um rompante de pura
excitação, esfregou os lábios de um lado para o outro contra minha maciez
sensível, e para completar, sugou com cuidado o clitóris para dentro da sua
boca.

Não aguentei e gritei me contorcendo. Que chupada gostosa, porra!

— Oh... Ulrich, merda... — eu nem podia me sacudir porque ele


segurava minhas pernas em uma posição que lhe facilitava.
— Stela, estou te degustando. — Ele tirou o rosto do meio das minhas
pernas para me olhar — Você tem uma boceta maravilhosa e seria um pecado
eu não dar o devido tratamento a ela. Apenas relaxe e goze quando quiser.

Com cuidado ele enfiou o dedo indicador; parou de lamber e ficou


assistindo extasiado o dedo abrir passagem para se inserir. O meu interior
abraçou o dedo dele como uma luva e para me provocar mais, arrastou para
fora curvando como um anzol. Meus olhos reviraram na mesma hora. Parecia
que ele estava puxando meu ar lá por baixo.

Ulrich era quase sádico, e sorriu quando enfiou, agora o dedo médio, e
deu umas duas dedadas profundas antes de tirá-lo e voltar enfiar a língua
percorrendo a pele exposta até clitóris inchado.

— Vou gozar. — Gritei quase em desespero crescente. Tentei falar o


nome dele mais saia apenas um gruído. Ulrich manteve minhas pernas
abertas, e chupou vorazmente enquanto meu orgasmo vinha.

— Respira. Já passou. — Ele riu massageando minha perna enquanto eu


ainda tremia por inteiro na cama. — Gozou gostoso? Quer mais?
— Meu pai... do céu.

— Pois é. A coisa é boa e não te falaram. Vamos para a segunda parte?

— Na... mesa de... precisamos de preservativos.


Ele esticou o braço, abriu a gaveta da cabeceira e pegou uma caixinha
ainda fechada.

— Tem... tanto tempo que nem sei se ainda... prestam. — Miguel e eu


não precisávamos usar, e a gente não fazia sexo com frequência.

Ulrich abriu a caixa, tirou um e deixou ali.


— Olá, de novo, minhas delícias — sussurrou diante dos meus seios e
abocanhou um de cada vez. A língua percorreu meu mamilo, e em seguida a
boca inteira chupou como quis.

— O quê...? O que disse?


— De novo, dos meus sonhos. Relaxe. — Ulrich se deliciou, revezando
em meus seios, e desceu a mão pelo meu ventre, cobrindo com carinho minha
vagina. Isso fez minhas pernas se abrirem automaticamente, como se
soubessem o que precisava ser feito. Arregalei os olhos quando o prazer
delicioso me tomou: a boca de Ulrich no meu seio e o dedo longo entrando
devagar em mim.

Era simples e prático: entrava e saía, o dedo indo e vindo sem pressa. E
quando tocou meu clitóris, vi estrelas. Caramba, eu estava sem ar e queria
mais, cada vez mais.

E como se soubesse desse meu pensamento, Ulrich apenas se afastou de


mim, vestiu o preservativo com rapidez e, ajoelhado entre minhas pernas,
pincelou o pau ali na entrada antes de me tomar por completo, de uma única
vez. E não houve incômodo, só prazer quando o recebia até a base.
— Aaaaah.... Que bom... — gemi, agarrada com força nos lençóis.

E Ulrich sorriu.

Tirou tudo de dentro de mim, deu uma batidinha no clitóris, me fazendo


sentir o peso, e meteu novamente, gostoso demais, delirante, forçando até o
fundo. Minhas carnes pareciam reconhecê-lo e o abraçavam esfomeadas.
Ulrich curvou-se, quase se deitando contra mim. Eu estava tão ofegante,
que achava que sofreria um enfarte. Ele penteou meus cabelos, com calma, e
beijou docemente minha boca. E o pau lá, enterrado fundo.
E para piorar, ele girou devagar o quadril, e eu senti minhas entranhas
festejaram com o convidado duro e grosso.

— Metido até as bolas — ele sussurrou de modo pervertido. — Segure-


se, Stela, agora eu vou te foder muito gostoso, com carinho e força.
— Seu...

— Pode me xingar se quiser. Você não é só mais uma, você é a única, e


eu vou te dar tudo de mim para te saciar. — Ele se mostrava confiante, e
passou um pouco dessa confiança para mim. Suas mãos encontraram as
minhas, e nossos dedos se entrelaçaram. Ele me beijou, e quando afastou a
boca, deu a primeira metida rápida e até o fundo. E daí não parou mais. Seu
corpo sobre mim ia e vinha de modo repetitivo e quase torturante. Era um
corpo enorme, com um cheiro muito bom, e quando Ulrich soltou minhas
mãos, me deliciei com a dureza de seus músculos quentes.

O homem conseguia tirar qualquer preocupação, na verdade, não dava


para pensar em outra coisa com aquele monumento me dando bombadas
fundas e ritmadas. Ele sabia como fazer gostoso, a ponto de quase arrancar
um “te amo” da minha garganta.
Quando eu estava perto, ele simplesmente saiu afastando-se, me fazendo
sentir uma frustrante sensação de vazio.

— Ulrich...

— Aguenta terminar? Será que posso sobrecarregar essa bocetinha?


— Perguntou. Acariciou com o polegar meus lábios vaginais meio inchados e
pulsantes.
Ainda muito ofegante eu respondi meio atordoada dizendo que sim.

— Segura na grade da cama. — Ele comandou. — De quatro, mas


segurando nas grades, vou fazer forte. — Avisou e isso atiçou em mim uma
curiosidade pervertida, de repente, eu desejava sentir o sexo bruto.

— Você vai ver que tesão é sentir meu pau nessa posição. — Ulrich
explicou enquanto me ajeitava como ele desejava — Ele vai entrar todinho e
você vai querer voar descontrolada.
Ele me deu um beijo de língua, encostou atrás de mim, seguro meus
cabelos e então socou devagarzinho. Primeiro a ponta grossa do pau.
Massageando a entrada para o resto passar. Tirou, lambuzou toda a entrada
com minha própria lubrificação, acaricia o clitóris com pênis grosso e pesado
e tornou a entrar. Fechei os olhos e mordo os lábios conforme cada
centímetro me invadia, abrindo-me.

— Relaxe e aproveite. Vou manter você ardendo por dentro.

Ulrich começou a arremeter com força batendo contra mim, num


ritmo tão delicioso que meu corpo todo começou a responder implorando
para que eu o libertasse desse desassossego. Segurei com força na grade e
gritei enquanto ele sem piedade, invadia-me em deliciosos golpes
esfomeados.
Era maravilhoso sentir o pau afundar, mesmo que são movimentos
rápidos, mas quando chegava ao fundo, era impossível não gemer.

Eu tive um orgasmo violento, assim, naquela posição, com ele me


atacando em um ritmo viciante. Ulrich soube quando eu estava quase
alcançando o clímax, segurou firme na minha cintura e manteve o ritmo,
bombando tudo dentro de mim. Eu me sentia caindo em um precipício,
enlouquecendo. A combustão poderosa do orgasmo estava vindo, e ele não
parava de arremeter gostosamente, me agarrando com força por trás. Parecia
que quanto mais ele socava, mais o orgasmo crescia como uma bola de neve.
— Caralhooo! — gritei, e ele não me soltou, me fez sentir cada
centímetro de seu pau enquanto eu me sacodia em um gozo que jamais tive. E
para completar, o beijo de língua. Por trás era pervertido e delicioso. Eu
sentia o peso dele me segurando selvagemente.

Meu Deus! Um prazer tão forte assim não era perigoso?


Ulrich me puxou, abraçando meu corpo e sentou-se no meio da cama,
me fazendo sentar sobre ele. Abracei com ânsia seu corpo, ainda
convulsionando, sentindo como se tivesse saído do corpo e voltado.

— Acalme-se. — Fez um cafuné em meus cabelos. — Tudo bem?

— Você... quase... você quase me matou.


Ele riu e beijou o cantinho da minha boca.

— Eu disse que talvez você não aguentasse. Quem é criado a pão-de-ló


não aguenta lutar uma guerra. Só fiz o que o seu marido nunca fez.

— Esqueça. Eu quero mais.


Merda, eu queria muito mais.

— Está se sentindo bem?

— Estou morrendo — arfei. — Mas quero mais.


Ulrich riu, deitou conta os travesseiros e segurou o pau em riste. Era a
rola mais gostosa e perigosa.

— Nunca achei que diria isso, mas senta em mim, Stela.

— Imbecil — falei, e fui depressa sentar nele. Merda, eu também nunca


achei que poderia fazer isso logo com ele. Até mês anterior, eu odiava aquele
homem. Agora não sabia o que sentia.
Eu o recebi com alívio, sentei devagar até tê-lo por completo
acomodado e comecei a me movimentar devagar, subindo e descendo. Ele
segurou meus seios, enquanto eu o encobria e soltava, cada vez mais rápido,
em uma cavalgada perfeita.

Era uma visão erótica e muito estimulante assisti-lo embaixo de mim,


segurando minha cintura e me fazendo experimentá-lo nessa posição, tão
fundo, que eu sorria de tanto prazer.

Deitei-me sobre seu peito, e Ulrich flexionou as pernas, aumentando o


poder das investidas. E quando consegui outro orgasmo, dessa vez ele
também me acompanhou e apertou-me em seus braços, tremendo comigo.

Fiquei um bom tempo deitada sobre ele, recuperando o fôlego, sentindo


os braços ao redor de mim e o coração batendo apressado.

Ulrich me olhou, tirou os cabelos dos meus olhos e sorriu, também


ofegante.
— Tudo bem?

Dei alguns tapas sem força em seu ombro.

— Ai. Por que me bateu?

— Você me deixou moída... ainda estou sem ar.

— Só porque sou gentil com você e sempre corri atrás não quer dizer
que sou bonzinho na cama. Aqui é puxão de cabelo e tapa na bunda.

— Patife. — Acabei rindo. Saí do seu abraço e rolei para o lado. Merda,
meu pai estava no hospital. Eu não queria parecer desnaturada. E meus filhos,
tinha de buscá-los.
Observei Ulrich levantar e retirar o preservativo. Suspirei, olhando-o nu.
As coxas eram lindas, a bunda, também. A tatuagem lhe dava um charme
especial. Ele tinha um porte elegante e muito selvagem ao mesmo tempo.

— Tenho que ir ver meu pai... e buscar as crianças.


— Fará isso, tire um pouco essas preocupações da cabeça. Eles estão
bem.

Ele deu a volta na cama, estendeu a mão para mim e me puxou.

— O que pensa que está...?

Ele nem se importou com meu protesto, me pegou, me fazendo abraçá-


lo, e caminhou para o banheiro.

— Um banho antes de voltarmos a ser inimigos.

— Merda. Quero transar com você de novo antes de a nossa trégua


acabar.
— Essa é sua tática de acabar comigo. Já entendi. — E me colocou no
boxe e ligou o chuveiro. Admirada, eu sorri para ele, sem que me visse
sorrindo.
17

STELA

Terminei de me maquiar e olhei para Ulrich me analisando, sentado na


cama. A cama que estava me causando arrepios ao lembrar do que fizemos.
Eu estava louca? Como fui fazer sexo com ele sem pensar nas
consequências?

Mas, por outro lado, foi muito bom. O inferno do turco era especialista
no assunto.
— O que foi? — indaguei. Em seguida, peguei minha bolsa e coloquei
no ombro.

— Como ficamos? — ele questionou. Não estava esperançoso, parecia


mesmo só uma dúvida.

— Em que sentido?
— Ainda quer me destruir, me matar, me odeia...?

— Eu... não quero te matar, mas também acho cedo debatermos sobre o
que fizemos.

— Já é alguma coisa saber que sairei ileso do pós-sexo. — Passou por


mim e caminhou para fora do quarto. — Vamos.
Entramos no carro e saímos da mansão. Estranhei o carro que ele
dirigia.

— Que carro é esse?


— Do Benjamin. Vamos passar no hospital para pegá-lo.

Evitei perguntar o que tinha acontecido quando chegamos aqui. Eu


lembrava de ter dormido no avião e acordado na minha cama. Nada fazia
sentido, e o leve enjoo ainda persistia. Planejei mentalmente ir no dia
seguinte ver a doutora Eliana. Eu precisava de respostas.

No hospital, fiquei feliz em ver que meus irmãos estavam lá. Benjamin,
Fernando, Andrey, as esposas.
— Oi, mano. — Fui até Andrey e o abracei. Ele me olhava, intrigado,
mas não falou nada. Abracei Ana também e os outros. Todos eles me
encarando como se esperassem que eu fizesse algo.

— Tudo bem? O pai está bem?

— Sim... — Andrey sussurrou e franziu o cenho, ainda me fitando.


Fernando tinha a mesma expressão.

— O que, gente? Há algo no meu cabelo?

— Estão te achando mais linda, apenas isso. — Ulrich deu um tapinha


no meu ombro. E todos eles olharam para sua mão ali no meu ombro e
ficaram ainda mais confusos, agora, incrédulos.

Lembrei que até a semana anterior eu mataria Ulrich se ele chegasse a


um metro de distância de mim.
Com um sorriso morno, dei um passo para o lado.

— Me falem, como está o pai? O que o médico disse? O que ele teve?
— Bom... — Fernando gaguejou, e Benjamin foi mais rápido e explicou
tudo que tinha acontecido. Naquela manhã, ele sofrera um AVC em casa, e
foi Maria quem ligou para a emergência.

— Eu me sinto tão culpada... — sussurrei, limpando uma lágrima. —


Viajei e o deixei... sozinho.
— Não vamos mais falar disso, tudo bem? — Andrey fez um carinho
em minhas costas. Olhei para ele, e em um impulso, soltei:

— Vou me divorciar do Miguel.

— Eita! — Maria Clara exclamou.


— O que ele te fez? — Uma carranca de raiva brotou na cara de
Benjamin. — Foi por isso que viajou às pressas? — Dessa vez, ele encarou
Ulrich.

— De certa forma, sinto-me aliviado — Andrey disse.

— Vocês vão saber no momento certo. Eu só quero que saibam que


houve um motivo para eu fugir... — cautelosamente, emendei: — Ulrich...
me ajudou.

Ana e Maria Clara trocaram um olhar, e vi o exato momento em que


Maria Clara deu um sorrisinho malicioso. Essa safada vivia apostando que
um dia eu cairia nos braços de Ulrich.

Ela estava certa.

— Vocês dois... estão bem? — Andrey perguntou, um pouco cauteloso.


— Ela não quer mais me matar. Já é uma grande coisa.

— Mas às vezes querer matar não significa muito — Maria Clara


opinou. — Eu já quis muito matar uma pessoa, mas volta e meia estava lá, no
quarto dele.

— Maria Clara! — Fernando advertiu enquanto os outros riam, e ela


deu de ombros.
— Segundo a Maria, o pai se sentiu mal depois de receber uma visita —
Benjamin informou. — Tem ideia de quem pode ter sido? Ela disse que não o
conhece.

Horrorizada, troquei um olhar com Ulrich. Eu não sei o que ele pensou,
mas em minha mente veio na mesma hora o nome de Rômulo. Eu o conhecia
e sabia que ele era muito ousado e capaz de tal atrocidade. Eu mataria Miguel
se ele estivesse por trás disso.

Apenas neguei com um gesto de cabeça. Meus irmãos saberiam de tudo


quando Ulrich dissesse que era seguro.
Nós nos despedimos de todos e fomos direto para a casa de Benjamin.
As crianças não estavam desesperadas pela nossa chegada, como achei que
estariam. Benjamin tinha o mais novo Xbox, e isso foi um prato cheio para
Nathan. Já Raquel ficava em qualquer lugar com internet.

— Estou preparando o jantar — Diana veio da cozinha. — Como está o


senhor João?

— Bem, o quadro dele é favorável — Benjamin falou e deu um beijo


rápido nela.
Espiei a sala. Raquel estava deitada no sofá, Nathan e Maia, no tapete,
jogando. Maia deu um pulo e correu até a gente.

— Tio Ulriqui. — Passou por Benjamin e abraçou Ulrich.

— Oi, pequena.
— Que legal. Você ignora seu pai e vai abraçar o turco — Benjamin
reclamou, enquanto Ulrich tirava do bolso algumas moedas, todas de um real,
e dava a ela.

— Oi, papai. — A menina deu apenas tchauzinho para Benjamin e saiu


correndo com as moedas.
— Ele a compra com moedas de um real para o cofrinho dela. Dá para
acreditar? — Benjamin protestou, mas sorrindo. — Fiquem à vontade, vou
ver se Diana precisa de ajuda.

— E você, amigão? Eu compraria algo com moedas de um real? —


Ulrich aproximou-se de Nathan, o provocando.

— Sabe que não. — Nem tirou os olhos do jogo.


— Seu preço é um Xbox, certo?

— E um celular, para abraçar e te chamar de tio toda vez que chegar.

— Nathan! — Berrei com ele. Quem via assim, achava que eu estava
criando um mercenário.
— E a pequena Mortícia? — Ulrich foi até Raquel.

— Você não disse isso. — Revoltada, esfreguei a mão no rosto.

— O quê? — Levantou as sobrancelhas, se fazendo de desentendido.


— Eu tenho medo das crianças na escola a chamarem de Mortícia, e isso
vem justo de um adulto?

— O que tem? A Mortícia é um ícone, faz o que quer, comanda a


família e o marido.

— Mãe, relaxa, as pessoas na escola nem sabem quem é Mortícia —


Raquel falou. — Onde vocês estavam? — Ela se sentou no sofá e olhou de
mim para Ulrich.

— Ah... — gaguejei, e antes de falar, ela interceptou:

— Porque eu mandei mensagem para o tio Ben, e ele disse que vocês
não estavam lá no hospital. Onde estavam todo esse tempo?

— Ora, ora, temos aqui uma Sherlock Holmes — Ulrich debochou.

— Eu fui em casa descansar um pouco, já o Ulrich...

— Estava resolvendo uns problemas de peças enferrujadas — disse ele.

— Que peças? — Agora eu indaguei, cruzei os braços e o fitei.

— Umas peças que não eram manuseadas do jeito certo há anos. Daí
ficaram enferrujadas.
— Ah, tá. — Raquel aceitou nossa explicação e já emendou outra
pergunta: — Onde está o papai? Ele já foi embora da nossa casa?

Olhei para Nathan, que era mais ligado ao pai. Ele não parecia prestar
atenção em nossa conversa.

— Querida, nós ainda vamos conversar melhor sobre isso, tudo bem?

Ela assentiu. Eu não imaginava como eles encararia tudo que estava por
vir. Miguel não só queria o divórcio como tinha armado um golpe contra
mim e estava ficando com um pilantra; em hipótese alguma eu desejava que
as crianças tivessem contato com Rômulo. Mas eu faria tudo de uma forma
que as crianças fossem prioridades, sem sofrer tanto com esse assunto.

— Não vai ficar para o jantar? — Benjamin perguntou a Ulrich quando


ele se despedia para sair. Estranhamente, senti um aperto no peito. Estávamos
juntos todos esses dias, e vê-lo ir embora me deixou desconfortável, o que
não deveria acontecer.
— Vou, sim. Preciso ligar para Cora, ver como estão os processos, o
que perdi todo esse tempo. — E sem olhar para mim, completou: — Tenho
assuntos a resolver com a mulher. Aquela com quem estou tendo um caso —
ele falava com Benjamin, mas sabendo que eu estava bem ali, do lado.
Benjamin riu, era como se fosse algo dos dois, uma piada interna.

— Você não tem jeito, turco. — Deu um soquinho no ombro dele.


Eu fiquei quente de raiva. Queria espancar o infeliz. Como eu pude ser
tão idiota? Ele tinha esse tal rolo, e eu caí em sua lábia.

Acenou para Diana e para as crianças.

— Pode deixar, eu abro a porta para você — falei e fui com ele em
direção à porta.
Ele passou por mim e deu um sorrisão. Dei um soco em seu estômago,
não tão forte para não chamar atenção e nem sei se surtiria efeito, já que ele
era todo duro. Mesmo assim, Ulrich se curvou.

— Ai! Por que me bateu?

— Porque você é um patife pervertido, e espero que seu pau caia. Nunca
mais se aproxime de mim.

— Stela! O quê...? — Riu do meu surto.

— Sai daqui. — Eu o empurrei. — Saia de perto dos meus irmãos.


Volte para a Turquia e leve a galinha com você. — Bati a porta na cara dele.

Merda, merda... o desgraçado me fez sofrer de novo. Mas dessa vez


nada de choro, apenas ódio.
Nem comi direito e tentei parecer natural enquanto conversava com
Diana e Benjamin. Depois, ele me levou em casa e só foi embora após eu
prometer que ia ficar bem e que ninguém entraria lá, já que o segurança da
noite já tinha chegado.

Nathan e Raquel não estavam a fim de conversar. Eles já sabiam que o


avô estava no hospital, e eu achei melhor deixar cada um em paz em seu
quarto. Só obriguei que Nathan tomasse banho antes de cair na cama.
Enrolei muito para ir para meu quarto, e quando entrei, olhei a cama e
fui tomada por uma explosão de raiva.

— Aarrgh! — Soltei um rugido, corri até lá e arranquei tudo, lençóis,


edredom, fronhas. Tudo. Não queria o cheiro do maldito ali. Eu queria na
verdade queimar tudo, mas só levei para a área de serviço. Peguei novas
roupas de cama, forrei e ainda passei Bom Ar em todo quarto.

Burra! Estúpida.
Quando me deitei para dormir, apenas a raiva me consumia. Nada de
sono. Ele teve a coragem de falar aquilo na minha cara. Ulrich só queria me
ferir pelos anos que eu o desprezei. Essa era a vingança dele, e merecia
aplausos, tinha conseguido.

O celular apitou e o peguei. Uma mensagem. Dele.

ULRICH: Oi.

E uma figurinha.

EU: Eu vou te bloquear agora.

Digitei e enviei. Mas não bloqueei, esperei que ele digitasse, o coração
acelerado.
ULRICH: Mas eu quero dormir com você.

EU: Você não tem um rolo com uma desqualificada? Vai ficar com ela.

Mandou uma figurinha do Pica-Pau limpando o chão, com os dizerem:


“ai, ai, esse turco.”

O ódio só cresceu. Ele ainda tripudiava.

ULRICH: Lembra quando nos escondemos no quarto do Fernando?


Bons tempos, não é? Seu pai é bem nostálgico, mantém o quarto de todos os
filhos da mesma forma.

EU: O que está falando?

ULRICH: Deixei uma surpresinha para você no antigo quarto do


Fernando. Vá lá ver.

Afastei o edredom, calcei minhas pantufas e saí do quarto. Verifiquei


Nathan e Raquel, e os dois já dormiam. O dia tinha sido cansativo. Virei o
outro corredor e lá estavam os quartos que foram de Andrey, o de Thadeo e o
de Fernando, que ficava lá no fim, com uma sacada virada para o jardim da
frente. Abri a porta, a luz estava acesa; espiei e, para meu espanto, Ulrich
estava lá, deitado na cama, só de cueca.

— O que está fazendo aqui? Como entrou?

— Roubei uma chave quando você dormia hoje mais cedo. E aí? Gostou
da surpresa?

Cruzei os braços, o encarando.

— Sai da minha casa, ou chamo o segurança. Você é tão nojento.

Ele se levantou da cama e veio até mim.

— Está com ciúmes.

— Ciúme? Eu? — Gargalhei. — Se enxerga. Você não é nada para


mim. Não representa nada.
— Não represento? E queria até me bloquear no celular. Me deu uma
soco no estômago lá na casa de Benjamim. Puro ciúme. Eu armei tudo só
para te pegar na pulo, Stela Capello.

— O quê? Como...?

— Eu não estou tendo um rolo com nenhuma outra além de você. Eu só


queria comprovar que não sou indiferente para você. Caiu direitinho. Agora
venha para a cama, onde poderá liberar sua fúria.
— Ulrich... seu! — Dei alguns tapas nele, que já me abraçava. — Você
é muito infantil. Fez tudo isso só para provar uma tese idiota!

— Sim, e expor sua hipocrisia. O que acha de varar a madrugada


gritando? Escolhi esse quarto porque é longe do das crianças.

— Eu não quero transar com você.


— Quer. — Ele me pegou no colo e me levou para a cama de Fernando.
Deitou-me contra os travesseiros e se acomodou por cima. O maldito estava
muito cheiroso, como sempre. O toque do seu corpo nu me acendeu por
completo. Ulrich me beijou de uma maneira tão gostosa, que quase gemi, se
afastou e fitou meus olhos. — Ou não quer?

— Eu te odeio tanto — murmurei e o puxei para voltar a beijar. Eu o


abracei, e nossas pernas se entrelaçaram. Senti a mala enorme e dura na cueca
dele, e meu corpo inteiro estremeceu, meu estômago estava leve, o fogo, que
antes era raiva, agora queimava meu ventre de pura excitação.

— Ainda quer que meu pau caia? — Riu, entre o beijo, a mão já por
baixo da minha camisola, entrando na calcinha.

— Cala essa boca.

— Ela vai estar calada mesmo enquanto te chupo aqui embaixo. — E


desceu beijando cada cantinho do meu corpo.
18

STELA

Anos antes

Abracei o meu corpo na sala de espera da clínica. Eu sempre odiava vir,


o incômodo era doloroso, mas era um sacrifício necessário. Era uma boa
clínica, muito bem paga pelo meu pai. O nosso consolo é que a mamãe estava
sendo bem tratada.

Ao meu lado, Benjamin e Thadeo. Fazia tempo que Fernando e Andrey


tinham vindo visitá-la. Ela não dizia nada, mas eu podia ver que sentia a falta
deles.

Mas aquele era um dia muito importante. Era a festa de quinze anos
minha e do meu irmão. Eu estava com o meu vestido de debutante — que ela
ajudou a escolher o modelo — e agora minha mãe o veria em meu corpo.
Queria tanto que ela pudesse ir à festa, tínhamos, inclusive, planejado, e
a médica havia liberado, mas nos últimos dias ela ficou bastante debilitada.

— Ela gosta quando o Ulrich vem — cochichei, quase como um


pensamento alto. Eu estava triste por ele não ter vindo.
— Ele deve ter assuntos pessoais para resolver — Thadeo respondeu.
Eu apenas assenti. Ele tinha prometido que viria comigo, mas nos veríamos
hoje à noite na festa.

— Podem entrar. — A médica apareceu. — A mãe de vocês não passou


bem hoje e precisou ser colocada no oxigênio, mas ela está estável.
Benjamin apertou minha mão. Não só para me dar força, mas para se
sentir confortável também. Ben era fechado com seus traumas. Às vezes, as
pessoas o viam forte, estilo bad boy, mas eu conhecia sua alma e sabia como
era ferido.

O quarto da minha mãe era muito bonito, e acho que o melhor da


clínica. Uma parede inteira foi pintada por Ben, sob autorização da médica.
Tinha uma televisão com videocassete — Ulrich e eu alugávamos filmes para
vir ver com ela — uma estante com os livros favoritos, uma cama muito
confortável e seu próprio armário, com as roupas que ela mesma escolhia e o
pai mandava trazer. Ela não vestia a roupa da clínica.

A janela tinha uma vista linda e havia ali uma poltrona onde minha mãe
poderia tomar um chazinho à tarde e ver toda a paisagem.
Encarei um quadro grande com uma foto de nós cinco e ela. Eu estava
fazendo de tudo para evitar olhar para ela, tão debilitada.

— Oi, mãe — Thadeo sussurrou, beijou a mão dela e a testa.

— Oi, meu anjo. Está tão cabeludo, quando vai cortar esse arbusto?
Ele riu, mas não respondeu.

— Me ajude a sentar. — Com cuidado, ele a ajudou a recostar nos


travesseiros. Esperei Benjamin cumprimentá-la também, e só então eu fiquei
na frente dela, mostrei o vestido e dei um giro.
— E então? Gostou do vestido?

— Ah, meu Deus. Minha filhinha! Você está linda. — Seu sorriso de
aprovação e o brilho nos olhos eram contagiantes. — Venha aqui. —
Aproximei-me dela, e com as mãos trêmulas, ajeitou a dobrinha do corpete.
— Eu estava tão ansiosa para te ver assim. Está linda, como sempre. Venham
aqui, os três.
Eu me sentei na pontinha da cama, Ben e Thadeo ficaram de pé ao meu
redor.

— Quero que vocês deem orgulho a seu pai, não vão desobedecer a ele,
mas também não deixe que aquele cabeça-dura os prenda e os trate como
robôs.

— Ele não pode nos prender, mãe — Thadeo falou. — Ano que vem,
terei dezoito anos e vou morar na vinícola. Eu vou reerguer tudo aquilo, e
nosso vinho será de novo o melhor que essas bandas já viram! — Ele bradou,
cheio de orgulho, fazendo-a sorrir, e uma lágrima desceu no rosto cansado.
— É uma promessa para a senhora — Thadeo concluiu.
— Oh, meu filho... eu nem sei se poderei ver.

— Vai ver, sim. Eu vou te levar para lá, e sairemos em todos os jornais
e revistas. Eu te prometo, ainda vamos colher muita uva, mãe.

— E eu serei o melhor pintor da cidade — foi a vez de Benjamin dizer.


— Eu vou me esforçar para fazer meu próprio nome, sem precisar da empresa
do pai.
— Boas palavras, meu caçula. Você faz sua própria história.

Eu me calei, pois não sabia o que queria. Eu não tinha nada para
prometer a ela.
— São belas promessas. Mas eu só quero que prometam que serão
felizes. Eu fiz escolhas tão ruins... escolhas que trouxeram perigo para vocês,
e nunca irei me perdoar...

— Mãe, não é hora de falar sobre isso — Thadeo a interrompeu. Ela


apenas assentiu, engoliu firme, e fitando nós três, falou:
— Eu guardo uma frase comigo, é como um conselho; era de alguém
importante, eu não sei. — Riu fracamente. — E quero que vocês a levem
consigo. Diz assim: “Se um dia tiver de escolher entre o mundo e o amor,
lembre-se: se escolher o mundo, ficará sem o amor, mas se escolher o amor,
com ele você conquistará o mundo.”

As palavras dela retumbavam em minha mente enquanto eu estava já na


festa, fazendo a recepção dos convidados. Eu sabia que passaria por cima de
tudo para seguir o que mandava meu coração.

Já estava aflita naquele instante; nada de Ulrich chegar. Meus irmãos já


estavam todos lá, metidos em suas roupas de festa. Todos muito gatos,
chamando a atenção das garotas. Eles eram um espetáculo à parte, faziam
sucesso por onde passavam.
— Pai, eu vou dar um oi para minhas colegas — cochichei para ele e saí
de perto da porta, não dando oportunidade de ser detida. Meu pai era arcaico,
impondo que eu ficasse cumprimentando cada um que chegava. Ele convidou
parceiros de negócios e queria criar um ambiente quase como um baile da
realeza. Eu só queria me divertir com o pessoal da escola.

— Meninas! — cheguei na mesa das minhas colegas.

— Aaah! — gritaram.
— Até que enfim veio dizer olá. — Uma de minhas amigas se levantou
para me cumprimentar.

— Queremos muitas fotos — outra cantarolou. — Eu já consegui uma


conta exclusiva na rede social Orkut. Acabou de chegar, e poucos têm.
— Não se gabe — retruquei. — Meu irmão vai conseguir convites para
mim e meu namorado. — Fiquem à vontade, meninas. Já, já, volto aqui.

— Está linda, Stela. — Virei-me e me deparei com Miguel. Ele estava


com os rapazes. Fui até ele e dei dois beijinhos, um em cada lado do rosto.

— Obrigada, amigo. Que bom que veio.


— Claro que eu viria. Achei que eu era o candidato para a dança de
debutante — alfinetou.

— Te darei a oportunidade. Mas só depois do meu namorado. Não


quero confusão com ele, ouviu?

— O que você pede é uma ordem, minha linda.


Joguei beijo para ele, deixei-o com os rapazes e me aproximei de
Thadeo. Ele conversava com duas garotas. Ambas mostravam desejo
explícito pelo meu irmão.

— Mano, viu o Ulrich?

— Eu não o vi. Ele ligou hoje pela manhã e confirmou que viria. Deve
estar chegando, relaxe.
— Ok. Aproveitem a festa, pessoal. — Acenei para elas e saí, torcendo
os dedos e desejando que ele chegasse logo. Eu não o tinha visto o dia inteiro,
não sabia o que estava acontecendo, porém confiava em Ulrich. Se ele disse
que viria, então iria aparecer.
***

ULRICH

— Olá! Alguém! — Bati na janela. Tinha grade por fora, e eu já tinha


tentado de tudo para arrebentar. Estava com fome, o braço esfolado e muita
raiva. Voltei para a porta do quarto. — Abre a merda dessa porta! — Dei
mais uma sucessão de chutes na porta, enfurecido. Estava preso desde cedo,
quando meus pais chegaram de repente da Turquia me pegando
desprevenido.
E com eles, trouxeram uma notícia terrível: meu irmão mais velho havia
falecido fazia quase um mês e só naquele momento eles deram a notícia
pessoalmente a mim e meu avô. O pobre velho não aguentou o susto, passou
mal e foi para o hospital, e eu fiquei preso sozinho no quarto. Eu só pensava
em Stela e em como ela estaria preocupada. Eu tinha de contar para ela a
tragédia que aconteceu e pedir para ficar alguns dias lá. Mesmo que eu
soubesse que seu João não permitiria.

Ouvi vozes lá fora denunciando que tinham chegado. Coloquei a orelha


na porta. Chegaram mesmo. Ouvi a voz da minha mãe. Todos falavam em
nossa língua natal.

Espiei do buraco da fechadura e vi meu avô entrar nos braços de um dos


homens de confiança do meu pai. O que tinha acontecido? Por Alá...

— Annem...[4] — chamei minha mãe. — Annem! — gritei, esmurrando a


porta. Ela aproximou-se.

— Oglum[5] — sussurrou, bem pertinho da porta. Na nossa língua, falou:


— Seu avô não está bem, ele quer morrer em nossa terra. Vamos embora do
Brasil.

A dor que me tomou foi com se enfiassem uma faca em meu peito.
— Não! Eu não posso ir. — Bati desesperadamente na porta. — Eu não
vou. Por favor, eu conheço pessoas aqui, posso ficar na casa deles.

A porta abriu de repente, e dei de cara com o meu pai. Fúria estampava
seu rosto. Ele era um homem alto e corpulento. Seu bigode volumoso o
deixava com uma aparência mais perigosa. Dei um passo para trás, em um
gesto de alerta.

— Eu perdi o meu primogênito, e você tem a ousadia de dizer para sua


mãe que vai renegar a sua família?
Abaixei a cabeça, sem respondê-lo. O respeito que eu tinha era
equivalente ao ódio. Era uma pena que eu não tinha dezoito anos ainda, ou o
enfrentaria e imporia a minha vontade. Tanto aqui como em meu país, eu
estava sob responsabilidade dele.

— Fala! — ele berrou. — Fala na minha cara o que disse para sua mãe.

— Kerim. — Minha mãe tentou segurá-lo, prevendo o pior, mas ele a


empurrou, quase derrubando-a. Então eu o encarei.
— Meu lugar é aqui, meu pai.

No mesmo instante, arrancou o cinto da calça, dobrou-o e acertou meu


rosto com toda a força; levantou o braço para dar outra, e eu revidei. Segurei
com agilidade o cinto no ar, com meus olhos banhados de fúria cravados nos
dele. Eu era tão alto quanto ele, porém bem magro. Empurrei-o com força e
corri para fora do quarto.

— Ibrahim! — ele berrava. Sempre foi o único a me chamar pelo


primeiro nome. Não parei de correr. Consegui pegar a bicicleta cargueira, a
qual fazia entregas para meu avô, e só pedalei o mais rápido que podia pela
noite quente. O lado do rosto ardia tão forte como a ira no peito. Mas também
dor. Meu irmão estava morto, e só agora eu sabia disso, e por isso chorei
enquanto pedalava. Eu nem tive o direito de guardar o luto por ele, de fazer
orações por ele.

Ele era bem sucedido, tinha acabado de se casar e morava em Istambul.


Por que esconderam de mim por tanto tempo?

Cheguei à mansão dos Capellos e acenei para o segurança que me


conhecia. Entrei. Por sorte, vi Thadeo no jardim conversando com uma
garota. A passos largos, aproximei-me.

— Me ajude. Preciso de uma roupa... antes de Stela me ver. — Eu


estava um trapo, com uma roupa qualquer.

— Turco? — Passou o olhar pelo meu corpo — O que houve?


— Conto depois. Me ajude.

Ele pareceu odiar deixar a menina lá, mas não me negou ajuda. Entrou
comigo e subimos correndo as escadas. Thadeo me levou para o quarto de
Andrey, que tinha o corpo parecido com o meu.

Tomei um banho rápido enquanto Thadeo escolhia uma roupa para


mim.
— Seu rosto... — sussurrou, assistindo-me vestir apressadamente uma
roupa do Andrey.

— Foi meu pai... mas não tem problema. Só preciso ver a Stela. Eu vou
ter tempo para te contar o que aconteceu.

— Já vai começar a dança, e ela está desesperada te procurando.


— Vai ficar tudo bem... — sussurrei para mim mesmo. — Vai ficar...

Eu entrei no salão onde ia acontecer a dança de Stela. Ela estava lá com


seu João e Miguel. Eles pareciam convencê-la de algo. Fiquei paralisado,
olhando-a. Eu me apaixonei rápido demais, e Stela era a única coisa boa que
sobrou em toda a minha vida. Agora, depois da morte do meu irmão, ela era a
única pontinha de vida que me restava. Eu ficaria no Brasil, sozinho, mas
estaria feliz se a tivesse.

— O príncipe da Turquia chegou, meu povo! — Thadeo gritou,


aproximou-se de Miguel e lhe deu um empurrãozinho. — Chega pra lá,
urubu.

Stela virou-se e colocou as duas mãos na boca ao me ver. Ouvi o


murmúrio de seu João falando seu nome. Mas ela nem ligou, correu,
atravessando o salão, e pulou em meus braços.

E pareceu que toda dor tinha sumido.


— Seu patife, que me matar? — ela berrou. — Fiquei com tão
preocupada, e depois com raiva.

— Eu te prometi que vinha. — Beijei seus cabelos sem parar. Toquei no


rosto dela. — Estou aqui, pode me bater agora.

Ela me encarou, mas não viu nada, pois as luzes estavam piscando.
Enfim riu e me beijou.
— Pode soltar o som. É o momento da minha dança com o meu
pretendente.

Enquanto dançava com ela, eu esqueci a ameaça que pairava sobre mim
lá fora. A mesma força de vontade que eu tinha de ficar, o meu pai tinha para
me impedir. Ele era destemido e violento. Ele faria de tudo para fazer seu
desejo se cumprir. Mas, naquele momento, o que me importava estava em
meus braços. Seu João nos assistia de longe e por um instante eu o decifrei,
vendo similaridades dele com meu pai. Eu não era o que ele queria para a
filha.

Stela não me largou mais. Ela me deu comida, bebemos, tiramos fotos,
me diverti com os irmãos dela. Era a noite perfeita.
Mas em determinado momento, vi um pequeno alvoroço no escritório
do seu João. Andrey e Fernando estavam lá dentro. Pela porta aberta,
vislumbrei Andrey levar as duas mãos na cabeça. Então Thadeo entrou,
também atraído pelo movimento, e eu pude ouvir o grito que ele deu. Acho
que toda a festa ouviu. Ele saiu correndo do escritório, atropelando todos à
frente.

— O que houve? — Stela berrou. — Meu Deus! O Thadeo está aos


prantos. Vai atrás dele, Ulrich.

E eu corri.
Thadeo estava descontrolado correndo pelo jardim.

— Thadeo, espera! — berrei em seu encalço. Ele saiu da casa, e eu o


segui. Conseguindo pegá-lo e joguei-o com toda a força contra a muro da
mansão. — Ei... o que houve?

— Eu preciso vê-la... minha mãe... — Chorou copiosamente. — Ela já


sofreu tanto. Não é justo. Ulrich... não é justo.
— O que houve?

— Ela morreu. Ela não aguentou.

Aterrorizado, dei um passo para trás, vendo-o escorregar contra o muro


da mansão e chorar agachado.
No dia do aniversário de Stela. Ela não iria suportar. Por Alá! Eu
precisava estar com ela antes que soubesse.

— Thadeo... venha comigo. — Eu o suspendi e o ajudei a andar até o


portão. Fernando e Andrey já vinham correndo e o acolheram, levando
Thadeo para dentro.
— Vá ficar com minha irmã. Ela não sabe ainda — Fernando me pediu.
Eu estava prestes a entrar quando um carro parou. O vidro abriu e alguém
chamou meu nome.

— Ulrich?

— Sim. Sou eu.


Um homem desceu do carro.

— É a sua mãe...

Corri para perto do carro.


— O quê...?

O homem agarrou minha cintura. Virei-me com brusquidão e dei um


soco nele, mas mesmo assim não me soltou. O terror me engolfou. Ele me
arrastava em direção à porta aberta do carro.

— Não! Me largue. — Lutei com todas as minhas forças, mas foi inútil,
quando ele colocou um pano encharcado no meu nariz. Meu pai estava lá no
carro e me puxou com violência para dentro. O carro arrancou sem que eu
pudesse falar com alguém. Sem que eu pudesse estar do lado de Stela quando
soubesse da notícia.
19

ULRICH

Dias atuais

Ouvi um grito e o movimento desesperado de pés e mãos batendo em


mim. Sentei-me aflito na cama, o coração explodindo no pescoço, pelo susto.
Stela estava sentada na cama olhando em volta. Já era dia.

— O que houve? — resmunguei.

— Nós dormimos. Você dormiu aqui. Merda! Estamos pelados.


Olhei em volta. Vi a estante com a coleção de troféus de Fernando. Puta
que pariu! Fizemos putaria no quarto de um ex-adolescente.

— Hum... sim. — Caí de volta nos travesseiros. — Melhor maneira de


dormir, por sinal. Mas essa cama de Fernando é terrível.

— Não dá para acreditar — ela vociferou, vestindo a calcinha.


— Não mesmo. Tenho trinta e três anos com coluna de setenta.

Ela pulou da cama, vestiu a camisola e veio me dar alguns tapas na


perna.
— Levanta logo!

— Já está levantado. — Mostrei o contorno do meu pau duro


aparecendo no cobertor.
Dessa vez, apenas ignorou e espiou na porta, mas antes de sair, olhou
para mim.

— Te dou dez minutos para descer vestido.

Eu me espreguicei e, sorrindo, me virei na cama, abraçando o


travesseiro dela. O pau reclamou quando o pressionei no colchão. Mas a
felicidade estava transbordando. Eu sei, essa não tinha sido a primeira vez
que havia dormido com ela. Há anos fazíamos isso, porém sem que a
personalidade dominante, a Stela, soubesse. Estar agora com ela aninhada a
meu corpo durante toda uma noite, depois de muito sexo, era mais do que
uma vitória, era meu sonho de anos realizado.
Jamais acreditei que isso fosse realmente acontecer um dia, e eu admito
que tenho de agradecer a Miguel e sua burrice sem tamanho. Eu o imagino
como naqueles programas dos anos noventa, em que prendiam uma criança
em uma cápsula e perguntavam, sem que ele pudesse ouvir, se queria trocar
um carro por um quebra-cabeça, e ele respondia: Sim!

Afastei os cobertores e me sentei na cama. Peguei a cueca no chão e a


vesti. Sozinho no quarto, falei:

— Miguel, que trocar uma vida de conforto, com filhos lindos e


inteligentes e uma esposa bela dedicada e que te ama, além de um sogro que
te venera, carro importado e muito dinheiro na conta por uma rola? — E eu
mesmo respondi: — Siiiim!!
Gargalhando, fui para o banheiro. Sua derrota é minha vitória,
Miguelito.

Cheguei à cozinha, e Stela estava falando ao celular enquanto tentava


abrir o forno. Fez sinal para eu ajudá-la e me jogou a luva fofa para forno.
— Tudo bem, mano. Obrigada pela ligação. Mais tarde vou lá. —
Desligou e veio até mim. Tirei a forma de torradinhas do forno, e com
cuidado coloquei-a sobre a bancada.

— Maria precisou tirar o dia de folga e não tinha nada para o café.
Cortei alguns pães, passei manteiga e coloquei para secar — ela explicou.

— O cheiro está bom. Eram notícias do seu pai na ligação?


— Sim. Andrey passou lá agora pela manhã. Houve uma melhora
durante a noite. Ele já acordou por alguns minutos, mas não consegue falar.

— É comum em casos de AVC. — Toquei nos cabelos dela, afastando


uma madeixa. — Não fique preocupada. — Curvei e beijei seu maxilar,
mordendo a pele de leve. Stela afundou os dedos em meus cabelos, fazendo
uma breve massagem.

— Hum... está cheirosa, tomou banho e nem me convidou?

— Ao contrário de você, que está fedorento. Afaste-se! As crianças


podem aparecer. — Empurrou meu peito.

— Eu, fedendo? Isso é um insulto. — Cheirei minha camisa. Estava


normal. Eu tinha tomado banho antes de dormir com ela.

— Você acha que foi o Rômulo que veio visitar o meu pai? — ela
perguntou, mexendo na cafeteira enquanto eu mordia uma torradinha bem
quente.
— Foi o que pensei. Não há câmeras de segurança na mansão?
— Sim. Eu pensei nisso. Vou pedir a Andrey para vir dar uma olhada,
não sei mexer nessas coisas. — Terminou o café e o colocou em uma garrafa
térmica.

— Me leve ao computador do seu pai — pedi. — Posso tentar.


Stela atendeu meu pedido e saímos da cozinha. Ela abriu o escritório do
seu João e foi até a mesa ligar o computador. Enquanto isso, tratei de
vasculhar ao redor. Era uma sala cheia de lembranças, fotos, livros, peças de
artes, incluindo um quadro assinado por Benjamin. O velho pegou tanto no
pé do filho e, no fim, apreciou a arte do caçula.

Peguei uma foto do angustiante dia do aniversário de Stela. Eu ainda


ficava tenso quando lembrava o que houve. Meu pai agiu com esperteza.
Após me pegar à força aqui nessa mansão, ele me manteve preso até
conseguir uma ordem das embaixadas para que pudesse me tirar do Brasil. E
foi solicitado uma escolta policial para me colocar no avião.

Que Alá me perdoe, mas eu senti alívio quando ele faleceu.


— Pronto — Stela falou, e eu me aproximei. Sentei-me na cadeira do
seu João e procurei pelo programa que guardava as filmagens. Ela ficou do
meu lado, olhando atentamente. Digitei o dia e horário, e começamos a
assistir as câmeras da frente da casa.

— Ali! — Stela gritou e bateu na mesa com raiva. — O desgraçado! —


Às sete e quinze da manhã, Rômulo desceu do carro e tocou o interfone da
mansão. Minutos depois de falar com o segurança, ele foi liberado para
entrar. — Foi ele mesmo — ela começou a dar voltas pelo escritório. — O
que ele deve ter falado para meu pai?

— Deve ter falado barbaridades, a ponto de seu João passar mal. Olha
só. — Mostrei a câmera do jardim. Sete e quarenta e cinco mostrava Rômulo
saindo rápido da casa, rindo, olhando diretamente para a câmera e piscando
um olho.

— Ele não fez nada escondido — Stela murmurou. — Ele sabia que a
gente ia ver.
— Quer agir agora? Imediatamente? — perguntei a ela.

— Quero. Quero acabar com esse infeliz.

— Só vou passar na minha casa para tomar um banho. Depois que você
falou, fiquei cismado e jamais vou para a guerra fedendo.

Enquanto fui para casa, Stela acordou as crianças. Ela decidiu deixá-los
na fazenda Capello, na companhia de Maria Clara, já que não tinha mais
ninguém na mansão. Eu passei no escritório, para pegar a papelada do
divórcio e os papéis para Miguel assinar, devolvendo o controle das ações
para Stela.

Eu me sentia ansioso para confrontá-lo de uma vez por todas. Era como
desencravar uma unha dolorida de anos.

— Todo dia estamos indo a um lugar — Nathan sussurrou emburrado


no banco de trás do meu carro. — Por que não podemos simplesmente ficar
em casa?

— Porque seria abandono de menor — Stela respondeu. — Vocês não


têm idade para ficar sozinhos.

— Hoje não estou com humor para ver boi e vaca — ele avisou logo.
Raquel permanecia calada, com fones de ouvido. Eu sabia que ela vinha
pensando muito na minha proximidade com a mãe e no sumiço repentino do
pai. E eu gostaria que os dois pudessem ser meus amigos quando tudo aquilo
acabasse.

Chegamos na fazenda e já vimos Fernando de longe descer do cavalo e


vir a nosso encontro. Não parecia ter intenção de ir para a empresa hoje.
Vestia-se como um cowboy, com direito a chapéu e fivela grande no cinto da
calça.
— E aí, turma? — Ele mostrou-se eufórico ao ver os sobrinhos
descerem do carro. — O que querem fazer hoje? Olha que dia lindo.

— Só quero um pouco de leite e assistir alguma coisa — Nathan


bocejou.

— Oi, tio. — Raquel tirou um fone do ouvido. — O quarto de hóspedes


é meu! — gritou.
— Não, eu já tinha falado! — Nathan berrou e tentou puxá-la. Fernando
segurou os dois.

— Vêm para a fazenda e brigam por quarto?

— Hoje eles não estão de bom humor — Stela explicou. — Pode deixar
os dois se matarem pelo quarto, só assim se entretém.

Fernando os soltou, e os dois correram, se esmurrando no caminho, para


entrar na casa. Só então ele prestou atenção em mim e Stela. Ela tinha
colocado um vestido preto e calçado sapatos de salto. Prendeu os cabelos em
um rabo de cavalo e usava óculos escuros. Eu, de terno preto, também com
óculos escuros.

— Vocês dois juntos em um mesmo carro? O que houve? Esse é um


episódio de MIB, Homens de Preto?

Stela abaixou a cabeça, estava levemente ruborizada.


— Estamos nos entendendo — falei. — Cara, o caso é sério. Você
precisa se trocar e ir com a gente para a Capello.

— Por quê...? O que aconteceu?


— O Miguel — agora Stela falou. — Eu fui burra... eu confiei nele. Mas
ele me deu um golpe e tomou minhas ações da Capello, temos suspeita que
ele esteja envolvido no problema do nosso pai.

— Segura esse filho da puta aí! — Fernando berrava ao telefone, já


vestido a caráter, de terno, ao meu lado no banco do passageiro, e eu pisava
fundo no acelerador. — Andrey, não faça nada, eu cuido disso. Eu que quero
cuidar disso. Vou ligar para Thadeo.
— Mano... basta ter você e Andrey — Stela argumentou do banco
traseiro.

— Precisa, sim, de todos. Esse cara prometeu a nós quatro que seria
bom para você. A gente o trancou em um quarto e o fez prometer, e é isso
que ele faz?

— Será que você ainda não entendeu, Stela? — eu indaguei sorridente.


— Que para casar com você, precisa casar com quatro marmanjos? E por isso
precisa de um marido que seja amigo deles? — Ergui minha sobrancelha
sugestivamente para ela, quando nosso olhar se encontrou pelo retrovisor.
Mostrou o dedo do meio para mim.
Fernando ligou para Thadeo e contou tudo, de forma sensacionalista.
Stela, no banco de trás do carro, estava encolhida.

— Como é que é? Esse cara perdeu a noção do perigo? — A voz de


Thadeo retumbou por todo o carro pelo viva-voz. — Amor, não precisa
esconder a espingarda, quero pegar o sujeito na unha mesmo. — Ouvimos
Thadeo falar com Gema. — Estou saindo de casa, Fernando.

— Eu sabia que esse dia chegaria. — Dessa vez, foi a vez de Benjamin
se enfurecer. — Estou saindo de casa. Não façam nada até eu chegar, quero
pegá-lo com vida.
— Vocês não vão fazer nada com ele — eu falei enfim. — Não vou ser
advogado de defesa de ninguém.

— Um soco ele precisa ganhar — Fernando disse entredentes.

— Quatro socos, você quer dizer, afinal cada um vai querer bater nele.
O cara, por mais idiota que seja, é pai daquelas crianças tão legais. Eu gosto
daquela miniMortícia e do minimercenário — Meu olhar cruzou novamente
com o de Stela. Ela parecia desconcertada. — E não acho justo que eles
sofram com essa briga. Podemos punir Miguel dentro da lei.
— Fica na tua — Fernando rosnou. — Meu punho está dentro da lei.

Quando chegamos à empresa, Fernando marchava na frent, como um


deus poderoso e implacável, daria medo a qualquer pobre mortal. Stela e eu
andávamos atrás, as pessoas saíam do caminho conforme ele passava.
Entramos no elevador e parecia que dividíamos espaço com uma fera
enjaulada.

— Eu nunca quis que Stela se casasse com esse mela-cueca — Fernando


falou. — Ela sempre pagou pau para você, Turco. — Apontou para mim. —
Mas se casou com o outro lá só de pirraça.
— Fernando! — Stela berrou. — Para de colocar mentiras no meu
nome. — Ele só deu de ombros. E assim que ela me olhou, a raiva
avermelhou seu rosto por me ver com um sorrisão bem cínico. Ela foi
desmascarada pelo próprio irmão. Eu gostava demais desses caras.

A porta abriu, e ele saiu feito uma bala lá de dentro.

— Onde eles estão? — gritou para a secretária.

— O senhor Andrey está te esperando na sala de reunião e pediu para...

Ele nem ficou para terminar de escutar o que a mulher dizia. Correu na
direção indicada.

— Meu Deus! Ele vai matar o Miguel. Corre lá, Ulrich — Stela me
empurrou.

Entrei na sala com Fernando. Andrey estava de pé, de braços cruzados


de um lado da sala e Miguel lá na outra extremidade, com a mesa de reunião
lhe servindo de trincheira. Os olhos saltados, em pânico. O burro dava um
golpe e ainda vinha trabalhar como se nada tivesse acontecido. Esse cara
parecia que gostava de sambar de mãos dadas com o perigo.

— O que você fez, hein? — Fernando foi para cima de Miguel.


— Fernando! Eu exijo que fique longe de mim! — gritou, suado de
medo. — Eu vou meter um processo em cada um de vocês, ouviu? —
ameaçou, apontando o dedo, mas quando me viu, vislumbrei raiva tomar seus
olhos. Ele se descuidou, distraído comigo, e Fernando foi rápido como um
tigre e o socou tão forte, que Miguel caiu derrubando as cadeiras.
Rapidamente Andrey conteve o irmão.

A porta abriu, e Stela entrou aflita, e na sua cola, um dos parceiros de


negócios da Capello, Caio Alvorada, que acabou tornando-se amigo das
senhoras Capello por causa de Ana Rosa.

— Por Deus! O que está acontecendo aqui? — Aturdido, Caio olhou


para cada um nós. — Os gritos estão indo lá fora.
Andrey manteve Fernando afastado, Miguel estava no chão, e Caio foi
ajudá-lo.

— Ei, você fique fora dessa — Andrey berrou para Caio. — Já se


intrometeu muito em minha vida, isso aqui é reunião de família.
Ele apenas ignorou Andrey.

— Puta que pariu. O que você aprontou, cara? — perguntou a Miguel, o


ajudando a se levantar. Tirou um lenço do bolso e entregou a Miguel. Ele
aceitou o lenço e pressionou contra o nariz ferido.

Meio trôpego, Miguel se manteve de pé. Colocou a mão no rosto, e ao


ver o sangue no nariz se enfureceu, mas seu ódio foi todo direcionado para
Stela.
— É isso que queria? Me ver apanhar? Não consegue ser independente
um segundo, precisa dos seus marmanjos de estimação para te defender?
Você poderia ter conversado comigo, civilizadamente, pelos nossos anos
juntos. Fomos uma família, Stela, e você não honrou isso!

A porta abriu, e Benjamin e Thadeo entraram juntos, e isso fez Miguel


parar de falar e paralisar. Parecia um defunto pálido. Era evidente que ele
tinha muito medo de Thadeo.

— Pode continuar, Miguel — Thadeo o incentivou. — Continue


gritando com minha irmã, fale tudo que tiver vontade.
— Isso não precisa ser dessa forma — ele gaguejou, e vi a hora que se
escondeu atrás de Caio. — Podemos... conversar.

E eu só de boa assistindo tudo. Fingindo perplexidade, mas sorrindo por


dentro.

— Conversar? — Stela gritou para Miguel. — Você conversou comigo?


Fez tudo pelas minhas costas, está tendo um caso com um pilantra que quase
afundou sua vida no passado. Aplicou um golpe em mim e ainda me
chantageou. Me traiu de diversas formas, traiu nossos filhos! E você ainda
queria que eu fosse dialogar? Você vai ligar agora para seu amante e mandá-
lo vir aqui.

— Espera aí — Andrey levantou as mãos. O cenho franzido — Como


assim, o amante?

— Miguel traiu Stela com um homem que é um pilantra de carteirinha


— eu tive o prazer de falar e já olhei para a reação de Thadeo. Eu não queria
assumir, mas estava saboreando todo esse espetáculo.

— Como é que é? — Benjamin rosnou, perplexo. Os irmãos se


entreolharam, surpresos. Silêncio pesou na sala.

— Você é gay? — Fernando questionou horrorizado.


— Bissexual, mas um troglodita como você não é capaz de entender —
foi a resposta atravessada de Miguel.

— Pra mim, chupou pau, já é gay — Thadeo rebateu. — É tão normal


hoje em dia, e seria mais honroso se tivesse admitido e divorciado da minha
irmã de forma civilizada.

— Eu bem que desconfiei. — Caio deu um tapinha no ombro de


Miguel. — A gente sabe quando a pessoa é do vale.
— Vai dar um potinho de manteiga para ele a partir de agora? —
cutuquei Thadeo e esbocei um sorriso irônico.

— Ah, Turco, vai se lascar. Olha o que você está pensando em meio a
essa confusão!

— O que vai acontecer é o seguinte. — Andrey bateu no ombro de


Miguel, fazendo-o empalidecer. Manteve a mão ali no ombro como uma
forma de opressão. — Ulrich já preparou os papéis. — Ele apontou para
mim, e eu fui rápido em jogar a pasta na frente de Miguel. — Você vai
devolver o controle dos bens da Stela e depois assinar o divórcio. Ah! E
nunca achei que fosse dizer isso, mas você está demitido da Capello.

Ele ignorou a aproximação opressiva de Andrey e me fuzilou com o


olhar.

— Está adorando isso, não é? Você é a porra de um advogado


criminalista, não tem que se meter nisso.

— Se eles te matarem, eu terei um caso para me meter. — Dei de


ombros. — Mas não estou aqui representando Stela, estou apenas como
amigo.

— Amigo? — Ele gargalhou. — Essa mulher te odeia. Lá em casa a


gente poderia falar no nome do capeta, menos no seu. Eu sou o pai dos filhos
dela. Isso nunca vai mudar.
Ele sabia exatamente onde enfiar a faca em mim, para me ferir. Essa
carta dos filhos era a única coisa que de verdade poderia causar algo no meu
coração. Porém, agora, depois de conhecer as crianças, eu não sentia tanto.
Por mais babaca que Miguel pudesse ser, ele colocou crianças legais e
agradáveis no mundo.

— Pessoal — Stela tomou a frente pronta para falar. — O que aconteceu


foi que Miguel me fez assinar papéis passando uma procuração das minhas
ações para ele. — Ela parecia nervosa em relatar isso aos irmãos, mas
continuou: — Em seguida, eu fui convidada a ir em um encontro com
Rômulo, o parceiro de Miguel, e ele me massacrou e ainda me ameaçou, que
se eu contasse algo para meus irmãos, ele entraria na justiça e tomaria a
guarda dos meus filhos, alegando que tenho problemas mentais. — Escondeu
o olhar nesse momento. — E por isso fugi da cidade, e nosso pai acabou
ficando sozinho, à mercê desse mesmo Rômulo. — Ela não falou mais,
apenas olhou com rancor para Miguel, que ficou calado, afinal era tudo
verdade.

E, mesmo sabendo que poderia selar uma grande ofensiva contra


Miguel, eu completei, olhando bem dentro dos olhos dele:

— Foi Rômulo, parceiro de Miguel, o culpado de seu João passar mal.


20

STELA

— O que você fez, porra? — Andrey, que estava mais próximo, tentou
agarrar o terno de Miguel, mas ele foi mais rápido, empurrou uma cadeira e
voou para trás de Caio. Fernando também tentou alcançá-lo, porém Caio se
colocou na frente.

— Eu não fiz isso, eu juro — Miguel berrava, tentando ser ouvido pelos
meus irmãos. — Foi o Rômulo que foi visitar o seu João sem falar comigo.
Eu gosto do velho, Andrey, ele foi como um pai para mim. Seu João sempre
me deu tudo, acredite em mim.
— Andrey, por favor, cara, nada se resolve com violência. — Caio
tentava acalmar a situação. Eu estava assustada, queria punição para Miguel e
Rômulo, mas fraquejei ao ver o início de briga. Não queria essa violência
toda.

— Deixe-o, não vamos agir como selvagens. Estamos na empresa, se


algo assim sair na mídia, pode sujar o nome da Capello — Caio continuou
intervindo e tocou em um ponto importante para Andrey: a opinião pública.

Andrey deu um passo atrás, e vi a tensão banhar o rosto de Miguel. Ele


olhou em volta, puxou uma cadeira, fingindo que ia se sentar, mas abaixou-se
e passou por baixo da mesa. Ele foi rápido, sem que ninguém esperasse. Só
queria fugir.

— Segura ele, Benjamin! — Andrey gritou.


— Meu Deus, gente! Acalmem-se! — pedi, aflita, com o rosto no
ombro de Ulrich, para não ver uma cena de brutalidade, enquanto o safado do
Turco se desmanchava de rir.

— Eita, Thadeo pegou — Ulrich disse, e eu gelei.

— Eu sempre agi como selvagem e não tenho ligação nenhuma com a


empresa. — Thadeo falou, e com a fúria que sentia, acertou em cheio o rosto
de Miguel, fazendo-o cair contra Caio e as cadeiras. — Esse soco é pela
minha irmã. Pelo meu pai, não vou te bater, pois ele mereceu a picada da
cobra que ele mesmo criou. — Olhou para todos nós e deu de ombros. — O
velho sempre fez escolhas erradas. Se ele está naquela cama de hospital, foi
por algo que ele procurou.
Era pesado ouvir isso, mas a pura verdade. Ninguém contestou.

Depois de se recuperar de mais um soco, Miguel sentou-se em uma


cadeira, recebeu o rolo de papel-toalha que a secretária trouxe e limpou o
nariz enquanto tentava falar com Rômulo ao telefone.

— A secretária disse que ele chegaria em meia hora. Eu posso ir... falar
com ele.
Andrey puxou uma cadeira e tomou o lugar ao lado, deixando Miguel
tenso. Empurrou a pasta com os papéis que o escritório de Ulrich havia
preparado.

— Assine. Devolva as ações da minha irmã.

Miguel olhou para mim, passou os olhos por Ulrich e Thadeo e fitou
Caio. Abriu a boca e tomou uma grande quantidade de ar.

— As ações foram dadas como garantia para um cara que Rômulo


pegou dinheiro emprestado. Não foi no banco, foi em uma agência... uma
agência mascarando os agiotas.
Miguel estava se colocando na defensiva, como se fosse a vítima, porém
eu não tinha nada a ver com os problemas em que ele mesmo se meteu.

— Isso não é problema da Stela. — Benjamin frisou o que eu pensava.


— Assine os papéis.

— Se ela retirar as ações, os caras podem vir atrás da gente. Me dê um


tempo, só até eu encontrar com Rômulo.
— Miguel. — Ulrich deu um passo à frente e se aproximou da mesa. —
Você se meteu em uma enrascada. Mas poderia ser pior. O que estamos
fazendo aqui é resolvendo sem precisar te levar no tribunal. Você pode
vender algum bem e pagar os agiotas. Porque as ações vão voltar para a dona,
e isso é inevitável.

Miguel parecia farto de tudo isso, assim como eu queria resolver todo
esse estardalhaço e tentar seguir minha vida em paz. Ele apenas assentiu,
concordando com Ulrich.

— Eu vou parar, eu vou devolver tudo da Stela e assinar o divórcio. Mas


antes preciso falar com Rômulo, ele me meteu nisso e precisa me ajudar.
— Tudo bem, pessoal, podem dispersar — Benjamin comandou. — Eu
vou com Stela e Miguel ao escritório de Rômulo.

— Como advogado, eu irei também — Ulrich se prontificou,


logicamente ele jamais ficaria de fora.

— Certo. Vamos nós quatro. — Ben olhou para Thadeo, que ainda se
portava como uma sentinela de braços cruzados e com olhar letal para cima
de Miguel. — Você e Fernando já estão liberados. Obrigado por virem até
aqui.

Benjamin não conhecia os próprios irmãos? Ele era inocente a ponto de


achar que eles ficariam numa boa? Os três mais velhos trocaram um olhar
cúmplice. Em que mundo eles três ficariam fora de uma briga?
— Certo. Eu tenho umas coisas para fazer, não posso ir mesmo —
Andrey concordou, totalmente dissimulado. Eu sabia quando ele mentia,
mesmo sendo expert nessa modalidade. Ele queria que Miguel acreditasse
que os três mais brutos não iriam.

— Pois é... e eu vou pegar um pouco de nata lá no Fernando. — Thadeo


bateu no ombro de Fernando, que assentiu imediatamente. — Para fazer uma
manteiguinha fresca.

— Bom, acho que meu trabalho acabou por aqui — Caio disse, indo em
direção à porta. — Estou te esperando na sua sala, Andrey. — Avisou por
cima do ombro.
Benjamin andou colado a Miguel para fora da sala. Ulrich e eu seguimo-
nos.

— Os três vão vir atrás, não é? — Ulrich cochichou para mim.

— Sim. Vão acabar com a raça do Rômulo.


Entramos os quatro no elevador, e agradeci pelo espaço ser enorme,
mesmo assim o desconforto me abraçou. Fiquei paralisada, olhando
fixamente para os números dos andares. Era estranho ter Miguel como
inimigo, sendo que pouco tempo atrás ele era meu único porto seguro.
Analisando agora, eu via que nunca amei de verdade Miguel. A gente tinha
uma relação de troca, e eu sentia gratidão por ele ter me amparado quando
mais precisei.

Como Rômulo disse, a gente caiu no comodismo de um casamento que


trazia benefícios para os dois lados.
Olhei de soslaio e vi que ele me fitava.

— Você não perdeu tempo, hein, Stela? — insinuou, me fazendo olhá-lo


por inteiro.

— O quê?
Miguel fez um gesto com o queixo apontando Ulrich bem perto de mim.

— Na noite do casamento de Thadeo você chegou tão furiosa em casa


por causa dele, que precisou tomar calmante. E agora está aí, amiguinha
desse cara.

Eu tinha decidido me limitar ao silêncio. Não sei se uma discussão com


ele valeria o esforço. Porém era muita hipocrisia cobrar qualquer coisa de
mim depois do que ele tinha feito.
— Ulrich esteve ao meu lado quando você me apunhalou. Eu te devotei
anos da minha vida, Miguel. Não trabalhei, te entreguei minhas ações e
confiava tão cegamente, que assinei aquilo tudo sem ler. Para mim, era
impossível que meu marido pudesse fazer algo contra mim. — A porta do
elevador abriu, eu saí na frente, mas parei impedindo a passagem deles e
concluí: — Ainda bem que me apunhalou tão cedo. Eu ainda tenho chance de
recuperar o tempo perdido.

Coloquei os óculos escuros e saí acompanhada de Ulrich, e Benjamin


deu um empurrãozinho nas costas de Miguel, sem sair da cola dele.

No prédio em que funcionava o escritório de Rômulo, entramos sem


grandes problemas. Miguel passou na recepção e apenas disse:

— Quando Rômulo chegar, diga que eu estou esperando-o na sala dele.


— E a mesma coisa disse para a secretária. Nós quatro entramos na sala de
Rômulo, me fazendo sentir um arrepio ao lembrar do que tinha passado ali,
sozinha e oprimida por ele. Meu estômago revirou, e instintivamente segurei
o braço de Ulrich. Ele me olhou, e eu tirei minha mão rapidamente.
— Tudo bem?

— Sim — anuí, com um sorriso raso.

Eu só pensava em acabar logo com isso. Queria poder dar um pulo no


tempo, acordar mês que vem, quando tudo já tivesse sido concluído, mas aí
eu olhava para Ulrich e percebia que apenas uma parte dos problemas ia ser
resolvida. Ele e eu ainda tínhamos um baú de lembranças para colocar sobre a
mesa.
Rômulo não demorou a chegar. E quando a porta abriu, para nossa
surpresa, ele não estava sozinho. Fernando o empurrava, quase gentilmente,
com a mão em seu ombro.

— Senhor Rômulo, precisa de ajuda? — a secretária gritou.

— Estou bem, Mayara. Não precisa nos interromper.


Fernando o soltou, e ele ajeitou o terno. Olhou para Miguel, e depois
para nós três, não surpreso por me ver.

— Dessa vez, você foi espertinha, trouxe cinco homens com você. Fosse
em outra ocasião, eu apreciaria todos eles. — Olhou para Miguel e fez
piadinha: — Você tinha esses machos todos esses anos por perto e nunca
tirou uma casquinha?

E nem deu tempo de se sentar. Thadeo acertou um soco no rosto dele.


Rômulo caiu por cima da mesa.

— Pronto, um Capello tocou em você. Esse foi pela minha irmã, otário.

— Pode deixar que dou um pelo pai.

Benjamin puxou Rômulo pelo terno, ele ainda estava tonto pelo murro
de Thadeo, mas conseguiu se defender do golpe de Benjamin e tentou dar o
troco, mas meu irmão foi mais rápido. Ben foi moldado desde cedo em briga
de rua, e com agilidade, acertou a boca de Rômulo, derrubando-o novamente
sobre a mesa. Em seguida voou para cima de Rômulo, para bater mais,
entretanto Ulrich o segurou.

— Agora assina logo essa porra, pois não tenho o dia todo — Benjamin
ordenou.
Rômulo se ergueu com bastante calma e elegância. Ajeitou a roupa,
tirou um lenço do bolso, limpou o pouquinho de sangue no cantinho da boca
e no nariz e, em seguida, riu. Meu Deus, ele era psicótico.

— Que força, hein, rapaz? Isso me deixou bem duro. Mas se tentar me
agredir novamente, vai ter volta. — Ele deu a volta na mesa, sentou-se na
cadeira, e Miguel correu para ficar de pé ao lado dele. — Pessoal, podemos
negociar...

— Não. — Andrey foi contundente e monossilábico.


— Creio que Miguel já falou sobre as ações serem garantia de um
empréstimo. Escutem minha proposta — Rômulo persistiu. — Eu vou pagar
o empréstimo e deixaremos as ações como garantia até concluir o...

— Turco, diga a palavra “não” para ele em sua língua, porque parece
que ele não entendeu português — Andrey pediu demostrando ironia.

— Haiyr. Non. Bangō. Nein. No. — Todos pararam para observar


Ulrich falando “Não” em várias línguas. — Falei também francês, japonês,
alemão e inglês. E posso dizer em algumas gírias do Brasil: nem fodendo,
pode tirar o cavalinho da chuva, nem a pau...

— Parece que ele já entendeu — Andrey voltou a encarar Rômulo.


— Rômulo, acabe de uma vez com isso. Vamos devolver as ações dela,
e eu assinarei o divórcio. — Miguel não escondia seu medo. Meu Jesus! Eu
me casei com um paspalho.

— Sem lutar, Miguelzinho? Você tem cartas na mão e sabe disso. É pai
daquelas crianças, e qualquer juiz te daria a guarda quando soubesse quão
imprudente e psicótica é a mãe deles. — Rômulo lançou aquele olhar
psicopata e maldoso diretamente para mim. — E aí, Stela? É isso que quer?
Deseja mesmo tirar as ações das mãos de Miguel e perder a guarda dos seus
filhos, afinal, como uma pessoa que deixou um idoso sozinho e foi farrear
com o amante pode cuidar de duas crianças?

E só parou quando recebeu outro soco, dessa vez de Andrey.


Ulrich deu um passo à frente, os punhos fechados, mas eu o segurei.

Rômulo demostrava sua frieza com a situação e sua falta de medo.


Mesmo com meus irmãos presentes, ele ainda tentou me chantagear.

— Cara — Andrey ainda estava lá, pertinho dele. — Você é um picareta


que tem pinta de empresário e acha que é espertinho. — Eu quase dei um
grito quando Andrey enfiou a mão nos cabelos de Rômulo e empurrou o rosto
dele para a mesa.
— Me largue, seu merda! — Rômulo gritou, se debatendo. Andrey
forçou o rosto dele e ainda segurou seu braço atrás das costas.

— Sabe que eu lido com gente assim o dia todo, não é? Fodam-se suas
ameaças. Tente pedir a guarda nos tribunais, revide como quiser, mas agora
devolva os caralhos das ações.

— Quem é que vai assinar? — Benjamin pegou uma caneta na mesa e


estendeu no ar.
— Eu! — Miguel avançou e pegou a caneta.

— Miguel! — Rômulo gritou. — Deixa de ser burro, cara.

— Fernando, venha aqui — Andrey chamou. Fernando foi do outro


lado, segurou o outro braço de Rômulo.
— Assina, Miguel. Faça um último ato honroso — Fernando comandou.

— Este é um contrato comum em que você devolve o controle das ações


para a Stela — Ulrich explicou para Miguel. — Você era apenas o
procurador, e assim que assinar, deixará de ter qualquer vínculo com os bens,
inclusive a parte dela na conta conjunta do casal. Você não poderá mexer no
dinheiro até que o juiz decida a partilha dos bens na assinatura do divórcio.

— Vocês vão pagar caro. Isso aqui é tortura — Rômulo ainda gritava
com o rosto pressionado na mesa.

Thadeo foi até a porta, abriu e falou:

— Ei, mocinha, seu chefe está pedindo uma fita adesiva.

— Mentira, Mayara! Chame os seguranças!


— Obrigado. — Ele recebeu a fita, tirou um bom pedaço e a colou na
boca de Rômulo. Ele acabou aceitando e tendo de ficar imóvel, enquanto
Miguel assinava todas as folhas. Depois entregou em minhas mãos.

— Acabou, Stela. Finalizaremos tudo no divórcio.

Andrey e Fernando soltaram Rômulo, e ele arrancou a fita da boca, tinha


perdido toda a compostura.

— Saia da minha sala. — As veias do pescoço saltaram.

— Rômulo, foi melhor assim. — Miguel tentava acalmá-lo.

— Resolvo com você depois. Saiam, seus vermes.

— Essa mulher aqui tem família ouviu? — Ulrich disse na maior


tranquilidade. — Deveria ter pensado muito antes de armar contra ela. Dá
próxima vez, eu te pego de jeito e não será da maneira que você gostaria.

— Seu idiota! — Rômulo berrou, ofegante, para Ulrich. — Essa cretina


esconde coisas de você. Mas não vou saborear jogar isso na sua cara agora.
Vou usar isso a meu favor mais tarde.

Ulrich me fitou desconfiado, mas não disse nada. Deu as costas e foi em
direção à porta. Eu fiquei perplexa, encarando Miguel. Sobre o que Rômulo
estava falando? O que eu escondia que poderia ser usado contra mim? Seria a
dúvida sobre a minha primeira gravidez? Miguel desconfiava de algo e
contou para Rômulo?

Benjamin saiu, seguido de Andrey e Ulrich. Eu estava logo atrás de


Thadeo quando ouvi:

— Filhos de uma puta rameira.

Thadeo parou.

— Thadeo! — Tentei detê-lo. Ele me afastou com gentileza e voltou,


ficando frente a frente com Rômulo.
— Repita. Aqui, na minha cara. Fala de novo um “A” sobre minha mãe
— Rômulo engoliu em seco. E ficou mudo. Ele e Miguel, lado a lado,
calados, encarando Thadeo. — Foi o que pensei. — Thadeo passou o braço
em meu ombro, e saímos juntos da sala.

***

MIGUEL

Rômulo estava deitado no sofá da sua sala enquanto eu cuidava dos


ferimentos. Pareciam mais feios que os meus. Andrey usava um anel, e
consequentemente cortou um pouco o supercílio de Rômulo. Passei um
pouco de soro fisiológico nas gazes e pressionei. Como resposta, ele franziu o
rosto.

— Tem um plano? — indaguei. Ele empurrou minha mão e se sentou no


sofá.
— Podíamos ter segurado mais um pouco.

— E apanhado mais? Esses caras são uns trogloditas. Desde


adolescentes fazem o que querem.

— O que têm de beleza, têm de selvageria. Não são nem um pouco


refinados. — Rômulo levantou-se e andou pela sala, pensando, com as mãos
na cintura.
— Ligue para os caras do empréstimo e diga para eles venderem as
ações enquanto é tempo — opinei.

— Não. Eles nunca fariam isso, pois iriam se ver com a justiça. A lei
não fica do lado de agiotas.
— E o que pretende?

— Tenho um amigo banqueiro. Vou ver se consigo um empréstimo para


pagar ao menos metade. Você pode ir para casa descansar.
Dei um beijo nos lábios dele e fiz exatamente isso. Fui para a casa de
Rômulo. Tomei um banho, engoli duas aspirinas e caí na cama, vestindo
apenas uma cueca. Eu dormi muito tempo, quando acordei, já passavam das
seis da tarde. A cabeça tinha melhorado, mas os ferimentos dos socos ainda
doíam.

Vesti um robe de seda preto, saí do quarto, e a casa estava toda


silenciosa.

— Rômulo — chamei. Será que ele estava dormindo na sala de


televisão? Fui até lá, mas não havia ninguém. Ainda bocejando, fui para a
cozinha, e Tula, a governanta, estava diante da televisão assistindo.
— Tula, Rômulo chegou?

— Seu Miguel. Não está sabendo?

— Sabendo de quê?

— Está dando na televisão. A empresa de seu Rômulo está sendo


acusada de lavagem de dinheiro com um político daqui do estado. E uma tal
de Erica foi presa por ser laranja dele.

Olhei com terror, a repórter falava que a investigação já vinha em


andamento há alguns meses, mas hoje a polícia tinha recebido uma denúncia
anônima sobre a empresa de Rômulo.

Saí correndo, peguei meu celular e liguei para ele. Andando pelo quarto,
aflito, pareceu uma eternidade até Rômulo atender.
— Onde você está? — gritei. — O que está acontecendo?

— Miguel, sinto muito, querido. Eu sempre salvo minha pele primeiro.

— Como assim, sente muito?

— Eu já estou em outro estado, prestes a voar para outro país. Foi bom
enquanto durou, meu cabritinho, mas você não me servia mais.

Foi como receber uma facada no peito. Atordoado, sentei-me na cama.

— Rômulo, pelo amor de Deus. Não faça isso. Eu não tenho nada, fui
demitido, acabei com minha vida por você! Eu tinha uma esposa amiga, uma
família...

— Eu sei, eu ia honrar isso, mas não dá mais. Eu não poderia ficar aí, os
agiotas são letais, eles iriam me foder. Então eu mesmo fiz a denúncia
anônima, só para ter uma cortina de fumaça. Erica está presa, pois eu a
coloquei como laranja sem ela saber, e você vai precisar apenas pagar aos
agiotas.

— Com o que, porra? Eu não tenho nada. Acabei de ser demitido.


— Miguel, para de drama. — Sua voz soou debochada. — Você vai
ganhar uma coisinha no divórcio, pague com isso. Bom, meu voo é agora,
vou precisar desligar. Talvez um dia a gente tope por aí. Vou sentir saudades.

Ele desligou, e eu acertei o espelho do quarto com o celular.

— Não! Meu Deus, não!


O desespero me tomou, e eu não tinha ninguém para recorrer.
21

ULRICH

— Enfim, descanso? — Cora me perguntou quando eu deixava minha


sala no nosso prédio. Eu a olhei, expressando um ar confuso, e ela explicou:
— Percebi que nesses últimos dias você enfrentou vários problemas.

— Sim. Enfim a paz. Sabe o caso dos deputados, que saiu na televisão
ontem?
— Mais ou menos. Parece que tinha algo envolvido com lavagem de
dinheiro...

— Exato. A empresa é de um cara que tentou dar um golpe na Stela


Capello, irmã do Thadeo.

— Sério? — Parou de andar e me encarou, pasma. — Mas tudo acabou


bem?
— Sim. Ainda bem. Foi algo difícil para lidarmos, o marido dela estava
envolvido.

— Por Deus! Eu entendo completamente, você sabe como entendo. —


Eu compreendi na mesma hora que ela se referia ao próprio marido, que
estava sendo acusado de vários crimes.
— Bom, prometo recuperar o tempo que fiquei fora do escritório. Vou
ficar com aquele caso que você me mandou por e-mail.

— Isso me deixa tão tranquila. Esse caso é prioridade para o escritório,


e confio em você.
Eu me despedi de Cora e me encaminhei para o estacionamento. Eu
sabia, no entanto, que minha vida nunca mais teria a rotina de antes.

Desde o dia anterior, quando tudo acabou e as reportagens sobre


Rômulo vieram à tona, eu não vi mais Stela. Quando saía do prédio de
Rômulo, ela direcionou a mim um singelo “Obrigada”. E dessa vez, fui eu
quem decidiu se afastar, eu tinha de dar um tempo para ela e para os filhos.
Eles tinham de encarar e superar juntos tudo que estava acontecendo, e eu me
vi como um estranho no meio. Eu não podia impor minha presença para as
crianças em um momento que sentiam falta do pai.

De qualquer forma, me sentia esperançoso. Parecia que um novo destino


estava nascendo.
Cheguei em casa, fui direto tomar um banho e pedir algo para comer.
Eram quase cinco da tarde, e meu estômago roncava absurdamente. Como
fiquei fora por dias, a geladeira estava vazia, tinha apenas leite.

Antes, porém, decidi ligar para Stela. Era boa essa sensação de poder
ligar para ela. Durante os anos que passaram, houve momentos em que sentia
a necessidade de entrar em contato, mas simplesmente ignorava essa
sensação por saber que Stela não reagiria bem. De certa forma, eu respeitava
o limite que ela tinha imposto.

Arranquei o terno quente e, por fim, todo o resto da roupa, ficando


apenas de cueca. Maranhão é um lugar muito quente, e consequentemente
não é o melhor lugar para ficar o dia todo metido em terno e gravata.
Enfiei a cara na geladeira, enquanto o celular chamava. Peguei uma
caixinha de leite na geladeira. Stela desligou a chamada.

Olhei confuso para o celular. Ela desligou no primeiro toque.


Certamente, não sabia que era meu número e por isso não atendeu. Revirei os
olhos. Ou Stela estava novamente criando caso contra mim? Liguei
novamente.
Bebi um gole de leite e esperei. No segundo toque, atendeu.

— Stela?

— Não, o filho dela.


— Ah... oi, amigão. Sou eu, Ulrich. — Caminhei para a sala e me joguei
no sofá.

— Hum... aqui no celular apareceu “Capadócia”.

Eu gargalhei. Lembro que liguei para ela uns dias antes do casamento de
Thadeo, ela gravou meu número no celular. Que espécie de idiota eu era por
ficar feliz por isso?
— Como você está? — indaguei a Nathan.

— Bem.

— E sua irmã?
— Bem também.

— Que ótimo. Será que posso falar com sua mãe?

— Não. Estou jogando no celular dela.


— Dê o celular a ela, depois você volta ao jogo.

— Não é tão fácil assim, Capadócia. Deixe um recado, e eu passo para


ela.

Acabei rindo novamente do garoto. Era um menino muito esperto para a


pouca idade, certamente tinha saído com a personalidade de Andrey.
— É assunto importante — falei. — Ela precisa saber agora. Vai logo
chamá-la, ou então eu ligo para sua irmã e peço a ela para te delatar, e então
sua mãe vem tomar o celular, o que acha?

— Hum... você é esperto. Mas não tem o número da minha irmã. Até
mais...

— Não...! Nathan, espere. — Quase deixei a caixa de leite cair no


tapete. — Qual é, cara? Sou seu amigo... posso te pagar um Mcdonalds
depois.
— Um lanche? Isso eu mesmo posso comprar. Me dê um celular, e
então nunca mais ficarei no caminho das ligações da minha mãe.

— Escuta, eu não posso simplesmente chegar e dar um celular a um


filho de alguém. Ainda mais uma criança de nove anos.

— Vou fazer dez.

— Certo. Você já ganhou cem reais, lá no topa-topa. Te dou mais cem.

— Tenho uma ideia melhor. Você diz que vai trocar de celular, compra
um e me dá, dizendo que é o antigo.

— Tudo bem, mas em troca do celular você vai me dever mais cinco
favores. Eu posso cobrar quando eu quiser.
— Hum... certo.

— O que você está fazendo no escritório e sentado na cadeira do seu


avô?! — Ouvi o grito de Stela. — Está conversando com quem, Nathan?
Com meu celular?

Eu ria, ouvindo e imaginando a situação. O pestinha estava sentado na


cadeira do velho enquanto negociava comigo, como um legítimo magnata
financeiro.
— Mãe, um homem chamado Capadócia estava ligando para você.
Tchau.

— Vou te pegar, moleque! — Stela gritou e depois atendeu: — Oi,


Ulrich.

— Capadócia? Sério? — Deixei a caixa de leite na mesinha e voltei a


deitar no sofá. Era reconfortante ouvir a voz dela.
— Só para saber quando era você ligando e não atender.

— Hum... sei. Como é que você está?

Eu a ouvi puxar a cadeira e se sentar. Soprou efusivamente.


— Bem. Desde ontem, depois de todo aquele barraco, me sinto
incrivelmente melhor. Além disso, o quadro do pai é bom.

— Que bom. Já conseguiu falar com ele?

— Eu o vi hoje pela manhã, ele não parece conseguir falar ainda. Mas
ficou emocionado ao me ver.
— E como você passou a noite?

— Maravilhosamente bem, dormi a noite toda.

— Mas, escute, não sentiu nem um pingo de falta do meu abraço


cheiroso, que você tanto elogiou?
— Não. Mas dormi na cama do Fernando.
Dei uma risada, e ela acabou rindo também.

— Por qual motivo? Me conta.

— Meu Deus! Você quer ouvir todos os detalhes, impressionante.

— Sim, quero. Me conte.

Ela fez uma pausa, creio que escolhendo as palavras, então disse de
forma cautelosa:

— Era minha primeira vez sozinha em meu quarto desde que acabou
entre mim e Miguel. Lá no quarto do Fernando tinha apenas a lembrança da
nossa noite, nada que envolvesse o Miguel.

— Vamos então fazer daquele quarto o nosso ponto de encontro. O


cantinho da baixaria.

— Em seus sonhos. Vou desligar. Preciso planejar o jantar com Maria.


— Me chama para comer? Estou aqui sozinho passando fome. Aí depois
eu posso pagar o jantar te comendo no quarto do Fernando.

— Meu Deus! Ulrich! Eu não sei por que ainda te dou mais de um
minuto de atenção. — A voz chocada me fez rir.

— Qual o problema?
— Que linguajar xucro. Ainda mais para um advogado conceituado.

— Ah, lembrei, você precisa ser reeducada nesse meio sexual. Entre
amantes, todo linguajar é permitido.

— Não somos amantes.


— Somos, sim. Chego aí daqui a pouco. Vou levar minhas próprias
camisinhas. Tchau, Estrelinha.
Corri para o quarto, tomei um bom banho, passei um pouco de
hidratante nos braços e peito, uma pitada de colônia, da melhor, escolhi uma
roupa adequada para um jantar com uma mãe e dois filhos. Peguei dois
pacotes de preservativos na gaveta do closet, carteira, celular e chaves, e saí
de casa feliz da vida porque ia jantar e transar, todavia o mais importante é
que eu ia fazer isso com a mulher que eu amo.

Stela abriu a porta da casa para mim. Vestia roupão pós-banho e estava
com os cabelos presos em um coque.

— Você veio mesmo. — Ela caminhou pela sala, e eu a segui.


— Interrompi seu banho ou só estava me esperando chegar para que eu
participasse?

— Não haverá mais janta aqui em casa. Nathan implicou querendo


comer alguma porcaria fora e acabou contagiando Raquel. Resolvi fazer essa
generosidade para eles.

Subimos as escadas.

— Então eu me convido.

Stela foi direto para o closet, e eu aproveitei para deixar os pacotes de


camisinhas ali na cabeceira. Ajeitei os travesseiros, e me deitei na cama, com
as pernas penduradas.

— Notícias de Miguel? — perguntei.


— Ligou hoje para Nathan e depois falou um pouco com Raquel. —
Stela espiou lá do closet e falou: — Disse a Nathan que está fazendo uma
viagem, mas que logo vem visitá-los.

Ela voltou para se vestir.

— Vocês precisam sentar com eles e conversar. Eles são bem espertos e
vão entender.

— A conversa que tive com eles no hotel foi uma preparação. Espero
que Miguel não tente usar a situação para criar intriga com nossos filhos.

Levantei da cama e fui até o closet. Ela estava só de calcinha e sutiã e


passava hidratante nas pernas.
— Ulrich! Estou me trocando.

— Por isso eu vim. — Tomei o recipiente de hidratante da mão dela,


coloquei um pouco na minha mão, esfreguei uma na outra e me aproximei de
Stela, espalhando delicadamente em seu abdômen. Stela não me repeliu, mas
ficou tensa enquanto eu continuava a massagem. Com o polegar, contornei o
risco quase imperceptível de uma cicatriz. Eu não sabia qual dos dois tinha
nascido de cesárea.

Coloquei mais um pouco de creme na mão e gentilmente a virei de


costas para mim. A tatuagem estava lá, perfeita, e eu já conhecia cada um dos
traços, das noites que passei com a outra personalidade.
— O que está fazendo?

Pressionei o volume em minha calça em sua bunda e massageei ombros


e costas, espalhando o creme. Stela ofegou e fechou os olhos, saboreando
minhas mãos que desciam até a cintura. Pressionei ainda mais meu corpo
contra ela e beijei o ombro; automaticamente ela curvou o pescoço, me dando
passagem livre à bela curva do ombro. Beijei e mordi de leve em seguida.

— Mal posso esperar para chegar logo e te levar ao quartinho da


bagunça.

— Eu devo ser muito burra por ficar excitada com você.

— Burra seria se não ficasse.

Segurei seu queixo, fazendo-a olhar para trás. Nossos olhares se


cravaram, e eu a beijei de uma forma suave e quente, puxando seu lábio com
os dentes e sorvendo calmamente. Desci minha mão até seus seios,
encontrando os mamilos entumecidos.

Droga! Como eu queria arrancar esse sutiã e atacar sem pena com
minha boca.
— Oh, mãe! — Ouvimos a voz de Raquel, e Stela me deu uma
cotovelada, me empurrando. Não dava tempo de sair do closet ou seria
flagrado. Ela me empurrou para a porta que dava no banheiro. Escondido no
escuro, escutei a menina chegar.

— Meu jeans favorito desapareceu.

— Talvez porque você o usa tanto, que quase sempre está na lavanderia.
Vamos escolher outra coisa. Tem que desapegar, minha filha.

Elas se foram, e eu aproveitei e saí do quarto, indo esperá-los na sala.


Nathan foi o primeiro a descer. Quando me viu no sofá, se sentou no outro, à
minha frente e ficou por segundos calados, só me analisando.

— Você vai com a gente? — enfim questionou.

— Vou sim — falei.


— Por quê?

— Porque eu não tenho amigos e quero sair para comer um lanche na


companhia de pessoas legais.
— Você é amigo dos meus tios — apontou.

— Mas eles não estão indo comer lanche.

Ele balançou a cabeça e voltou a se calar por alguns segundos.

— A Raquel me contou uma coisa, mas disse para não contar para você
ou para mamãe.

— E o que ela contou?

— Ela disse para eu não contar, ué. Mas eu cruzei os dedos na hora e
posso contar. Ela disse que acha que você quer ser o namorado da nossa mãe.

Achei que era o momento exato para abordar esse assunto.

— E vocês não gostariam disso?


— Você é legal, mas não quero que outro homem venha morar com a
gente. Eu quero só nós três e o vovô, quando ele sair do hospital.

Aquele era o meu temor, mas estava disposto a respeitar o desejo da


criança. Eu entendia como para eles seria difícil ter um outro homem tão cedo
no lugar do pai.

— Entendi. Bom, eu tenho minha casa, a sua mãe tem a casa dela. Acho
que dá para a gente resolver o problema dessa forma.
— Se for desse jeito, tudo bem por mim.

Levantei-me do meu lugar e me sentei no sofá ao lado dele. Fechei


minha mão em punho, esperando-o tocar.

— Amigos?
— Tudo bem. — Nathan bateu no meu punho. — Ulrich, será que você
poderia pedir batata com cheddar e bacon em dobro? A mamãe nunca deixa a
gente pedir em dobro, pois diz que pode causar dor de barriga.

— Essa amizade já está me corrompendo, não é? Tudo bem, vou pedir a


batata e me resolver com sua mãe depois.
— Vamos? — Stela e Raquel desceram. Fiquei de pé, e Nathan saiu
correndo porta afora.

— Estão lindas — elogiei.

— Obrigada — Stela falou e foi armar o alarme no painel.

— Você vai com a gente? — Raquel me olhou, pasma.

— Sim. Tudo bem para você?

— Sim. — Deu de ombros.

Fomos em uma lanchonete de hambúrgueres artesanais, que, segundo


Stela, era onde eles gostavam de comer. O lugar era bem grande e de ótima
aparência, além de cheirar a churrasco; havia mesas espalhadas tanto dentro
como fora do estabelecimento. Sentamo-nos do lado de fora.

Cada um pegou um cardápio. Eu acenei para um garçom.

— Vamos pedir as bebidas. — Cada um pediu o que queria, e eu


completei por último: — Como entrada, quero uma batata com cheddar e
bacon em dobro.

— Meu Deus. Para que pedir o dobro dessa coisa nojenta e gosmenta?
— Stela reclamou. — Pode ser simples — falou com o garçom.

— Mas eu quero em dobro. — Pisquei para Nathan. — Traz em dobro.


— O homem anuiu e saiu rapidamente.
Ela não disse nada, porém cruzou os braços e me fitou com olhos
semicerrados. Merda, eu estava colocando em risco minha noite de safadeza.

— Hoje é o dia de tudo em dobro, Estrelinha. — Acabei de falar, e ela


revirou os olhos.
— Estrelinha? — Raquel questionou.

— Eu fui o primeiro namorado da sua mãe, quando éramos


adolescentes, e era assim que eu a chamava.

— Eu não gostei, parece nome de gato — Nathan não deu importância.


— Eu achei fofo. — Raquel deu um leve sorriso para mim.

Fizemos os pedidos dos lanches, e quando a batata chegou, Stela


estremeceu, levemente amedrontada. Toquei no braço dela.

— Relaxe. São crianças, tem que comer porcaria ao menos uma vez.
Lembra quando a gente enchia a barriga de besteira e nem por isso morria?
Ela olhou em meus olhos e desarmou, abaixando os ombros, que
estavam tensos. Pegou uma batata e enfiou na boca com cautela, enquanto
Nathan e Raquel comiam feito condenados.

— Calma, pessoal, ou não ficará espaço para o hambúrguer.

— Eu já odiava essa coisa, agora não consigo nem olhar. — Stela falou
e confidenciou em seguida: — O estresse me fez passar o dia com o
estômago revirando.
— Amanhã estará melhor — cochichei para ela. — Essa noite tiro seu
estresse.

Os hambúrgueres eram mesmo deliciosos. E tinha tanto molho, que eu


me lambuzei.

Raquel fez como a mãe: pediu um prato, partiu o hambúrguer e comeu


um pedaço de cada vez, enquanto Nathan e eu tínhamos molho no queixo.
— Vocês poderiam ser um pouco mais discretos? — Stela cochichou.
— O povo vai pensar que estavam morrendo de fome.

— Eu estava morrendo de fome — falei.

E por um breve momento, enquanto mastigava, observei os três, e


mesmo com tanto tempo longe, sem fazer parte da vida de Stela, mesmo com
a proibição de um dia poder morar com ela, mesmo com a presença latente de
Miguel, que sempre estaria ali, eu me senti bem entre eles, entre pessoas que
eu jamais imaginei que um dia pudesse ter alguma intimidade.
Thadeo às vezes me chamava de nomes como escravoceta ou gado da
Stela. Gado é como chamam o cara que faz tudo para ficar com uma mulher.
Alguns homens morrem de malhar só para pegar mulher, por exemplo.

É, talvez eu fosse um gado. Mas um gado enfim feliz.


22

MIGUEL

O carro do Uber parou no endereço, e eu desci. O motorista desceu para


abrir o porta-malas, e eu olhei para a casa precária em um bairro precário.

— Obrigado. — O motorista deixou as malas aos meus pés na calçada,


acenou para mim e foi embora. Na rua feia, as pessoas curiosas em suas casas
paupérrimas olhavam para mim com cautela. Engoli em seco.
Bati no portãozinho de alumínio e imediatamente limpei a mão.

— O que é, moço? — uma mulher gritou.

— Oi, sou Miguel Medeiros, sobrinho de seu Isaias, ele está?

— Está, sim. — Ela veio, abriu o portão, que rangeu, e me deixou


passar. Peguei minhas malas, coloquei na área suja e a segui para dentro de
casa.

O velho estava sentado em uma cadeira de balanço na sala, com um


cachimbo na boca, em frente a uma televisão sem som. Não mudou de
expressão quando me viu, mas me encarou.

— Seu Isaias, esse moço disse que é seu sobrinho.


— Enfim seu pai morreu e você veio me avisar? — perguntou logo.
Meu pai morava do outro lado do Brasil, no Rio Grande do Sul, e eu não o
via há anos também.

— Oi, tio. Não... eu só preciso de um lugar para ficar por uns tempos.
Perdi tudo, tio. Perdi tudo...
Ele tirou o cachimbo da boca e gargalhou. Riu de dobrar o corpo. E só
depois que riu com vontade voltou a me encarar.

— Eu disse para minha velha que um dia você estaria nessa situação.
Pena que ela não está mais aqui para ver. Você é igualzinho a seu pai: um
aproveitador. E agora recorre ao velho pobre, sendo que nunca nem olhou
para minha cara. No seu casamento, queria mandar os seguranças dos Capello
me tirarem de lá.

— Me desculpe... Eu sei que fui um filho da mãe...


— Filho da mãe — rosnou. — Até parece. Se fosse só isso... Eles te
bateram. — Apontou o cachimbo para meu rosto.

— Sim.

Gargalhou de novo. Riu tanto, que derramou lágrimas nos olhos.


Limpou-as com gosto.

— Deus é justo demais. Eu queria tanto ter visto os Capellos descerem o


pau em você.

— Ok. Se não pode me ajudar, tudo bem. Não sei onde estava com a
cabeça...

— Espera. Não sabe nem se humilhar? É você que precisa de ajuda, não
eu. Eu moro sozinho, ganho auxílio do governo, se quiser morar aqui, tem
que trabalhar para ajudar nas despesas.
— Eu vou procurar emprego...

Ele se levantou da cadeira e mancou até uma porta. Abriu-a e me


chamou.
— Trabalhar imediatamente, começar hoje. — Lá dentro tinha uma
tralha de coisas velhas e um carrinho de cachorro-quente no meio. — Não
consigo mais sair para vender, você fará isso. Pode ficar aqui, mas com a
condição de vender cachorro-quente.

***

Depois de tudo que ocorrera naquele fatídico dia, eu fiquei sentado no


quarto de Rômulo, praguejando e amaldiçoando toda a geração dele. Eu não
sabia por onde começar a limpar a bagunça. Mas, ao menos, estava em uma
boa casa, com uma dispensa abarrotada e carros na garagem. Eu não ia sair de
lá até que ele voltasse. Passei a noite em claro, só bebendo e praguejando. Eu
perdi tudo, e ainda por cima passei pela humilhação de apanhar daqueles
malditos Capellos.

Porém, pela manhã, fui acordado por homens armados que invadiram o
lugar e disseram que a casa ia ficar nas mãos dos agiotas até que eu pagasse
tudo. E me deram meia hora para pegar tudo que eu fosse precisar e deixar a
casa imediatamente. Forçaram Tula a sair também e não me deixaram pegar
meu carro. Era meu carro, porra. E eles não permitiram.
Eu ia pagar um hotel, mas estava sem nada na conta. Lembrei que todo
valor eu tinha dado a Rômulo para investir no negócio dele. Então só tinha
um lugar para ir: um tio, que eu não via desde o meu casamento.
Enquanto cortava a cidade dentro do carro do Uber, limpando as
lágrimas dolorosas que caíam vez ou outra, tirei do bolso um envelope que
Rômulo deixou para mim em seu escritório e até então eu não havia tido
coragem de abrir.

Eu considerava a última pá de terra em minha cova. Por fora estava


escrito: Abra e sinta-se livre.
Eu abri, e para meu espanto, era o resultado do exame que eu fiz, e para
minha completa aflição, entendi o que Rômulo tinha falando com Ulrich na
confusão no escritório dele.

Eu era infértil. Nathan e Raquel não eram mesmo os meus filhos. E essa
novidade seria uma bomba para o Turco. Eu não sabia como poderia usar
essa informação, mas estava muito puto com Stela por ela ter me enganado.
23

STELA

Desci do carro de Ulrich, no jardim da mansão, e observei Nathan


encarar a gente, como se estivesse supondo algo. Ulrich também percebeu e
falou:
— Até depois, garotada. Vou só dar uma palavrinha com Stela antes de
ir embora.

Caminhamos com eles até a porta, abri, desarmei o alarme e acendi as


luzes.

— Escovem os dentes antes de cair na cama. Nathan, não durma com


essa roupa.
— Ok! — gritou por cima do ombro e foi em direção à escada, na
companhia da irmã.

Voltei-me para Ulrich. Ele estava com cara de cachorro pidão. Eu sabia
quando ele estava morto de tesão, ficava com uma expressão sexy e me
olhava de forma faminta, como se fosse me agarrar a qualquer momento, e
isso acabava me contagiando.
— O que foi? — Tentei segurar o sorriso.

— Vou entrar e te espero lá naquele lugar que você já sabe o caminho.

Acabei soltando o riso.

— Olha só a que ponto voltamos. — Recostei na porta. — Parecemos


dois adolescentes se pegando escondido.

— A diferença é que agora somos bem melhores. — Ele se inclinou e


deu um beijinho em meus lábios. Afastou-se, para olhar minha reação, e
tomada por um impulso, o abracei com força, encostando meu rosto em seu
peito. Fechei os olhos e respirei fundo, inalando seu cheiro. Ulrich logo
respondeu ao abraço me aninhando em seus braços e beijou minha cabeça.
Eu tinha de aceitar que o ódio que eu dizia sentir por ele nunca foi real.
Bastou me tocar para que eu deixasse tudo voltar com a força de uma
locomotiva. Meu coração saltava feliz ao vê-lo, meu corpo se arrepiava com
sua voz, e uma deliciosa eletricidade percorria minha pele quando eu sentia
seu cheiro.

Ulrich tinha despertado a mulher erótica em mim. Fazia tempo que eu


não sentia crua excitação me apunhalando deliciosamente.

— Tudo bem? — indagou em um cochicho.


— Sim. Só precisava de um abraço. — Continuei o envolvendo,
sentindo o calor e a dureza de seu corpo viril. — Você tem razão, hoje somos
melhores. Te abraçar agora é muito melhor que anos atrás. — Ele riu,
fazendo o peito vibrar.

— Dizem que abraçar sem roupa é bem melhor. O que me diz?

Afastei-me enfim.
— Entra logo. — Empurrei-o para dentro. — Daqui a pouco farei uma
visita.

Ulrich correu para as escadas e subiu na ponta dos pés, para não fazer
barulho, e eu fiquei parada no mesmo lugar por algum tempo, mesmo depois
que ele já tinha ido. Perdemos tanto da nossa vida. Na verdade, eu perdi,
vivendo uma mentira com Miguel. E, cá para nós, eu tinha de agradecer por
Ulrich não ter desistido de mim.

No meu quarto, troquei a roupa, vestindo uma camisola e uma calcinha


de renda que vivia desprezada na minha gaveta. Eu sempre vestia as mais
confortáveis, e Miguel nunca tinha demostrado gosto peculiar pelas minhas
roupas íntimas. Mas eu sabia que Ulrich gostava, e era bom ver seus olhos
brilharem ao se deparar com o tecido rendado. O olhar de devoção fazia com
que eu me sentisse sexy e corajosa, capaz de tudo entre quatro paredes.

Ajeitei meus cabelos no espelho e sorri para mim mesma.

Olha só, queridas cunhadas, parece que não são só vocês que passam
bem na cama.
E eu não via nem sinal de arrependimento por querer tanto aquele
homem.

Cheguei ao quarto, entrei e recostei na porta, olhando para Ulrich


deitado na cama só de cueca. Ele não perdia tempo.

— Meu Deus... o que estamos fazendo? — Girei a chave na porta.


Ulrich continuou deitado, as mãos atrás da cabeça, em uma pose
extremamente sexy que me fazia querer mordê-lo por inteiro. Eu não
conhecia essa parte pervertida em mim.
— Venha aqui, Stela — ele me chamou. — Não acha que eu já corri
atrás por muito tempo? Quero saber de você o que deseja, me mostre o que
quer.

Mordi o lábio e continuei no mesmo lugar, indecisa. Eu o queria, mas


nunca tive impulso de tomar a iniciativa.
— Ou prefere que eu vá? — Sentou-se na cama. Estava fazendo um
jogo comigo. Ulrich jamais iria embora estando tão excitado. Porém, ele tinha
razão. Eu queria mostrar como eu o desejava. Aproximei-me e fiquei à sua
frente. Toquei em seus ombros, adorando a textura da pele quente, e desci
cada uma das mãos pelos braços, nossos olhares presos.

— Eu acho que sempre te quis — sussurrei. — Até mesmo quando eu te


odiava.

— Não era ódio. Eu sabia. — O lábio curvou-se para o lado, em um


sorriso nada modesto. Com as duas mãos, segurou minha cintura e me deu
um puxãozinho, para que pudesse beijar meu abdômen. Fechei os olhos,
adorando o caminho de beijos que ele fazia até meu umbigo, por cima do
tecido fino da camisola. Ulrich estava prestes a levantá-la quando segurei seu
maxilar, levantando seu rosto, e o beijei.
E quando a língua entrou, e uma encontrou a outra, acabou aí qualquer
mínima defesa. O cão atiça, e a gente não pensa em mais nada.

Beijando-me de língua, tão gostoso e voraz, Ulrich ficou de pé, me


levantou, e eu nem perdi tempo, enrolei minhas pernas em sua cintura,
morrendo de tesão ao retribuir sem trégua. Ele caminhou comigo pelo quarto
e parou diante da escrivaninha, onde Fernando estudava. Com o braço,
empurrou um caminhão de boi em miniatura que havia ali e me colocou
sentada.

Ele me segurou com força, seus dedos afundaram na minha pele, bem na
cintura, enquanto descia a boca, mordendo e beijando meus ombros. E, de
repente, segurou com firmeza meus cabelos, manteve meu rosto parado e me
beijou com um sorriso pervertido. Em pouco tempo, meu corpo já estava todo
aceso, meus seios clamavam, e Ulrich parecia saber disso. Puxou minha
camisola e a jogou longe. Sorriu e abaixou o rosto, passando a língua apenas
ao redor do mamilo.

— Ulrich...

— Shiu. — Puxou a cadeira e sentou-se bem à frente, entre as minhas


pernas. — Vou fazer a lição de casa. — Gentilmente empurrou meus joelhos,
deixando minhas pernas abertas. Minha boca nem fechava mais, a respiração
suspensa, o tesão entalado na garganta.

O homem que eu odiava no mês anterior tinha a melhor língua que esse
planeta tinha visto.

— Linda. Enfim apenas minha.


Tirou minha calcinha e fez uma carícia lenta em toda a fenda escaldante.

— Você está em chamas, e eu só estou começando.

— Meu pai do céu...! Me ajude agora...! — sussurrei e fechei os olhos


quando a boca faminta roçou minha vagina em um beijo devasso. Agora era
só ladeira abaixo.
Sua barba acariciou o terreno em volta, a língua passou de um lado para
a outro, e eu só sabia tremer. Ulrich penetrou um dedo, e com a língua
brincou com o clitóris. Sofri sem querer gemer alto. Quase fechei as pernas
na sua cabeça, mas com as duas mãos ele as manteve abertas.

Não era só gostoso, era viciante, era uma sensação indescritível, e eu


parecia estar possuída por um espírito do mal, o tanto que tremia, falava
coisas sem nexo e revirava os olhos.

Ulrich se ergueu para cima de mim, mas manteve lá embaixo dois dedos
metidos — Puta que pariu, o que esse homem está fazendo comigo? —
enquanto beijava minha boca. Seus dedos iam e vinham dentro de mim. Meu
corpo balançou, eu agarrei em Ulrich, e foi meu fim quando ele chupou com
calma angustiante um seio de cada vez. Ele colocava na boca e rolava a
língua pelo mamilo.

Gozei feito uma louca, rebolando na escrivaninha, fazendo-a ranger e


bater na parede enquanto puxava os cabelos de Ulrich.

— Pronto. — Rindo, ele me puxou para seus braços, que agarrei com
urgência, ainda sentindo espasmos. — Estava mesmo precisando de uma
chupada na boceta, hein, senhorita Capello?

— Para... de... falar esses nomes — sussurrei, com o rosto grudado em


seu peito.
Ulrich me levou para a cama, beijou-me docemente e pegou um
pacotinho de camisinha ali do lado. Tinha certeza de que ele havia passado
no meu quarto e pegado.

Rasgou no dente, pegou um preservativo e o deixou de lado. Subiu na


cama e me puxou para seus braços. Ficamos de joelhos nos beijando, Ulrich
passava as mãos pelo meu corpo, mas eu não fiquei parada. Percorri com os
dedos, conhecendo seu corpo, o qual não tinha nenhuma familiaridade; e hoje
eu agradecia por ter a chance de conhecer. Cheguei em sua cueca e solucei
quando apalpei o volume pesado.

Meu Deus! Como eu o queria.


O tesão bombeava meu sangue de forma descomunal.
Ulrich rodeou meu corpo, e em um instante já estava por trás,
abraçando-me e mordendo minha nuca e a curva do meu pescoço. E então
Ulrich espalmou a mão em minhas costas e forçou para frente.

— Abaixe-se... assim.
— O quê...?

— Naquela posição. — Piscou malicioso.

Essa era uma das minhas preferidas desde que experimentei com ele.

Meu coração acelerou mais ainda. Ouvi Ulrich abrir o preservativo e em


seguida sua cueca voou para o lado. Engoli em seco.

Ele segurou na minha bunda, de uma maneira possessiva, de mão cheia,


e para meu espanto, deu umas mordidinhas nas nádegas e uma lambida
suculenta no meio.

Tudo me mim pulsava, pronta para recebê-lo, e quando a cabeça roliça


tocou na minha entrada, eu só mordi os lábios e me deliciei com a pressão
invasiva, a grossura me abrindo devagar até o fim.
Puta merda! Ele era grande, e naquela posição eu o sentia por inteiro.
Fiquei sem fala: totalmente preenchida.

Ele beijou minhas costas, e eu sabia que seus beijos percorriam o


desenho da minha tatuagem. Tirou o pau quase por inteiro, deixando só a
cabecinha, e o aprofundou: tão sem pressa, que eu poderia chorar e rir ao
mesmo tempo. Era gostoso quando estava todo dentro, e ele remexia o
quadril, de lá para cá, devagar, e sem parar de beijar e morder minhas costas.

Sua mão se enrolou no meu cabelo, a outra segurou na minha cintura, e


devagar, de modo carinhoso e profundo, começou a bombar.
— Segura, que agora o bem-bom vai começar.

— Ulrich...

Aumentou o ritmo, e eu me acostumei com as investidas úmidas de sua


grossura satisfatória.

— Está gostoso?

— Meu Deus! Sim... eu estou tremendo, me tremendo toda...

— Normal. — Ele riu e bombou mais duas vezes forte seguidas. — Se


chama Efeito Turco.

E então Ulrich não estava mais apenas ajoelhado atrás, estava quase
montado em mim, seu peso não era problema, mas as investidas eram fundas
e ritmadas. Tudo isso somado ao peso e a força dele, eu estava quase me
desmanchando feito manteiga na frigideira. Senti-o tocar lá no fundo,
diversas vezes acabando com minha sanidade.

O prazer me engoliu, e ele simplesmente foi com tudo. Batendo forte e


rápido, me fazendo receber toda sua ereção, enquanto me segurava gostoso
pela cintura e cabelos.

— Ulriqueeeee! Eu vou... morrer... praga! — berrei, descontrolada. Mas


não queria que ele parasse. — Esse pau é tudo para mim — falei sem pensar.

E ele riu.

Puxou-me para ficar de joelhos e abraçou-me pela cintura, agora


bombando mais devagar.
— Precisa praticar mais para aguentar a montada do turco. — Riu no
meu ouvido e mordeu o lóbulo. Eu queria bater nele, mas não queria largar o
pau, o homem... o abraço gostoso.
Ulrich deitou-se comigo, atrás de mim, feito conchinha. Abraçou-me
com um braço e segurou minha perna. E tornou a meter com satisfação por
trás, com o peito relando em minhas costas.

Eu estava em êxtase. Estava alucinada. Estava quase chegando


novamente ao orgasmo, mas coloquei a mão para trás e o parei.
— Venha aqui. Me abrace. — Puxei-o para cima de mim.

— Tudo bem? — Atendeu meu pedido, acomodando-se de um jeito


bom. Em seguida, tirou os cabelos do meu rosto e beijou minha testa.

— Nem sei mais. Só termine.


Dessa vez, eu o abracei e saboreei seu corpo sobre mim, beijei sua boca
e me debati feito uma louca enquanto Ulrich me fazia voar no orgasmo mais
delicioso que já senti. Com ele, parecia que a cada vez ficava melhor.

— É agora! — ele rugiu, suado, os músculos saltados, todo gostoso. —


Cheddar em dobro, Stela!

— O quê? — Não era possível que ele ia debochar nesse momento.


— É todo seu!

Não teve tempo para distração.

O melhor é que ele me segurava, bem na cintura, chupava meus seios e


bombava com gosto enquanto o orgasmo me tomava por completo.
Isso triplicava o poder, e eu ficava fora de mim.

Ele também gozou, e depois tirou o preservativo e jogou do lado, no


chão. Não fomos cada um para seu lado, ficamos lá, no meio da cama
agarrados. Recuperando o fôlego e aproveitando o calor do corpo um do
outro.
— Puta merda — sussurrei. — Minhas pernas estão moles.

— Ninguém disse que seria fácil. — Riu e beijou meus cabelos. Eu


também acabei rindo.
— Eu gosto de você — sussurrei, agarrada ao seu corpo, nossas pernas
entrelaçadas.

— Eu sei — respondeu.

— Eu não sei como lidar com isso — confessei. — Passei metade da


vida te odiando. Não sei como lidar com essa sensação.
— Como é a sensação?

— De não querer te bater, querer ficar assim, só te agarrando. E...

— E?
— E... ter medo de que eu perca isso... essa proximidade com você.

— Medo de que eu te deixe? — Riu com deboche. — Sabe que isso não
vai acontecer.

Fiquei calada. Eu não sabia por que, mas de repente eu tive essa
sensação de perda. Estava bom voltar aos poucos com Ulrich, era uma boa
descoberta, não tinha motivo para a gente se afastar.
— Vou jogar uma água no corpo. Estou me sentido grudada de suor —
falei e me levantei da cama. — Vem comigo?

— Um convite espontâneo? Acho que estou ganhando mesmo o jogo —


disse e pulou da cama, me seguindo para o banheiro.

Não fizemos nada debaixo do chuveiro. Apenas tomamos banho. Vesti a


camisola, saí do quarto e fui olhar as crianças. Já estavam dormindo. Voltei
para o quarto e deitei-me com Ulrich. Ele mexia no celular.
— Você não me segue — constatou.

— Não, ué. — Era óbvio. A gente era como cão e gato.

— Mas vai seguir agora. — Pegou meu celular e segurou minha mão.

— Ulrich, o que está fazendo?

— Me dê sua digital aqui. — Desbloqueou o celular com meu dedo e foi


acessar o Instagram. Deitei a cabeça pertinho dele para ver.

— Hum... bela foto de perfil.

Procurou o perfil dele e tocou em “Seguir de volta”. Afinal, ele já me


seguia.

— Pronto. Daqui a algum tempo, colocaremos um ao outro como


cônjuge.
Apenas ri.

— Como se sente ao saber que eu tenho mais seguidores que você? —


indagou. Clicou no perfil de Miguel e tocou em parar de seguir.

— Ulrich! — Tomei o celular da mão dele. — Por que fez isso?

— Nem vou te responder, Stela. — Tomou o celular de volta, colocou


na mesa de cabeceira ao lado e me puxou para seus braços. — Você é do
Turco agora, Estrelinha. Miguelito é passado.

— Que infantil — murmurei, adorando estar abraçada a ele.

— Vamos transar de madrugada? —sussurrou.


— Não.

— Seis horas da manhã?

— Quem acorda seis da manhã para transar? — indaguei.


— Eu, ué.

— Não.

— Que horas, então?

— Quando eu acordar?

— Vou te acordar às seis. Boa noite, Estrelinha.


24

ULRICH

Faltava apenas um dia para a audiência do divórcio de Stela e Miguel.


Eu soltava fogos de artifício. Dormi sorrindo e estava acordando sorrindo.

Quando despertei, o quarto já estava claro. Ergui os braços, me


espreguiçando, e notei que estava livre, não havia um corpo aninhado ao
meu. Eu nunca fui desses de acordar de mau humor e agora eu tinha motivos
de sobra para sorrir pela manhã. Eu estava acordando ao lado dela. Abri os
olhos e me deparei sozinho na cama.
Cacete! Ela não fez isso!

Eu não acreditava que Stela se levantara antes de mim e simplesmente


fugira, sem me chamar. Por que eu não coloquei a merda de um alarme?
Mas eu deveria imaginar que Stela, na sua eterna pirraça, não facilitaria
minha vida assim, de boa vontade.

Estiquei o braço e peguei o celular. Sete e meia da manhã.


Eu estava puto e com tesão. O pau duro e latejando.

Levantei da cama e, lamentando, fui para o banheiro. Tomei uma ducha


rápida, para aliviar a pressão nas partes baixas e quis vestir um roupão de
banho que Stela trouxera na noite anterior, mas eu não podia sair pelado do
quarto, as crianças já poderiam estar acordadas.

Vesti minha roupa a contragosto e saí em busca de Stela. Passei pelo


quarto dela, não tinha ninguém. O quarto de Nathan e Raquel ainda fechados.
Aquilo era estranho. Para onde ela tinha ido? Seria burrice da minha parte
sonhar que ela tinha ido fazer café para levar na cama para mim e depois
transar gostoso?
Para minha surpresa, a encontrei subindo as escadas. Agarrei-a.

— Ulrich...! — Tentou me afastar.

— Fujona. — Beijei seu pescoço. — Qual punição merece uma mulher


que deixa o pobre homem abandonado na cama, de pau duro?
— Meu Deus... Ulrich...

Beijei-a, prendendo seu corpo contra o corrimão, e então ouvi:

— Como é que é? O que você falou, Turco?


Eu me afastei bruscamente dela e encontrei Andrey de cara feia me
olhando do pé da escada. Ana Rosa veio da outra sala e espiou. Ao me ver,
colocou a mão na boca.

— Ah... Oi, cara. — Acenei para ele. — Bom dia, tudo bem? — Tentei
ser cortês, mas ele nos olhava muito intrigado. Será que ele tinha me ouvido
falar que pretendia punir Stela por me abandonar de pau duro? Esperava que
não.

— Eu já ia subir para te avisar... — Stela cochichou para mim.


— O que está acontecendo? — Andrey pressionou. — Você está
dormindo com minha irmã?

— Andrey, não me trate como se eu fosse uma adolescente e não


estivesse presente — Stela interferiu.

— Stela, um momento, quero saber dele. Porque eu achei que ele era
meu amigo, mas está agindo pelas nossas costas? Thadeo sabe disso?
— Andrey! — Ana Rosa interferiu. — Eles são adultos, podem fazer o
que quiserem.

Eu soprei uma lufada de ar e desci os degraus indo até ele.

— Venha aqui. — Bati no ombro dele e o fiz me seguir, afastando-me


de Stela e Ana. — Cara, meu caso com sua irmã não é algo para eu sair por aí
contando, ainda mais para os irmãos dela. Isso cabe a Stela decidir. Estamos
nos acertando, é o início apenas, e você mais do que qualquer um sabe que eu
a respeito e cuido dela.
Ele me analisou seriamente.

— Como aconteceu? Ela enfim abaixou a guarda?

— Benjamin sabe por alto. Eu vou contar para você e os outros como
tudo aconteceu, mas no momento Stela está bem e está superando o que
Miguel fez a ela, é isso que importa.

— E qual o plano de vocês? O que você pretende com ela? Os filhos


dela já sabem?

— Não planejamos nada ainda. O divórcio está marcado para amanhã.


Stela está se acostumando com minha presença na vida dela novamente.

— Parem de fofocar e vamos tomar café. — Stela se aproximou,


desconfiada. Passei o braço por seu ombro e pisquei para Andrey, mostrando
que estava tudo bem. Caminhamos para a cozinha, e ele nos seguiu.
— É estranho ver vocês juntos — ele balbuciou, ainda pasmo com a
novidade. — Quero conversar direito com você, Ulrich.

— Bom, parece que temos novidades o suficiente para um almoço em


família na fazenda Capello — Ana falou, ajudando Stela a servir a mesa.
Andrey e eu nos sentamos.
— Ana... não acho boa ideia — Stela sussurrou em um tom que deixava
claro sua cautela.

— Infelizmente já mandei uma mensagem para Maria Clara — Ana


respondeu, também em um tom baixinho. — Ela já vai avisar Gema e Diana.

— Avisar o que, pelo amor de Deus? — Stela colocou as mãos no peito.


— Adivinha, Stela, adivinha sobre que ela vai avisar. — Ana apontou
em minha direção com um olhar de esguelha. Prendi o sorriso, sabendo que
meu romance com Stela seria debatido por elas.

— Vocês não podem sair contando minha vida pessoal assim, Ana.

— Fica tranquila, cunhada — Ana cochichou no ombro dela. — Quem


vai contar os detalhes para a gente é você.
Eu fiquei na minha, fingindo que não estava escutando o papo das duas.

— Como as crianças estão reagindo à ausência de Miguel? — Andrey


perguntou a Stela quando ela sentou à mesa com a gente. Ele serviu café na
xícara e passou a garrafa para Ana.

— Bem. — Stela abaixou os ombros. — Ele ligou ontem e mentiu para


eles dizendo que estava viajando. — Ela olhou para mim e depois, meio
desconfortável, colocou mechas de cabelos atrás das orelhas. — Na verdade,
eles não tinham tanto tempo com o pai, principalmente Raquel, que faz aulas
de balé. Miguel passava o dia na empresa, e quando voltava, estava cansado
demais.
— É sobre isso que eu falo com Andrey — Ana acrescentou. — Eu
sempre peço a ele para sacrificar um tempo na empresa para dar atenção a
Alice. Ela está crescendo, e essa fase precisa muito da presença dos pais.

— Eu chego em casa e ainda tenho muita disposição para minha filha,


meu cachorrinho e minha sapateira preferida. — Deu um beijinho em Ana,
fazendo-a rir.
— E o que vieram fazer aqui tão cedo? — indaguei.

— Por que a pergunta? — Andrey me enfrentou com o olhar. —


Atrapalhamos algo?

— Claramente, sim — concordei, fazendo Stela enrubescer.


— Uau! — Ana cantarolou rindo.

Antes de criar caso, Stela adiantou-se:

— Eles vieram me buscar para eu ir ao hospital ver o pai.


— Ele teve um surto nessa madrugada — Andrey contou. — Estava
desesperado querendo ver Stela.

— Ele já consegue falar? — perguntei.

— Sim. Nessa noite ele conseguiu falar, ainda gaguejando, mas


conseguiu. Em breve começará as sessões de fonoaudiologia.
— Seu João é osso duro. Ele vai sair dessa — Ana falou, e Andrey
concordou, balançando a cabeça.

Stela subiu para trocar de roupa, e eu logo subi atrás. Recostei na porta
do closet, assistindo-a se vestir.
— Quer que eu vá com você?

— Obrigada, não precisa.

— Parece insegura. — Aproximei-me dela e a virei de costas, para que


eu pudesse fechar o zíper do vestido.

— Eu estou pensando que meu pai pode piorar com minha presença.
Ontem ele ficou muito emocionado quando me viu. Ele sabe de tudo que
Miguel fez...

Eu me preocupava um pouco com o fato de ela ficar ansiosa nessas


ocasiões. Eu presenciei crises de pânico de Stela, e meu coração ficava
apertado ao pensar que não estaria lá se ela passasse mal.
— Tente levá-lo para outro assunto. Vocês terão muito tempo para
debater sobre isso quando ele estiver melhor. Apenas diga a ele que está tudo
bem e que já recuperou as ações.

Ela assentiu, mas não disse nada, ficou me olhando.

— Tem algo no meu rosto? — Sorri, e ela riu também.


— Não é nada. — Afastou-se, indo calçar os sapatos. Ela ficava muito
elegante e sexy com saltos. Gostei da escolha do vestido, que ressaltava seu
corpo.

— Vai para casa? — perguntou.

— Vou passar lá para me vestir adequadamente e ir para o escritório.


Quer que eu volte?
— Não vou te forçar a nada. — Passou um pouco de hidratante nos
braços e nas pernas.

— Acho melhor você mostrar um pouco mais de interesse. — Eu a


peguei por trás, forçando sua bunda contra minha pélvis. — O cara aqui é
muito disputado. — Afastei os cabelos e beijei o pescoço.

— Pode até ser, mas só tem olhos para mim. — Virou-se, deu um beijo
em meus lábios e se afastou. — Pode ir, se eu lembrar, te ligo. — Fez uma
cara de esnobe, escolheu uma bolsa e foi para o quarto.
Só me restou sorrir, cada vez mais apaixonado.

***

STELA

Cheguei ao hospital com Andrey, e a tensão me tomou. Eu não podia


acreditar na força que Ulrich me passava. Quando ele estava por perto, eu me
sentia segura e amparada, porém a ansiedade me tomou, como se eu não
pudesse enfrentar aquilo sozinha. Engoli em seco.

Soprei profundamente e limpei minhas mãos suadas no vestido. Andrey


foi falar com a atendente, avisar que precisávamos ver o nosso pai. Cada um
de nós recebeu um crachá de visitante antes de entrarmos.
— Está tudo bem? — Andrey perguntou.

— Ahn... sim. — assenti, sorrindo sem graça.

— Esse caso com Ulrich... Está tudo bem para você?


— Eu estou bem com ele. Você sabe que Ulrich nunca faria mal a mim.
Ele anuiu concordando e não comentou mais sobre o assunto.

Chegamos na ala onde nosso pai estava e fomos informados que


estavam medicando-o e que em minutos poderíamos entrar. Sentei-me ao
lado de Andrey na sala de espera, minhas mãos geladas, e o coração
acelerado de uma maneira angustiante. Eu estava quase em pânico.
Respire, Stela. Não vai ter uma crise aqui.

O celular apitou na minha bolsa, abri e o peguei. Uma mensagem de


Capadócia. Respirei fundo e toquei em ler. Para meu horror, Ulrich tinha
mandado uma imagem em que apareciam pernas abertas mostrando uma
vagina com pelos.

Mas que merda?

EU: Que porcaria é essa? — digitei rapidamente.

ULRICH: Das melhores, não acha?

EU: Que merda é essa, Ulrich? Você é nojento.

ULRICH: Está nervosa?

EU: Você conseguiu me deixar muito puta da vida. Vá mandar essas


merdas para suas amiguinhas.
Terminei de enviar, escrevi outra imediatamente e mandei:

EU: Por acaso você tirou isso pessoalmente?

ULRICH: Foi, sim.


Emoji de carinha safada.

Que idiota.

EU: Estou no hospital, morta de ansiedade, prestes a surtar porque vou


ver meu pai e é isso que você faz?

ULRICH: Eu supus que estava mesmo ansiosa.

Mandou outra foto, e dessa vez era o braço dele flexionado.

ULRICH: Era só meu sovaco. Eu queria te distrair.

Fiquei sem reação, boquiaberta. E foi certeiro. Eu não estava mais em


pânico. A mensagem tinha me distraído. Sacudindo a cabeça, sem graça, por
ter caído na pegadinha, acabei sorrindo, aliviada e admirada com a
preocupação dele comigo.
ULRICH: Está tudo bem, agora?

EU: Meu coração quase saiu na boca de tanta raiva de você.

ULRICH: Depois você desconta essa fúria em mim. Pode me xingar de


tudo que é nome enquanto eu te como com força e carinho.

Sem me importar com Andrey do lado, eu ri e respondi:

EU: Olha essa boca. Vá trabalhar. Até mais.

De cabeça erguida, entrei para ver meu pai. Ele olhava atentamente para
a porta, e quando me viu, fez cara de choro e estendeu a mão com urgência.

Rapidamente puxei uma cadeira e me sentei ao lado da cama.


— Ei, senhor Capello, está tudo bem. — Segurei na sua mão. — Eu
estou bem, estou aqui. As crianças estão bem também.

— Mi... Miguel... o... que fez?

— Pai, não pense nisso. Eu estou bem e amparada. Meus irmãos já


sabem de tudo, já conseguimos recuperar as ações da empresa e amanhã
acontecerá a audiência do divórcio. Não quero que o senhor se preocupe com
esse assunto. Tem que apenas se recuperar agora.
— P... per... perdão. — Uma lágrima desceu do seu olho. Peguei um
lenço em minha bolsa e limpei.

— Não, pai. Não tenho o que perdoar...


— Eu... eu... que obr... bri... obrigou a casar você... com... com ele.

Apertou a minha mão e não desviava o olhar do meu rosto.

— Pai, tem coisas que precisam acontecer para algo bom vir. Eu não me
arrependo de ter casado com ele. Miguel foi meu amigo durante um tempo,
ele cuidou de mim, do senhor e das crianças. Além de tudo... Meus filhos...
eu os amo, são meus tesouros, e eu não os teria se não tivesse me casado com
Miguel.
Ele fechou os olhos e chorou.

— Pai... não chore. — Segurei firme em sua mão. — Estou aqui. Vamos
falar de outra coisa.

— E... eu sabia. Eu s... sabia. Raquel... minha netinha... eu sabia. Ela é


filha do turco. Eu vi... ele chegar... de ma-dru-gada. E... ele te deixou no sofá.
Con-fron-tei, e ele disse q... que você ti... tinha ido atrás dele.

— Pai... o que está dizendo...? Quando foi isso?

— Você pa... parecia con-fu-sa no... Outro dia. E eu... não quis tocar no
assunto. Eu sabia... q... que estava grá-vi-da dele, e mesmo assim te fiz ca-sar
c... com Mi-guel. Perdão. — Voltou a chorar. Horrorizada, eu apenas segurei
sua mão.
STELA

No passado...
— Stela! Eu estou ordenando, volte aqui.

Virei-me bruscamente antes de sair na porta e olhei para meu pai.


Miguel ao lado dele esbanjando um ar de magoado, o que era incabível, já
que a gente nem tinha nada oficial. Ele veio criar fofoca sobre mim.

— Diga.
— Eu te proíbo de se encontrar com esse rapaz. — Ele se referia a
Ulrich que tinha acabado de chegar na cidade novamente depois de dois anos
fora. Desde o fatídico dia do meu aniversário quando ele sumiu. Agora, eu
me sentia mais madura, e pronta para ouvir dele qual a explicação.

— Pai... eu preciso ouvir dele...

— Stela, ele te abandonou no momento que mais precisou, naquela


noite que sua mãe...
— Por favor, não faça isso. Eu não quero me lembrar.

— Pois você devia se lembrar e colocar a cabeça no lugar. Ele vai te


machucar novamente. O Miguel está aqui do seu lado, já me ajuda na fábrica,
e você vai trair nossa confiança dessa forma?

Ulrich chegou na cidade e a primeira coisa que fez foi me procurar. Eu


levei um baita espanto ao vê-lo na porta da escola me esperando e minha
reação foi afastá-lo e não querer ouvir. Agora, um impulso misterioso vindo
de dentro me convenceu a procurá-lo. Eu nunca saberia a verdade se não o
confrontasse.

— O Ulrich não é uma má pessoa, pai. Meus irmãos confiam nele...


— Vai pegar esses quatro fuleiros como exemplo de conduta? O Thadeo
está doido de pedra enfiado naquele fim de mundo, ele tem amizades com
pessoas duvidosas, você é mais que isso minha filha, não pode ir na onda de
quatro marmanjos.

Meu pai caminhou até mim e segurou nos meus ombros. Com um olhar
dócil e gentil, foi cirúrgico tocando em um ponto que me fazia tremer:

— Eu estou lutando para que minha única filha seja melhor do que a
mãe dela. Você será uma mulher da sociedade, de boa moral e bons
costumes.
— Eu não quero ter o futuro da mamãe, e eu prometo que vou lutar
contra isso. Mas hoje eu não vou te obedecer. Eu vou ver o Ulrich. — Olhei
uma última vez para Miguel, afastei, abri a porta e corri para fora da mansão.
E meu pai não tentou me segurar.

Eu sabia que Ulrich estava ficando na vinícola com Thadeo. Além de


ser longe, era um lugar que gerava gatilhos em mim. Por ele, eu ia enfrentar.

Andrey e Fernando já tinham carro, que meu pai deu quando cada um
passou no vestibular. Benjamin ganhou uma moto em seu último aniversário
e eu tinha minha bicicleta de cestinha rosa.
Meu pai jamais me daria uma moto, e disse que eu ainda era menor de
idade para ter um carro. Eu não me preocupava com essas coisas, até esse
momento em que desejei ter algo mais veloz para chegar ao meu destino.

Pedalei bravamente por quatro quilômetros depois da cidade e cheguei a


vinícola onde meus pesadelos moravam. Deixei a bicicleta recostada no muro
e olhei o maravilhoso terreno onde um dia fomos felizes. Puxei o ar e soprei
várias vezes.

— Thadeo! — Gritei batendo palmas. — Sou eu, Stela! — Nem sinal de


ninguém. Gritei mais alto, várias vezes, até que alguém espiou lá na porta da
casa. Era Ulrich. Acenei discretamente e ele praticamente correu, saindo da
casa e vindo ao meu encontro.

Meu Deus, ele estava enorme. Ele já era alto, mas agora estava mais
largo, tinha músculos e uma barba. Os cabelos grandes - quase no pescoço -
balançando ao vento enquanto corria.

Ele tirou uma chave do bolso e abriu o cadeado do portão. Ficou parado
ofegante, me olhando, segurando o portão.

— Oi...
— O Thadeo... está lá... tentando reviver a plantação de uvas. — Falou
nervosamente.

Dei uma risada tímida.

— Ele não vai desistir.

— É, não vai. Entra. — Abriu o portão indicando para eu passar.

— Eu não posso... quer dizer, eu não quero chegar muito perto.

— Ah, claro. Desculpe meu insensibilidade. — Ele saiu do portão e


ficou a uma distância de dois passos de mim. Abrimos a boca juntos para
falar algo mas desistimos. Era estranho, depois de tanto tempo...
— Então... você voltou. — Falei.

— Estou ainda desorientado... — jogou os cabelos para cima — Estou


tentando reerguer vida minha na cidade. Thadeo me deu abrigo.

— E... por que foi embora? No dia que deveria ser o mais importante...

— Eu vou te contar e saiba que sofri cada dia que fui impedido de
voltar.

Ulrich me contou cada detalhe obsceno da loucura de seu pai. Como ele
foi arrastado para fora do país sem que pudesse ao menos me avisar. Ele foi
silenciado e levado contra a própria vontade.

Eu o abracei tão apertado e a sensação foi como se eu tivesse


encontrado um pedaço perdido de mim. Me vi feliz e determinada, agora eu
tinha algo bom em minha vida antes tão rotineira.
— Você vai ficar comigo? — Ele sussurrou enquanto me aninhava em
seus braços em frente a vinícola. E eu disse sim. Sim, era o que eu queria.

Eu ia conversar com Miguel. Estávamos começando um


relacionamento, nada sério. A gente não podia se enganar. Eu amava outro
rapaz, e devia deixar meu amigo livre para ser feliz também.

Mas naquele mesmo dia, meu mundo desabou.

Eu estava em meu quarto fazendo mil planos para um futuro novo que já
podia ver desabrochando no horizonte. Então vieram me avisar que havia
alguém querendo falar comigo. Interessada, saí correndo do quarto achando
que poderia ser Ulrich, mas fui avisada de que era uma mulher.

Ao chegar ao portão da mansão, deparei-me com alguém que nunca


tinha conhecido na vida. Era uma mulher muito bem vestida, usava terninho
vinho, saltos e um lenço ou véu envolvendo os cabelos. O batom vinho,
assim como a roupa, marcava uma expressão madura e quase maliciosa.

— Oi. — Acenei.
— Stela?

— Sim. — Meu coração acelerou. Ela tinha sotaque. Parecido com o de


Ulrich. Uma outra jovem, vestida de maneira mais simples, que estava ao
lado dela, deu um passo a frente. Então a mulher se apresentou como Samia.
E percebi que a outra jovem era uma intérprete.
Ela falou em outra língua, turca certamente e a intérprete traduziu:

— Ela é a esposa de Ulrich e veio aqui te pedir para não separar uma
família.

— O quê? Como assim, esposa?


Ela se deliciava em falar, mesmo que fosse um idioma que eu não
compreendia. Olhei para a intérprete.

— Ela perguntou se ele não te contou? Que Ulrich se casou com ela na
Turquia e agora, veio para o Brasil atrás de você.

E ainda continuou:
— Ela está grávida e será o fim dela e do filho se ficarem sozinhos na
Turquia. A vida dela será um inferno sendo mãe solteira. Ela só veio te
implorar para não separar o pai do filho dela.

Quando a mulher foi embora, eu estava petrificada na porta da mansão.


Eu acho que outra crise estava a caminho. Senti medo e o terror me engolfar
além do desespero.

Ela estava mentindo, claro. Ulrich jamais me enganaria.


Tive um impulso de agir, voltei correndo para dentro de casa, entrei no
escritório do meu pai e procurei as chaves de algum dos carros dele. Em um
suporte, encontrei as chaves. Peguei uma, saí correndo, abri a garagem e
destravei o alarme na chave para saber de qual carro era. Quando o carro
apitou, corri até ele, e entrei.

Eu tive duas ou três aulas de direção com Fernando; não dirigia ainda
com perfeição, mas dava para quebrar o galho. Liguei o carro e saí da
garagem com toda a velocidade, atravessei o jardim e ganhei a rua.
Não sei que força me impulsionou a dirigir por quatro quilômetros e
chegar viva no meu destino. Além de tremer horrores, minha visão estava
turva, e eu sentia como se fosse apagar a qualquer momento. Parei o carro de
uma forma totalmente amadora, quase batendo no portão da vinícola, e desci
correndo.

— Thadeo! — Gritei, batendo palmas e sacudindo a grade. Eu gritei


tanto que minha voz falhava e então vi Ulrich vindo correndo. Como da outra
vez.

— Stela, o que houve? — Agitado, abriu o cadeado do portão. — Você


estava chorando?
— Ulrich — segurei na camisa dele. — Eu só vim porque precisava
saber. Você tem que me prometer que vai ser sincero. Eu confio em você e
sei que nunca vai mentir para mim.

— Ei, acalme-se, respira. O que está falando? Claro que sempre vou te
contar a verdade...

— Samia. Quem é Samia?


Eu vi que tudo era verdade quando vislumbrei seus olhos aterrorizados.
Ulrich ficou sem fala e eu quis bater nele de tanta raiva. Não tinha
confirmação maior que aquela. Os olhos são janelas da alma, e eu via a alma
aflita de Ulrich.
— Quem falou para você sobre ela? — Ele sussurrou, quase sem voz.

— Você... se casou? — Insisti.

— Stela, quem te contou?

— Você se casou, ou não? Berrei, exaltada, batendo no peito dele — Me


responda! Você me contou uma história dramática que me fez sentir culpada
e ficar com pena, quando na verdade estava lá se casando com outra?

— Meu amor... escuta-me... eu vou te explicar.

— Casou-se, ou não?

— Sim, eu me casei com ela. — Gritou. O rosto pálido e os olhos


apavorados — Mas...

Girei minha mão com toda força e acertei um tapa no rosto dele.
— Eu jamais vou confiar em alguém que abandona a esposa e o
próprio... o próprio filho. — Gaguejei entre lágrimas. — Você deveria tomar
vergonha na cara, ser homem e assumir suas responsabilidades.

— Stela, não...! Isso está completamente errado. Não foi isso que
aconteceu.

— Ei, ei. O que está acontecendo aqui? — Thadeo chegou bem na hora.
Tanto Ulrich como eu o ignoramos.
— Você me feriu de novo, Ulrich. — A tontura intensificou, andei até
Thadeo e segurei nele.

— Tutkum. Eu vou te explicar.

— Ela está passando mal. O que você fez, cara? — Thadeo questionou.
— Por Alá! Thadeo eu não queria isso... eu não queria fazer mal a ela.
Eu parecia afogando em um mar de lembranças. A respiração acelerada
junto com o coração. Olhei para a casa da vinícola e fiquei sem ar. De novo a
sensação de estar sendo sufocada com as mãos daquele homem. Então minha
mente simplesmente desligou.
25

STELA

Fui embora praticamente catatônica. depois do encontro com meu pai.


Andrey me levou para casa, onde Ana tinha ficado com as crianças. Eu não
conseguia dizer um “a”. Era a confirmação da dúvida que sempre tive. Na
minha cabeça, não entrava a hipótese de Raquel ser filha de outro homem,
porque eu não lembrava de um dia sequer que tivesse dormido com alguém
diferente Miguel. Eu passei esses anos afirmando para mim mesma que eu
tinha feito as contas erradas e que Miguel era sim pai dela.

Era mais fácil dessa maneira, acreditar nisso a imaginar algo que eu não
conseguia respostas.

E a ironia é que por todo esse tempo meu pai tinha a resposta. Ele sabia
que eu tive uma noite com Ulrich. Ele me viu chorando desesperada, sem
entender o que acontecia, e não me disse nada.

Eu achava, e tinha fé, que o sofrimento estaria findado com o divórcio.


Enfim tudo seria posto nos seus lugares, parecia promissor esse novo cenário
em que Ulrich e eu estaríamos juntos. Eu me sentia confiante. Porém, agora,
eu previa muito mais sofrimento vindo em nossa direção.

Quem sairia mais ferido disso? Ulrich, que não teve a oportunidade de
ser pai e de estar com a própria filha em seus momentos importantes? Ou
Raquel, que é adolescente e tem Miguel como pai?

Eu não sabia o que pensar. Eu não sabia a quem recorrer.


— Stela, tudo bem? — Ana perguntou assim que entrei em casa. De
modo genérico, sorri para ela e apertei as bochechas de Alice, que brincava
no chão. Ela estava enorme, acabara de completar 3 anos.

— Oi, bebezinho da tia. — Fiquei ereta e encarei Ana. Tentei ocultar a


expressão de horror que havia me tomado.

— Ah... sim. Tudo bem. As crianças deram trabalho?


— Acordaram agora. Estão na cozinha tomando café.

— Obrigada por ter ficado com eles. — Observei Alice levantar e correr
em direção a Andrey assim que ele entrou.

— Está na hora de ir embora, gorduchinha do papai — ele avisou. De


repente, veio a lembrança do que Andrey passou, desesperado por mais de
um ano quando Ana foi embora. Ele sabia que tinha um filho e sofria por não
saber onde encontrar. Eu precisava desabafar com alguém.

— Que dia mesmo é o almoço na fazenda? — Toquei no braço de Ana,


fazendo-a me olhar.

— Maria Clara disse que será amanhã, para comemorar seu divórcio.

— Ótimo. Vou ver o que as duas bençãos estão aprontando na cozinha.


— Estamos indo, Stela. — Ana falou, pegou a bolsa e colocou no
ombro. — Passe no ateliê depois para ver a nova coleção.

— Passarei. — Fui com eles até a porta, e assim que saíram, tirei meus
saltos, deixando ali mesmo na sala, e caminhei para a cozinha. Espiei Raquel
assistindo a algo no celular e Nathan ao lado de Maria, assistindo-a fazer algo
na sanduicheira.

Eu tinha que contar para Ulrich. Qual seria a reação dele? Certamente
ficaria abalado e zangado, e eu poderia perdê-lo pela segunda vez. Mas
precisava falar. E ele precisava me explicar o que aconteceu naquela noite e
porque eu não me lembrava.
— Obrigado, Maria. — Nathan recebeu o misto quente em um prato das
mãos dela.

— Come tudo, está muito magrinho.

Dei as costas e fui em direção à escada. Passei direto pelo meu quarto,
virei o corredor e, no último quarto, o mais afastado, entrei. Suspirei ao ver a
cama desarrumada, onde passei a noite com Ulrich.
Mesmo triste e abalada, sorri. Eu me sentia o próprio Ícaro, que voou
alto demais, chegando próximo ao sol, e acabou queimando as asas e caindo.

Desolada, caminhei para a cama e me sentei.

Eu abri a porta para Ulrich voltar para minha vida. E tinha alcançado
emoções e prazeres tão altos, que me sentia maravilhosamente bem, como
jamais me senti. Segura e completa, ao lado dele. E agora, eu apenas caía.
E ele não estaria lá para me amparar.

Devagar, me deitei na cama, puxei o travesseiro que ele dormiu e o


abracei. Eu não ia cair dessa vez. Eu enfrentaria, mesmo que meus pés
falhassem.

***
O dia passou arrastado e denso. Parecia tão pesado como uma bigorna, e
as palavras do meu pai ricocheteando em minha mente, só faziam aumentar a
tensão.
Eu queria me distrair, e só havia, no momento, duas pessoas capazes de
fazer isso: meus filhos. Falei com Maria que não precisava fazer almoço e os
levei para uma voltinha no shopping.

Ficamos um bom tempo em lojas experimentando roupas. Quando


ficavam boas no corpo deles, não gostavam. Na verdade, os dois nunca
tinham gostos compatíveis com os meus, e isso era um saco. Eu me
apaixonava pelas peças, e eles esnobavam minhas escolhas.

Foi ótimo passar um tempo com eles. E o melhor, fiquei distraída, sem
pensar no caminhão de problemas que me aguardava.
O dia seguinte seria um importante. Seria o dia em que me livraria de
uma vez por todas de um casamento que começou a pesar muito no último
ano. Eu decidi que iria enfrentar uma coisa de cada vez.

Primeiro o divórcio, depois sentar e conversar com Ulrich, e só depois


contarei para Raquel. Será tudo nessa ordem. Eu vou me preparar
emocionalmente para cada etapa.

— Acabaram de comer, não vão entrar na piscina — gritei quando os


dois entraram correndo na mansão. Ser mãe era cansativo, todavia, a coisa
mais satisfatória que existia. Desabei no sofá, imaginando o que seria da
minha vida dali a uma hora, um dia, uma semana.

***
À noite, deixei as crianças com Benjamin e não tentei omitir para os
dois para onde eu estava indo.
— Mais tarde eu passo para buscar vocês. Eu preciso conversar com
Ulrich, vou na casa dele.

Na verdade, eu queria apenas vê-lo e queria conhecer o local em que


morava.

Ambos apenas me olhavam com atenção e não perguntaram nada. Eu vi


nos olhos de Raquel a conclusão que ela chegou em relação a mim e Ulrich.
Não parecia torcer contra, mas ainda mantinha um pé atrás. Eu não tinha
ideia de como ela se comportaria quando soubesse de tudo.
— Obedeçam ao tio Ben. — Beijei cada um deles e fui em direção à
porta acompanhada de Benjamin.

— Aconteceu alguma coisa? — ele indagou.

— Vou te contar quando tiver certeza. Cuide deles para mim.

Dirigi solitariamente pela noite quente da cidade movimentada. Doía


pensar em todos os momentos que Ulrich foi privado de estar ao lado da
filha. Meu coração se partia quando lembrava de sua fuga para a Turquia
assim que eu dei à luz, porque eu estava seguindo em frente sem ele. Aquele
lugar ao meu lado, no dia em que dei à luz, pertencia a ele, e não a Miguel.

Cheguei ao condomínio onde ele morava. Como eu nunca tinha vindo,


precisei pegar o endereço com Benjamin, porém, ao olhar o prédio, tive um
rápido flashback, no qual eu saía dali de dentro acompanhada de Ulrich.
Coloquei a mão nos olhos e respirei fundo várias vezes. Que loucura era
essa?

Levei bons minutos para estacionar o carro, e ao entrar, pedi que o


porteiro não avisasse sobre minha presença.
Peguei o celular e enviei uma mensagem para Ulrich.

Eu: Oi, está em casa?

Esperei um pouco e ele visualizou e respondeu.

Ulrich: Estou. Me preparando para uma noite no quartinho da baixaria.

Escondi o riso, o porteiro me olhando sem entender nada.

Eu: Então, era sobre isso que eu ia te falar. Miguel está aqui, a gente
conversou.

Ulrich: O quê? Está aí fazendo o quê?

Eu: Ele veio ver as crianças... A gente conversou, Ulrich.

Ulrich: Conversou o que, por Alá, Stela?

Eu sabia que ele começou a ficar nervoso e preocupado.


Eu: Não venha. Eu fiquei com pena quando ele explicou tudo. A gente
está repensando tudo, pelas crianças...

Ulrich: Estou indo aí.

Eu: Não venha.

Ulrich: Não vou deixar que faça a mesma coisa de anos atrás. Estou
indo aí.

Guardei o celular e sorri para o porteiro.

— Por favor, deixe eu subir e fazer uma surpresa para ele.

— Senhora, eu tenho ordem do síndico de que...

— Eu sei, eu entendo. Mas eu preciso disso. Por favor.


— Tudo bem. Mas vou interfonar para ele daqui a dois minutos.

— Obrigada. — Apertei o botão do elevador, entrei e apertei o número


do andar de Ulrich. Minhas mãos suavam. Eu estava me sentindo uma
adolescente fazendo essas pegadinhas. Queria ver a cara dele.

O elevador abriu, caminhei pelo corredor e parei em frente a porta.


Respirei fundo e toquei na campainha. Não demorou muito para Ulrich abrir.
— Surpresa! — gritei.

Seus olhos saltaram e até ficou meio pálido.

— Ah, seu... pilantra. — Ulrich me puxou para um abraço apertado. —


Eu estava em tempo de sofrer um ataque. — Beijou várias vezes meus
cabelos. Ele estava fresco e cheiroso, tinha acabado de tomar banho. Levantei
o rosto e o olhei.

— Vim te visitar.

— Precisava ferrar com meu coração? Eu estava a ligar para uma


colega ser meu advogado, porque eu ia matar a infeliz do Miguel. — O
sotaque dele acentuava quando ficava nervoso. Segurou meu rosto e me
beijou de uma maneira urgente, mas terna.
Eu suspirei ao me afogar da doçura de seus lábios.

— Calma, foi só uma pegadinha. Eu fiquei com saudade. — Voltei a


abraçá-lo, pressionando meu rosto em seu peito.

— Isso é bom de ouvir.


— Trouxe para você. — Entreguei a ele a sacola da livraria. — Não é
nada de mais. É só um guia cultural do Brasil. — Observei Ulrich abrir a
sacola e pegar o livro.

— Uau. Obrigado. Um presente de Stela Capello. Estou admirado por


ter se lembrado de mim. — Em seguida me beijou novamente, agora em
agradecimento. Não nos desgrudamos por longos segundos, saboreando o
beijo de língua que me fazia tremer. Ulrich beijava muito bem, fazia tudo
muito bem.

— Nossa. — Com a mão no peito, o afastei. — Se um dia te critiquei,


não lembro.
Ele gargalhou, deixou o livro e a sacola no sofá e voltou-se para mim.

— Bem-vinda ao meu humilde lar.

Olhei a ampla sala de estar. Eu nunca tinha vindo aqui. Era um


apartamento grande e bem planejado. Tinha algumas coisas que lembravam a
terra natal de Ulrich. Encantada, admirei cada pequeno detalhe.

— Muito bonita. Gostei.

— Não é uma mansão Capello, mas garanto que é confortável.

— Você não sabe, mas eu não sou muito fã daquela casa. Estou lá só
por causa do papai. — Caminhei para a estante e vi as fotos. Tinha uma foto
nossa, do dia do meu aniversário. Outra que retratava um momento de sua
formatura e meus quatro irmãos em sua companhia. Eles eram a família de
Ulrich aqui no Brasil, e eu sentia muito por ter passado anos odiando-o.

Ainda pesa no meu coração quando lembro o que ele fez no passado,
mas agora consigo encarar com maturidade.

— Está é uma sala de jantar a qual eu disse para a designer que não
queria e mesmo assim ela fez. Eu uso como escritório, gosto de estudar os
processos aqui.

— É bonita. Caso um dia tenha uma família...

— Está jogando indireta, Stela? Eu já tenho uma família.

— Já? — Olhei-o em espanto.


— Sim. Adotei uma. Seguindo nesse corredor, tem a cozinha, e ali, três
quartos e o banheiro social. Minha suíte, um quarto, que é o escritório, e o
outro é bagunça. Ele abriu o quarto da bagunça e tinha uma bicicleta, uma
esteira ergométrica, um aparelho de musculação, alguns livros empilhados,
malas e bolsas de viagem.

— A mala da nossa viagem ainda está ali — apontou. — Nem desfiz


ainda.
— Não julgo. Desfazer mala é a pior coisa.

— E aqui, o meu quarto. — Abriu a porta e me deixou entrar.

Espaçoso e bem chamativo, era o lugar da casa que mais lembrava a


cultura turca. Havia uma parede cor de tabaco com um desenho dourado que
parecia uma flor mística. A cama era muito grande, com almofadas em cores
marrom e vinho, que combinavam com as luminárias e o tapete geométrico.
E, para minha surpresa, atrás da cama, uma paisagem pintada, um céu claro,
cheio de nuvens com balões flutuando.
— Que lindo. — Apontei para a pintura.

— O céu da Capadócia. Adivinha quem fez?

— Ben?
— Exato.

Só então eu senti muito por nunca ter feito parte da vida dele. Enquanto
isso meus irmãos estiveram presentes em cada momento.

— Venha, vou preparar algo para a gente comer. Vai dormir aqui?
— Não. Eu fiquei de pegar as crianças no Benjamin.

— Mas vai ao menos experimentar minha cama, não é? — Eu sorri e


assenti. Sem que ele esperasse, avancei e o abracei apertado. Pego
desprevenido, Ulrich envolveu meu corpo com seus braços.

— Ei, está tudo bem?


— Sim. Na verdade, está muito bem. — Olhei nos olhos dele. — A
gente podia não se afastar novamente.

— Que conversa louca. É claro que não vamos.


Eu não ia fazê-lo me prometer nada. Um pressentimento forte deixava
meu coração pequenininho. Eu só queria aproveitar nossos últimos momentos
juntos.
26

MIGUEL

Anos antes

— Você tem muita sorte, filho. Nem se acertasse na loteria ganharia


tanto. — Meu pai mexeu na minha gravata. Eu estava suando muito, era o dia
do meu casamento, e de repente me senti inseguro.

— Eu acho que a garota está grávida — minha mãe falou, olhando o


cabelo impecável em frente ao espelho. Senti o impacto de suas palavras e
gelei. — E isso é muito melhor. Você sendo pai de um herdeiro Capello,
estará feito para o resto da vida.

— Eu não sei, mãe. — Soprei efusivamente e me sentei em uma


poltrona. Os quatro irmãos de Stela me amedrontavam, eles tinham acabado
de sair daqui com uma lista de deveres que eu deveria seguir. E Thadeo foi
enfático: eu teria o nariz quebrado caso a fizesse derramar uma lágrima.
Eu jamais faria algo ruim com Stela, porque eu gostava dela de verdade.
Era minha amiga, tínhamos uma sintonia boa. Mas não era sintonia de casal.
Eu sempre quis tomá-la de Ulrich, mesmo que por apenas orgulho ferido. Eu
ainda estava abalado e apaixonado por Rômulo. Porém sabia que Stela
poderia me ajudar, na verdade ela prometeu me ajudar.

Um ajudaria ao outro. Ela esqueceria e superaria Ulrich, e eu superaria e


esqueceria Rômulo.
— Eu não sei se estou pronto para ser marido e pai — sussurrei, com as
mãos contra o rosto.

— Não tem segredo. — Meu pai bateu em meu ombro. — Filho de rico
quem cria é babá, e depois enfia as crianças em uma escola interna. Veja o
futuro que te aguarda, meu filho, um membro de uma das famílias mais
poderosas desse estado.

— Falando em família... — minha mãe sussurrou e apontou para a


janela. — Seu irmão chegou, querido.
— Ah, que merda. Vou pedir para o segurança retirá-lo daqui.

Eu estava posicionado no altar, ao lado dos irmãos de Stela nem um


pouco satisfeitos com esse casamento. Mais cedo tinha visto Thadeo gritar
com seu João no escritório, pressionando o pai e querendo saber se ele estava
forçando Stela a se casar. Thadeo era perspicaz e muito amigo de Ulrich. Ele
quase não deixou barato.
Stela despontou, vestida de noiva e apoiada no braço de seu João. Seu
olhar transmitia insegurança. Eu prometi ali, silenciosamente, que faria o
possível para ser o marido perfeito. Nós dois podíamos fazer isso, mesmo
com o coração entregue a outras pessoas.

***
Dias atuais

Um carro parou em frente à barraquinha em que eu estava. Não deu


tempo nem de pensar: um homem virou o carrinho de cachorro quente,
derramando molho em mim, e outro me empurrou contra a parede e segurou
meu pescoço.

— A porra dos juros só aumenta. Quando vai nos pagar?


Eles tinham me encontrado.

— Cara... Olha minha situação. Eu não tenho mais nada. Vocês já


pegaram meu carro, a caso do Rômulo...

Sem um pingo de pena, acertou um soco em meu rosto. Não me dando


tempo de pensar em reagir, outro soco, dessa vez no estômago, me obrigando
a curvar de dor. E para completar, com toda a força, chutou meu joelho.
Despenquei no chão.

— Essa é sua última chance ou vamos atrás dos seus filhos. Fica o
aviso.

— Eu vou assinar os papéis do divórcio amanhã, o que eu ganhar, passo


para o chefe de vocês.
O sujeito deu um chute com a bota de estilo militar e eu caí tonto no
chão. Em seguida pisou no meu rosto.

— Vamos te procurar amanhã às seis da tarde. Se não tiver parte do


dinheiro, tomaremos providências.

Saíram, entraram no carro preto e foram embora. Eu fiquei no chão,


todo cheio de molho e com sangue escorrendo no nariz. Com fúria, limpei
uma lágrima que ameaçou rolar.

Rômulo tinha acabado comigo. Mas o maior culpado tinha sido eu por
ter dado brecha. Recostado na parede, tampei o rosto, envergonhado com
minha situação.
— Ei, Miguel. O que aconteceu? O que houve com meu carrinho? —
Era a voz do meu tio, se aproximando.

— Nada, não, tio. — Levantei e comecei a catar as coisas.

— Mas que bosta. Perdemos um dia de venda. Quem fez isso? Está
sangrando.
— Problema meu, tio. Vou resolver.

— Por que você não vai atrás da sua ex-mulher e cobra uma ajuda?

Enfim, parei e olhei para ele. Eu tinha pensado nisso. Tinha pensando
em ir atrás de Ulrich e jogar na cara dele que as crianças podiam ser filhos
dele. Eu podia tentar extorquir Stela.
Mas decidi não ser mais esse cara que faz tudo por dinheiro. Pelo
carinho que tenho por Nathan e Raquel, por tudo que seu João fez por mim,
por Stela ter guardado meu segredo todos esses anos e confiado em mim, eu
ia segurar as pontas sozinho. Enfim tinha chegado o momento de ela ter a
liberdade que sempre precisou. E talvez eu também conseguisse a minha.

Nesse instante, meu celular tocou. A tela toda quebrada, era Nathan.
Senti o coração se partir por ter que fazer aquilo: eu simplesmente desliguei o
celular.

Levantei o carrinho, espanei a sujeira da minha roupa, e mancando,


caminhei ao lado do meu tio enquanto empurrava o carrinho.
27

ULRICH

— Toma, prova um pouco. — Peguei um pouco de molho na colher,


levando até a boca de Stela, que estava ao meu lado no fogão. Comeu
franzindo o cenho e imediatamente assentiu.

— Nossa. Muito bom. Tem azeitonas?


— Sim. Turcos adoram azeitonas na comida. Se um dia for lá, esteja
preparada.

— E eu irei?

— Claro que sim. — Dei um selinho em seus lábios e fui pegar


pimenta. — Digamos que o tempero mediterrâneo influencia um pouco a
comida turca. — Mexi o molho na panela, pinguei um pouco na palma da
mão, para experimentar. Perfeito.
— Eu lembro que você falava do ayran... O que era mesmo?

— Uma das bebidas mais conhecidas na Turquia. Eu não fico sem. É


feita com iogurte, água e sal.

— Não parece bom. — Stela enrugou a testa, denotando o repúdio à


bebida.
— É logico que eu não ia deixar você sair daqui sem provar. —
Desliguei a panela do molho, e com cuidado levei para a bancada, onde
estava a massa retangular já aberta. Era o que eu sabia fazer bem. Lahmacun
é como uma pizza, porém retangular. Stela ficou ao meu lado observando.
Espalhei o molho de carne na massa, e por cima espalhei cebola em rodelas.
Abri o forno já aquecido e coloquei o tabuleiro.

— Agora, a bebida.

— Não sei se quero isso.

— Ninguém sai da casa de um turco sem beber um pouco de ayran. —


Peguei dois potes de iogurte na geladeira. Peguei o liquidificador, e Stela
veio para meu lado, a fim de observar.

— Por acaso você fazia isso para todas as outras que vinham aqui? —
indagou.
— Stela, Stela, para de criar encrenca.

— Só estou perguntando. — Deu de ombros.

— Algo que não diz respeito a nós dois.

Ela se calou enquanto eu batia o iogurte no liquidificador. Joguei uma


pitada de sal e por fim a água, não muita, só para diluir. Peguei dois copos,
coloquei cubos de gelo e servi a bebida. Empurrei o copo para ela.

— Já está pronto?

— Coisa rápida — Beba. Tem que ser logo, pois o gostoso é a espuma.
Ela cheirou e depois bebeu um gole. Meu copo já estava na metade.

— Hum... bom. É meio salgadinho, mas fresco.

— Isso revigora o corpo em uma manhã preguiçosa de uma maneira que


você nem imagina.

— Já que não quer me falar sobre as outras...

— O que você quer saber sobre elas? Está morta de ciúmes, não é?

— Lógico que não... — Desviou o olhar, bebendo mais um pouco. Ela


sempre tentava mascarar esse sentimento. Para Stela, ainda era cedo assumir
que sentia ciúmes de mim. Eu gostava disso.

— Mas sabe quem é a culpada? — indaguei e já meti a resposta: —


Você.
— Culpada de quê?

— Estava lá adorando um pamonha enquanto eu estava disponível no


mercado. Gostoso, bem sucedido, de bem com a vida, pauzão...

— Está falando de você mesmo?


— Praticamente me empurrou nos braços da mulherada.

— Chega dessa conversa. — Cruzou os braços na defensiva. — Você


sempre gostou de ser ovacionado pelas safadas. E gostava de contar
vantagem sobre isso.

Fiquei bem perto dela, levantei seu queixo e dei um rápido beijo no bico
revoltado. Eu estava rindo.
— Está rindo de quê? — Segurou o sorriso.

— Você fica muito bonitinha assim, putinha de ciúmes.

— Não estou com ciúmes.


— Gosta tanto do homem aqui, que nem consegue disfarçar. Por isso eu
vivia te provocando, eu amava ver esse biquinho. — Enfim Stela riu. Roubei
mais um beijo e afastei para olhar o forno.

Sentamo-nos ao balcão para comer. Eu tinha um vinho aberto na


geladeira, servi duas taças e empurrei uma para Stela. Ela cortou a pizza e
colocou um pedaço em cada prato.
Enquanto a gente comia, eu contava alguns costumes culinários da
minha terra. Stela ouvia com atenção, os olhos brilhantes demostrando que,
de verdade, estava gostando de imaginar tudo que eu falava.

— E sua mãe? Como ela está?

— Ela ainda more em Capadócia. O bom é que ela se casou novamente.


A morte de meu pai foi uma libertação para ela. Hoje tem um filho de seis
anos, e isso a ajudou a se manter firme.
— Ah, que bonitinho. Você tem um irmãozinho?

— Sim. — Peguei o celular, acessei as fotos e mostrei a ela. — Se


chama Zeki.

— Você os vê pouco, não é?


— Duas vezes ao ano.

— Me empresta... — Tomou o celular da minha mão. Não contestei,


mas alertei: — Não vá nos vídeos. Os seus irmãos mandam muita porcaria no
grupo.

— Deus me livre. Não quero nem imaginar o que rola em um grupo em


que meus irmãos estejam.
— A gente fofoca e manda gif de Jesus com frases: “Que seu dia seja
abençoado.”

Ela riu e foi direto no Instagram.


— O que você faz para ter quatrocentos mil seguidores?

— Strip-tease no Stories. Mas só depois da meia-noite.

— Besta. — Foi nas minhas fotos, deslizou a tela, como se procurasse


algo.

— Procurando algo? — Servi mais vinho para nós dois.

— Você não tem mais contato com ela?

Eu sabia sobre quem Stela falava. Durante todos esses anos, o nome de
Samia era algo proibido entre nós. A minha ex-esposa. Stela nem mesmo quis
saber toda a história, apenas me culpou e ponto final.

— Não. Ela é casada com outro atualmente.

Ela assentiu e pareceu aliviada.


— Me dê isso aqui. — Tomei o celular, toquei em stories e apontei a
câmera para os pratos e taças na bancada em seguida para Stela. Escrevi:
“jantarzinho amigável com Stela Capello.”

— O que está fazendo? — Tentou me impedir de postar. — Ulrich! O


povo vai especular.

Levantei o braço para ela não pegar o celular.


— Deixa especular. Você não deve nada a ninguém.

— O que você escreveu?

— Que estamos em um jantarzinho. Puta que pariu, Thadeo já


respondeu.
— O que ele falou? — Stela inclinou-se rapidamente para espiar o
celular.
“Que safadeza é essa? Não esperou Miguel nem esfriar no tumulo?”

— É isso que todo mundo vai pensar, Ulrich. Apaga.

— Não. Olha, ele está digitando.

Stela e eu ficamos calados olhando o celular. A mensagem de Thadeo


apareceu.

“Turco, olha lá o que vai aprontar. Eu arranco suas bolas”

Respondi: “Está tudo bem por aqui. Converso com você depois.”

— Thadeo age como se fosse certinho, como se não fosse o cara da


manteiga no cu.

— O quê? Que conversa é essa? Manteiga no... — Os olhos de Stela


estavam saltados.
— Você não sabe?

— Sobre o quê? — Stela ficava cada vez mais chocada, sem nem ouvir
o que eu dizia.

— Seu irmão inventou uma técnica de usar a manteiga que ele fabrica
como lubrificante no sexo... anal.

Com a mão na boca, ela começou a tossir sem parar. Dei uma batidinha
em suas costas.

— Tudo bem?

— Quem... faz isso? O Thadeo? Por que ele faz isso?


— Você ainda quer entender o que se passa na mente do Thadeo? Ele
gosta de usar a manteiga como lubrificante, por ser mais exótica e por,
segundo ele, ficar com cheiro de pão na chapa no quarto.
Horrorizada, com as duas mãos na boca, ela me encarava.

— Não fique imaginando a cena ou vai te traumatizar. Beba mais vinho


— empurrei a taça para ela.
— Gema sabe? Gema vai pirar quando souber...

— Stela, acho que você é a última a saber. Gema sabe, e pelas indiretas
que Maria Clara jogou em um almoço, acho que ela sabe também.

Stela estava de pé, me encarando como se tivesse acabado de ouvir


sobre uma invasão extraterrestre.
— Ele passa a manteiga no...

— Para de pensar nisso. — Rindo, fui até ela e esfreguei seus ombros.
Eu não parava de rir.

— Você queria fazer isso comigo?


— Não. — Ri mais ainda. — Não pense nisso.

— Já fez com outras mulheres?

— Stela, eu tenho cara de que como cu com manteiga? Eu sou


civilizado, tenho lubrificante no quarto.

— Eu estou pasma — sussurrou, com o rosto em meu peito, enquanto


eu só ria.

***

Eu estava nu, de pé, em cima de minha cama, agarrando com força a


cabeceira, dentes cerrados e os dedos dos pés dobrados. Stela, de joelhos à
minha frente, abraçou minha coxa enquanto satisfazia, segundo ela, um
desejo de anos: mamar o meu pau.

— Merda...! Eu sabia que você era gostoso para chupar. Eu sempre


imaginei. — Ofegante, tirou-o da boca para falar.
Segundo ela, quando eu a provocava, tinha muito ódio, mas com isso
vinha junto o desejo incontrolável e estranho de me chupar. Ela não sabia,
mas essa era uma das modalidades preferidas de sua outra personalidade.
Adorava o meu pau em sua boca.

Segurei meu pau e o puxei para fora de sua boca. Seus lábios estavam
avermelhados, as bochechas, rosadas, e os olhos brilhantes de tesão. Bati de
leve em sua boca, em seguida, duas batidinhas na bochecha.

— Surra de pau — sussurrei fazendo-a rir. Stela agarrou com força


minhas coxas e levantou o rosto, me olhando de baixo. A imagem era muito
excitante. Eu estava pegando fogo.
— Abre a boca. — Pedi, segurando de leve em seu queixo, e ela abriu.

Eu o coloquei lentamente dentro, indo e voltando devagar, só a cabeça,


e ela tomou da minha mão para movimentar. Eu tinha certeza de que ela sabia
inconscientemente como fazer um boquete. Stela movimentava a mão
fechada ao redor e chupava apenas a glande; chupava como se fosse uma
fruta madura e saborosa, sorvendo com os lábios e em seguida rolando a
língua em volta. Eu estava pirando. Mas não queria gozar ainda.

Quando vesti um preservativo e me afundei vagarosamente dentro dela,


senti todo o corpo enrijecer e o poder do gozo se formando. Segurei, me
controlando, e pressionei-o dentro, completamente, até a base.
Stela, como sempre, estava desesperada, ofegava e agarrava meu corpo
com urgência. Penteei seus cabelos com os dedos e beijei sua boca, sem
demora, degustando os lábios afoitos.

— Ulrich... O que está fazendo, vai logo!


— Tenha calma, sinta todo, por completo. — Abaixei o rosto, beijando
todas as partes de seu corpo quente, até chegar aos seios. Chupei um,
devagar, girei o quadril, e ela endoidou.

— Cara... Eu não aguento mais.

— Calma, Stela. — Fui para o outro seio, sorvi, fazendo pressão com os
lábios, e mexi mais um pouco o quadril. Suas duas mãos foram parar na
minha bunda e apertaram.
— Ah, merda! Ulrich...

— Está gostoso?

— Meu Jesus! Meu coração vai explodir. Se mexa, por favor.


Beijei-a e arrastei para fora, e quando voltei a bater no fundo, Stela
gemeu alto revirando os olhos, satisfeita e aliviada com a movimentação.

— Ohhhhh!! — Deu uma mordida no meu braço.

Fiz de novo adorando seu descompasso. Stela tinha uma relação de


amor e desespero pelo meu pau; ora sorrindo, ora berrando delirante.
Empurrei seus joelhos, dobrando-os, e comecei a entrar e sair em um ritmo
delicioso. A cada bombada, nós dois gemíamos juntos, suados, sintonizados.
Meus nervos saltados, o coração disparado e a sensação gostosa de me
afundar em seu interior macio e apertado. Mesmo com preservativo, a
sensação era indescritível.
Quando terminamos, ficamos deitados na cama, agarrados, como das
outras vezes. Eu, enfim, estava satisfeito em minha vida, tinha chegado ao
patamar que sempre desejei. Porque agora eu tinha comigo a mulher que
sempre amei.

— Gostou da minha cama? — perguntei, correndo os dedos por suas


costas.
— Boa demais. Queria dormir aqui.

— Terá a oportunidade.

— Na verdade — Ela se debruçou em cima do meu peito para olhar meu


rosto. — Será gostoso onde você estiver.
— Estou lisonjeado.

Stela voltou a me abraçar, deitando a cabeça em meu peito.

— Ah, Ulrich. Eu perdi tempo demais sem você. Só me abrace.


Tomamos um banho e ela foi buscar as crianças na casa do Benjamin,
enquanto eu fui direto para a mansão. Combinamos que não iria forçar minha
presença na vida dos filhos dela até que o divórcio estivesse assinado. Entrei
e a esperei no antigo quarto de Fernando.

Stela não demorou. Ela me disse que as crianças estavam com sono e já
tinham caído na cama. Mais uma vez nos esbaldamos no sexo, com direito a
gritos e risos.

Dormimos abraçados, debaixo do mesmo cobertor, e dividindo o mesmo


travesseiro.
Quando acordei, já era dia. Stela não estava ao meu lado, e mais uma
vez praguejei por ter acordado sozinho. Será que outro irmão dela estava na
casa? Peguei o celular do lado e olhei as horas. Seis e meia da manhã. Era
pouco provável que houvesse uma visita a essa hora. Sentei-me na cama e me
assustei ao ver que ela estava sentada em uma poltrona no quarto olhando
para mim.

— Stela? Estrelinha? — Logo pensei que ela poderia ter dissociado


durante a noite, assim eu estaria diante da outra personalidade. — Tudo bem?
— Eu vomitei agora pela manhã e estou com mal estar. Será que foi o
molho que me fez mal? — indagou. Era Stela. Fiquei aliviado. Nesse
momento eu não queria a presença da outra personalidade, eu tinha laços a
fortalecer com a personalidade dominante.

— Tinha páprica. Será que você é alérgica?

— Não sei. Eu estou melhor. Fiz um chá.


Afastei o edredom de cima de mim e joguei as pernas para fora da cama.
Fui até ela e toquei em sua testa. Não tinha febre, e a cor do rosto estava
normal.

— O que acha de um banho morno?

Ela apenas assentiu, sorrindo de boca fechada. Eu a fiz levantar e fomos


para o banheiro. Abri o chuveiro e entramos juntos. Coloquei sabonete
líquido na esponja e passei devagar por seu corpo. Os seios, o ventre, as
coxas. Ela, calada, apenas olhando para mim, um olhar de quase adoração.
— Tudo bem?

— Estou melhor.

Terminamos o banho, nos secamos, e Stela saiu para o quarto dela, para
se trocar. Vesti minha roupa e fui atrás. Para minha surpresa, Stela não tinha
se trocado ainda. Estava enrolada em uma toalha, sentada na cama olhando
uma foto de seu casamento.
— Stela, tudo bem?

— O que você fez, Ulrich? — Uma lágrima escorreu em sua bochecha.


— O que você fez com a gente?
— Stela...

— Você diz que a culpa foi minha, mas não consegue enxergar o que eu
passei?

— Eu consigo enxergar. — Sentei ao seu lado e tomei a foto de sua


mão. — Por isso eu fiquei feliz com sua felicidade, mesmo que fosse com
outro. Eu me coloquei em sua pele e soube como foi difícil para você
enfrentar tudo.
— Me diga... Foi verdade que seu pai te levou à força, ou inventou isso
para amenizar?

— Eu nunca menti para você. Foi verdade. Naquele dia do aniversário


seu e de Benjamin, eles me pegaram na festa quando fui atrás de Thadeo, no
momento em que ele soube da morte de sua mãe. Eu fiquei preso em um
quarto por três dias, até meu pai conseguir a ordem da embaixada para me
tirar do país.

— Meu Deus...! — ela sussurrou chocada.


— Não vamos falar disso agora, você não está passando bem...

Ela me afastou e ficou de pé. Arfou e andou um pouco com as mãos na


cabeça.

— E por que se casou? Eu estava te esperando, eu sempre tive


esperança, e aí você chegou e me enganou daquela forma. — questionou,
com aflição nos olhos.
— Stela, meu pai seguiu uma tradição antiga que forçava o irmão de um
morto a se casar com a viúva dele. Eu tinha dezessete anos, estava sob a
tutela deles. Você não sabe como foi doloroso para mim ter que ficar dois
anos lá e ainda casado com outra.

— Você ficou lá por dois anos inteiros...


— Eu tive que trabalhar, juntar dinheiro para a passagem e para minha
estadia quando chegasse aqui.

— E por que ela veio?

— Ego ferido, não sei. Ela ficou com muita raiva por eu ter pedido o
divórcio e voltado para cá. E ela chegou aqui te contando coisas que não
existiam, sobre um filho que não existia.
Stela pareceu se desarmar de suas convicções. As mesmas convicções
que ela usou em todos aqueles anos para me condenar. Nesse momento,
perdeu completamente a certeza do que pensava saber. E seu olhar na minha
direção era puro arrependimento.

— Eu nem mesmo tive nada com ela. — Fiquei de pé e caminhei até


ela. — O casamento acabou sem que eu tivesse ido para a cama com Samia.

Stela colocou as mãos na boca, perplexa.


— Tudo bem. Vamos só esquecer.

— Eu... tinha dezessete anos. Não sabia o que pensar. — Stela


sussurrou, chocada. — Ela estava determinada, tinha até uma intérprete. Me
mostrou fotos do casamento... Me mostrou um ultrassom.

— Um ultrassom?
— Sim. E me perguntou se eu era capaz de tirar um pai de um filho que
estava para nascer. Ela me disse que no país dela seria considerada uma vadia
por ter um filho sozinha e ser divorciada.

— Isso não é verdade.


— E logo depois você confirmou, da sua boca, que tinha mesmo se
casado com ela. — Stela se afastou de mim e andou pelo quarto. — E para
piorar, você disse que estava se divorciando dela e que ia ficar comigo. Eu
me senti mal, suja, me senti uma destruidora de lares. Por isso eu te odiei
todos esses anos. Eu pensava, como um homem podia ser tão baixo a ponto
de largar uma mulher grávida de um filho dele?

Agora eu entendia a extensão de tudo que havia pensado de mim.


Quando me via sair com outras, quando me via provocando-a, só conseguia
pensar nisso. Senti raiva tomar meu corpo. Muito ódio, de todas essas pessoas
que fizeram isso, que entraram no nosso caminho apenas por maldade. O pai
dela, o meu, todos tinham culpa pelas nossas dores.

— Eu não te culpo. Tudo que ela disse parecia real, e foi terrível para
você encarar, mas você me demonizou e nunca mais quis ouvir nada que
saísse da minha boca. Eu desisti de tentar explicar, apenas aceitei que a tinha
perdido.

— Nós perdemos tanto. — Mais lágrimas desceram rápidas por sua


face, e Stela escondeu o rosto nas mãos. Imediatamente fui até ela e a puxei
para meus braços. — Ulrich, eu sinto muito. Eu sinto muito por termos
perdido tudo.

— Ei, para com isso. Estamos aqui, estamos bem, nos divertindo, nos
conhecendo de novo. Eu estou feliz, Stela. A pedra no sapato é ruim, mas já
viu como é gostoso o alívio de tirá-la?

— Ulrich... eu sinto tanto por ter te ferido.


— Não. Não foi você. Eu não vou deixar que se culpe dessa forma.

Stela agarrou meu corpo como se pudesse de alguma forma tirar a dor
que sentia. Eu sabia que esse dia chegaria, em que teríamos que colocar tudo
em pratos limpos. Porém não esperava que ela fosse sentir tanto.
— Shhiu. Já passou. — Beijei sua cabeça, fazendo carinho em suas
costas. — Temos um ao outro agora. Você tem filhos lindos, eu gosto da mini
Mortícia e do mini mercenário. Teve um lado bom de você se casar com o
pamonha.

— Não. — Levantou o rosto. — Eu fui obrigada.

— O quê?
— Meu pai... Meu pai me ameaçou. Eu fui obrigada a me casar. E
depois do casamento, caí no comodismo. Eu podia ter lutado contra ele, meus
irmãos iriam me apoiar.

— Seu pai te ameaçou? O que está falando? — Limpei suas lágrimas,


encarando-a intrigado.

— Olhe para mim, me diga, houve alguma vez que fizemos sexo e que...
por qualquer motivo, eu não me lembre? Uma vez que... meu pai te flagrou
me trazendo para cá?
— Stela...

— Diga, por favor.

— S... sim. Teve. Mas eu te procurei nos dias seguintes e você agiu
como se eu estivesse louco, e hoje eu entendo o motivo e você entenderá
também.
As lágrimas voltaram a descer. Um choro sentimental e silencioso.
— Stela, o que houve? Que conversa é essa? Por que ele te obrigou?

— Eu engravidei.

Assenti, eu me lembrava de nossa suspeita de que tivesse se casado


grávida.

— Tudo bem. Seu João sempre foi conservador, tudo bem. O que
importa é o hoje. Você está bem, sua filha está grande e linda.

Stela limpou as lágrimas com determinação e me encarou.

— Ela é sua filha, Ulrich. Foi por isso que meu pai me obrigou a casar
com Miguel. E eu poderia ter te questionado, pois eu sabia que tinha dois
meses sem ver o Miguel, sabia que o filho não poderia ser dele. Raquel... é
nossa filha.
28

STELA

Pronto. O peso todo saiu de cima de mim. Ulrich iria se afastar, isso era
certeza, mas eu não aguentava mais guardar tudo isso, que me sufocava de
maneira dolorosa. Ulrich sofreu calado todos esses anos, merecia saber a
verdade.

Apertei as mãos e apenas o observei. Estava paralisado e perplexo, me


encarando. Tinha ficado pálido de repente. Ele sempre pareceu muito forte,
inabalável, mas agora vi pela primeira vez pânico em seus olhos.
— Espera... — Estendeu a mão para mim e sentou-se na cama. —
Espera... O que está falando?

Minha voz era um fio vacilante quando saiu.

— Quando eu descobri que estava grávida, fiz o exame que mostrou


quatro semanas. Era impossível ser do Miguel, já que ele estava há mais de
dois meses morando fora.
— E o que você fez?

— Meu pai... — Engoli em seco. Eu me senti apreensiva diante do olhar


assustado dele. — Meu pai... me proibiu de falar com você, de perguntar algo
a você, para tentar esclarecer. Eu queria te perguntar, porque eu tinha a
sensação de que a gente tinha ficado. Mas eu não lembrava... não tinha
certeza.

Ulrich se levantou e deu alguns passos. As mãos cruzadas na nuca.


— A Raquel... Por Alá...! — Passou as mãos pelo rosto, estava
desnorteado, e eu odiei vê-lo assim. — Não... isso não. Eu não posso
acreditar. Stela... que droga, poxa.

Optei pelo silêncio. Eu não sabia o que dizer para confortá-lo. Acho que
a ficha foi caindo aos poucos. Ulrich estava primeiramente perplexo, e agora
revoltado.

— Por que não me falou? — Veio até mim e segurou nos meus ombros.
— Por que não foi me perguntar? Eu teria contado que a gente transou, sim.
— Havia lágrimas em seus olhos. Ulrich estava cada vez mais pálido, e eu
achei que ele poderia desmaiar.
— Ulrich...

— Eu... fui embora da país no dia que você deu à luz. Porque era
doloroso para mim que você nem mesmo quisesse me escutar, por estar
seguindo a vida com outro. Stela, que porra você fez?

— Eu sei, me desculpe. Eu fui submissa ao meu pai. Eu garanto que se


eu tivesse me rebelado, meus irmãos me apoiariam. — Eu estava piorando as
coisas tentando explicar.
Ulrich limpou uma lágrima e sua expressão de decepção me feriu muito.

— Você se casou com um merda... — Sua voz estava embargada. —


Você deu minha filha para outro registrar... e chamá-lo de pai.

Coloquei a mão no peito ao sentir o peso de suas palavras.


— Ulrich, só agora meu pai contou no hospital que sabia que você teve
uma noite comigo. Eu não tinha noção, naquela época, que a gente ficou...

— Por que não foi me perguntar? — ele berrou. — Eu era tão maligno
assim que você não podia tirar uma satisfação? Estamos falando de uma vida,
Stela. Da vida de uma pessoa. — Continuou com a voz alta, apontando as
verdades. — Ela tem outra homem como pai. Ela tem outro nome no registro
de nascimento.

— Me perdoe... meu pai influenciava...

— Não. — Ulrich me interrompeu. — Ele era um escroto, mas coube a


você decidir. Estava nas suas mãos. Você não só fez isso comigo e com ela,
como me manteve distante dela. Você nunca deixou eu me aproximar das
crianças. Isso é o que mais me dói, eu nem mesmo pude ver o seu bebê, e eu
queria ter ido te visitar.

Seu desespero me fez tremer, e eu apenas aceitei, porque era verdade.


Ulrich estava em frangalhos, havia lágrimas em seu rosto.
— Eu acreditei na vida mentirosa que criei, Ulrich.

— E agora? E agora? Me responda? Como eu poderei contornar isso?


Eu perdi tudo da vida dela... Eu não pude vê-la aprender a falar, eu não a
levei na escola, não ensinei uma lição de casa, não a consolei quando chorou.
Eu perdi tudo da minha filha. Como ela e eu podemos contornar isso?

Ulrich se calou, de costas para mim, apoiado na parede. Eu pude ouvi-lo


sussurrar:
— E, por Alá, ser pai era tudo que eu queria.

— Eu sei que você é forte... E...

— Eu cansei de ser forte, Stela. — Virou-se para mim. — Eu só queria


descansar e ser feliz, porque eu não fui... durante todos esses anos.

Ele abriu a porta e saiu do quarto. Corri atrás dele.

— Ulrich, podemos conversar depois...

— Por favor, eu quero que fique longe.

— Não se afaste de mim — implorei. — Logo agora que nos


reencontramos...

— Você não pode me pedir isso. Eu quero um exame de DNA — foi


incisivo. — E para o seu bem, porque por maior raiva que eu esteja de você,
não consigo te odiar, vá até a sua médica. Passou da hora de você se
conhecer.

Eu não entendi o que ele quis dizer, apenas balancei o pescoço


concordando.

Ulrich andou pelo corredor e depois voltou até mim. Estava, novamente,
em lágrimas.
— O que sentiu quando estava se casando com ele? Ou quando estava
dando à luz? Eu não posso acreditar que seja tão fria. Você tinha a suposição
que estava tomando de mim o direito de ser um pai e não se arrependeu nem
por um segundo?

— Não sabe como foi difícil viver todos esses anos com essa dúvida. No
fim, eu preferi acreditar que errei as contas, porque era mais fácil encarar.
Não pense que eu apenas te deixei de lado. Se eu pudesse, teria me dividido
em duas, uma para te amar e outra para seguir uma vida vazia e padrão.

Ele limpou as lágrimas, meio pasmo, e assentiu.


Quando se virou, a porta abriu e Raquel saiu do quarto dela, com cara de
sono, os cabelos assanhados e o pijama de urso panda. Assustou-se ao ver
Ulrich, e olhou para mim, intrigada.

— Estão brigando?
Ulrich estava petrificado encarando-a, como se fosse a primeira vez que
a tivesse visto. Limpei minhas lágrimas e toquei nos ombros dela.

— Não é nada, querida. Eu estou emotiva, por causa do divórcio.

— O papai voltou? Vocês vão mesmo se separar?

Olhei para Ulrich. Uma sombra de tristeza e revolta tomou conta de seu
rosto.

— O Miguel não está aqui. Vou me trocar, daqui a pouco desço e a


gente conversa, ok?

— Tudo bem. — desconfiada, ela olhou mais uma vez para Ulrich —
Oi, Ulrich. — Voltou para o quarto.
— Você tem que contar para ela. — Ele me cobrou — Pois eu quero o
exame de DNA o mais rápido possível.

— Tudo bem, eu também desejo isso — assenti. Ele se virou e saiu


quase correndo em direção às escadas.

Eu estava tão tonta quando voltei para o quarto, que precisei segurar nas
paredes. Era o dia do divórcio, e Ulrich não estaria ao meu lado. De repente,
me senti arfante e confusa. Minha mente embaralhando. Abri a gaveta da
cabeceira, à procura de meus remédios, mas não os encontrei. Deitei-me na
cama e respirei fundo várias vezes. Era uma crise.
Meu Deus, é uma crise.

O quarto parecia se apagar à minha frente, assim deixei a confusão me


levar até não ver mais nada.

***

ESTRELINHA

Puta que pariu.

Pulei da cama.

Merda! Eu estava sem roupa, só de toalha. Corri para o closet e escolhi


algo menos senhora. Odiava a coleção de saias abaixo do joelho. Eu devia ir
agora atrás de Ulrich. Stela e eu entraríamos em colapso sem ele para nos
amparar.
Amarrei os cabelos em um rabo de cavalo, escolhi umas joias e estava
me maquiando quando a porta abriu.

— Mãe?

— Oi, amor, estou aqui. — Era Raquel. Ok, eu sabia dos segredos de
Stela, mas não cabia a mim contar a Ulrich sobre a dúvida que ela sempre
teve. Eu sei sobre tudo da vida dela, mas Stela não sabe de nada do que faço.
Irônico, porém favorável.
— Já são nove horas. A tia Maria Clara está aí.

— Maria Clara está aí?


— Sim. Ela acabou de chegar. Está na cozinha com Maria.

— Ótimo, já vou descer.

— Mãe... o que você ia conversar comigo?

Dei uma última pincelada de blush e me virei para ela. Raquel estava
sentada na cama me assistindo. Certo, Stela tinha mais jeito com as crianças,
porém eu não ia deixá-los desamparados.

— Meu bem — Sentei-me ao seu lado na cama. — Hoje é o dia do


divórcio. Eu e o seu... o Miguel conversamos muito, e é o melhor para a
gente. É coisa de adulto, um dia você vai entender.
— Onde ele está?

— Ele ainda está viajando. — Acenei, dando pouca importância. — Foi


visitar os pais dele lá onde Judas perdeu as botas.

— Ainda bem que a gente não foi, eu não gosto muito daquele meu avô.
— A verdade é que nenhum dos seus avôs presta, minha querida. —
Pensei no meu pai, o pai de Ulrich e até no pai do Miguel. — Mas conte para
a mamãe, você está tranquila com isso? Com o divórcio?

— Eu não sei. — Ela deu de ombros e mordeu o lábio, pensativa. — O


papai não conversava muito comigo e sempre estava no escritório
trabalhando. E eu estou de férias e não sei o que vou falar para minhas
colegas quando eu voltar. Mas eu quero que ele esteja presente na minha
festa de quinze anos.

— Daremos um jeito nisso.


— Você e o Ulrich vão namorar?

— Talvez. Ele é charmoso, rico, engraçado... — Cutuquei-a com uma


cotovelada, e ela riu.

— Ele comprou um antivírus para meu computador.

— Está vendo? Ainda por cima é técnico em informática. — Raquel


tornou a rir. — Mas eu quero te lembrar que o que vai importar é se você e
seu irmão estão felizes. A mamãe não vai fazer nada que os deixe
desconfortáveis, tudo bem?

— Sim. Mas, mãe, quando você está assim, feliz e bonita, a gente fica
feliz.

— Ah, obrigada — Fiz uma pose com a mão no queixo. — Eu sou linda
mesmo. Só não mais linda que uma pequena Mortícia que conheço. —
Agarrei-a e a enchi de beijos, enquanto Raquel ria.
Desci e encontrei Maria Clara e Fernando na cozinha tomando café.

— Uau. Divórcio faz bem mesmo. Olha que gata. — Maria Clara me
elogiou. Fui até ela e a cumprimentei com um beijinho no rosto.

— Que conversa é essa, Maria Clara? — Fernando questionou de cenho


franzido.

— Calma, amor. Divórcio não é para todas, você, eu não largo nem sob
tortura. — Piscou para ele.

— Oi, maninho. — Abracei-o por trás e dei um beijinho em seu rosto.

— Já está pronta para assinar os papéis? — Ele perguntou, dando uma


olhada na minha roupa.
— Na verdade, estou de saída.

— Hum... A gente só passou aqui rapidinho para confirmar o almoço


hoje. Maria Clara está para endoidar.
— E depois do stories de Ulrich ontem, o grupo da família está
fervilhando — ela emendou. — Precisamos nos reunir para saber tudo
certinho.

— Acho que não vai rolar, pessoal. Ulrich e eu já brigamos.


— Já? — Os dois falaram juntos.

— Aposto que foi você — Fernando acusou. — Sempre foi muito dura
com o coitado.

— É, digamos que foi. Estou indo nesse momento na casa dele. Pode
mandar mensagem perguntando se ele está lá? — pedi a Fernando. Ele
concordou, pegou o celular e digitou.
— Eita, a coisa foi séria. Ele saiu do grupo da nossa família.

— Que merda! — balbuciei.

— O que houve entre vocês? — Maria Clara quis saber.


— Eu vou contar no momento certo. Preciso vê-lo com urgência.

— Ele respondeu. — Fernando falou. — Está na casa dele, mas disse


que não vai ao almoço na fazenda.

— Tudo bem. Depois a gente se fala. Tchau, pessoal.


— Se cuide, mana. Traga o turco de volta para a gente — Fernando
gritou.

— Pode deixar. — Corri para fora da casa, entrei em meu carro e saí
cantando pneus. Stela morria de medo de dirigir, mas comigo era diferente.
Ela tinha um carro bom, com câmbio automático, o que facilitava muito mais
para mim. Concentrada no trânsito, não tirei o pé do acelerador.

Quando cheguei ao prédio de Ulrich, já entrei rápido e passei pelo


porteiro sem nem olhar para ele.

— Ei, dona...

— Não enche — gritei para ele e fui para o elevador. Eu tinha uma
chave reserva que Ulrich havia me dado e que ficava muito bem escondida no
closet de Stela. Essa era a sorte, ou ele jamais abriria a porta para mim.
Cheguei à porta do apartamento, enfiei a chave e entrei.

— Ulrich.

Ele veio da cozinha. Estava falando ao celular, vestia apenas calça jeans.
Falou algo em sua língua para a pessoa ao celular e desligou.

— O que você quer aqui? — Foi ríspido pela primeira vez.

— Senta-se aqui, vamos conversar.


Ele franziu a testa e os lábios se espremeram em uma linha de tensão.
Ele sabia quem eu era.

— Você sabia todo esse tempo e vinha constantemente transar comigo


sem sequer me contar? — instigou, mostrando-se muito bravo.

— Era um segredo da Stela. Como eu ia te contar uma coisa e depois ela


não se lembrar? Sem falar que era uma dúvida que ela tinha. — Dei uns
passos em sua direção, e ele deu dois passos para trás. O maxilar enrijecido.
— Você precisa olhar para si e ver que também escondeu coisas dela. Poxa,
cara, imagina ela não ter ideia que transou com alguém?
— Ela poderia ter me procurado. Olha o quanto seria tudo mais fácil?
Ela se casou com outro, mesmo tendo essa dúvida. Agora tenho uma filha de
treze anos que chama outro de pai. Isso não dá para contornar.

— Sabe por que eu existo? Por causa da fraqueza dela em resolver os


problemas. Eu sou uma extensão de Stela, a parte corajosa que ela sufoca
diariamente. Ela teve medo. Tinha acabado de ouvir barbaridades daquela
puta turca, e o pai a estava manipulando. Ela só deixou que guiassem a vida
dela.

— Sabe qual é minha raiva? Que mesmo com essa dúvida, ela me
manteve distante da menina. Stela foi má comigo esses anos, enquanto eu
parecia um idiota esperando sua visita.

— Era só uma maneira estúpida que ela encontrou de se proteger do que


sentia por você. Stela está ficando mais forte atualmente, porque ela está me
libertando aos poucos. Olha como ela está desinibida na cama. Você não
pode nos abandonar agora, Ulrich.

— Será que eu tenho que ser sempre o que cede? Eu não posso ter um
tempo sozinho e repensar tudo? Durante todos esses anos eu caminhei ao
lado dela, aceitando todas as pedradas e o desprezo. E agora eu estou, pela
primeira vez, sem um rumo... Eu não sei o que fazer.

— Ulrich... ela precisa de você.


— E chegou o momento de ela provar. Sinto muito, mas dessa vez não
irei facilitar para Stela, por mais que a ame. Não existe amor unilateral, ela
jamais provou algo para mim. Acabou. É grave o que ela deixou o pai fazer.
Acabou tudo, Estrelinha.

— Não. — Caminhei em sua direção, mas fiquei tonta de repente. —


Merda. — Apoiei no sofá.

— O quê...?
— Pode me levar urgente? Acho que ela vai voltar. E foi bem rápido
dessa vez.
Ele apenas assentiu, vestiu uma camisa e me deixou apoiar em seu braço
enquanto descíamos o elevador.

— Não vá embora do Brasil — sussurrei, pedindo.


— Eu não vou. Agora tenho algo muito maior para me manter aqui.

Enquanto ele dirigia meu carro, eu apenas o olhava. Ulrich foi, para as
duas personalidades, a pilastra de sustentação. Inconscientemente Stela me
criou só para poder recorrer a ele quando precisasse. Era uma triste história
de amor que nunca deu certo.

Ele chegou na mansão, entrou com o carro e me ajudou a descer. Em


seguida me deitou no sofá da sala e colocou algumas almofadas na minha
cabeça.
Quase sem força, segurei sua mão.

— Eu não vou me lembrar quando acordar.

— Eu sempre lembrei por nós dois. Adeus, Estrelinha.


Eu sorri, vendo-o se afastar e sair da casa.
29

STELA

— Mãe! Oh, mãe.

Senti mãos me sacudindo e abri os olhos lentamente. Minha cabeça


explodia de dor, foi a primeira coisa que constatei. Massageei as pálpebras
antes de olhar para Nathan à minha frente.
— Oi... filho.

— Seu celular não para de tocar. É o tio Ben.

— Ai, meu Deus. — Recebi o celular da mão dele e acessei as


chamadas não atendidas, me chocando com a quantidade. Como eu tinha
vindo parar aqui no sofá? Fiquei de pé, e para minha surpresa, eu estava de
saltos. Retornei a chamada de Benjamin e dei alguns passos vacilantes. Havia
um espelho na sala. Quando me olhei, fiquei surpresa ao me ver maquiada e
com uma roupa charmosa.
Mas que merda...

— Oi, Ben. Me ligou?

— Sim, Stela. A mediação do divórcio está marcada para uma da tarde e


já são meio-dia.
Meio-dia?

— Meu Deus! — Olhei no relógio de pulso, sem acreditar.

O que aconteceu? Lembro de ter apagado na cama depois que Ulrich


saiu, mas ainda eram sete da manhã.

— Stela, tudo bem?

— Sim... chego aí daqui a pouco... bem, eu preciso falar com você.

— Ok. Eu imagino o que pode ser. Estou te aguardando.

Nathan me assistia com curiosidade, meio intrigado. Eu conhecia meu


filho e sabia que pescava cada pequeno detalhe no ar.

— A mamãe só está um pouco enjoada. Vá buscar um pouco de água


para mim, filho.
Ele balançou o pescoço assentindo e saiu correndo.

Sentada no sofá, antes de tudo, abalada, abaixei o rosto, apoiando-o nas


mãos. Fiquei assim, tentando encontrar soluções, tentando pensar em algo
plausível que pudesse clarear meus pensamentos nebulosos, até Nathan voltar
com a água. Minha bolsa estava perto, a abri, peguei um analgésico e engoli.

Merda, lembrei das primeiras horas da manhã quando Ulrich saiu


bastante revoltado e comovido. Nossas vidas estavam de pernas para o ar. Ele
tinha razão, passou da hora de eu me conhecer, enfrentar meus problemas
internos.
Olhei para o celular por um tempo, até juntar coragem e ligar para
doutora Eliana, e ela concordou em marcar uma consulta para a tarde.

Saí de casa pronta para me livrar de uma parte de minha vida que não
deixaria saudades: o casamento. Como eu tinha prometido a mim mesma, irei
enfrentar uma coisa de cada vez. Já havia contado para Ulrich sobre a Raquel,
agora era a vez de enfrentar o divórcio e, por fim, iria me descobrir nas
sessões de regressão da doutora Eliana.

Havia uma advogada me esperando, quando, com passos vacilantes,


entrei no estabelecimento. Era o prédio onde funcionava o escritório de
Ulrich.
— Oi, Stela. Estava te esperando. — Ela acenou para mim. Usava um
terninho preto e os cabelos ruivos soltos em cachos volumosos. Ela veio em
minha direção, esbanjando elegância. Eu estava olhando o nome em letras
cursivas de ferro na parede atrás da recepcionista:

Ávila, Caldeira & Aslan associados.

Era, para mim, prazeroso ver o lugar que Ulrich tinha alcançado
batalhando sozinho. Ele cresceu por conta própria em terras estranhas,
chegando a um lugar de prestígio sem precisar de apadrinhamentos ou
indicações. O jovem que entregava pão caseiro agora tinha seu nome em um
lugar de destaque.

— Oi, tudo bem? — Apertei a mão da advogada.


— Prazer, sou Milena. Eu estou por dentro do seu caso, auxiliei na
confecção do contrato de divórcio e hoje Ulrich me mandou uma mensagem
pedindo para cuidar de tudo.

— Ele mandou? — Mesmo com raiva, ele ainda se preocupava com


meus problemas.

— Sim, mas não se preocupe, será apenas uma mediação, você e seu
ex... — Ela abriu a pasta que tinha em mãos e deu uma rápida olhada antes de
voltar a me encarar: —Miguel Medeiros... Vocês já estão em concordância,
não é?

— Mais ou menos.
— Ok. Vamos subir e esperá-lo chegar.

— Claro. — Caminhei ao lado dela em direção ao elevador.

Não seria bem uma audiência em um fórum, com a presença de um juiz,


porque o divórcio não estava no litigioso. Então Ulrich marcou aqui no
prédio a mediação, para que Miguel e eu nos reuníssemos e chegássemos a
um consenso para um desfecho amigável.
Quando saímos do elevador, me surpreendi ao ver meus irmãos na sala
de espera. Nem sinal de Miguel.

— Oi, pessoal. — Cumprimentei os quatro. — Eu não esperava que


vocês viessem.

— É um momento importante para você. Quem mais poderia estar aqui


para te apoiar? — Andrey falou e me puxou para um abraço. — Saiba que
você nunca esteve sozinha, ouviu?

— Isso aí. — Ouvi a voz de Benjamin atrás de mim. — Você e eu


nascemos juntos e estamos juntos para o que der e vier.

Com uma expressão de confusão, passei os olhos em cada um deles,


então Fernando explicou:

— Sabemos que Ulrich se afastou, depois saberemos os motivos, mas


estamos aqui com você.
A tensão saiu dos meus ombros, e senti um calorzinho de amor no
coração. Abracei cada um deles, emocionada com a proteção que me
ofertavam.

— Stela, depois converso em particular com você sobre o processo do


divórcio — a advogada falou. — Vou deixar vocês a sós, preciso fazer um
telefonema.
— Claro, obrigada por tudo.

Ela se afastou e eu voltei a encarar meus irmãos.

— Quer nos contar qual foi o motivo da briga com o Turco? —


Fernando indagou, estavam não apenas curiosos como também preocupados.
Não perguntei como eles sabiam; devido à ligação intima que tinham com
Ulrich, possivelmente algum dos meus irmãos havia conversado com Ulrich e
ele contou.
Eu não achava que deveria ser algo para se esconder, e se eles tinham
que saber, que fosse por minha boca. Algo que eu detesto é quando coisas
importantes são descobertas por bocas de terceiros. Sentei-me no sofá grande,
de couro, ao lado de Benjamin. Do outro lado estava Andrey. Fernando na
poltrona, e Thadeo de pé, tomando um cafezinho.

— Foi bem sério... E eu me sinto culpada. — Apreensiva, olhei em


volta. Não havia mais ninguém ali. Desviei a atenção para minhas mãos
apertando a bolsa e rapidamente Benjamin segurou minha mão.

— Estamos aqui para te apoiar, pode confiar em nós — ele reforçou.


Assenti e internamente procurei palavras para dizer a eles o que foi
capaz de ferir Ulrich hoje pela manhã.

— É muito difícil encarar isso, e para Ulrich, é triplamente pior. —


Olhei para os quatro, calados, tensos, me fitando sem piscar. Então desabafei:
— Tudo leva a crer que... a Raquel é filha dele.

Inicialmente se fez silêncio, logo depois vieram as reações.

— Puta que pariu! — Andrey rosnou.

— Como é que é? — Fernando estava incrédulo.

— Stela, que papo é esse? — A voz de Thadeo era só um resmungo


chocado.

— É... eu meio que já sabia — Benjamin disse, não parecendo chocado


como os outros. — Stela desabafou comigo um tempo atrás, que já
suspeitava. Apertei a mão de Benjamin. Não tinha muito tempo que eu enfim
tinha conseguido desabafar com alguém, e claro foi para meu gêmeo.

Thadeo andou até o elevador, e eu cheguei a pensar que ele estava indo
embora, mas voltou. O copinho de café amassado na mão.

— O pior... — falei — é que eu só tinha a suspeita e nunca contei para


Ulrich. Eu não tinha certeza, juro que não tinha. Eu... eu me casei porque o
nosso pai queria esconder a gravidez... E
— Eu sabia. — Thadeo bateu as mãos na cintura. — Eu sabia, porra. Eu
sempre desconfiei que o nosso velho armou esse circo. — Enfiou as mãos
nos cabelos grandes e se afastou revoltado. Resmungava enquanto ia e
voltava: — Eu sabia que aquele casamento era uma farsa.

Benjamin logo abraçou meu ombro, me dando apoio.

— Cara, Ulrich deve estar devastado — Andrey estava com as mãos na


cabeça.
— Puta que pariu, Stela. — Fernando também ficou de pé, sua carranca
era direcionada a mim. — Como você deixou o nosso pai tomar essa decisão?
— Pessoal — Benjamin interveio. — Nós todos conhecemos o pai que
temos. A Stela não tem um pingo de culpa...

— Muito menos o Turco, né, Benjamin? — Thadeo voltou para perto,


falando alto. — O cara sempre se mostrou um homem responsável, sempre
respeitou a Stela, não tinha por que o pai tomar essa decisão. Como foi isso,
Stela? Me explique isso direito.
— Eu estava com um mês de gestação, porém Miguel já estava fora há
mais de dois meses. Não tinha como ser dele. Eu não lembrava que tinha... —
Quase engoli as palavras, mas recuperei, juntando coragem, e prossegui: —
Ido para a cama com Ulrich. Descobri recentemente que tenho episódios de
apagão e não lembro das ações que eu possa ter feito.

— E agora? Como vão resolver isso? A menina já sabe? — Thadeo


continuou pressionando.

— Não. Eu contei hoje para Ulrich. Ele ficou muito revoltado... Ele vai
pedir o exame de DNA.
— E com razão — Andrey falou. — Desculpe, Stela, mas é foda um pai
não ver o nascimento do filho e muito menos acompanhar a criança crescer.

— Eu sei disso na pele — Benjamin concordou. — Mas não é hora para


arranjar culpados. Nem Stela e nem Ulrich. Há pedaços dessa história que
vocês não sabem e quando souberem entenderão tudo.

— Cacete, mano. O bichinho deve tá só o pó — Thadeo resmungou. —


Eu vou encontrá-lo.
— Não acho uma boa ideia, Thadeo — Fernando discordou. — Eu acho
que ele quer e precisa de um tempo sozinho. Até saiu do nosso grupo.

— Saiu? — repeti, assustada.


— Ele não está com raiva da gente — Fernando prosseguiu. — Só quer
mesmo ficar um tempo sozinho, remoendo.

Uma porta se abriu e a advogada saiu de lá interrompendo nossa


conversa.
— Desculpe interrompê-los. Miguel acabou de chegar e está subindo,
vamos dar início à sessão de mediação do divórcio.

— O Miguel sabia? — Andrey se voltou para mim.

— Não. Por favor, não arrumem confusão com ele. Quero só assinar
isso logo e ficar livre.
Eu esperava Miguel aparecer de terno, na companhia de um advogado,
disposto a brigar por tudo que ele pudesse. Mas quando o elevador abriu, ele
saiu com um ar de insegurança. E ao ver meus irmãos, paralisou com
surpresa.

Ele parecia mais magro, vestia jeans e camiseta, e tinha hematomas no


rosto.

— Miguel, por aqui, por favor. — A Advogada tocou gentilmente em


seu braço, obrigando-o a desviar o olhar de alerta direcionado a meus irmãos.
— Seu advogado não veio? — ela perguntou.
— Sou eu, apenas.

— Vocês me esperam aqui? Ou querem entrar?

— Se não se importar, eu vou entrar. — Andrey se adiantou e


tranquilizou em seguida: — Não vou dirigir a palavra a ele. Não costumo
chutar cachorro morto.
— A gente espera aqui — Benjamin falou.
Na companhia de Andrey, entrei na sala.

Era uma sala espaçosa e arejada, o que me deixou tranquila, por não ser
um ambiente claustrofóbico. Era a mesma decoração moderna dos outros
ambientes do prédio, a madeira clara e polida predominava tanto nos móveis
como em um detalhe na parede.
— Eu ficarei na cabeceira, Miguel se senta de um lado da mesa e Stela
pode se sentar à frente dele — Milena instruiu e fizemos conforme ela falou.
— Como já enviei por e-mail para vocês uma cópia para lerem, aqui está a
cópia física para assinatura. — Passou uma pasta para Miguel e outra para
mim. — Se tiverem algo que queiram negociar, poderemos elaborar um novo
documento.

Andrey puxou a minha cópia e começou a folhear.

— Em que parte fala sobre a partilha de bens? — perguntou à advogada.


— Página três.

Enquanto ele lia, eu encarei Miguel. Seu olhar duro me atingiu, e eu não
desviei minha atenção.

— Por mim está tudo certo. — Miguel falou, sem desviar os olhos dos
meus.
— Tudo bem? — Andrey questionou incrédulo. — Está saindo do
casamento apenas com o imóvel que vocês construíram quando se casaram,
seu carro e o dinheiro que tinha na conta conjunta e está tudo bem?

— Não é o que querem de mim? — Encarou Andrey. — Que eu aceite


qualquer merda de uma vez por todas? Ou prefere que eu brigue?

— Se partir para a briga, sairá sem nada — Andrey alertou.


— Então eu assino agora. É o que quero.

— E em relação aos seus filhos... — a advogada intercedeu. — Pelo que


planejamos, fizemos uma guarda compartilhada de comum acordo, em que
você terá acesso às crianças nos fins de semana e...
— Eu não quero — Miguel a interrompeu. Troquei um rápido olhar
estarrecido com Andrey.

— Como é...?

— Eu não quero a guarda compartilhada. Quero que Stela tenha a


guarda total.
— Enlouqueceu, cara...? — Andrey rebateu, pasmo com a decisão de
Miguel. Logo eu pensei que Miguel havia descoberto algo sobre Raquel,
então falei:

— Nem mesmo o Nathan...?

Miguel me olhou com rancor.


— Eu te traí, Stela, mas você me traiu primeiro. Se eu levasse isso para
um tribunal, você teria que me pagar por ter me enganado todos esses anos.
Você e seu pai. — acusou com frieza. Andrey fez menção de falar, mas eu
toquei em seu braço, impedindo-o. Miguel continuou:

— Eu só não vou te processar porque preciso concluir logo tudo isso


para ter acesso ao meu dinheiro, e eu sei que se te levar na justiça, será uma
ação que se arrastará por meses. Então vamos assinar logo essa merda.

Andrey abriu a boca para me defender, mas eu fiz sinal para ele esperar.
— Você não pode me acusar dessa forma. Tudo que eu fiz esses anos
foi me dedicar a você e às crianças...
Miguel não quis mais discutir, tirou um papel do bolso e empurrou para
mim.

— Eu não quero a guarda das crianças porque não são meus filhos. —
Tremendo mais que casa velha na tempestade, peguei o papel, desdobrei e
tentei ler.
— O que... é isso? — Fitei-o. Andrey tomou da minha mão e olhou. —
O que está dizendo, Miguel? — insisti.

— Este é meu exame de fertilidade. Eu sempre fui estéril. Raquel e


Nathan não são meus filhos.

Eu assinei tudo no automático, sustentei meu corpo para me forçar a


concluir todo esse ciclo. Meu coração estava disparado pelo susto, e agora a
sensação de impotência me abraçava. Uma sensação horrível de desespero
que ia crescendo aos poucos dentro de mim.
O que aconteceu em minha vida? O que houve, meu Deus?

Eu vi a advogada falar algo, concluindo a reunião, mas eu não conseguia


assimilar. A voz dela parecia distante e vaga. Eu, ainda petrificada, encarava
Miguel. Ele apertou a mão de Milena, e quando despejou em mim sua
atenção, seu semblante parecia de alívio. Em seguida, disse:

— Eu vou ter que me afastar, mas diga às crianças que volto para visitá-
los. — Sem esperar minha resposta, adiantou-se andando rápido até a porta.
Saiu e foi embora, sem nem olhar para trás.
— Stela... tudo bem? — Andrey segurou meu braço.

— Como...? Como isso... pode ser verdade?

— Venha comigo. Vamos sentar um pouco ali fora. — Deixei que me


conduzisse para fora da sala. Andrey me levou para o sofá onde os outros me
esperavam.

— Pega água para ela, Benjamin — pediu e em poucos segundos eu


tinha um copo de água nas mãos trêmulas e geladas. Os quatro me rodearam
preocupados.
— O que houve? — Fernando quis saber.

— Miguel jogou merda no ventilador. — Andrey foi sucinto, mas não


direto.

— Como assim? O que ele disse?


Eu estava de cabeça baixa, tentando buscar em minha mente uma
explicação plausível para essa loucura, sentindo Benjamin ao meu lado
fazendo um carinho em minhas costas. De forma cautelosa, Andrey falou:

— Miguel não quis a guarda das crianças.

— Não?
— Ele revelou que é estéril. Os dois não são filhos dele.

— Ah, pronto. — Ouvi a voz de Thadeo. — Agora eu vi merda. Como


assim?

— Como isso aconteceu? — Fernando também indagou. — Nathan é


filho do Ulrich também?
— Duas vezes? Stela!

— Calma, gente... — Benjamin pediu.

— Eu não sei. Eu juro que... eu passei esses anos odiando Ulrich, não
faz sentido, gente. Miguel fez isso para me ferir. Isso não pode ser verdade.
— Stela, pode, sim, ser verdade — Benjamin sussurrou ao meu lado.
— Como, Ben? Como pode?

— Você quer ir comigo na sua médica? Poderemos te explicar tudo. —


Ele olhou para nossos irmãos, os três de pé, nos encarando, chocados e
confusos. — Vocês podem ir. Eu levo Stela na doutora Eliana.
— Mas que caralhos... — Thadeo resmungou.

— Eu dou uma resposta para vocês ainda hoje — Benjamin insistiu,


convencendo-os.

— Nem se estivéssemos em uma novela mexicana teríamos tantas


reviravoltas. — Fernando ironizou, quebrando o clima tenso.
— Eu vou visitar Ulrich. — Thadeo decidiu, e eu não me impus. — Não
contarei para ele, mas o sujeito precisa de apoio para quando a outra parte da
bomba explodir.

Entramos todos no elevador. Eu estava tão leve quando vinha assinar o


divórcio, mas agora, outro peso sobre meus ombros. Quando descemos no
térreo, agradeci cada um dos meus irmãos por terem vindo me dar apoio,
agarrei o braço de Benjamin e fui com ele para a consulta com doutora
Eliana.
30

ULRICH

Eu já tinha ligado para minha mãe e contado tudo. Ela me confortou da


maneira que conseguiu, à distância. Ouvir a voz dela e suas palavras de
conforto me deu ânimo, mesmo que fosse incapaz de sarar totalmente a
aflição.

Eu sentia uma mistura de felicidade, tristeza e revolta. Em alguns


momentos, eu me desmanchava em risos quando imaginava que aquela
menina inteligente, educada, meio tímida e, às vezes sorridente, era minha
filha. Eu perdi tanto da vida dela, ela mal me conhecia na verdade; eu sabia
que ia ser uma grande caminhada a percorrer, mas estava disposto a enfrentar.

Eu ri com lágrimas nos olhos, sozinho, sentado no chão da minha sala


com uma garrafa de vodca. Era a primeira vez que eu tomava vodca pura, e
era ótima para abrandar a tristeza. Raquel Capello Aslan. Era assim que ela
deveria se chamar, e eu ia lutar por isso.

E sabe o que mais me abalava? Pensar que Nathan também poderia ser
meu filho. Por que não? Stela e eu tivemos noites esporádicas por vários
anos. Era raro, mas acontecia. E por isso eu precisaria pedir DNA dos dois.

Ouvi batidas fortes na porta, denunciando que a pessoa batia com o


punho; mas que droga! Eu pedi ao porteiro que não deixasse ninguém subir.
Nem me mexi enquanto as batidas ecoavam. Minha cabeça girava
respondendo à grande quantidade de álcool ingerido, e achei bem-vinda a
sensação. As batidas continuaram, e só então ouvi uma voz conhecida me
chamando.

Levantei, me segurando na parede, bati a mão na maçaneta, a porta


abriu e vi Thadeo à minha frente.

Ele entrou, não surpreso com minha situação, fechou a porta, e eu


apontei o sofá para ele.

— Senta aí. — Eu me sentei, mas me recusei a olhar para meu amigo.


De repente, senti vergonha da minha decadência.

— Turco, é o seguinte, você pode até se afastar da minha irmã. Mas não
pode terminar com os quatro Capellos. Você não é nem louco de terminar
com seus namoradinhos. — Eu acabei rindo, e ele finalizou, agora, em um
tom comedido: — Stela me contou. — E quando falou isso, eu desabei feito
um menino chorão. Coloquei o braço nos olhos para não ver minhas
lágrimas. Thadeo se sentou ao meu lado e me abraçou.
— Foi mal. Estou parecendo um bundão chorando.

— Preocupa não. Todo homem tem seu momento bundão. Tu é da


família agora, porra. Vamos levantar a cabeça e recuperar o tempo perdido.

— E se... — Minha língua enrolou. — E se... ela não gostar de mim? A


minha filha?
— Caberá a você conquistar o amor dela, todos os dias.

— E se... Ah... merda. — Levantei, cambaleando, o estômago virou ao


avesso. Deixei a garrafa cair no tapete e saí tropeçando trocando os pés, com
a mão na boca, para o banheiro. Ajoelhei diante do vaso e despejei tudo que
tinha no estômago, o que se resumia a álcool.

— Puta que pariu, parece até um alambique. — Thadeo falou, já dentro


do banheiro comigo. — Está tudo bem aí?
— Sim... Eu só... foi uma rápido mal-estar.

— Mal-estar, hum rum, sei. Quase deixou as tripas no vaso. Venha aqui.
— Entrou no boxe e ligou o chuveiro. — Precisa de um banho frio. Você
sempre foi fraco para bebida, tem fígado de gatinho.

— Ah rá, rá. Que engraçado. — Passei as costas da mão na boca e fiquei


de pé, um pouco bambo, inclinando de um lado para o outro, tentando
encarar Thadeo, mas a visão estava embaralhada.
— O que foi? — Ele indagou, levantando uma sobrancelha. — Está
achando que eu vou tirar sua roupa? Não sou a Stela, não.

— Está proibido de falar essa nome aqui... em casa.

— Ok. Essa regra sua é igual a stories: só dura vinte e quatro horas. Vai
tomando banho aí que vou fazer um café forte.

Eu fiz o que ele falou. Quando saí do banheiro, dentro de um roupão, já


me sentindo um pouco melhor, o cheiro de café fresco me recebeu. Caminhei
até a cozinha, encontrando Thadeo olhando para dentro da geladeira.

Sentei-me na cadeira e gemi. Ele me olhou e fechou a geladeira.

— Você por acaso anda furtando a fábrica da minha família? —


Colocou uma caneca de café fumegante na minha frente. — Tem um
carregamento de iogurte Capello aí dentro.
— Sou um provador oficial da marca. Andrey... cadastrou meu nome
para receber amostras.

— Hum... ok. Se sente melhor?

— Um pouco. Obrigado. — Bebi um gole do café, saboreando o gosto


amargo da bebida muito quente. Eu não era fã de café, mas quando bebia,
preferia que fosse bem forte.

— Ulrich, você sabe que precisa explicar para nós quatro que folia foi
essa que Stela e você aprontaram? Ela mencionou algo como apagões da
memória...

— Sim. É uma história bem louca. E eu sei que vocês vão saber tudo na
hora exata... E tem que ser pela boca dela.
— E atualmente? Vocês estavam juntos mesmo? — Antes de eu
responder, ele se adiantou: — Pelo que postou ontem, deu a entender que
sim.

— É... sim. Stela tinha baixado a guarda.

— Isso é muito bizarro. No dia do meu casamento, Stela saiu de lá


bufando de ódio de você, e agora...

— Gritos na cama.

O celular dele tocou.

— Ah, turco, salvo pelo gongo. Eu ia te bater. Um momentinho, Gema


está me ligando. — Ele se levantou e saiu com o celular no ouvido.
Olhando para a cozinha e para os utensílios ainda sujos na pia, resultado
do que eu havia cozinhado na noite anterior, as lembranças da noite com
Stela voltaram com força, me deixando quase sem ar. Tomei mais café.

Ok. Eu não podia culpá-la em absoluto. Stela era tão inocente quanto eu,
afinal ela jamais soube que transava comigo. O único erro dela foi ter deixado
que o pai orquestrasse a própria vida. Eu tremo de raiva toda vez que lembro
que ela aceitou se casar com Miguel, mesmo sem amá-lo, apenas porque o
pai quis.

Porém existe uma grande culpada nisso tudo: a outra personalidade.


Afinal, sempre buscou sexo comigo sabendo que nossas noites secretas
tinham gerado fruto. Ela sempre soube, e mesmo assim ainda me procurava
insaciavelmente.

Merda. E eu culpado por ter ido para a cama com ela.

Eu queria tempo para digerir uma informação de cada vez. Isso tudo era
a porra de uma loucura digna das melhores novelas turcas.

Thadeo voltou e sentou-se comigo.


— Eu vou ter que ir para a vinícola. Gema inventou de comer kiwi. Vou
passar no mercado e ver se tem. Vai ficar tudo bem com você? —
questionou.

— Vai, sim. Pode ir. Obrigado por ter vindo... — Levantei a caneca. —
E pelo café.

— Turco, só quero que saiba que meus irmãos não estamos contra você.
Não existem vilões nessa história, e cada um tem sua parcela de sofrimento.
Eu vi minha irmã, e ela está sofrendo também.
Assenti, olhando para o café. Minha língua coçava para perguntar: eu
podia calar a porra da boca, mas não consegui controlar.

— Ela assinou o divórcio? — Arranquei uma linha no roupão. Nem


olhei para Thadeo.

— Sim. Enfim está livre. — Thadeo sorriu e levantou as mãos em um


gesto de agradecimento.

— Humn... — bebi o café, mostrando indiferença. — Desejo sucesso


para ela.
— Depois que eu sair, você pode comemorar. Pular por aí, gritar, só
tome cuidado para não se machucar nos móveis.

— Vai se foder.

Ele gargalhou e caminhou para fora da cozinha. Eu o segui. Antes de


sair, ele me olhou com seriedade:
— Ela e Benjamin foram ver a médica dela. Depois, se ela precisar falar
com você... receba-a, por favor. Vocês ainda têm muito o que resolver.

Eu apenas assenti, porque sabia que sim, a gente teria muito o que
resolver. Thadeo foi embora, e eu me sentei no sofá, agora, bem melhor.
Acho que o vômito ajudou a superar a embriagues.

Stela estava prestes a tomar ciência de tudo. Ela enfim ficaria a par do
que sempre fez escondido dela mesma.

***

| STELA

Eu estava sentada diante de doutora Eliana, segurando firme a mão de


Benjamin; como nos velhos tempos, como na infância, como na adolescência,
quando ele sempre estava por perto para me amparar. Eu passei a vida com
uma máscara, mostrando a menina bonita e sorridente e depois a mulher
casada feliz em seu lar, mas que escondia tremores, furacões de ansiedade,
monstros internos que só eu conhecia. E Benjamin estava comigo, pronto a
me apoiar em cada derrapada emocional.

Eu nunca quis assumir para mim mesma, e em público, os meus


espinhos. Primeiro porque, quem acreditaria? A jovem rica, bonita, bem
protegida, sofrendo? Conta outra.

E segundo porque parecia que se eu afirmasse em voz alta, se tornariam


mais reais do que já eram para mim.

Era mais fácil engolir. Sufocar qualquer sensação. Não precisar dar
explicações e nem encarar os olhares de pena.

O abuso que sofri na infância...


A morte da minha mãe e o desaparecimento do meu namorado no
mesmo dia.

A volta dele, e em seguida sua esposa.

A minha gravidez e a dúvida de quem era o pai.

As constantes crises.

O marido se distanciando.

Eu era apenas a bela Capello sorridente e carismática. Enquanto, dentro


de mim, o inferno acontecia.
— Uma válvula de escape — Doutora Eliana falou, me fazendo sair da
minha divagação.

— Perdão, o que disse, doutora?


— Encare seu problema como uma válvula de escape que sua mente
criou para que você fosse capaz de enfrentar dificuldades.

Ela ainda estava enrolando, fazendo suspense para me contar o que eu


tinha. Cheguei ali apavorada na companhia de Benjamin; narrei para ela tudo
que vinha acontecendo, principalmente sobre os filhos não serem de Miguel.
Então ela me disse que não havia mais como esperar, eu tinha que saber a
verdade.

— Eu estou pronta, doutora. Passou da hora de confrontar minhas


lembranças.

Ela fechou as cortinas e puxou a poltrona para mais perto do divã.

— Está tudo bem? — Benjamin me perguntou.


— Sim.

— Benjamin, sente-se ali — comandou. — E você, Stela, livre-se de


tudo que pode incomodar, sapato, relógio e deite-se no divã. — Fiz o que ela
falou, sentei-me e tirei o relógio de pulso, soltei os cabelos e tirei os saltos.
Doutora Eliana sentou-se ao meu lado.

— Benjamin e Ulrich vieram falar comigo, há uns meses, a respeito de


um problema seu.
Imediatamente olhei para Benjamin, ele me encarava de volta
seriamente; voltei-me para a doutora ao meu lado. — Sobre seus apagões e
lembranças esquecidas.

— O Ulrich...?

— Sim, e você vai entender por que ele veio até mim. Eu não quero
simplesmente te falar, te dar um diagnóstico à queima roupa, porque é algo
delicado. Eu quero que você descubra tudo junto comigo. Eu pretendia ter
trabalhado as regressões visitando suas memórias desde a infância, mas
deixaremos essa parte para mais tarde, pode ficar tranquila.

— Eu fico mais aliviada em saber disso.


— Hoje vamos encontrar uma outra parte de sua vida.

Deitei-me no divã, sentindo uma onda de coragem me envolvendo. Eu


queria isso, eu precisava dar um fim em todos os empecilhos que me fizeram
sofrer. Eu queria as cartas sobre a mesa, e estava pronta para enfrentar
qualquer coisa dentro de mim.

Assim como da outra vez, relaxei e me concentrei na voz de doutora


Eliana e nas batidas compassadas do aparelho; era como um metrônomo
usado por músicos. Ele tinha um ponteiro que batia de um lado para o outro
criando um som ritmado. O silêncio era agradável e relaxante, e ao fundo,
como em uma tela escura, as batidas criavam uma pulsação leve em minha
mente.
— Stela, você já foi na casa de Ulrich? — Doutora Eliana perguntou.

— Sim. Ontem.

— Eu quero que imagine uma escada, como da outra vez. — Ela me deu
tempo e prosseguiu: — Você vai subir um degrau por vez, conforme as
batidas ecoam. É apenas uma escada, de nenhum lugar específico, e eu vou te
guiar em cada degrau. A cada passo, eu quero que você busque uma
lembrança de um momento bom que viveu com Ulrich.
E assim eu fiz.

Lembrei de nosso primeiro beijo.

A tatuagem que fizemos juntos.


Os banhos de piscina na minha casa.

Os filmes que ele e eu assistíamos com minha mãe.

Ulrich estava aliviando a dor que eu sentia pela minha mãe estar em
uma clínica e pelas crises de ansiedade que eu vinha sentindo.

— Você está no topo, Stela. Encontre Ulrich, vá até ele.

— Eu... estou lembrando. É um corredor. É o corredor do apartamento


dele. — Fiquei de frente para a porta e toquei na maçaneta.

— Stela, o que vê?

— A porta do apartamento de Ulrich.

— Entre. Você sabe que não há mal nenhum lá dentro.


Corajosamente abri a porta e entrei. A sala dele estava um pouco
diferente do que eu vi noite anterior. Era uma lembrança, eu tinha vindo
naquele apartamento antes. A noite anterior não tinha sido a primeira vez.

Havia vozes e risos regando o ambiente, vinham do quarto. Na sala,


sapatos femininos pelo chão, um casaco também feminino e uma bolsa. Eu
conhecia aquele sapato, porque Ana Rosa tinha confeccionado um igual para
mim, uns dois anos atrás.

Meu coração começou a pulsar feito um tambor contra minha caixa


torácica, então me mexi inquieta no divã.
— Os sapatos... parecem os meus, doutora. Há vozes vindo do quarto.

— Aprofunde-se, Stela. Veja o que sua mente esconde.

Coloquei a mão no peito como se pudesse acalmar o coração angustiado


e segui pela casa, sendo atraída pelos sons.
Eram gemidos. Móveis rangendo... corpos se batendo.

— Ele... está com alguém na cama — sussurrei.

— Apenas continue. Essa é uma lembrança sua, e você está andando por
ela.

Eu não sabia se eu queria ver, o que quer que fosse lá naquele quarto.
Mas algo me atraía como se eu sentisse no corpo os efeitos da lembrança.

— Aarrh... — um gemido alto, masculino. Coloquei a mão na boca e


travei encostada na parede. E o silêncio caiu. Tomada por um impulso, andei
rápido e entrei no quarto. Coloquei a mão na boca, suprimindo um grito.
Mas que porra é essa?

Era Ulrich e eu mesma, estávamos agarrados e nus, sentados no meio da


cama, ainda ofegantes e suados. Era uma memória minha, mas parecia que eu
assistia às lembranças de outra pessoa.

— Meu Deus.
— Stela, mantenha-se firme.

— Sou eu... e Ulrich. — Eu me agitei confusa no divã.

“Você sempre me convence, Estrelinha.”, Ulrich sussurrou, acariciando


meus cabelos.
“É o que nós dois precisamos. Você é a parte que falta de mim”, eu
mesma falei e nos beijamos em seguida.

Virei-me e corri para fora do quarto, e então não estava mais na casa
dele, mas sim na minha casa, na mansão do meu pai.

Era mais uma vez, ele e eu, juntos. Era noite, parecia bem tarde, não
tinha luzes acesas dentro da mansão. Saímos de um carro e andamos juntos,
abraçados, pelo jardim; Ulrich carregava a minha bolsa, e eu os meus sapatos.
Ulrich me agarrou e me beijou do pescoço ao queixo, e enfim nos lábios.

“Xiu. Miguel pode acordar.”, afastei-o.


“Sonho com o dia que ficaremos livre dele.”, ele respondeu, em uma
lamúria baixinha.

“Só quando Stela abrir os olhos para a realidade.”, eu mesma falei.

Ambos riram.

Era tão confuso. Era eu ali na porta, falando de mim mesma na terceira
pessoa.

“Vai dormir no sofá de novo?”, ele indagou.

“Sim. Odeio dormir com ele quando acabo de visitar você. Queria que
pudesse durar a vida toda.”
“Eu também. Até mais, Estrelinha.”

“Até a próxima, meu turco lindo.”

Assustada, abri os olhos e me sentei no divã. Meu coração como de um


maratonista. Como se eu tivesse acabado de correr dois quilômetros.
Imediatamente Benjamin veio para perto e doutora Eliana adiantou-se em me
oferecer um copo com água.
— Respire fundo, dê tempo para sua mente — ela recomendou.

— O que está acontecendo? Eu vi lembranças... eram minhas


lembranças... Mas pareciam vividas por outra pessoa. O que está
acontecendo, doutora?

— Você viu o que vem acontecendo com você nos últimos anos — Seu
tom era cuidadoso, parecia querer me preservar.
— Nos últimos... anos? — Repeti em um fio de voz.

— Mais ou menos há um ano Ulrich foi falar comigo. — Benjamin veio


e sentou-se na poltrona próxima a gente. — Ele estava preocupado, pois você
ia visitá-lo com frequência.
— Como assim, visitá-lo?

— Você simplesmente chegava na casa dele... E ele disse que se sentiu


mal por parecer que estava se aproveitando de algum transtorno seu, pois ele
apreciava suas visitas. Mesmo que no dia seguinte você não se lembrasse.

Segurei meu pescoço com as duas mãos e soprei, nervosa, ouvindo o


que Benjamin falava.
— Então os dois vieram falar comigo — Doutora Eliana complementou.
— E por tudo que eles contaram, eu cheguei a uma conclusão para o seu
diagnóstico, Stela.

— Tem a ver com as lembranças... que acabei de ver?

— Sim. Existe um transtorno, que é muito conhecido, principalmente na


cultura, em filmes, livros e tudo mais. Mas ele existe, é recorrente em pessoas
que passaram por traumas, e precisa de acompanhamento.

Esse parecia ser o momento que o mundo desaba na cabeça da pessoa,


após ouvir uma notícia terrível. Eu sabia que não ia gostar do que estava
prestes a ouvir, todavia, mesmo o remédio sendo amargo, a gente tem que
beber.

— E o que é? — Minha voz tremulou.

— Transtorno dissociativo de identidade. É isso que você tem, e vamos


a partir de agora comprovar esse diagnóstico e te oferecer todo
acompanhamento necessário.
Olhei para Benjamin, e de volta para a médica, que, cautelosa, parecia
esperar de mim uma explosão. Eu não estava assimilando o nome do
transtorno, ou minha ficha não tinha caído ainda. E ela compreendeu que
precisava ser mais clara.

— Você desenvolveu uma dupla personalidade, Stela. E tudo que a


outra personalidade faz, você não consegue se lembrar.
Um silêncio arrebatador de segundos a fio tomou conta da sala. Eu
sentia o olhar de preocupação do meu irmão, o ar parecia mais pesado,
dificultando a respiração, e tive a impressão de que o tudo estava em câmera
lenta.

Em um impulso, fiquei de pé.

— Stela... — Doutora Eliana veio até mim e tocou no meu ombro. —


Não é algo para se desesperar. Você está segura, eu posso lhe garantir.
— Doutora... pelo amor de Deus. — Encarei-a, e enfim a voz deixou a
minha garganta.

— Venha aqui, sente-se aqui.

— Não — gritei e afastei a mão dela. — Por Deus, não! Isso é...
loucura. Eu não acredito nessas coisas, doutora.
— Você viu as próprias lembranças. Tudo aquilo são ações de sua outra
personalidade, mas ela não é totalmente oposta a você, ela é uma extensão
sua.

— Não. Eu não aceito isso... dupla personalidade? Faça-me o favor...

— Stela, você vai entender tudo, mas antes precisa se acalmar. —


Benjamin aproximou-se, na tentativa de me tranquilizar. A presença dele e o
fato de saber de certa forma me confortava.
Senti uma lágrima quente percorrer minha bochecha.

— Eu... eu sempre cuidei muito bem do meu pai, dos meus filhos, e até
do meu casamento, por anos... Como isso pode ser real? Não tem como.
— E é justamente por isso que a outra personalidade existe. Você
precisava de uma válvula de escape. Você viveu todos esses anos no
automático, repreendendo desejos e emoções. — A doutora mantinha a voz
paciente enquanto tentava me convencer.

Benjamin me segurou, me obrigando a encará-lo.

— Stela, sabe que eu nunca faria mal a você. Tem que confiar em mim.
Vamos escutar o que ela tem a dizer.
— Benjamin! Isso é quase fantasioso — insisti.

— Eu sei. Eu também fiquei assim quando soube. Você veio aqui para
buscar respostas e precisar tê-las. — Apoiando-me, me fez sentar no divã. —
Respire compassadamente, procure não se desesperar.

Eu puxava o ar e soltava em sopros pela boca. Benjamin sentou-se ao


meu lado, massageando minhas costas.

Tudo começou a fazer sentido. Isso explicava meus constantes apagões,


as lacunas em minha mente, o motivo de eu ter engravidado de Ulrich sem
que me lembrasse.

— Ben... — sussurrei. — Eu estou com medo. — Limpei as lágrimas


com as mãos tremulando.

— Não precisa ter medo, mana.


— E se eu terminar como... a nossa...

— Não quero ouvir você falar isso, Stela. É sério — ele falou alto e não
escondeu o tom nervoso. — Eu entendo que é um abalo para qualquer um
ouvir esse tipo de diagnóstico, mas não entre por esse caminho ou você pode
se perder. É o momento de você ser corajosa.

E eu concordei com ele. Não iria deixar esses temores me invadirem.


— Eu sei... Eu tenho meus filhos... eu vou ser forte por eles. — Ergui o
queixo, encarando a doutora.

— Então ouça agora, com atenção, o que doutora Eliana vai falar — ele
pediu, agora mais terno.

Balancei o pescoço concordando. Por mais desesperador que fosse, eu


estava ali para buscar uma solução, disposta a enfrentar tudo. Peguei o copo
de água que ela me ofereceu, tomei alguns goles, me recompondo.
— Não precisa ter medo, tudo bem? Você é um caso brando de TDI e
bem mais fácil de acompanhar. Tem pessoas que desenvolve até vinte outras
personalidades totalmente diferentes uma da outra. Já vi um caso de um
homem em que a personalidade falava com sotaque francês e tinha caligrafia
diferente da dele, ele se via quase vinte anos mais velho.

— Eu... nunca senti nada de diferente, a não ser os episódios em que não
me lembrava de algumas coisas. E ela... tentava tomar minha vida?

— Todo caso é um caso diferente. Às vezes as personalidades não


sabem uma da outra. E em outros casos, as personalidades secundárias
conhecem a vida da personalidade principal. Você desenvolveu apenas uma
outra personalidade, pelo que Ulrich e Benjamin monitoraram.
— Ulrich a apelidou de Estrelinha — Benjamin relatou.

— Porque a outra personalidade se vê como uma pessoa distinta —


Doutora Eliana explicou. — Ela não se considera a Stela Capello, mas gosta
dos seus filhos e tem os Capellos como irmãos. Ela é desinibida,
independente e vaidosa. É como a sua parte extravagante que mora aí dentro
e que você nunca deixou se libertar.

— Eu... me transformo em outra pessoa... E vou visitar o Ulrich?


— É a única coisa que a outra personalidade faz. Ela é a parte de você
que sempre sentiu falta dele. Ulrich me disse que, certa vez, quando foram
fazer a tatuagem, ele falou com você que quando fosse a Estrelinha, poderia
ser quem quisesse. E isso ficou no seu subconsciente.

— Eu lembro disso...

— Pelas minhas análises, sua primeira dissociação veio na festa de


quinze anos. Você já estava abalada com a falta de sua mãe em um evento tão
importante, em seguida teve a notícia do falecimento e o desaparecimento de
Ulrich. O abalo foi tão forte, que essa foi a fuga que sua mente encontrou: se
transformar em outra pessoa que estivesse imune a todo o sofrimento. E
então, toda vez que algo muito intenso acontecia, Estrelinha assumia.
— Como quando Rômulo te pressionou e você viajou com Ulrich —
Benjamin completou.

— Por isso eu não lembrava... — Levantei e andei pela sala, minha


mente trabalhando a mil por hora me dando todas as recordações. — Eu
acordei do lado dele no hotel e fiquei confusa. Meu Deus... tudo tem uma
explicação. Eu mesma fiz tudo...?

— Sim.
— Por que ele nunca me contou? — Virei-me para os dois, sentados me
observando. — Porque Ulrich nunca me confrontou com isso? Eu dormia
com ele e depois o destratava, e ele... aguentou.
— Ele me disse o motivo — Benjamin falou. — Mas essa é uma
conversa que você precisa ter com ele. Ulrich te deve isso, te deve todas as
explicações.

— Ele errou também. — Cheguei à conclusão. — Céus, ele errou em


não ter me confrontado antes. Assim como eu errei em não ter contado a ele a
dúvida que eu tinha.
— Stela, eu já conversei bastante com ele. Ulrich se sente muito culpado
por isso. E eu pedi a ele e a seu irmão que não contassem para você, pois
você deveria ver por si mesma para compreender.

Sacudi minha cabeça, incrédula e muito abalada.

— Quanto mais ele iria esperar? Ele estava passivo, apenas esperando a
outra... — Merda, era tão difícil falar isso em voz alta. — Esperando a outra
voltar.
— Eu pedi a ele que recebesse sua outra personalidade sempre que fosse
visitá-lo, pois era uma forma de te manter segura enquanto estivesse
inconsciente. Você não pode resumir isso a um julgamento, pare de decidir
quem é o maior culpado. Vocês são humanos, com falhas, com erros e podem
aprender com eles.

Voltei a me sentar, as mãos na boca, enquanto refletia sobre as novas


informações. Não havia raiva dentro de mim, apenas perplexidade.

Eu o feri durante todos aqueles anos. Não perdia a oportunidade de


esfregar Miguel na cara dele, era a forma que eu encontrava de dar o troco
por ele ainda mexer muito comigo. E mesmo assim ele... cuidou de mim.
Ulrich me levava em casa nessas noites... Cuidou das crianças enquanto eu
era outra personalidade, guardou o meu segredo quando podia expor tudo só
para se vingar e acabar com meu casamento.
Repentinamente, uma aflição... Uma sensação de nostalgia amarga.

— Eu... preciso ir para casa. — Peguei minha bolsa e a coloquei no


ombro. — Quero estar perto dos meus filhos.
— Stela, você precisa continuar com as sessões. É a única forma de
encontrarmos o cerne de toda essa questão e de você poder conhecer tudo
sobre a outra Stela.

— Eu vou fazer isso. Pelos meus filhos. Chega de tentar empurrar para
debaixo do tapete.

— É assim que se fala. Vou marcar para daqui a três dias.

***

— Você a viu? — perguntei a Benjamin, quando ele me levava para


casa. — Você chegou a encontrar com a outra personalidade?

— Sim. Quando vocês voltaram da viagem. Era ela. Fomos ao hospital,


Andrey te culpou pelo pai ter passado mal e a Estrelinha não deixou barato,
falou poucas e boas com ele, deixando todos em choque.
— Sério? — Fiquei mais assustada ainda.

— Todos ficaram sem entender. — Benjamin riu, mas não me


contagiou. Recostei a cabeça no banco, refletindo mais a respeito. Toquei na
minha cabeça, ainda impressionada com o fato de que outra Stela morava
aqui dentro. Seria ela quem estava me dando impulsos estranhos
ultimamente?
E quanto a Ulrich... Ele omitiu isso de mim, mas a gente vivia em pé de
guerra. Ou melhor, eu vivia em pé de guerra com ele. Eu jamais acreditaria
nele se chegasse e me dissesse que estava transando comigo às escondidas.
Por Deus, eu jamais teria acreditado e acharia que era outra provocação dele.

Espera, aí! A tal amante dele... era eu mesma?


Eu tinha que dar um tempo desses pensamentos ou acabaria pirando por
completo.

Chegamos na mansão. Benjamin entrou comigo e decidiu ficar com a


gente. Eu sabia que ele estava preocupado ao não querer me deixar sozinha, e
não contestei; o deixei ficar.

— Você vai contar para as crianças? — ele perguntou. Recostou no


balcão enquanto eu pegava água. Sentia a garganta seca, por mais que eu
tivesse bebido no consultório. Acabei me decidindo por um suco que
provavelmente Maria tinha feito para o almoço.
Servi em dois copos e empurrei um para meu irmão, sem nem perguntar
se ele queria.

— Eu preciso falar com eles antes do exame de DNA. Não quero


esconder nada dos meus filhos. Eu acho que Ulrich não deve estar presente
no momento.

— Por que você não tem ideia de como os dois vão reagir? — Benjamin
presumiu.
— Exato. Talvez, no calor da emoção, eles podem dizer algo que vai
ferir Ulrich. Você pode ficar comigo? Eu nem imagino como será a reação
deles.

— Claro, mana. Eu posso imaginar como será difícil para eles


encararem isso, que o pai não é quem eles conheceram a vida toda.

— Marcarei acompanhamento psicológico para os dois. É melhor acabar


logo com isso, quanto mais cedo, melhor. E que saibam pela boca da mãe.
31

STELA

Benjamin teve que ir para casa, ele tinha algumas coisas para resolver, e
eu pedi para que ele viesse no dia seguinte, pela manhã. Ele precisava estar
ao meu lado, servindo de apoio quando eu fosse contar sobre a paternidade
para as crianças.

Ele me perguntou se eu não ia ver nosso pai. E, naquele momento, o pai


que me perdoasse, mas eu não queria vê-lo. Benjamin entendeu a minha
posição e disse que ia pedir aos outros para revezarem no acompanhamento
no hospital.
Subi as escadas, um passo de cada vez, lembrando da sessão com
doutora Eliana, que foi capaz de me esclarecer tudo. Agora eu parecia mais
apática do que desesperada. Uma sensação de languidez sem estar doente.
Minha enfermidade era na alma.

Outra personalidade. Eu jamais superarei esse diagnóstico.

Espiei no quarto de Raquel. Eu sempre os proibia de fechar a porta do


quarto, apenas uma neura; me dava calafrios pensar que um deles pudesse
precisar de ajuda com a porta fechada. Como nunca trabalhei fora, eu sempre
tive tempo de sobra para vigiá-los. Era férias, então eles estavam sempre de
bobeira. Raquel estava digitando no celular e sorrindo.

Nathan, como sempre, em frente ao videogame no quarto dele. O


aparelho era um pouco mais antigo, ele queria a versão nova, mas, mesmo
assim, esse era responsável por prender sua atenção e deixá-lo longe de
encrencas.
Ambos tinham amigos, e quase sempre estavam na casa de algum deles,
mas eu preferia quando estavam assim, debaixo da minha visão.

Fui para meu quarto, joguei a bolsa na cama e a olhei por um bom
tempo.

Mas que merda, Stela. Que droga!


Eu não tive amor e emoção no meu casamento, porém tive amor e
emoção no sigilo, ficando com Ulrich sem que nem eu mesma soubesse.

Eu fui sempre fria e pragmática? Minhas constantes tentativas de ser


polida e sensata me fizeram fria a ponto de criar outra personalidade que
enfim pudesse liberar meu desejo reprimido? A pergunta que eu fazia não era
sobre em que ponto da vida a outra surgiu, mas sim em que ponto eu passei a
viver automaticamente.

Seria o dia em que enterrei os meus sonhos e meu amor ao me casar


com Miguel? Ou o dia em que desisti de lutar por Ulrich e deixei que aquelas
pessoas, a ex-esposa, meu pai, o pai dele vencessem?
Eu me despi por completo, tanto da roupa, como da alma. Eu precisava
encarar a mim mesma, e debaixo do chuveiro eu chorei, um pouco assustada,
um pouco arrependida, e sentindo pena; pena de mim, do Ulrich e,
principalmente, dos meus filhos.

Os nossos filhos.
Caminhei para o closet, escolhi uma roupa, vesti o sutiã e a calcinha, e
antes de colocar o vestido escolhido, algo me chamou atenção: o espelho de
corpo inteiro. Postei-me diante dele e deslizei o olhar pelo meu corpo, me
analisando. E, por um instante, vi ali alguém que eu não conhecia. Não
assustada, como a pouco no banheiro, mas firme com o desejo de consertar os
erros. Meu queixo levantado, e um brilho atraente nos olhos.

— Oi... — sussurrei. — Você aí dentro... — Em seguida, ri de mim


mesma.

Que tolice, Stela. Como se alguém fosse mesmo te responder, reprendi a


mim mesma em pensamento.

Ou foi ela que respondeu em meu pensamento?

Que merda, eu ia acabar pirando.


Enfiei o vestido pela cabeça, abotoei e saí para o quarto, para pentear os
cabelos molhados longe daquele espelho.

***

Uma mãe não pode simplesmente se entregar, não importa o que esteja
passando, eu tinha duas crianças sobre minha responsabilidade e tinha que
me manter forte, ao menos de maneira aparente, por eles. Eu era boa nisso,
passei a vida me fingindo de forte.
Fiz o jantar, apenas uma macarronada com bastante queijo, como eles
gostavam. Coloquei a mesa e subi para chamá-los.
Raquel estava pronta, e Nathan tinha acabado de tomar banho e estava
se vestindo.

— Mãe! Estou me trocando — reclamou quando abri a porta.


— Oh, bebezinho lindo da mamãe está virando rapazinho? — Ele
odiava quando eu imitava uma voz melosa. Peguei o pente e penteei seus
cabelos. — Desça em vinte segundos para jantar ou eu tiro a televisão do seu
quarto.

Quando os dois desceram, já estavam em pé de guerra se empurrando.

— Parem com isso — gritei.


— Ela começou. — Nathan se defendeu. — Essa menina pensa que é
rainha da casa.

— Eu sou a filha mais velha, queridinho. Você deve me obedecer —


Raquel o provocou.

— Qual é a pauta da vez? — indaguei, servindo macarrão no prato de


cada um.
— Eu vou à sorveteria com minhas colegas e ele quer ir com a gente —
Raquel relatou e concluiu — Mas eu não permiti.

— Mãe, ela está indo falar de garotos com as amigas dela — denunciou.
— Esse é o segredo dela.

Servi o meu prato e me sentei diante deles. Olhei para ela.


— Você me pediu pelo menos, Raquel?

— Está vendo? — Nathan berrou. — Não deixa, mãe.

— Cala a boca, Nathan. — Ela berrou e se voltou, usando um tom


brando comigo — Eu ia pedir, agora.
— Para quando é isso?

— Amanhã às cinco da tarde.

— Eu vou pensar sobre isso. Agora esqueçam e comam tudo.

Eles olharam para o prato de macarrão. Raquel tirou uma foto


imediatamente, e Nathan, sem vontade, girou o garfo na comida.

— Não está com fome, meu filho?

— Só tem a gente nessa casa? — Elevou as sobrancelhas ao me encarar


indagando — O vovô vai voltar quando?

— Em breve. Essa semana ele sai do hospital. Agora coma.

— E o papai?
Quase engasguei. Tomei um gole de suco.

— Bom... eu quero me sentar com vocês e conversar sobre isso, tudo


bem? Mas agora vamos só comer.

Nathan assentiu e deu a primeira garfada na comida. Para minha


surpresa, Raquel me encarava desconfiada.

— Ele está bem? — ela indagou.

— Oi? Ele...?

— O papai...
— Sim. Ele está muito bem. — Meu sorriso tinha sido convincente?
Acho que não.

Eu sabia que minha filha não estava engolindo essa história de Miguel
simplesmente sumir sem nem mesmo ligar para eles. Ela, apesar da pouca
idade, era muito desconfiada e esperta. Quando terminaram de jantar e
subiram, me deixando sozinha arrumando a cozinha, eu me perguntei
interiormente qual dos dois reagiria pior diante da bomba que estava por vir.

Nathan, que quase sempre agia com emoção, ou Raquel, que era
racional e desconfiada? Eu não sabia qual seria a melhor forma de levar a
verdade a eles, mas teria que levar.

***

Eu tive uma noite inquieta. Deitada na cama, sozinha, aquele quarto


pareceu grande demais, e até tenebroso. Acendi o abajur para deixar uma
meia luz no ambiente que parecia me oprimir.

Peguei o celular e olhei minhas últimas conversas com Ulrich. Acabei


rindo com lágrimas nos olhos. Eu estava com saudade dele. Foi tão pouco o
tempo em que passamos juntos, mas o suficiente para reacender a paixão que
eu sentia. Queria tanto o ter ali na cama comigo...

Fazia pouco mais de um dia, e meu coração explodia com sua falta.

Eu estava vendo as fotos na galeria do celular, apreciando a nostalgia de


momentos bons que cada foto trazia, quando ouvi nitidamente:

— Oi... Ei, psiu.


— Quê? — Sentei na cama e olhei em volta. O quarto estava escuro e
silencioso. De repente, me vi quase tendo uma taquicardia tamanho susto.

— Aqui, Stela... aqui. — A voz vinha do closet.

Olhei para o abajur. A luz piscava, como se estivesse prestes a queimar.


— Meu Deus... — Afastei o edredom, calcei as pantufas e caminhei
para lá. Eu não estava com medo, apenas curiosa. Apesar de assustada.

Puxei a porta corrediça do closet, bati a mão no interruptor e dei de cara


com o espelho de corpo inteiro. Não tinha ninguém no closet. Empurrei a
porta do banheiro, espiei e estava vazio também. Mas quando me virei para
deixar o closet e voltar para o quarto, ouvi:
— Aqui, querida. — Girei nos calcanhares e perdi a respiração ao ver
meu reflexo acenar para mim no espelho.

Eu tentei gritar, mas nada saía da minha garganta. Enquanto eu era puro
horror e desespero, ela sorria. Apesar de estar com a mesma camisola que eu,
parecia mais sexy, parecia ter confiança no olhar. Um olhar quase selvagem e
malicioso.

— Sim, eu estou aqui. Com você. Juntas sempre. — O reflexo deu um


passo e saiu do espelho. Eu estava paralisada, tremendo.
— Não seja medrosa, garota. — Sentou-se no pufe que havia no local e
cruzou as pernas de modo sensual.

— Isso... é um sonho.

— Que seja, mas estamos aqui e temos que aproveitar esse momento
raro.
— Acorda, acorda... — eu batia insistentemente na minha cabeça,
apertando os olhos na tentativa de sair dessa situação.

— Devia usar esse tempo para me perguntar qualquer coisa.

Abri os olhos e a fitei. Subi meus olhos pelas pernas, minhas pernas, era
meu corpo, e meu rosto.
— Você... quer tomar minha vida? — Foi o que perguntei.

— Eu? — Gargalhou. — Logico que não. Eu não gosto de ter tantos


compromissos. As crianças são legais, mas não acho que eu seria boa mãe.
apesar de eles também serem meus, afinal eu decidi engravidar.
— O que...

Ela se levantou e ficou bem na minha frente. Passou o dedo pelo meu
pescoço e tocou meu queixo.

— Eu tive o delicioso trabalho de engravidar, mas você os gerou. — Ela


mordeu o lábio e jogou a cabeça para trás, sacudindo os cabelos soltos. —
Você bem que podia trazer Ulrich de volta, estou morta de saudade daquele
homem.
— Você é... promiscua — acusei.

— Na verdade, somos apaixonadas por ele. Eu quero te mostrar uma


coisa. Uma lembrança nossa.

— Não. — Tentei correr, mas fiquei parada no mesmo lugar, e


repentinamente, minha voz não saía mais. Era eu mesma bem na minha
frente. Era tão bizarro isso.

Ela tocou em minha cabeça.

— Está aqui, Stela, basta ver.

E então eu me vi. Era eu mesma, procurando algo em meio à roupas e


acessórios masculinos. Era um closet. Eu parecia assustada, porém decidida,
espiando para ver se alguém vinha. Então encontrei em uma gaveta inúmeros
preservativos. Tirei o broche que estava preso na minha jaqueta. Nesse
instante, ouvi uma voz de homem:
— Estrelinha, venha logo, vai esfriar.

— Estou indo. — gritei. Sem tremer as mãos, peguei os preservativos e


furei dois deles usando o broche. Levei-os e coloquei na cabeceira da cama,
para serem usados naquela noite.
— O quê...? — indaguei sozinha no meu closet. O meu reflexo já estava
voltando para o espelho.

— É isso — ela falou com um tom malicioso e acenou.

— Não... Não! Eu não seria capaz... não.


Eu me debati na cama e me sentei. Estava suada, o coração disparado, e
o peito subia e descia ofegante. Pulei da cama e corri para o closet. Nada. Era
eu mesma me vendo no espelho. Sentei-me no pufe com as mãos amparando
o rosto.

Tinha sido um sonho.

Calma, Stela, foi só um pequeno pesadelo. Não é real.

Depois do pesadelo, não consegui mais pregar os olhos. Eu acordei às


três da manhã e saí do meu quarto. Sabia o lugar certo onde eu poderia me
refugiar: no antigo quarto de Fernando, o cantinho da baixaria. Deitei na
cama, abracei o travesseiro que Ulrich usou e suspirei, levemente apavorada
com o sonho. Com as luzes acesas, vi o tempo passar e torci para o dia chegar
depressa.

Eu queria ver doutora Eliana. Eu queria respostas... não tinha como


aquele sonho ser real.
Enquanto Maria preparava o café, saí para buscar algo fresco na padaria.
Eu quase nunca fazia isso, Maria ligava e o rapaz vinha trazer. Porém eu
precisava de um motivo para sair, espairecer, tentar não pirar sozinha dentro
daquela casa.

Quando voltei, Benjamin já estava na mansão, como eu havia pedido


para ele.
— Tudo bem? — perguntou. Ele sempre sabia quando eu não estava
bem, assim como eu conhecia quando ele estava com problemas.

Esperei servir café em uma xícara, servi para mim também, e tentando
não parecer muito consternada, falei:

— Tive um pesadelo.
— É? E aí?

— Com ela... — sussurrei.

— Ela? — Franziu a testa.


— A outra eu.

Seu semblante suavizou, e ele assentiu entendendo meu estado de


tensão.

— E está abalada com isso?


— Um pouco. Na verdade, foi estranho. Eu me vi... falando comigo
mesma. São tantas coisas para encarar, mano. Eu nem mesmo digeri ainda
essa minha nova condição, e já tenho que falar com as crianças...

— É bom passar por tudo de uma vez, para se curar logo, de tudo ao
mesmo tempo.

— Isso é verdade. Obrigada por ter vindo.


— Estou aqui para o que precisar. Vamos passar por tudo isso, juntos.

***

Esperamos Nathan e Raquel acordarem. Tomaram café, conversaram


com Benjamin, demostrando felicidade ao vê-lo. E eu recostada na porta da
cozinha, os observando. Eles iriam me odiar? Era o que eu não cansava de
me questionar.
Meu deus, eles são tudo para mim.

— A mãe de vocês precisa bater um papo sério. Vamos lá para a sala?


— Benjamin falou com os dois, e ao mesmo tempo, todos me olharam.

— Está tudo bem, venham comigo. — Estendi a mão para eles. — O


Ben vai participar da conversa.
Sem questionarem nada, levantaram e me seguiram. Sentei-me em uma
poltrona, os dois se sentaram no sofá grande com Benjamin. Os três me
olhavam.

Eu decidi não contar nada sobre o novo diagnostico e nem falar os


detalhes de como as gravidezes foram concebidas, eram crianças ainda para
entenderem tão complexamente.

— Vocês dois têm idade suficiente para entender o que irei falar —
comecei. — Sei que não vai ser fácil, de maneira alguma será fácil, mas
somos uma família e estamos aqui para encarar tudo.
— O que aconteceu, mãe? — Nathan perguntou, impaciente e curioso.

— Calma, vou chegar lá. Me digam, o que acham do Ulrich?


— Eu gosto dele — Raquel foi a primeira a confessar.

— Eu também — Nathan concordou.

— Meus filhos, antes de me casar com o Miguel, Ulrich e eu estávamos


juntos. Por muitos motivos que não vem ao caso, mas que vocês saberão um
dia, eu e ele nos separamos, e fiquei com o Miguel.

Os dois acenaram positivamente com a cabeça, mostrando que estavam


acompanhando. Nem piscavam me encarando.

Limpei uma lágrima intrometida. Que merda, eu não podia chorar para
não os deixar mais assustados do que já estavam.
— O que a mamãe não sabia é que a sementinha que estava aqui dentro
— Toquei no meu ventre, e eles acompanharam meu movimento com o olhar
— Não era do Miguel. Era do Ulrich. Então, vocês dois vão fazer um exame
junto com Ulrich...

— Um exame...? — Nathan já tinha cara de choro ao me interromper.


— Exame de quê...?

Levantei-me da poltrona e me sentei com eles no sofá grande.

— Um exame que chama DNA. E eu quero que vocês possam conversar


com Ulrich, ele não sabia de nada, por todo esse tempo ele nunca soube.

— Sei que vai ser doloroso, mas vamos superar juntos — Benjamin
falou, e eu prossegui:

— Miguel criou vocês, ele estava presente na nossa vida todos esses
anos, e eu o agradeço por ter tratado vocês tão bem, porém ele fez coisas
ruins nos últimos dias.
— Que coisas?
Olhei para Benjamin e ele fez sinal para eu prosseguir. As crianças
tinham que saber o que de verdade aconteceu. Miguel não era vítima.

— Ele tentou dar um golpe em mim, na empresa... e ele mesmo saiu de


casa, ele mesmo não quis mais estar aqui, presente... Ele quis dar um fim no
casamento.
— Mãe.

— Nathan, escuta, descobrimos que o pai de vocês, de sangue, na


verdade, é o Ulrich. E esse exame vai comprovar isso.

Raquel estava de olhos saltados e com a mão na boca.


Nathan me empurrou e ficou de pé.

— Não! — gritou. — Mentira. Eu quero o meu pai. Eu vou falar com o


juiz que quero morar com meu pai.

— Nathan... — Benjamin tentou acalmá-lo.


— Filho...

— Eu não quero ouvir. — Colocou as mãos nos ouvidos. — Vocês


estão me enganando só para ele vir morar aqui em casa. Ele não vai ser meu
pai. — Não deixou que Benjamin tocasse nele e correu para as escadas,
subindo correndo.

— Eu vou atrás dele — Benjamin falou e correu para a escada.


Depois da explosão de Nathan, me virei para o lado e observei Raquel.
Ela estava na mesma posição. Nem piscava, com os olhos cravados nos meus.

— Mãe? — sussurrou, incrédula.

— Filha... Eu descobri recentemente e isso me deixou muito mal. O


Ulrich também está devastado... porque ele perdeu tudo da vida de vocês.
— É verdade, mesmo?

— Sim, Miguel também já sabe.

Ela me olhava sem piscar, e depois os lábios se uniram em um bico de


choro. Duas lágrimas desceram rápidas pela bochecha dela.

— Meu Deus! — Ela começou a chorar baixinho. — Nossa família


acabou.

— Não, querida, não acabou. Você e seu irmão precisam dar uma
chance para ele... podemos reconstruir tudo...
— Você... planejou isso?

— Não, Raquel, não. Eu acabei de saber também. Se eu pudesse, não


faria vocês sofrerem.

— O papai... não gosta mais da gente? Por que ele não veio?
— Miguel achou melhor assim. Tudo que ele fez... comigo. Ele me
machucou e agora precisa se afastar, querida.

— Mãe... — abaixou o rosto e chorou mais ainda. Eu a abracei, com


lágrimas silenciosas rolando em minha face. — Por que só você está
contando isso? — ela levantou o rosto e me fitou em meio as lágrimas. —
Onde está meu pai? Eu quero que ele me fale.

— Raquel...
— Não — gritou e ficou de pé. — Eu quero que ele me fale. — Assim
como o irmão, virou as costas para mim e correu escada acima.

Mais uma vez, sozinha. Dessa vez, porém, sentindo um pequeno alívio.
Agora meus filhos sabiam, e eu devia trabalhar a superação com eles. Peguei
o celular, toquei no aplicativo e mandei uma mensagem para Ulrich.
Eu: Preciso falar urgente com você. É sobre o exame de DNA. Chego
em sua casa às cinco.
Ele visualizou e mandou apenas um seco: “Ok”.
32

ULRICH

Apesar de tudo que aconteceu nos últimos dias, eu tinha passado uma
noite agradável. Fiz um çay e tomei antes de dormir. É o famoso chá turco,
tão apreciado lá, como a cerveja é aqui no Brasil. Procurei não me ferir muito
com o assunto da paternidade e nem tentar encontrar culpados. Eu não devia
me prender a isso. Todas as minhas ações, a partir desse momento, seriam
para recuperar o tempo perdido.

Às dez da manhã, recebi uma mensagem de Stela. Não vou mentir,


droga, eu fiquei feliz quando vi seu nome. Mas logo recobrei a racionalidade.
Eu não queria ficar com essa mal-estar entre a gente, mas também não seria
aquele que daria o primeiro passo. O conteúdo da mensagem me deixou mais
feliz ainda, porém minha resposta foi singela, apenas um ok.
Passei o dia de cabeça erguida, confiante que eu ia contornar a situação.
A fase do choro e abalo havia passado, agora era a fase da aceitação e luta.
Estudei um processo junto com Cora e preferi ainda não contar nada a ela,
não antes de ter a certeza do exame em mãos.

Almocei em um restaurante próximo ao escritório, na companhia de


outros advogados. Foi um almoço descontraído, com assuntos que giravam
pelo meio jurídico. Confesso que estava com saudade de esquecer o mundo lá
fora, e usei esses assuntos para me envolver.

Fui o primeiro a levantar, pois estava acontecendo um simpósio de


direito, e eu estava escalado para palestrar às duas da tarde. Despedi-me do
pessoal e já caminhava em direção à porta quando Milena também se
despediu de todos e correu, me acompanhando.
— Ulrich — ela me chamou.

— Oi. — Olhei-a e continuei andando. Desfilando elegantemente,


emparelhou comigo.

— Tentei te ligar ontem o dia todo.


Eu não quis atender ninguém. Estava curando uma ressaca, pensei.

— Sério? Devo ter esquecido o celular no escritório. Sempre acontece.

— Tudo bem com sua cliente? — Antes que eu pudesse ao menos


franzir o cenho querendo saber que cliente, ela emendou: — A Stela Capello.
O divórcio foi ontem...
Era ouvir o nome dela e meu coração disparava.

— Ah... parece que está tudo bem. — Tentei não mostrar todo o
interesse que eu sentia.

— Eu fiquei com muita pena dela.


Paramos na calçada, e eu a encarei, intrigado.

— Ficou? — Eu não queria ouvir Milena falar que sentia muito pelo fim
daquele casamento de Stela e Miguel.

— Ela saiu devastada lá de dentro, da sala. — Fez um bico, mostrando


pesar. — Eu fiquei com pena.
— Ela ficou mal?

— Sim. Muito. O irmão dela, que estava na sala acompanhando tudo,


precisou ampará-la. E todos estavam lá e ficaram cuidando dela. Eu já dei
entrada nos papéis e...
— Como assim, ela sofreu por causa do divórcio? — Pronto. Lá se foi
minha paz interior alcançada hoje pela manhã. Eu estava tenso e levemente
puto imaginando por que ela tinha ficado mal. Teria se arrependido? Depois
de tudo que Miguel aprontou, Stela teria ainda algum pingo de
arrependimento?

— Não. Foi algo que o ex-marido falou. Acho que uma revelação.

— E o que era? — Estava pior que filme de suspense, eu queria que


Milena soltasse tudo de uma vez. Merda de curiosidade.
— Acho que não tem problema eu contar, afinal, você estava cuidando
do caso dela.

— É, não tem. Conta logo. Por favor. — Deixei a impaciência falar


mais alto.

— Ele não quis a guarda das crianças. Todos nós ficamos chocados... O
irmão dela ficou muito perplexo.
— Ele não quis?

— Não. E então revelou que é estéril, os dois filhos não são dele.
Imagina isso? Até ela ficou chocada, e ele ameaçou processá-la.

Eu era praticamente um robô quando me afastei de Milena, me despedi


e fui em direção ao escritório. Ela até me chamou novamente, porém nem
olhei mais para trás. Eu estava em estado de catatonia.
Eu não tinha condição alguma de dar uma palestra em um auditório
lotado. Seria uma chacota. Depois da conversa com Milena, fui ao escritório
e conversei com Cora. Bastou eu dizer que estava acontecendo algo bastante
complicado em minha vida para ela entender. Cora não era apenas minha
sócia, era minha amiga e se prontificou a palestrar no meu lugar, para que o
evento não ficasse com uma lacuna.

Eu fui para casa. Fiquei minutos recostado na porta, olhando para a sala
à minha frente. Em pensamento, descartei qualquer chance de Stela ter ficado
com outro homem a não ser Miguel e eu. E já que Miguel é estéril...
O Nathan também é meu filho.

Eu sei que já vinha me preparando para isso, só não tinha tanta


convicção. Agora, com a confirmação, eu sentia tristeza e felicidade, as duas
juntas invadirem minha alma.

Eu ri alto e chorei ao mesmo tempo, ao lembrar de sua esperteza


negociando comigo. O garoto era focado no que queria e muito esperto para a
pouca idade. Ambos tinham um futuro brilhante, e agora eu torcia
visceralmente para que me permitissem fazer parte do futuro deles, já que não
consegui estar presente no passado.

Com as costas da mão, limpei uma lágrima.

Caralho! Dois filhos. Eu tenho dois filhos. E não de qualquer pessoa,


mas sim da mulher que doei todo meu tempo e passei anos amando.

Essa, sem dúvida, era a maior reviravolta da minha vida.


Eu queria ligar para Thadeo e reclamar com ele por ter vindo aqui e não
ter me contado nada. Ele já sabia, pois, segundo Milena, todos eles estavam
lá apoiando Stela. Entretanto desisti de tirar satisfação com ele. Não era dos
irmãos o dever de me contar, era da própria Stela, e eu esperava que ela fosse
fazer exatamente isso na visita que marcou, no meu apartamento.

***

Quanto mais eu desejava que o relógio se apressasse, mais parecia não


se mover. A diarista já tinha limpado a casa toda, mesmo assim ajeitei as
almofadas do sofá, mexi no tapete, colocando-o alinhado, verifiquei se tinha
gelo nas forminhas, e água na geladeira. Depois caminhei de um lado para o
outro, até que às cinco e dez ouvi o interfone. Era o porteiro dizendo que
Stela tinha chegado.

Andei mais um pouco, esfregando as mãos, interiormente torcendo para


que ela contasse toda a verdade, não me escondesse nada.

Tocou a campainha, esperei uns segundos e abri a porta.


Cacete. Ela estava linda. Os cabelos soltos, loiros escuros, tão macios
quanto meu tato lembrava. Ela os mantinha sempre alinhados, estavam
penteados de lado, deixando uma orelha à mostra. No rosto, maquiagem leve.
Nada parecida com Estrelinha.

Ela também estava mexida ao me encarar. Piscou rápido e deu uma


mordidinha no lábio.

— Oi — sussurrou, um pouco tensa.


— Entre. — Deixei-a passar. O clima estava pesado, na verdade, a
química de paixão entre a gente era tão poderosa, que não dava para apenas
ignorar. E ali estávamos tensos; não parecíamos duas pessoas que duas noites
atrás estavam fazendo sexo oral no outro. — Sente-se aí.

Sentou-se no sofá.
— Quer beber algo?

— Não. Obrigada.

Eu continuei de pé, encarando-a no sofá cheia de insegurança.

— Então...

— Na verdade...

Falamos juntos. Isso era ridículo.


— Pode falar — eu disse.

— Na verdade, está calor... gostaria de algo gelado.

— Certo. Eu tenho um suco pronto, de abacaxi. Gelo e açúcar? — Que


porra é essa, Ulrich? Eu estava parecendo um garçom servindo uma mesa.
— Sim, por favor.

Fui rápido para a cozinha. Virei a forminha de gelo em um copo, caíram


mais cubos de gelo fora do copo do que dentro. Peguei três que caíram no
balcão e joguei no copo.

Cacete. Esqueci de pegar o pegador de gelo. Vai na mão mesmo, ela


não vai saber.
Abri o armário procurando uma bandeja. Eu achei que não tinha. Como
uma pessoa não tinha uma bandeja na casa? E se eu usasse um prato para
saladas?

Merda. Eu sou tão bom na cozinha, mas hoje só o nervosismo existe.


Com cuidado coloquei o suco no copo, não muito, pela metade. Joguei
açúcar e mexi. Não achei guardanapo, peguei uma folha de toalha de papel e
levei na mão mesmo.

— Obrigada. — Recebeu o copo da minha mão. Provou e colocou na


mesinha à sua frente. Enfim me encarou e sustentou o olhar. — Quando ia
me contar sobre a outra?
— Então, você já sabe...

— Sim. Fiz uma sessão de regressão. Me vi com você, aqui nesse


apartamento... Você passou todo esse tempo sem me contar, sem me
confrontar.

— Eu não podia.
— Me deixa concluir — pediu com a voz baixa. — Você me culpou por
não ter falado sobre a dúvida que tive todos esses anos. Para mim, era uma
loucura, já que eu não lembrava. Você sabia os motivos pelo qual eu não
lembrava, mas mesmo assim me culpou. Você dormia comigo, mas mesmo
assim me culpou.

Os olhos já estavam lacrimejantes.

— Veio aqui apontar o quanto eu fui incoerente e culpado?


— Encare isso apenas como um prefácio da conversa que vamos ter
agora. Eu quero que saiba que eu estou ciente de que você também errou,
mas não é sobre isso a conversa.

— Eu sinto muito, de verdade. — Sentei no sofá, apoiando os cotovelos


nas coxas, sem olhar para ela. — Antes de tudo, as suas visitas... da outra
personalidade, eram esporádicas. Eu não sabia que tipo de joguinho era
aquele que você fazia: transava comigo e em seguida, em público, me tratava
como inimigo. — Dei um sorriso irônico antes de prosseguir: — Teve uma
vez que fui te perguntar sobre nossa noite e você disse algo como: “Prefiro
dormir com o capeta.” E eu disse: “Prazer, capeta.”

Stela usou a toalha de papel para limpar uma lágrima e acabou rindo.
— Eu lembro disso. Mas nunca soube de nossas noites. Não era minha
consciência.

— Eu sei. Hoje eu sei disso. E eu pensei: se é assim que ela quer, então
não vou me importar. Eu segui minha vida, ficando com outras mulheres, me
divertindo, progredindo profissionalmente, enquanto via de longe você feliz
em seu casamento. As vezes demorava um ano, ou dois... para você vir me
ver.

— Nunca pensou em namorar... Em seguir em frente como eu segui?


Dei de ombros antes de responder com sinceridade.

— Não me importava mais. A mulher que eu queria não estava mais


disponível, portanto, eu não tinha pressa em procurar alguém.

— Quando decidiu procurar doutora Eliana?

— No último ano. As visitas tornaram-se muito frequentes, e você


estava cada vez mais sedenta. Então eu falei com o Benjamin. Ele me levou
até a doutora, e ela chegou ao diagnóstico. Ela disse que ia te mostrar a
verdade através das sessões de regressão e me pediu que eu continuasse te
recebendo, pois era uma forma de te manter segura.

Ela assentiu, com toda sua atenção voltada para mim.

— A gente sempre ia para cama?


— Nem todas as vezes. Às vezes conversávamos, às vezes assistíamos a
filme. Eu sempre te levava antes do dia amanhecer.

Stela dobrou o papel toalha e limpou mais lágrimas. Ficou algum tempo
assim, chorando em silêncio, e eu sabia que ela estava odiando mostrar
fraqueza na minha frente.
— Aquela marquinha... — Tocou acima do seio.

— Fui eu.

— Meu Deus. É tão difícil para mim... ter que encarar. Você estava
tendo um caso comigo?
— Tecnicamente, sim. Stela, pode parecer muito idiota, mas eu te
esperava. Eu não fiquei com mais ninguém quando as visitas se tornaram
frequentes. Eu não podia. Porque você não se lembrava, mas seria cachorrada
da minha parte se eu ficasse com outras, já que eu lembrava por nós dois.
Comecei a torcer que voltasse mais vezes...

— Enquanto isso, consciente, eu te tratava como lixo. — Chorou mais e


tratou de limpar as lágrimas. — O último ano... Você parou a vida por mim, e
eu continuei te ferindo... Me desculpe, por isso.

Rapidamente me levantei do meu lugar e me sentei ao lado dela, em


seguida passei o braço em seus ombros.
— É passado. Deixe como está.

Ela terminou de limpar os olhos, que não tinham mais lágrimas, e bebeu
mais um gole do suco.

— Fracassamos, Ulrich. Fracassamos em nossos sonhos e planos de


adolescência. Nós dois erramos, e não quero mais ficar medindo quem teve
um deslize maior.
— Não vamos mesmo fazer isso. Tem coisas mais preciosas para
lutarmos.

— Sim. — Ela sorriu e me olhou. — Eu tenho algo para te falar.


— Pode dizer.

— Miguel... me revelou algo que me deixou em desespero. — Ela olhou


nos meus olhos. Havia tanta sinceridade no olhar junto com emoção. — Ele
revelou que sempre foi estéril. Provavelmente, Nathan também é... seu filho.

— Tudo bem. Eu já sabia. Soube hoje mais cedo, e estou muito feliz que
tenha me contado.
— Soube? Por quem?

— Milena, a advogada que presidiu a reunião do divórcio.

— Ah... Entendi. Vocês estão...


— Não. Não tenho nada com ela.

Stela pareceu aliviada e anuiu.

— Você vai precisar do que para pedir os exames de DNA?

— Se for algo de comum acordo com a responsável legal por eles, no


caso você, podemos fazer de forma particular, sem precisar envolver justiça.
Depois eu entro com o requerimento de paternidade.

— Você quer mesmo isso? Eu não estou querendo forçar...

— Stela, é o que mais quero. Você não tem ideia da minha felicidade.
Eu nem sei explicar o quanto estou radiante por dentro. Porque eu já gostava
muito deles, e agora descubro que são meus filhos.
Ela assentiu e ficou calada olhando o papel toalha, que dobrava e
desdobrava nas mãos trêmulas.

— Eu... estarei ao seu lado, para te ajudar... será difícil. Mas eu quero e
preciso te ajudar a se envolver com eles — prometeu.
— E eu agradeço.

— Eu já falei com eles — ela sussurrou, cautelosa.

Meu coração falhou uma batida.

— Já? E aí? — Segurei a respiração, mesmo já prevendo que não


deviam ter reagido bem.

— Não reagiram bem. Mas vão superar. Temos a vida toda pela frente,
Ulrich.

A tristeza me engolfou. Eu não sabia o que dizer. Queria gritar, na


tentativa de expulsar essa sensação de aperto no peito. Dois filhos, e eles não
me veem como pai.
— Eu trouxe algo para você. — Ela abriu a bolsa e tirou o que parecia
ser um livro. Em seguida me entregou, era um álbum de fotografias. — Eu
sei que não é muito, mas eu achei que você gostaria de ver. Retirei todas as
fotos em que Miguel aparece.

Enquanto ela falava, eu estava de olhos parados na capa do álbum, meio


desbotado, mas as cores eram pastel.

Abri a capa e me deparei com uma foto de Stela ainda no hospital, com
um bebê nos braços. Mordi o lábio para segurar a emoção. Stela era tão
novinha... na época em que eu a perdi. Eu queria muito ter estado ali com
elas.
A legenda abaixo dizia: “Meu primeiro dia com a mamãe”.
— O que você pensou? — indaguei — O que pensou quando a pegou
nos braços?

— Que nada mais importava, pois eu a tinha.


Sorri para Stela e passei para a próxima.

Era uma foto grande. Lá estava Stela, os quatro irmãos a rodeando, e


Raquel recém-nascida nos braços da mãe.

“Eu com meus titios babões.”

Dei uma risada ao ler, e uma lágrima desceu sem que eu pudesse
controlar.

A foto a seguir era grande, Raquel ainda bebezinha, sozinha na cama,


sorrindo para a câmera. Os cabelos eram cheios e bem pretos. Desci meu
polegar pelo rostinho dela.

— Nossa menina — sussurrei cheio de orgulho. Olhei para Stela sentada


ao meu lado. — Obrigado. É um presente lindo. Eu farei uma cópia e te
devolvo.
— Fique quanto tempo quiser. Tem todas do Nathan também. — Ela
ficou de pé e pegou a bolsa. Levantei-me também. — Preciso ir... eu os
deixei com o Benjamin.

— Tudo bem — concordei, e Stela ficou me encarando por alguns


segundos, como se esperasse que eu dissesse algo, ou talvez quisesse dizer
algo.

— Tudo bem. — Repetiu. Virou-se, caminhou para a porta, mas eu


passei na frente e a abri para ela.
— Até... qualquer hora.
Nem tive voz para concordar. Eu não sabia o que meu coração queria,
mas minha racionalidade dizia para me controlar. Tínhamos muito a resolver
antes de qualquer atitude, e dessa vez eu queria que ela mostrasse alguma
atitude. Stela precisava mostrar que me queria, assim como eu sempre a quis.

O celular dela começou a tocar na bolsa.


— Pode atender. É melhor enquanto está aqui e não no trânsito.

Ela balançou a cabeça concordando. Pegou o celular e olhou antes de


levá-lo ao ouvido.

— Oi, Ben, diga. O quê? — Arregalou os olhos e me encarou. — Como


assim? Onde você estava que não viu isso? Oh, meu Deus... estou a caminho.
Desligou o celular e engoliu em seco. Estava pálida, parecia prestes a
desmaiar.

— O que houve, Stela?

— As crianças saíram de casa, e Raquel deixou um bilhete dizendo que


estavam indo ver o Miguel. O pior é que eles nem sabem onde Miguel está.
33

STELA

Eu estava calada ao lado de Ulrich enquanto ele dirigia rumo à mansão.


Passaram mil coisas em minha mente, desde as mais desesperadoras, até as
mais tranquilas. Meus pensamentos me diziam: eles vão ficar bem, Raquel é
esperta, vai voltar logo com o irmão. E no mesmo segundo já estava
contestando: eles nunca saíram sozinhos para explorar a cidade, procurando
alguém sem saber onde procurar.

Ulrich, apesar de escolher palavras de conforto, parecia tão preocupado


quanto eu. Porém escolheu se reservar de qualquer emoção explícita.
— Como isso aconteceu, Benjamin? — foi a primeira coisa que
perguntei quando coloquei os pés em casa.

— Foi tudo muito rápido — ele explicou. — Eu fiquei o tempo todo de


olho nos dois, que não pareciam estar planejando uma fuga, mas, por um
instante, fui à cozinha onde Diana preparava um lanche para eles...

— Meu Deus. — Sentei no sofá. As mãos na cabeça, lutando para


manter a sanidade.
— Temos que manter a calma. Eles podem voltar a qualquer momento,
pois começou a escurecer — Ulrich tentou me tranquilizar e indagou em
seguida para Benjamin: — Já tentou ligar para Raquel?

— Já. Ela não atende — Benjamin respondeu. — Também tentei falar


com Miguel, e está fora de área ou desligado.
— Eu acho bom esperar. — Diana entrou na conversa. — Não há tanto
perigo, afinal ela deixou um aviso de onde estava indo.

— Eu só fico muito preocupada porque antes eles saíam, mas tinham


um destino para ir. E nunca saíram depois da cinco sozinhos.

— Onde você acha que eles podem ter ido para procurar o Miguel? —
Ulrich indagou.
— Miguel ligou para eles um dia desses e disse que estava em um hotel.
O problema é que não gravei o nome do local.

Ulrich sentou-se ao meu lado. Era bom enfim sentir a presença dele e
seu apoio.

— É um primeiro passo — ele disse, e eu o encarei, esperançosa por


uma ideia. — Vamos fazer uma pesquisa dos hotéis mais próximos da
Capello, onde possivelmente ele tenha se hospedado, e talvez você se lembre
do nome de algum.

— Ele pode ter ficado na casa do Rômulo — deduzi, não sendo enfática.
Eu não tinha certeza disso, mas era a cara do Miguel.

— É mais provável — Benjamin concordou. — Ele pode ter mentido


dizendo que estava em um hotel só para não contar a verdade para as
crianças.

— Então temos um caminho mais fácil — Ulrich ponderou. — Basta


saber o endereço do Rômulo. Miguel ainda pode estar lá, ou podemos pegar
uma informação com quem estiver na casa.
— E se encontrarmos Miguel...

— Ele pode ligar para Raquel e convencê-la a voltar — Benjamin


completou.

Já era quase oito da noite quando saímos de casa. Thadeo, Ulrich e eu.
Benjamin ficou na mansão para receber as crianças, caso voltassem antes da
gente os encontrar. Andrey estava no hospital com nosso pai, Fernando disse
que mais tarde viria para a mansão com Maria Clara, já Thadeo obrigou a
gente a esperá-lo, pois queria acompanhar Ulrich e eu nas buscas. Eu não
recusei. Ele era um homem destemido e muito grande, seria muito útil.

Thadeo dirigia, Ulrich estava ao seu lado, e eu no banco traseiro


olhando atentamente a rua, esperando que pudesse vê-los. O coração ficava
cada vez mais apertado, porém eu me segurava em um fio de controle para
não surtar.
Tentei pela milésima vez falar com Raquel. Só dava caixa-postal.
Desliguei o celular me sentindo irritada.

— Meu Deus, ajude que meus filhos estejam bem — sussurrei a prece e
abaixei a cabeça, segurando os cabelos.

— Stela? Tudo bem? — Ulrich estava preocupado, além de me olhar de


uma forma intrigada. Eu logo imaginei o que ele estava pensando: como era
um momento de estresse, a outra personalidade poderia voltar. Mas eu não
queria isso. Não ia permitir, na verdade.
— Estou bem. — Tranquilizei-o. — Quando encontrarmos, vou abraçá-
los com tanta força... Mas amanhã darei uma chinelada em cada um. E
Nathan pode esquecer o Xbox ou celular para o resto da vida.
— Não precisa punir tanto o menino... A chinelada já está de bom
tamanho — Ulrich defendeu.

— Está passando pano para o pestinha, cara? — Thadeo provocou.


— Ser neutro é minha intenção.

O carro parou em um semáforo e Thadeo olhou para Ulrich.

— Você... já sabe? Sobre o Nathan...

— Sim. Stela me contou hoje.

Ulrich e eu achamos que ele falaria algo agradável, de apoio ao amigo,


mas a reação foi diferente.

— Você está de brincadeira, hein, Turco? — Thadeo deu um soco no


ombro de Ulrich.
— Ai, porra. Por que me bateu?

— Pegou minha irmã duas vezes por baixo dos panos?

— Thadeo! — Berrei do banco detrás. O rosto ardendo de vergonha. Se


ele soubesse que foram mais de duas...

— E isso porque não se suportavam, imagina se estivessem no maior


love? — criticou. — Seria a casa cheia de filhos.

— Tudo tem uma explicação — Ulrich se defendeu. — A gente vai


explicar a vocês como tudo ocorreu para acontecer as gravidezes. — Claro
que Ulrich se referia ao transtorno, mas Thadeo já levou para outro lado.

— E eu lá quero saber de explicação de como você engravidou minha


irmã? Dessa vez, eu que vou te excluir do grupo.
— Thade, eu planejo contar para vocês o que houve entre a gente —
reforcei. — Não sobre esses detalhes.

— Ok. Vou aguardar.

— Mas então não vai me dar parabéns por ser pai duas vezes? — Ulrich
se inclinou para Thadeo, que acabou sorrindo de lado.

— Tá certo. Parabéns. Estou feliz por você. E pelos meus sobrinhos, que
se livraram de um encosto. Agora você tem que agilizar um terceiro pirralho,
para que você possa acompanhar tudo de perto e até ensinar a falar sua língua
turca.

— Meu Deus, Thadeo... — Abaixei o rosto, tampando os olhos com a


mão.
Apesar de descontração inicial no carro, o clima foi ficando tenso
conforme o tempo passava e não tínhamos nenhum avanço. Eu me abanava,
tremia, o estômago revirava, como se a qualquer momento eu fosse jogar
tudo para fora. Era do estresse, certamente.

A cada vez que eu ligava para Benjamin e ele dizia que não tinha notícia
ainda, meu sangue gelava. Eu fiz mais preces nesse momento do que fiz em
minha vida inteira, porque se algo acontecesse, eu simplesmente morreria.
Minha vida acabaria de vez.

Não pense nisso. Não pense nisso.


Forcei o fio de positividade que restava em minha alma.

Chegamos ao endereço de Rômulo, e um homem que disse ser o caseiro


falou que Miguel e Rômulo tinham saído de lá fazia tempo. Ele achava que
Miguel tinha ido para a casa de um parente.

— Parente? — Thadeo indagou intrigado, olhando para mim.


Estávamos parados na rua, dentro do carro, pensando em qual seria o
próximo passo. — Miguel tinha parente a não ser os pais doidos?

— Os pais dele não moram aqui — falei, também pensativa. — Mas se


eu não me engano, ele tem um primo, ou tio, que não tinha muito contato...
— E onde esse primo ou tio mora? — Ulrich perguntou.

— Vamos saber agora. — Procurei no celular o contato do meu ex-


sogro. Demorou muito para atender, e quando atendeu, cortei logo a
intimidade que ele achava ainda ter. O pai de Miguel já sabia do divórcio, me
chamando de ex-nora e mostrando que teve contato com o filho nesses
últimos dias.

— O nome dele é Isaias — O pai de Miguel falou. — É meu irmão.


Anota aí o endereço, mas se eu fosse você, não iria para aquelas bandas a
essa hora. — Ignorei o alerta e anotei o endereço.
— Então, querida ex-nora, como está o seu pai? Fiquei sabendo que...

— Até mais seu Odilon. — Desliguei a chamada. Eu lá tinha tempo de


papear com ex-sogro? — Aqui. — Passei o papel para Ulrich, e ele se
apressou em colocar o endereço no GPS. Thadeo arrancou com o carro. Meu
coração saltou junto em disparada.

Seu Odilon não mentiu. O lugar causava calafrios. Eu nunca tinha vindo
para aquelas bandas da cidade, e eu estava impressionada por Miguel nunca
ter ao menos tocado no nome desse tio.
Era aqui que ele estava ficando? Que diabos tinha acontecido na vida de
Miguel?

O carro parou em frente a um portão pequeno, de uma casa precária, e


Thadeo se voluntariou para descer e bater no portão. Os vizinhos saíram na
porta, pois estávamos na Hilux de Thadeo, que era um carro chamativo.
— Seu Isaías. — Meu irmão chamou ao mesmo tempo que batia palma.
Uma luz acendeu lá dentro, e eu pulei do carro junto com Ulrich.

O portão abriu e um senhor saiu, meio surpreso, olhando de olhos


saltados para a gente. Nitidamente não reconhecia ninguém.
— Oi, senhor Isaias. Eu sou Stela. Stela Capello, ex-esposa do Miguel.

— Hum... lembro de você. Minha casa está movimentada esses dias...


Ontem vieram uns homens estranhos em um carro preto, agora vocês.

— Eu fiquei sabendo que Miguel está ficando aqui, só queria falar com
ele.
— Ih, minha filha. — Estalou a língua e fez uma careta de lamento. —
Meu sobrinho desapareceu.

— Desapareceu?

— Sim. Parece que é coisa pesada, de agiota. Deixou tudo aqui e sumiu
com a roupa do corpo. — Ele inclinou mais sobre mim e falou como se fosse
um segredo: — Um dia desses bateram muito nele. Tô até achando que
podem ter matado ele. — Em seguida, se benzeu.

Assustada, levei a mão à boca. Lembrei-me do Miguel cheio de


hematomas quando foi assinar o divórcio. De repente, senti pena dele.

Agradecemos e voltamos para o carro, agora com uma estranha


sensação de terror que só crescia. E se esses tais homens que bateram nele
pegaram meus filhos, pensava, apavorada.

Ulrich, dessa vez, entrou atrás comigo. Sem que eu esperasse, me puxou
para seus braços. Ele sabia que eu estava a um fio de surtar.
— Vamos encontrá-los — ele afirmou. — Eu sei que vamos. Não seria
justo, Deus, ou Alá, não faria isso comigo. Eles não seriam arrancados da
gente bem no momento que eu acabei de conhecê-los. Eu acredito nisso.

Eu apenas concordei mexendo a cabeça. Abracei-o com força, torcendo


para que o que ele acreditava fosse real.
— Eu lembrei de algo — Thadeo disse. — A casa que vocês moraram
quando se casaram. Miguel a ganhou no divórcio.

— Isso — exclamei. A esperança renascia. — Vamos para lá agora.

***

| CRIANÇAS

— Foi culpa sua, Raquel — Nathan acusou em um resmungo.


— Minha? Quem teve essa ideia ridícula de ir atrás do papai?

— Você trouxe um spray de pimenta e não jogou na cara do homem.


Para que trouxe se não ia usar?

— Nathan, você é bobo? — Ela rangeu os dentes, tentando não falar


alto. — Tinha uma arma apontada para sua cabeça.
— Calados! — O homem que dirigia o carro gritou para os dois no
banco traseiro. Parou em um semáforo e se virou apontando uma arma para a
cara das crianças. — Eu estou falando sério, mais um pio, e eu desisto de
levar vocês para meu chefe e acabo com a raça dos mini-Capello.
Raquel suspirou e fechou os olhos, fazendo mais uma prece para a
coleção de quase mil. Ela não estava contando, mas suspeitava que chegava a
esse número. Não queria concordar com o irmão, entretanto se sentia mesmo
culpada. Era a mais velha e concordou com a ideia estúpida de sair de casa
para buscar respostas com o pai que eles nem sabiam onde estava.

Além disso, não conseguiu ter uma ideia racional quando tudo deu
errado. Eles saíram de casa em um Uber, foram direto para a antiga casa onde
os pais moraram quando se casaram. Era o único endereço que conheciam e
que tinham esperanças de encontrar Miguel por lá.
Ao chegarem na casa, se identificaram, e o homem que os atendeu pediu
para entrarem e disse que o pai iria mesmo chegar. Raquel pensou que enfim
estava tudo bem e segura. O homem grande, barbudo, falava ao celular, mas
nem sinal de Miguel aparecer.

Passou os olhos pelo ambiente. Ainda tinha móveis cobertos com


lençóis brancos. Ela viu algumas embalagens de lanchonete, garrafas de
cerveja e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro. Não era um lugar em que
Miguel moraria. Ela o conhecia e sabia como era asseado e gostava de coisas
caras.

E aquele cara estava longe de parecer alguém que Miguel pudesse ser
amigo.
— Vamos embora, Nathan. — Cochichou para o irmão. — Isso não está
me cheirando bem.

— Mas e o papai...?

— Vamos, agora! — Levantaram-se e correram em direção ao jardim,


saíram no portão e ganharam a rua. Mas logo um carro os acompanhou, e
com uma arma, o homem grande e barbudo os forçou a entrar.
Eles nunca tinham visto um revólver, a não ser em filmes. E ficaram
paralisados com aquela situação.

Agora, com o celular descarregado e em posse do malfeitor, Raquel se


sentiu boba e pequena demais para salvar a si e ao irmão. Não passava de
uma criança.
Pensou na mãe e como ela ficaria triste com o desaparecimento deles.
Raquel sabia que a mãe não estava passando por momentos bons esses
últimos dias, assim sentiu-se mais culpada ainda por trazer mais dor para ela.

Também pensou em Ulrich. Ok, ela não tinha raiva dele, na verdade
gostava da presença alegre. E remoeu em sua mente as palavras da revelação
da mãe. Ele era o verdadeiro pai. Ele também ficaria triste com o
desaparecimento dela e do irmão?

— O que acha do pai turco? — Nathan perguntou de repente,


evidenciando que também pensava em Ulrich.
— Eu não sei, Nathan.

— Eu não queria isso, Raquel... O nosso pai é o Miguel. — Havia


rancor e inconformidade em sua voz.

— Não é um assunto que quero falar agora, Nathan.


— Talvez podemos ter dois pais. — Ele ponderou de mau-gosto
fazendo-a refletir. Lembrou da viagem que fizeram e de como a mãe voltou
mais feliz. Todavia ainda sentia algo intenso pulsar em suas veias ao lembrar
da revelação. Era difícil aceitar.

— Então podemos ter três casas para ficar — Nathan persistiu,


buscando uma solução — O pai Miguel, o pai turco e a mamãe.

Raquel calou-se pensando na possibilidade. Isso poderia dar certo.


Apesar de abalada com a notícia, havia algo que a deixava profundamente
incomodada: o silêncio de Miguel. E no alto dos seus treze anos, ela se sentia
abandonada pelo pai.

— O papai não se importou muito — enfim sussurrou, para o irmão


ouvir. — Ele saiu de casa, não ligou mais para a gente... Se o que a mamãe
disse for verdade...
— Mas talvez ela se enganou, Raquel.

— O pai de vocês é um bosta covarde — o homem que dirigia falou,


entrando na conversa. — Ele só liga para o próprio umbigo. E agora, fugiu,
deixou a bomba na mão de vocês — gargalhou sonoramente.

Era raro acontecer, Nathan não era um menino que chorava com
frequência, entretanto nesse instante chorou com as palavras que acabara de
ouvir. Com as mãos no rosto, chorou de tristeza, raiva e medo. Interiormente,
só desejava que a mãe estivesse perto. Ele iria pedir desculpas a ela e nunca
mais sairia sem falar.
Raquel puxou a cabeça do irmão e o abraçou.

— Não chora, maninho...

— Se ele... não quer mais a gente, Raquel, então não vamos mais querer
ele.
Minutos depois, um pouco mais calmo, encolhido no banco, ele viu o
homem se enfurecer falando ao celular.

— Vai demorar mais uns vinte minutos, porra. Aguenta aí. Só vou
abastecer rapidinho.

A pessoa que ligava falou algo e ele respondeu:


— Não dava para enfiar os pivetes no porta-malas e nem amarrar.
Estavam na rua, eu tive que agir rápido. Daqui a pouco chegamos aí e você
decide o que faz.

Não estar no porta-malas era uma grande vantagem para eles. E iam
fazer uma parada, era melhor ainda.
Rapidamente, Nathan limpou os resquícios de lágrimas, puxou a
pequena bolsa da irmã e fez sinal para ela fazer silêncio. Dentro, como ele
sabia, tinha um pequeno spray de pimenta, que era a única arma que ela
levava. Um presente de um dos tios.

O carro diminuiu a velocidade e entrou no posto de gasolina. Quando


parou, o homem barbudo virou-se para trás, o hálito forte de cigarro atingiu
diretamente as narinas deles.

— Caladinhos aí atrás. Sei muito bem onde vocês moram, conheço a


mãe de vocês e pode sobrar para ela. Querem que algo aconteça a ela?
— Não.— sussurraram quase juntos.

— Ótimo.

O frentista aproximou-se e o barbudo ao volante pediu para colocar a


gasolina, mas sempre olhando os dois pelo espelho retrovisor.
Nathan puxou a mão da irmã e colocou o pequeno spray de pimenta. Em
seguida sussurrou: “Quando ele abrir a porta.”

— Nathan... — Amedrontada, sem saber o plano do irmão, ela tentou


pará-lo. Tarde demais, o irmão caiu sobre ela de olhos fechados, com o corpo
mole. O menino amava jogos e filmes, ela logo entendeu o que ele estava
fazendo. Chamando atenção. Então entrou no plano.

— Moço, meu irmão... Ele tem problemas... e está passando mal. — O


menino expelia saliva pelo canto da boca, o corpo imóvel.

O coração de Raquel batia tão forte que poderia ouvi-lo. Ela estava com
medo de perder a única oportunidade. Sentiu o peso da responsabilidade da
única chance para salvar a si e ao irmão.
— Merda. — O homem abriu a porta, desceu do carro e quando abriu a
porta traseira, com a mão tremula, Raquel apontou e apertou firme, sem soltar
um segundo, acertando rosto do barbudo com o spray de pimenta e o pegando
desprevenido. O grito do homem foi alto, desorientado tentava limpar os
olhos. Nathan pulou para fora do carro, Raquel abriu a outra porta e correu
junto com o irmão para a loja de conveniência do posto.

— Moça! — ela já entrou gritando para a mulher que estava no caixa.


— Socorro, chame a polícia, fomos sequestrados.

O motorista do carro limpava os olhos furiosamente, tentando enxergar


para onde os dois tinham corrido. As crianças gritavam lá dentro da loja
apontando para ele, falando ao mesmo tempo, chamando atenção das pessoas
que estavam por perto.
Sabendo que tinha dado errado, ele voltou para o carro, acelerou ainda
com a bomba de gasolina presa ao tanque. Entrou com toda velocidade na
pista e bateu de frente em um carro que passava.
34

ULRICH

Stela lutava bravamente contra o descontrole. Qualquer um poderia


perceber a força que ela fazia para se manter sóbria e racional diante da
situação em que estávamos. Essa era a nossa última esperança segura, Miguel
tinha que estar na antiga casa.

Eu seguia firme e forte confiando na minha intuição. Eu não queria nem


imaginar, nem mesmo cogitar, que algo pudesse dar errado com os dois, que
eu nem tivesse a chance de dar ao menos um abraço em cada um deles.
— Que fim de mundo vocês foram construir, hein, Stela? — Thadeo
comentou sobre a casa em que ela morou quando se casou.

— Foi minha tentativa de ganhar liberdade.

Eu preferi não dizer nada, mas odiava pensar que ela quis morar tão
longe só para se ver livre da persuasão do pai. Lembro muito bem quando
passei em frente à casa, só mesmo para ver e me ferir no processo. Eu era a
porra de um sádico que não se importava com a dor.
Apertei os dedos em volta dos de Stela, e ela me olhou.

— Vamos achá-los. — Impressionantemente, ela compartilhou comigo


um pouco do otimismo que lhe restava. Assenti concordando. — Ulrich... eu
gostaria de te dizer que... — Mas não prosseguiu. Ela foi interrompida por
uma batida violenta no carro, sem que a gente pudesse esperar. Ouvi Thadeo
praguejar e lutar para controlar a direção enquanto a Hilux rodopiava na
pista.

Segurei Stela com força, mesmo ela estando de cinto. Senti uma dor fina
na cabeça e um zumbido instantâneo em meu ouvido.
Os pneus do carro cantaram no asfalto, até Thadeo conseguir parar
atravessado na estrada. Ainda bem que não vinham outros carros ou teria
ocasionado algo maior.

— Tudo bem aí atrás? — Aflito, desafivelou o cinto e olhou para Stela e


para mim.

— O que houve? Meu Deus... O que houve, Thadeo? — Stela balbuciou


expressando seu horror.
— Um louco saiu do posto de gasolina e bateu na gente. Merda, tem
sangue no seu rosto, Ulrich.

Instintivamente tentei tocar minha face, mas Stela me impediu:

— Não toque! — Ela desafivelou o cinto de segurança e segurou meu


queixo para analisar o estado do meu rosto. — Ulrich, está tudo bem?
— Sim... só um pouca tonto.

— Foi um ferimento feio? — Thadeo indagou.

— Parece que foi um corte acima do olho, temos que chamar uma
ambulância.
— Não... Stela... — Tentei afastá-la — Não precisa.

— É claro que precisa, não seja teimoso. — Pegou a bolsa que tinha
caído longe e começou a procurar algo dentro — Será que a pessoa do outro
carro está bem?

— Já vou ver. — Thadeo se prontificou — Só vou ligar para a


ambulância.
Olhei pela janela lá fora, e as pessoas que estavam no posto corriam em
direção ao outro carro. Como o de Thadeo era uma caminhonete alta, o
impacto maior, e possivelmente os danos maiores, ficaram com o outro
veículo. Recostei a cabeça no banco e fechei os olhos. Ouvi Thadeo explicar
ao telefone, quase impaciente, que houve um acidente e tinha alguém ferido,
depois ouvi dizer a nossa localização.

Ele desligou e saiu do carro.

— Ulrich, não durma, olhe para mim, por favor... — Era a voz de
Stela... parecia longe e lenta. — Precisa ficar acordado. — Senti algo macio
em meu rosto e entreabri os olhos para encontrar Stela, desesperada usando
um lenço para fazer pressão contra meu ferimento.
— Quem te viu, que te vê, Stela Capello — sussurrei. A cabeça latejava
de dor. — Antes queria me matar, e agora está cuidando de mim.

Ela sorriu brevemente, sem conseguir esconder a preocupação.

— Fique consciente, por favor. Thadeo já chamou ajuda.


Segurei sua mão e fiz um rápido carinho com meu polegar.

— Tem que continuar as buscas sem mim, Stela.

— Sim, iremos continuar. Vou ligar para meus irmãos...


Ouvimos uma movimentação lá fora e olhamos ao mesmo tempo pela
janela do carro.
Lá do posto de gasolina, vinha gritos eufóricos:

— Tio! Aqui, tio Thadeo.

Thadeo, que estava dando assistência para o outro carro, também olhou
naquela direção e foi andando devagar, de modo incrédulo, naquela direção.
Repentinamente, ele aumentou o passo e correu até lá. Então os dois vieram
correndo ao seu encontro. Era Nathan e Raquel.

— Oh, meu Deus! — Stela gritou e abriu a porta do carro. Vacilou por
segundos e me olhou.

— Vá — incentivei. — Por Alá, vai logo. Eles estão bem. — Eu ria


enquanto falava e até esquecia da minha dor, tamanha emoção que me tomou.
Stela saltou do carro e correu feito uma louca na direção de Thadeo, que
já estava abraçando as crianças.

Eles piraram quando vira a mãe correndo até eles. Os dois voaram na
direção dela, quase a derrubando.

Rindo, recostei a cabeça novamente no banco. Devemos estar mesmo


em uma série turca, porque era impensável que uma coincidência dessa
pudesse acontecer de forma natural.
35

STELA

Frases entrecortadas de agradecimento saíam da minha boca enquanto


beijava meus filhos em todos os lugares: rosto, cabelos, pescoço. Tanto
Nathan como Raquel se agarravam a mim em uma mistura visível de alívio e
medo.

— Mamãe, me desculpe! — Nathan exclamou em alto e bom som. —


Eu nunca mais vou fazer isso. Não precisa chorar, eu não vou mais fazer isso.
— É o que espero. Nunca mais façam isso comigo. Eu senti tanto medo.
— Havia em mim apenas uma grande sensação de alívio. Ter os dois nos
meus braços, sentir o aperto de cada um e suas vozes, era a melhor emoção
que já enfrentei.

— O que estavam fazendo aqui? — Thadeo perguntou. — Sozinhos


nesse ermo? — Antes de Nathan ou Raquel abrirem a boca, um homem com
uniforme do posto de gasolina se aproximou.

— Ei, dona. — Ele se dirigiu a mim — Você conhece essas crianças?


— Sim, são meus filhos. Eu estava procurando-os.

— É melhor ficar aqui até a polícia chegar — advertiu. — Nós já


chamamos. Seus filhos estavam presos no carro daquele cara que se
acidentou. Os dois conseguiram fugir e pediram para chamar a polícia.

— Que história é essa, rapaz? — Com as mãos na cintura e um olhar


investigativo, Thadeo pressionou.
— É isso, senhor. — O frentista do posto até deu um passo para trás
diante da proximidade de Thadeo. — As crianças estavam dentro do carro, de
repente saíram correndo e pedindo para chamar a polícia. Assustado, o cara
tentou fugir e acertou em vocês. É uma puta coincidência ele ter topado justo
em vocês. Olha lá, a polícia está vindo. — Apontou para ao longe, na estrada.

Mesmo o som das sirenes não foi capaz de me distrair. Eu estava


chocada, sem reação. Eles tinham sido sequestrados?

— Calma, eles já estão bem — Thadeo sussurrou, acariciando minhas


costas ao perceber meu abalo.
— O que poderia ter acontecido...? Céus...

— Mãe, o Nathan fingiu passar mal para a gente fugir do criminoso. —


Atropelando as palavras, Raquel começou a contar.

— O que vocês fizeram? Onde estavam? Em que se meteram?

— Mas ele era burro. Ele nem amarrou a gente. — Nathan gritou por
cima da voz da irmã. — Que bandido não amarra as pessoas?

— Mamãe, você não vai acreditar — Raquel ainda tentava narrar o que
tinha acontecido. Eu apenas a encarei. — Ele estava na antiga casa sua... e era
amigo do... — Ela parou de falar, espantada ao olhar para a outra direção e se
deparar com algo. Virei-me e percebi que era Ulrich saindo do carro e vindo
andando devagar, pressionando o lenço na testa. Agora, debaixo de uma luz
mais forte, dava para perceber com mais clareza o sangue que escorria em seu
rosto. Nathan já o encarava paralisado, feito uma estátua. Como se Ulrich
fosse uma aparição.

Ulrich parou, a uns passos de distância e acenou. Nathan e Raquel


continuaram paralisados em modo de alerta. Ulrich deu um passo, um tanto
vacilante, na direção deles, parecia ter um leve receio nos olhos, expressando
o medo de ser rejeitado.
— Ulrich... você precisa esperar a ambulância — enfim, falei. — Como
está o ferimento?

— Eu vou ficar bem. — Tomou coragem e bagunçou de leve os cabelos


de Nathan.

— Tudo bem, amigão?


— Sim — ele sussurrou, bravamente, sem tirar os olhos de Ulrich. Mas
segurou forte meu braço.

— E você, pequena Mortícia? — perguntou, espiando Raquel.

— Bem. — Sua voz era um cochicho.


Silêncio nos envolveu. Eu estava prestes a falar algo para quebrar o gelo
quando Nathan tomou a dianteira:

— Você está ferido?

— Pois é. Isso que dá ficar sem o cinto de segurança. Mas vou


sobreviver.
Rapidamente contei para Ulrich que eles tinham sido pegos por um
criminoso, mas conseguiram escapar. E nós acabamos trombando com o
homem que tentava fugir.

— A gente escapou porque eu fiz uma coisa que vi em um filme. —


Nathan relatou, não gritando como antes. O tom era meio acanhado, o que
não combinava com ele. Era como se a presença de Ulrich o deixasse tímido.

— E que manobra foi essa? — Ulrich indagou e buscou os olhos de


Raquel, que parecia arisca mirando-o de soslaio, escondida atrás de mim.
— O Nathan fingiu que passou mal... E eu estava com meu spray de
pimenta que o tio Ben deu... Acertei o olho do homem.

— Ora, ora, Stela. — Ulrich virou-se para mim. — Teremos que


parabenizar o Benjamin pela atitude exemplar. Se fosse o Thadeo, teria dado
uma espingarda para vocês. — Isso os fez rir, tirando um pouco o clima tenso
entre a gente.

— Na verdade, é o que pretendo dar a essa baixinha no aniversário de


quinze anos dela. — Thadeo entrou na conversar. — Deram um susto danado
no pessoal, hein, pivetes? — falou com os sobrinhos.
— Mas não tivemos medo, tio — Nathan retrucou.

— Claro que não tiveram, afinal tem sangue Capello aí nessas veias.

A ambulância apareceu também com as sirenes ligadas, e Thadeo fez


sinal para eles. Em seguida correu até lá e conversou com o paramédico,
apontando para onde a gente estava.

— Acho que minha carona chegou — Ulrich disse. Eu via em seus


olhos como ele queria dar um abraço em cada um dos filhos, mas se
controlou, deu o tempo e o espaço que as crianças precisavam.

— Você vai para o hospital? — Raquel balbuciou a pergunta.

Uma paramédica aproximou-se antes de Ulrich responder.


— Senhor, precisa se sentar para a gente ver seu ferimento — pediu a
Ulrich.
Ele não tentou protestar, apenas a seguiu, logo depois de dizer às
crianças:

— Que bom que nós encontramos vocês. Estou muito feliz que estejam
bem.

***

Terminamos a noite no hospital para onde levaram Ulrich. Precisava dar


pontos no ferimento e fazer uma radiografia para se certificar que não houve
qualquer traumatismo.
Os policiais acompanharam o criminoso, que também precisou ser
hospitalizado, e me disseram que o delegado iria precisar conversar com as
crianças. Benjamin veio buscá-los, e eu fui com Thadeo para o hospital, para
onde tinham levado Ulrich.

Um policial foi ao hospital e explicou para Thadeo e eu que o motorista


que tentou sequestrar as crianças confessou estar na casa que Miguel ganhou
no divórcio porque, segundo ele, meu ex-marido devia dinheiro para o chefe
e tinha sumido sem quitar a dívida. Ele estava lá de plantão esperando Miguel
aparecer, mas quem foram as crianças que surgiram. O plano era tentar atrair
Miguel usando os meus filhos, e isso apertou meu coração, como se um
punho o segurasse.

— Pode me contar como ocorreu essa transição, que foi de odiar o


Ulrich a ponto de ranger os dentes, para agora estar sentada apreensiva em
uma sala de espera, aguardando notícias sobre ele?

Sentado ao meu lado, Thadeo interrogou de forma humorada. Em


segundos, eu fiz essa análise apontada por ele, revendo tudo que aconteceu
desde o dia em que Rômulo me pressionou até agora.
— Foi algo tão sublime... Eu nem sei por onde começar. O ponto inicial
foi quando Rômulo jogou todas as merdas de Miguel na minha cara. Eu não
tinha a quem recorrer, então liguei para meu maior desafeto. — O sorriso
banhando meus lábios foi automático. — Você acredita que ele atendeu
minha ligação e não hesitou em deixar o trabalho de lado para me ajudar?

— Esse é o turco — Thadeo endossou. — O cara que nos conquistou e


que permitimos que fizesse parte da família. Ele é como o sexto Capello, e
que bom que você percebeu isso a tempo.

— A tempo...?
— A tempo de recomeçar, Stela. Todos nós sabíamos que era disso que
você precisava: recomeçar. Vocês são jovens ainda e tem uma vida inteira
pela frente.

— Ele e eu estamos dando um tempo. Não foi algo combinado, apenas


nos afastamos.

— Então encontre uma maneira de trazê-lo de volta. Não quero saber de


mulher nenhuma ferindo o coração de coelhinho do meu amigo.
Acabei rindo do comentário dele.

— Está tomando um lado, ficando contra sua irmã?

— Claro que não. Só que também não vai mais ganhar vinho e manteiga
caseira de graça até que dê uma chance para o turco. — Ouvir isso me fez rir
mais, além de ter lembrado sobre o caso da manteiga.
— Eu já estou bem ciente dessa manteiga. Você deveria se envergonhar.
— Apontei o dedo para ele, e Thadeo se retesou, surpreso. — E se Gema
sabe e compactua com isso, ela é mais louca do que você.

— Foi Ulrich que poluiu a sua cabeça com essas merdas?


— Sim, foi ele.

— Então vou ser obrigado a ferir o outro lado da testa dele, só vamos
aguardar os médicos liberarem.

Gema apareceu logo depois, na companhia de Fernando e Maria Clara.


Ela estava desnorteada quando entrou no hospital, e assim que viu Thadeo, se
jogou nos braços dele, que se levantou para recebê-la.

— Caramba! Quer me matar do coração, homem? — Gema estava


fadigada, a preocupação visível no olhar.

— Ei, estou bem. — Thadeo afagou os cabelos dela.


— Eu quase tive um treco quando soube do acidente.

— Estou bem, amor. — Thadeo tornou a tranquilizá-la. — Quer dizer,


um pouco doloridinho em algumas partes. Vai ter que me mimar muito para
sarar. — A chantagem provocou riso nela. A cor voltava aos poucos ao rosto
dela.

— Besta. Para de me dar susto — alertou, beijou rápido os lábios do


meu irmão e deixou-o para vir falar comigo.
— Stela, tudo bem? — Sentou-se ao meu lado. Maria Clara já tinha
ocupado a cadeira do meu outro lado. Afastados, Fernando prestava atenção
em Thadeo que narrava os acontecimentos.
— Sim, estou — respondi a Gema — Ulrich só veio fazer uma
radiografia. Cortou acima do olho na hora do impacto. E Benjamin levou as
crianças para casa.

— Graças a Deus eles estão bem — Maria Clara falou. — E que história
louca é essa de sequestrador? Fernando contou por alto.
Resumidamente contei para elas o que o policial tinha nos falado.
Ambas ficaram chocadas.

— Que menino esperto. Seria impossível um menino tão esperto ser


filho daquele pamonha do Miguel — Maria Clara criticou incisiva.

— Mulher, que reviravoltas são essas na sua vida? Você e Ulrich? quem
diria... — Gema estava de queixo caído, e quem não estaria? Meus
confrontos com Ulrich sempre foram públicos, cada uma delas ficava a par da
nossa briga de anos e sentava-se na arquibancada para assistir o desenrolar.
— Você e o Ulrich sempre tiveram um caso? — Gema insistiu, cheia de
dúvidas. — Aqueles shows de insultos eram tudo uma fachada?

— Não era bem assim. Há algo muito mais profundo... Vocês vão
entender mais tarde.

— Amiga, eu sempre soube — Maria Clara falou com seu tom enérgico.
— Tinha muita faísca entre vocês — analisou.
— Verdade — Gema concordou. — Eu até comentei com Diana no dia
do meu casamento. Não é normal você ficar tão furiosa com o Ulrich só por
causa da presença dele.

— Não era só a presença. Ulrich sabe como tirar qualquer um do sério.


Ele conseguia me provocar de uma maneira que despertava meu lado mais
baixo. Eu sempre caía nas provocações.
— Quando a gente briga muito assim com o cara, quer matar o sujeito,
em alguns poucos casos, na verdade, está querendo dar gostoso — Maria
Clara fez a análise, cochichando. Gema berrou gargalhando, e eu dei um tapa
na minha cunhada.

— Meu Deus, Maria Clara.


— Stela, mas tem um fundo de verdade no que Maria Clara falou. —
Gema decidiu dar embasamentos para a fala da outra. — Quando eu cheguei
na vinícola, eu queria matar o Thadeo, mas sentia um tesão tão forte por ele,
que me amedrontava.

— É isso que estou falando. Fernando foi a mesma coisa. O dia que
sentei naquele homem pela primeira vez, ninguém mais me tirou de cima.

— Meu pai, amado. — Tampei os olhos com a mão. — Olha a conversa


no hospital. Escutem, meninas, eu prometi ao Thadeo que contaria tudo, o
grande mistério da paternidade. Vou contar para vocês também, vocês nem
imaginam.
— Estamos morrendo de curiosidade. Thadeo e eu já criamos umas
teorias. Mudando de assunto, eu sempre achei o Miguel tão estranhozinho.

— Eu nunca fui com a cara dele. Agora posso falar. — Maria Clara
cruzou as pernas de modo elegante. — O cara me barrou na festa na mansão
e ainda insinuou que eu era uma garota de programa. E dias mais tarde
roubou as ideias de Fernando, estava mancomunado com a cobra da Leticia.

— Essa história é horrível — Gema concordou. — Você me contou, e


eu fiquei de cara.
— Pois é, menina. Nunca mais confiei nele. Fernando já não gostava do
meliante. Meu marido tem faro para essas coisas, disse que sempre soube que
Miguel não prestava.

— Do mesmo modo o Thadeo, que até abriu um dos melhores vinhos


para comemorar o dia em que ele e os irmãos bateram no Miguel. Eu ainda o
aconselhei, falei: “Rapaz, mas ninguém comemora desgraça dos outros, não.”
Mas ele disse que era benção, não desgraça.
— Gema do céu, o que a gente vai fazer com esse cara presente em
nossos álbuns de casamento?

Acabei rindo do questionamento de Maria Clara.

— Olha em que você está pensando nesse momento, Maria Clara. Toma
jeito.
— Thadeo falou que ia colar um emoji em cima da cara dele nas fotos
no nosso casamento. Mas, me conta, Stela, como está a relação com Ulrich?

— Conto mais tarde, olha lá, ele está vindo.

Ulrich vinha pelo corredor, um curativo na testa, andando normalmente


com uma enfermeira em sua cola.
— Seu Ulrich, o médico recomendou que fique ao menos uma noite.

— Não obrigado, preciso pular cedo amanhã.

— Rapaz, você está teimando com a mulher — Fernando interveio. —


Fique aí, e se der uma coisa ruim?
— O exame está normal, seria apenas uma noite de observação.

— Eu observo na minha casa, prometo. E obrigado pela preocupação.


Algum de vocês pode me dar uma carona?

Olhou para mim e sorriu.


— Você ainda está aqui... — Foi uma constatação de surpresa.

— É. Estou.

Ele riu. O sorriso mais bonito e sexy que existia. Caramba, eu o amava.
Sim, eu passei anos sufocando esse sentimento dentro de mim, me
convencendo de que amava outro, mas só Ulrich conseguia fazer meu
coração bater na garganta, meus poros se arrepiarem e meu ventre remexer
leve como um balão. Além de estar causando a maior ressaca pós-romance
que alguém poderia passar.

***

— Tudo bem mesmo? — perguntei a Ulrich quando o carro de


Fernando parou em frente ao prédio.
— Sim. Estou. Bem e feliz por ter dado tudo certo.

— Certo. Então, até depois...

— Boa noite, Stela.


Olhei para nossas mãos ainda grudadas.

— Boa noite, Ulrich.

Aos poucos nossos dedos se afastaram até eu o deixar ir.


36

STELA

— Vamos dormir com a mamãe... Só hoje? — Sentada na cama de


Nathan, tentava convencê-lo a ir comigo para meu quarto. Eu ainda estava
insegura e queria os dois perto de mim naquela noite. Nathan estava virado
para a parede, emburrado, era a forma dele de mascarar o desapontamento e a
tristeza.

— Não, mamãe.
— O que você está sentindo, querido?

Ele se virou para mim e me fitou. Os olhos levemente úmidos.

— Eu queria ter uma máquina no tempo para não deixar nossa família
acabar.
— Não acabou, meu filho. Você ainda tem a mim, sua irmã, seus tios, o
vovô que volta logo do hospital.

— Eu sei, mas eu gostava das nossas férias. Mesmo que o papai nunca
quisesse ir para a floresta, ou rio, ou acampar, eu gostava só mesmo de que
ele estivesse lá. — Ele se sentou na cama e limpou os olhos. — Se eu
precisasse, eu sabia que meu pai estava lá, e agora nem sei onde ele está.
Meu coração cortou ao ouvir isso. Eu entendia que para um criança,
ainda mais um menino, era importante ter o pai por perto, porque era a forma
mais próxima de idealização da vida adulta que eles conheciam, e eu gostaria
muito que ele pudesse espelhar isso em Ulrich, que seria um excelente
modelo a ser seguido.

— Eu sei que será muito difícil para você superar isso, mas você pode
abrir seu coração e deixar o Ulrich ser um amigo.

— Mãe...

— Não estou pedindo que comece a chamar ele de pai amanhã. Mas
deixe o Ulrich se aproximar e conhecer vocês. — Abracei-o apertado, e
Nathan não me repeliu. — Eu prometo que vou te ajudar a passar por isso,
nós vamos passar juntos. O Miguel fez escolhas ruins, e um dia você vai ter a
oportunidade de ouvir dele todas as explicações que ele deve a você e sua
irmã.

— Tá bom.
— Vamos para meu quarto? Só hoje.

— Tudo bem.

— Vai para meu quarto que eu vou chamar sua irmã.

Dei dois toques na porta de Raquel e entrei. Ela estava sentada na cama,
abraçando os joelhos, olhos fechados e usando um fone de ouvido.

Eu me aproximei e toquei nela. Raquel assustou-se e tirou o fone.


— Mãe?

— Vamos dormir comigo no meu quarto? Só hoje?


— Por quê? Aconteceu algo? — Ela me olhou alarmada.

— Não. Só estou com saudades dos meus filhotes. Seu irmão aceitou.
Vamos?
— Tudo bem.

Nathan estava deitado contra os travesseiros, na minha cama, enquanto


sentadas também na cama, eu fazia uma trança nos cabelos de Raquel. Nós
três de pijamas.

— Só para vocês saberem, Ulrich já está bem e saiu do hospital.


— Ele teve que levar pontos? — Raquel perguntou.

— Sim. Quatro pontos. Mas vai ficar bem.

Ficamos em silêncio até Raquel decidir falar.


— O papai me deixou muito triste — Raquel enfim confessou. — O que
aquele bandido falou era a verdade. Ele só sumiu, nem se importou com a
gente.

Olhei para Nathan, calado, com uma expressão triste.

— O Miguel se envolveu com pessoas erradas. Ele fez escolhas ruins, e


agora vai colher o que plantou. — Terminei a trança, e Raquel se deitou. Eu
continuei sentada na cama, olhando para eles. — O importante é que nós três
estamos fortes e unidos. Ninguém vai nos separar.
— Eu não queria que ele tivesse feito isso — Nathan falou baixinho. —
O que eu vou dizer para meus colegas quando voltar às aulas?

— Vai não precisa dar explicações para essa gente maldosa. Vocês
poderiam dar chance para conhecer o Ulrich. Ele ficou tão feliz quando viu as
fotos de vocês quando eram bebês.
Nathan manteve-se calado, pensativo. Raquel foi por outra direção:

— Por que você não ficou com ele, mãe? Se ele é nosso pai e você
nossa mãe, por que não se casou com ele?
— Um momentinho. — Saí da cama, fui ao closet, em um canto,
embaixo de tudo, tinha uma caixa. Abri, e dentro havia objetos que
pertenceram à minha mãe. Ali era um excelente lugar para guardar um
pequeno álbum de fotografias. Tirei a poeira e sorri. Fazia tantos anos que eu
não o pegava.

Voltei para a cama.

— Venham aqui. — Os dois prontamente me rodearam para olhar as


fotos. Na primeira, estava Ulrich na bicicleta cargueira. Lembro-me
perfeitamente desse dia.
— É o Ulrich?

— Sim. Essa era uma bicicleta cargueira e servia para fazer entregas. —
Passei outra foto, onde estavam Thadeo, Ulrich e eu. — Um dia vocês vão
sentir uma coisa que se chama paixão, e logo depois amor. Era o que eu
sentia por aquele turco que falava estranho, entregava pães caseiros em uma
bicicleta e... olha só... — Mostrei a foto em que Ulrich abraçava várias caixas
de leite. — Amava tomar iogurte. Se deixasse, ele poderia falir a Capello
bebendo todo leite e iogurte.

— Eu também gosto muito de leite — Nathan relembrou esse fato.


— Olha só! Um ponto em comum com ele. Ulrich era um jovem muito
inteligente, passava direto em todas as matérias e aprendeu o português com
rapidez. E ele me ajudou em um momento que eu estava muito abalada.

— Quando a vovó estava doente? — Eles sabiam da história da minha


mãe. Assenti, confirmando. — Minha mãe adorou aquele jovem turco, que
era sempre bem humorado, sempre de bem com a vida, mesmo não tendo
tanto dinheiro como nós, os Capello. Aqui foi um dos dias mais felizes para
mim. O aniversário de quinze anos, meu e do Ben.

— E vocês brigaram? — Raquel parecia mais interessada, Nathan


apenas ouvia com atenção. Deixei o álbum ao lado, na cabeceira, e eles
voltaram a deitar. Pensei em como abordar a situação com eles, o que
aconteceu para a gente se separar. Ainda era cedo para entenderem todos os
detalhes.
— O pai dele o levou embora, contra a vontade. E ao chegar na Turquia,
Ulrich foi obrigado a se casar, porque isso pode acontecer lá no país dele.
Então eu fiquei tão triste... minha mãe tinha acabado de morrer, Ulrich tinha
ido embora, e eu não tinha notícias dele. Esse foi o nosso fim.

Os dois me olhavam atentamente, calados, concentrados na história.

— Ele está sofrendo porque perdeu toda a vida de vocês quando eram
bebezinhos. E agora Ulrich deseja muito que vocês sejam amigos dele. Já
marcamos o exame, e eu estava pensando em convidá-lo para almoçar aqui
depois do exame, o que vocês acham?

— Tudo bem — Raquel foi a primeira a concordar. Nathan continuou


me olhando e pensando.

— E você, meu bem?

— Está bem. Minha cabeça está cheia de pensamentos, mãe...


— Eu sei. É muita coisa para vocês entenderem, mas tudo começará a se
encaixar. — Levantei, apaguei a luz, mas deixei o abajur aceso. Em seguida
deitei no meio deles.
— E tudo que a gente passou com o papai... Miguel? — Raquel
sussurrou.

— Não precisa esquecer. Vocês podem guardar com carinho esses


momentos bons e podem abrir o coração para receber novos momentos bons.
Agora tirem essas preocupações da cabeça e vamos dormir. — Beijei cada
um deles e olhei para o teto esperando o sono chegar.

***

Ulrich não veio até a mansão no dia seguinte, e eu já acordei preocupada


com ele. As crianças ainda dormiam, eu me levantei, tomei uma ducha, só
para despertar, e fui para a cozinha. A sensação de batalha vencida me
preenchia. Era satisfatório saber que meus filhos estavam seguros e que tudo
tinha dado certo, mesmo que para Miguel as coisas parecessem estar um tanto
difíceis. No dia anterior a polícia nos disse que não tinha conseguido
encontrá-lo.

Porém eu achava pouco provável que algum muito ruim pudesse ter
acontecido. Miguel não era tão bobo como parecia.
Sentei-me na cozinha e Maria me serviu uma xicara de café. Decidi
ligar para Ulrich; ele atendeu depressa, causando uma sensação de alívio em
mim.

— Oi, bom dia.

— Bom dia, Stela. Como passou a noite?


— Bem, e você? Está melhor?

— Sim. A cabeça doeu um pouco, mas estou bem. Aqui é duro como
uma coco, não é assim que vocês falam?
Sorri e beberiquei o café.

— Sim. Bom, só liguei para isso. Vai vir aqui hoje?

— Não acho uma boa ideia. Quero deixar as crianças digerirem o que
aconteceu.

— Também acho. Você pode vir amanhã. Eu conversei com eles, contei
brevemente sobre a gente. Eles podem ainda não te ver como pai, mas não
vão jogar os pés em você.

— É o bastante para início.

***

Ulrich deixou passar dois dias até aparecer pela manhã na mansão. Meu
pai voltou naquele dia do hospital, eu acordei muito cedo para ajudar a
preparar o quarto em que iríamos recebê-lo. Às nove da manhã, eu tinha
acabado de acordar Nathan e Raquel quando Ulrich chegou. Abri a porta e
notei que parecia nervoso. Era a primeira conversa que teria com as crianças
depois de saberem da paternidade e depois de toda a confusão de três dias
antes.
— Como está a cabeça? — perguntei logo de cara, mesmo sabendo que
estava tudo bem.

— Bem. — Com as mãos nos bolsos, observou ao redor.


Ulrich estava cheiroso e belo em um terno caro, falava comigo de forma
amigável apenas. Eu vi desejo em seus olhos, mas não cruzou a linha. Ele
estaria me ignorando? Isso me matava aos poucos.

Ele estaria me fazendo sentir na pele o que passou nos anos em que era
ignorado por mim? Se isso fosse uma lição proposital, eu estava aprendendo
de uma forma dolorosa. Ulrich fazia falta, em todos os aspectos: sua voz, seu
cheiro, seu deboche, sua presença,

— Fique aqui, vou chamá-los.

Fui ao quarto de cada um e os chamei. Antes de descerem, falei:

— Não precisam fazer nada que não queiram, tudo bem? E nem
precisam forçar nada, apenas o tratem como o Ulrich de antes, que vocês já
conheciam. Vamos fazer isso aos poucos.
Assentiram juntos, sem esconder a ansiedade, e desceram comigo.

Ulrich ficou de pé assim que entraram na sala.

— Oi, pequenos fujões. Como passaram esses dias?


— Bem — eles sussurraram, juntos, encarando Ulrich como se
estivessem em alerta.

— Certo. Que bom.

Nathan parecia quase assustado encarando Ulrich, e eu entendia. Era


muito difícil e inesperado para ele encarar esse fato. Uma mudança de pai
nessa idade, não era algo bem-vindo. Mas Ulrich tinha toda a paciência do
mundo. Só em vê-los e saber que não sentiam raiva, era suficiente.
— Já estamos sabendo — Raquel, apesar de se mostrar mais relutante,
instigou.
— A mamãe contou para a gente — Nathan decidiu acompanhar a irmã.
— Que vamos fazer um exame para saber se você é mesmo nosso outro pai.

Ulrich e eu trocamos um olhar.


— É verdade. Eu estou bem feliz desde que fiquei sabendo — Ulrich
disse em tom divertido — Sabe por que fiquei feliz?

Os dois balançaram a cabeça em negativa.

— Porque eu gosto de vocês. Já eram meus amigos desde antes. Então


gostei de saber que a gente tem essa ligação. Prometo não ser um pai muito
malvado. Vou xingar vocês em turco para que não possam entender.
Os dois tentaram controlar o riso, porém acabaram perdendo e
sucumbindo ao sorriso.

Em seguida, sentaram no sofá em frente a Ulrich.

— Nós vamos continuar morando com nossa mãe — Nathan impôs.


Decidi não me intrometer em nada, era o momento deles.
— Claro que sim — Ulrich concordou — É uma casa grande, bonita
com piscina, leite e iogurte à vontade. Até eu queria morar aqui.

Riram mais um pouco.

— Eu vou ter que usar véu? — Raquel mostrou seu temor. — Igual na
novela da Índia?
Agora foi minha vez de rir e colocar a mão na boca para disfarçar.

— Não. Claro que não. — Com toda a paciência, Ulrich respondeu. —


Você é brasileira, e mesmo se um dia visitar a Turquia, não precisa disso. O
hijab não é obrigatório lá no meu país.

— A gente vai ter que ir lá um dia? — Nathan indagou, e em seguida


completou: — Eu acho que gostaria de ir.

— Eu morreria de alegria se vocês fossem um dia. A Capadócia é um


lugar muito bonito. Querem ver? — Os dois balançaram a cabeça afirmando.
Ulrich pegou o celular e eles se levantaram de onde estavam e sentaram-se
com Ulrich, cada um de um lado.
— Essa é a casa onde eu nasci. Fica dentro da rocha.

— Uau. Você nasceu em uma caverna? — Nathan se mostrou surpreso


de uma maneira positiva.

— Teoricamente, sim. Olha isso. Esses são os balões. Os turistas vão lá


para dar volta. Sobrevoar o lugar é a coisa mais bela que existe.
— Eu tenho um pouco de medo de altura — Raquel pontuou.

— Você pode apenas tirar fotos se não quiser subir.

— Tem celular, computador e internet na Turquia? — Nathan


perguntou. Ulrich riu. Imaginei que Nathan pode ter pensado isso pelas fotos
das casas na rocha e dos balões ao ar livre, nada de arranha-céus.
— Claro que sim. Olha, essa é Istambul — Ulrich continuava
explicando. — É a maior cidade da Turquia. Lá tem muitos lugares bonitos,
palácios antigos da era dos impérios...

— Eu queria conhecer um desses palácios. Parece até coisa de filme. —


Nathan olhou diretamente para mim. — A gente poderia ir um dia, mãe?

Eu sabia que ele estava tentando. Ele e a irmã tinham conhecimento do


que houve no passado entre Ulrich e eu e faziam esforço para serem amigos
de Ulrich.
— Sim, nós vamos lá um dia. — Os olhares de Ulrich e meu se
chocaram. Por um momento, nos olhamos compenetrados, ele, agradecido, e
eu, esperançosa.
37

STELA

Meu pai chegou do hospital e eu fiz questão de mostrar a ele que as


coisas entre a gente não estavam bem. Apesar de eu ter consentido no
passado com suas exigências, eu era uma jovem de dezessete anos,
traumatizada, e ele aproveitou dessa condição para me coagir.

Andrey o ajudou a deitar na cama, eu abri as cortinas e janelas que


davam para o jardim e pedi a Maria para trazer um suco para ele, pois estava
muito calor.
— O que o médico disse? — perguntei a Andrey, que estava
acompanhando nosso pai esses dias e por dentro dos diagnósticos médicos.

— Repouso e fisioterapia. Já marquei, e ela virá três vezes por semana.

— Parem de falar de mim como se eu não estivesse aqui — nosso pai


protestou. — Ainda mais me tratando como se eu fosse uma criança. Eu sou
o pai de vocês.
— Pai, o senhor tem que aceitar que acabou sua fase dono do mundo. —
Andrey teve a coragem de provocar. — Precisa agora ser um bom vovô e
descansar.

— Eu ainda estou vivo, com uma canetada eu mudo sua vida. Vai
trabalhar e me deixe em paz. — Ameaçou e olhou para mim. — Stela, quero
conversar com você.

Andrey se despediu de mim, eu o levei até a porta, e antes de sair, foi


irônico dizendo que agora a bomba era minha. Revirei os olhos e voltei para
o quarto do pai, bem a tempo de ver Maria com o suco.
— Deixe que eu levo, Maria. Obrigada.

Coloquei o suco na cabeceira e fiquei de pé ao lado da cama.

— Está de cara virada para mim? — indagou indo direto ao ponto.


— Pai, eu não sou rancorosa, mas o senhor vacilou com seus filhos. Vai
demorar um pouco para eu digerir, só me dê um tempo.

— Minha filha... — Mudou o tom, sendo mais brando. — Eu mudaria


tudo se pudesse voltar no passado.

— Mas não pode, pai.


— Andrey me contou tudo, até sobre o Miguel ser estéril. Será que pode
trazer o Ulrich aqui?

— Para quê? Não sei se ele quer falar com o senhor.

— Por favor, eu estou tentando entrar em uma fase de bem com a vida e
preciso falar com ele. Acertar as arestas.
— Tudo bem. Eu vou esperar passar um pouco. Amanhã as crianças vão
colher o sangue para o exame de DNA, e Ulrich está muito nervoso esses
dias. Assim que puder, falo com ele.

Meu pai assentiu, o semblante triste.

— Quer me contar sobre o seu transtorno? Ou não quer que eu saiba?


Eu fui um pai tão omisso, a ponto de não saber que minha própria filha
passava por algo assim.

Respirei profundamente e baixei a guarda. Puxei uma cadeira e me


sentei ao lado da cama, pronta para contar para ele tudo que aconteceu
comigo nos últimos anos.

***

Ulrich chegou às oito do dia seguinte para buscar a gente: era o dia do
exame. Ele tinha mandado uma mensagem mais cedo avisando que passaria
na mansão; era até melhor, pois eu odiava dirigir.

— Estão prontos? — perguntei. Nathan e Raquel, arrumados, diante de


mim, me olhavam com tensão. Apenas sacudiram a cabeça afirmando. Cinco
dias se passaram desde que descobriram sobre a nova paternidade, e eu
analisei como construtivo a reação deles. Nathan não estava mais cabisbaixo,
e Raquel voltou a sorrir.

Ouvi o carro de Ulrich no jardim, indicando que a entrada tinha sido


liberada. Fui para a porta, mas parei quando Nathan me chamou.

— Mamãe.

— O quê?
— E se... der errado? E se a gente não for filho do Ulrich?

— Vocês são. Podem confiar em mim. Isso te amedronta?

— Eu ainda não sei. Mas agora eu estou com curiosidade.


— Eu também — Raquel concordou. Nesse instante, ouvimos batidas
leves na porta. Eu os deixei e fui abrir.

Era ele. Uma bomba de aroma fresco masculino me atacou. Os cabelos


de Ulrich estavam úmidos, e, como sempre, muito elegante em uma calça de
sarja preta, sapatos lustrosos e uma camisa branca que delineava o corpo
forte. As mangas dobradas, revelando os antebraços, e um relógio grande de
pulso.

— Oi. — Sorriu largamente.

— Oi. Estamos prontos. — Peguei minha bolsa no sofá. Ulrich espiou


para dentro da sala e acenou para Nathan e Raquel.

— Prontos para saber se são turquinhos?


— Mais ou menos. — Raquel sorriu de leve e passou por ele, saindo da
casa. Nathan veio logo atrás, mas parou encarando Ulrich.

— Você está rindo, mas depois vai ficar triste se o exame confirmar.
Porque será obrigado a me dar o meu Xbox.

— Nathan! — Dei um grito e bati no braço dele. — Que maneira de


falar é essa?

— Ai, mãe. Se ele for meu pai, tem nove anos sem me dar um presente.

— Um bom raciocínio do moleque. — Ulrich refletiu e se vangloriou


em seguida: — Certamente puxou o pai.

— Para de dar corda — avisei a Ulrich e me voltei para o menino: — Eu


não criei um pidão. Vai logo para o carro.
Sem dar muita importância para meu sermão, ele saiu da casa. Encarei
Ulrich, sua alegria era contagiante.
— Desculpa, esse menino só pensa em ganhar coisas. Vivia negociando
com o avô.

— Fique tranquila, sei lidar com o pequeno mercenário. Porém ele tem
razão, e eu mal posso esperar para dar a eles todos os presentes que nunca
dei.
— E eu ficarei de olhos bem abertos para não deixar você mimá-los
muito.

Ele riu e foi em direção ao carro.


38

ULRICH

Aquele era o grande dia. Nem dormi direito de tanta ansiedade. E


mesmo com as poucas horas de sono, eu me sentia vigoroso e confiante.

A beleza de Stela me atingiu prontamente, no duro, sem piedade, assim


que ela abriu a porta. Eu quase vacilei, até engoli em seco tamanho foi o
impacto. Entretanto eu estava firme no propósito de esperar que ela tomasse
uma iniciativa. Ela e eu erramos em detalhes ao longo desses anos,
inicialmente tive raiva, porém, todos sabem que ela é uma parte vital da
minha vida, assim é impossível que a raiva dure mais de vinte e quatro horas,
como Thadeo previu.

Mas o orgulho durou, e eu precisava que ela se posicionasse. Eu


precisava de um amor recíproco, e...

Por Alá, Stela, tome logo uma atitude.

— Está tranquila? — perguntei a ela, ao meu lado no banco do


passageiro. As crianças atrás.
— Sim. É como se todas as ondas grandes tivessem passado e agora
estou enfrentando apenas uma branda maré.

— Sinto o mesmo.
— Como tem passado com todas essas questões na mente? — indagou.
— Sobre o exame, a paternidade...

— A ficha cai um pouco todos os dias. Estou me acostumando com os


fatos. — No fundo, eu queria dizer que minha vontade era poder morar com
eles, estar mais perto e conhecer melhor a vida e rotina de cada um. Porém
era cedo para impor qualquer coisa.
No laboratório, todos se mostravam angustiados. Nathan, de olhos
fechados, balançava os pés, Raquel roía as unhas, e a todo instante a mãe
pedindo para não roer; e eu sentindo meus nervos rígidos em sinal de
estresse.

Eu fui primeiro, colhi o sangue, depois foi a vez de Raquel e, por fim,
Nathan. Stela acompanhou cada um deles e, no fim, foi como se o mal-estar
tivesse ficado lá, junto com todo o peso que saiu de nossas cabeças.

— Eu preparei um café em meu apartamento, o que acham de ir comigo


e aproveitar a oportunidade de conhecer a minha casa? — convidei, tendo o
cuidado de não parecer forçado.
— O que você come no café da manhã? — Nathan questionou, mais
preocupado do que curioso. — Não quero comer essas coisas, tipo gafanhoto
ou grilo frito.

Stela e eu trocamos um olhar e rimos, mas antes que eu pudesse


desmitificar o medo dele, a irmã o corrigiu:

— Não seja bobo, Nathan. Quem come gafanhoto frito são os chineses.
Eu pesquisei o que turcos comem e parecem coisas normais.
De repente, fiquei bobo que dói ao ouvi-la dizer que pesquisou a comida
típica da Turquia. Isso demostrava que ela teve curiosidade sobre o meu
povo, sobre o verdadeiro pai.

— Sim, não tem nada de espantoso — Stela falou. — Vocês querem ir?

— Por mim, tudo bem — Raquel consentiu.

Nathan deu de ombros e só balançou a cabeça concordando.

Os dois entraram em meu apartamento observando com atenção tudo em


volta, e eu permanecia apreensivo querendo saber a opinião de cada um,
como se importasse muito o que iam achar da minha casa. Stela e eu ficamos
lado a lado assistindo aos dois analisarem o ambiente. Olharam os quadros na
parede, uma escultura na mesinha, a estante de livros.
— O que é isso? — Nathan apontou para o alcorão dentro de um
mostruário. Aproximei-me.

— Se chama alcorão, é a bíblia dos mulçumanos.

— O que é mulçumano? — Mostrou-se mais curioso.

— É quem segue uma religião chamada islamismo. O nosso deus é


chamado de Alá.

— Alá?

— Isso. Quando você estiver maior, vai entender melhor sobre isso. Mas
quero que saibam desde já que a religião não vai interferir em nossa
convivência.
Continuei sendo guia deles pela minha casa, adoraram meu quarto e
ficaram abismados quando eu disse que a pintura na parede, com um céu e
balões voando, tinha sido feita por Benjamin.

Depois os levei para a cozinha, e Stela me ajudou a servir o café da


manhã.
Sentamos nós quatro em volta da pequena mesa da cozinha, como se
fosse uma família completa. Descobri que era isso o que eu sempre quis, a
parte que faltava para preencher a lacuna em minha vida.

Stela serviu leite para Nathan e passou um copo de suco para Raquel,
em seguida, serviu em um copo para ela.

— Gostei da sua casa, Ulrich — Raquel deu o veredicto.


— Também gostei — Nathan concordou. Acima do lábio, a marca do
leite. Passou as costas do punho limpando.

— Use o guardanapo, meu filho — Stela empurrou o guardanapo para


ele.

— Só faltou mesmo algumas coisas para diversão — Nathan concluiu.


— Tem televisão — falei.

— Televisão não é o bastante. Quando eu for grande e morar sozinho,


eu vou ter o melhor game na minha casa. Vai ter óculos de realidade virtual,
os melhores joystick...

— Bom, então quando eu quiser jogar, saberei onde ir — eu disse.


— Tudo bem. Você pode ir. Mas a Raquel, não.

— E quem disse que eu quero? — ela respondeu imediatamente.

— Comportem-se — Stela advertiu. Eu, porém, queria saber tudo sobre


eles, não cansava de olhá-los, como um animal que não para de lamber a cria.
— E por que sua irmã não pode ir? — indaguei.

— Porque ela e as amigas são muito chatas, e quando elas vão lá em


casa se trancam no quarto e não me deixam entrar.
— É todo dia isso. — Stela revirava os olhos enquanto eu ria.

— Ulrich, ele entra no quarto e quer falar sobre os jogos malucos dele
para minhas colegas, e a gente só quer...

— Falar sobre garotos bobos da oitava série — Nathan gritou


interrompendo a irmã.
— Cala a boca, garoto.

— Chega de bate-boca na casa dos outros — Stela interveio — Comam


em silêncio. — Obedeceram à mãe passando a comer calados. Por mim,
continuavam, eu estava fascinado por qualquer coisa que vinha deles.

— Não vai comer? — perguntei a Stela, olhando para o pouco de suco


que ela pegou.
— Não. Não estou bem do estômago esses dias. — Fez uma careta.

— Desde aquele dia ainda não melhorou?

— Melhorou, mas voltou. Certamente foi o hambúrguer que comi com


as crianças noite passada. O estresse faz isso.
— Posso fazer um pouco de ayran para você. É fresco, pode ajudar.

— O que é ayran? — Nathan indagou, interessado.

— É uma bebida muito comum na Turquia. Feita com iogurte e sal.


— Eca!

— Vou fazer um pouco para vocês experimentarem.


— Eu quero ver. — Nathan pulou da cadeira e me seguiu para o outro
lado da cozinha. Raquel se levantou também, acompanhando o irmão.

— Certo, pegue para mim na geladeira iogurte natural e uma forminha


de gelo.
Prontamente o dois correram para a geladeira.

— Uau. Tem muito iogurte aqui. — ele exclamou, dentro da geladeira.

— Pegue dois potinhos. — Joguei um pouco de água no liquidificador,


em seguida despejei os potinhos de iogurte. Tanto Raquel como Nathan bem
pertinho olhando. — Agora, o toque especial. — Adicionei a pitada de sal,
algumas pedras de gelo e bati.
Servi um pouco em cada copo e dei para eles. O primeiro ayran que um
pai fazia para os filhos. Era um momento importante.

Raquel cheirou e bicou, só um pouquinho. Nathan deu uma golada e me


olhou com o cenho franzido.

— Tem gosto de iogurte salgado.


— Gostaram?

— Não muito. — Raquel me devolveu o copo.

— Hum... — Nathan já tinha bebido o dele todo e agora enfiava o dedo


no copo, raspando e lambendo.
— Meu filho, que coisa feia. É melhor pedir mais um pouco do que
passar essa vergonha. — Stela tomou o copo da mão dele.

— Ulrich, me dê mais um pouco.

— Está aprovado? — Despejei mais um pouco no copo e entreguei a


ele.
— Mais ou menos. É geladinho.

— Esse é meu garoto. — Assanhei seus cabelos.

Eu tinha uma lista mental de mil coisas para fazer com eles. Queria
mostrar minha cultura, ensinar a falar palavras da minha língua, levá-los ou
busca-los ao menos um dia na escola, ir em uma reunião de pais, ensinar a
dirigir, ir à formatura na escola, dar sermão, ficar com ciúme e investigar a
vida do primeiro fedelho que a Raquel se engraçar, subornar Nathan para ser
duro com os gaviões que sobrevoarem a irmã... Era tanta coisa que eu tinha
pressa em viver tudo isso, e ao mesmo tempo, queria que passasse devagar
para eu e a mãe deles saborearmos cada momento com intensidade.

Eu queria fazer com eles o que meu pai não fez por mim.

Antes de irem embora, Stela cochichou para mim:


— O pai quer conversar com você.

— Sobre o quê?

— Eu não sei. Você se sente pronto para ir?


— Por mim tudo bem.

***

Deixei para ir à mansão no dia seguinte.


Quando Stela abriu a porta para mim, notei que havia algo errado, li isso
na expressão que ela fez. Meio assustada, como se estivesse escondendo algo
e fosse pega no flagra.

— Tudo bem? — Ergui as sobrancelhas, mostrando que eu estava


desconfiado.
— Sim... tudo. Meu pai está no quarto dele, está te esperando.

— E as crianças?

— Enfiadas cada um em seu quarto.

— Ok, depois irei vê-los. Como está seu João? — Caminhamos pelos
espaçosos ambientes da mansão, cuja construção foi exclusivamente pensada
para grandes festas e bailes da alta sociedade.

— Se recuperando bem. O médico disse que para ele era melhor se


recuperar aqui, na própria casa, e não na casa dos filhos.

— Faz sentido. — Tentei concordar sem parecer desinteressado.


Stela me guiou até o quarto do pai, bateu na porta e espiou.

— Pai, o Ulrich está aqui. — Ouvi a voz arrastada mandando que eu


entrasse. Então adentrei o quarto com ela.

Seu João estava sentado em uma cadeira, vestindo um pijama azul e um


robe de seda por cima. Segurava uma bengala e mantinha o olhar austero,
como sempre. Ele podia estar morrendo, mas nunca perdia a pose de todo-
poderoso.
— Seu João — eu o cumprimentei, sem me aproximar, apenas
gesticulando com o queixo.

— Oi, Ulrich. Sente-se, por favor. — Ele indicou uma poltrona à sua
frente. Sentei-me, e Stela ficou de pé, ao meu lado.

— Estão juntos? — Apontou a bengala para nós dois fazendo um bico.


— Não, pai.

— Certo. — Até pareceu aliviado. — Andrey já me deixou a par de


tudo. Me contou o que Miguel aprontou, me contou da paternidade das
crianças e até do problema de Stela. O que eu quero te falar é que te peço
desculpas. É isso.
Apenas uma sobrancelha minha ergueu. Não estava surpreso, porém
levemente intrigado. Olhei para Stela e de volta para ele. Eu não queria um
embate com o seu João nessa altura do campeonato, bem no momento em
que eu tentava aproximar dos meus filhos. Porém uma boa resposta dançava
em minha língua.

— O senhor, por acaso, está sendo obrigado a me pedir desculpas? —


perguntei. Dane-se. — Porque, primeiro, que nem falou o motivo das
desculpas, se se arrependeu mesmo de algo, precisa declarar o seu erro e se
desculpar, e segundo que, se for uma desculpa forçada por terceiros, não tem
valor algum.

— Eu não pedi nada a ele — Stela declarou. — Estou tão surpresa


quanto você.
Seu João então relaxou a pose de rei e soprou profundamente. De
repente, pareceu cansado demais.

— Você sempre foi mais esperto e inteligente, rapaz. Fosse o Miguel no


seu lugar, estaria beijando meus pés. — Riu do próprio comentário, que eu
considerei uma leve provocação. Em seguida voltou a ficar sério. — Sim,
estou sendo obrigado a pedir desculpas. A vida está me obrigando. Eu não
sou totalmente um filho da puta como deve achar. Eu amo meus filhos e sei
que minhas ações machucaram Stela e meus netos. — Para seu João, parecia
terrivelmente difícil admitir. Ele engoliu saliva, fez uma pausa, buscando
força para continuar: — Por minha causa eles vão precisar de tratamento
psicológico para a aceitação do verdadeiro pai. Por minha causa, minha filha
sofreu iludida em um casamento amigável, e sei que ela ainda sofre. Por tudo
isso... eu baixei os meus escudos. Eu não quero morrer com essa carga.

Stela estava tão calada como eu, recebendo a chuva de confissões vindas
desse homem que foi durante muitos anos o terror de qualquer um que ele
considerava inimigo. Senti a mão dela em meu ombro.

Seu João pareceu angustiado antes de prosseguir:

— Eu te peço desculpas por ter te julgado de maneira errada e ter te


separado dos seus próprios filhos. Stela sempre teve apenas uma dúvida, mas
eu, desde o início, tinha a certeza de que Raquel era sua filha, mas mesmo
assim forcei Stela a entregar a paternidade a Miguel.

Fiquei de pé. Meu maxilar trincado da mesma tensão que eu usava para
apertar os punhos. Disso eu já sabia, mas escutar da boca dele era muito
cruel. Eu senti de verdade uma dor no peito, uma vontade maciça de gritar de
raiva ao imaginar que não pude segurar minha filha nos braços enquanto
outro a ensinava a chamá-lo de pai.
— Talvez você não possa me perdoar agora, mas saiba que se eu
pudesse voltar no tempo, teria tomado decisões diferentes.

— Pena que não pode, seu João. Eu não tenho mais nada para falar com
a senhor. — Girei-me e saí rápido do quarto. Estava chegando à sala quando
Stela me segurou.

— Ulrich...
Virei-me para ela. Mas que porra, já tinha lágrimas nos meus olhos.
Eram gostas de raiva. Raiva e ressentimento.
— Que porra, Stela... Isso sempre vai me ferir.

Aflita, ela assentiu, concordando.

— É uma filho, não é uma boneca. É um vida. E ele fez isso consciente,
ele tirou de mim o direito...

— Eu sei. Fique calmo. Eu fui culpada também...

— Não. Já chegamos a um acordo que não vamos mais nos culpar.


Como podemos jogar a culpa uma na outro sendo que tinha toda essa corja ao
nosso redor aprontando?
— Sim. Cabe a nós, agora, tentar mudar o que está por vir.

— Você vai ficar aqui? Nessa casa com ele?

— Ulrich...
— Vamos para minha casa. Leve as crianças. Os nossos filhos. Vamos
viver a vida que planejamos quando jovens.

Eu sabia que chegava a ser mesquinho da minha parte pedir que ela
abandonasse o pai idoso e doente. Porém a raiva me consumia, e eu só queria,
com urgência, tudo que ele roubou de mim.

— Eu tive que engolir meu orgulho e minha mágoa e ficar aqui. — Stela
tinha o olhar repleto de sinceridade — Meu pai quer ficar nessa casa que é
dele. Estar aqui com ele, e cuidar dele, não quer dizer que o perdoei pelo que
fez.
Eu assenti e engoli meu rancor.

— Nós nunca vamos ficar juntos, Stela?

— É o que mais quero...


— Sabe que sempre te esperarei. Diga às crianças que depois venho vê-
los. — Virei-me e fui embora em passos rápidos.
39

STELA

Grávida. Era esse o motivo dos meus enjoos. E quando completou oito
dias de menstruação atrasada, lembrei do sonho que tive com minha outra
personalidade, em que ela furava os preservativos. Seria possível...?

Comprei os testes de farmácia, seis ao total, dois de cada marca; já tinha


lido e relido as instruções e estava prestes a fazer quando Ulrich chegou. Ele
viu nos meus olhos que havia algo oculto, eu sempre fui péssima em
esconder detalhes. Eu queria antes ter certeza, descobrir sozinha. E foi isso
que fiz quando ele saiu.
E lá estava, nos três testes que fiz: positivo.

Sentei-me no chão do banheiro com o rosto escondido nas mãos. Era


uma bomba caindo sem piedade sobre mim. Mais um filho. Um terceiro filho
de Ulrich, já que Miguel é estéril.

Eu sabia que tinha que contar para ele. Jamais pensaria em esconder,
tendo a certeza de que ele é o pai, porém eu queria me acostumar com a
informação e fazer um exame de laboratório para ter evidências antes de falar
com ele.
Meu Deus! Um bebê. Eu não conseguia ainda encontrar uma emoção
específica para encarar esse fato.

Tomei uma ducha fria, vesti apenas um roupão, tomei uma banda do
meu calmante e caí na cama. Minha cabeça parecia que iria explodir de dor, e
eu decidi aproveitar a tarde apenas dormindo e torcendo para a outra não
aproveitar esse meu momento de perplexidade e assumir o comando.
Quando acordei, já estava escurecendo. Agradeci por ainda ser eu
mesma consciente, pulei da cama, me vesti e desci. Eu era uma dona de casa,
pessoas dependiam de mim, não podia ter dormido tanto.

Havia uma pessoa que eu poderia confiar e desabafar: Maria Clara. Ela
não demorou em atender, e sua voz sempre hiperativa me animou.

— Diga, Stela.
— Fernando está por perto?

— Ele está em algum lugar da fazenda, vou ver se o Laerte está por
perto para chamá-lo.

— Não... não. Não quero falar com meu irmão. É como você mesmo. —
Levantei-me da cama, espiei o corredor e fechei a porta do quarto. — Vai
para um lugar isolado, longe do Fernando.

— Ai, meu Deus. Fofoca. Espera aí.

Eu a ouvi pedir a Tereza para ficar de olho nas crianças e em seguida


correr; depois escutei uma porta se fechando.

— Pronto, isoladíssima. Pode desembuchar.


— Estou grávida.

— O quê? Stela!

— Estou em pânico, não sei o que fazer...


— Meu Deus, Stela. Do Ulrich? — Maria Clara continuava perplexa.

— Provavelmente. Miguel é estéril. Acabei de fazer um teste de


farmácia. Minha menstruação está atrasada e apareceram enjoos matinais
rotineiros.
— Amiga, mas esse turco é bom de tiro, hein? Três filhos na surdina?

— Você está me deixando pior. Me fale frases de conforto.

— Eu sou um pouco pragmática, o que posso dizer é: vai ficar tudo


bem.
— Queria ter ligado para Gema, mas você consegue esconder melhor a
informação do seu marido.

— Isso é verdade. Se eu quiser esconder algo, aquele homem não


consegue tirar de mim nem se usar seus dotes sexuais. Vai contar para
Ulrich?

— Sim... só não sei como. — Eu me empoleirei em uma poltrona no


quarto. — Não estamos juntos...
— O que está acontecendo entre vocês?

— Ah... ele se afastou quando soube dos filhos, e agora espera de mim
uma atitude, eu acho.

— E você o quer?
— Mais do que tudo. Estou sofrendo todos os dias sem ele ao meu lado.

— E por que não vai falar isso com ele, Stela? — Ela era mesmo bem
pragmática.

— Eu... vou falar. Claro que vou. Só estou criando um impulso. O que
você acha de eu o chamar para jantar?
— Poderia ser algo mais espontâneo, né? Mas, tudo bem, é um começo.
Convide ele para jantar e se declare.

— Tudo bem, eu só precisava desabafar...


— Como vocês... Por acaso você pulava a cerca enquanto casada?

— Eu...

— Já quero dizer que aprovo totalmente. — Nem esperou eu elaborar


uma resposta convincente. — Qualquer uma estando casada com Miguel
pularia a cerca para aquele pedaço de mal caminho da Turquia...
Ouvi ao fundo alguém chamá-la.

— Eita, Fernando. Me mantenha informada.

— Onde você está?


— No quarto de Arthur, vou dizer que a porta emperrou. Beijos,
cunhada.

***

No dia seguinte, pulei da cama bem cedo, já que não tinha dormido
quase nada. Antes de falar com Ulrich sobre a gravidez, eu precisava de uma
prova. Então, faria um exame. Para meu alívio, Maria Clara apareceu para me
acompanhar e dirigir para mim.
— E o Fernando? — indaguei, colocando o cinto enquanto ela saía com
o carro pelo jardim da mansão.

— Normal. Caiu na minha lábia.


— Para onde disse que está indo a essa hora da manhã?

— Te acompanhar à psicóloga.

— E ele?

— Pediu para te dar apoio. — Não era espanto para meus irmãos que eu
fosse me consultar tão cedo. Maria Clara se saiu muito bem.

— Eu quase não dormi, só pensando em tudo que aconteceu e no que


ainda vai acontecer — relatei para ela. — Quero tanto me reaproximar do
Ulrich.

— Stela, você pensa demais nas situações. Tente agir no calor do


momento, chega para ele e conta tudo o que está em seu coração.
— Sabe o que eu queria? Resolver nosso problema de relacionamento
primeiro, antes de falar da gravidez. Não quero que fique parecendo que ele
só vai voltar para mim por causa da gravidez.

— Estou pensando em umas coisas. Deixe a ideia amadurecer em minha


mente e te falo.

Assenti, mas no fundo, com medo do que essa mente poderia criar.
Lembrei de uma coisa, e para tentar tirar a preocupação da cabeça, resolvi
contar para Maria Clara.
— Vou te contar outro segredo.

— Ai, meu Deus, conta.

— Assim que Miguel saiu de casa, Ulrich e eu estávamos usando o


antigo quarto de Fernando para transar. Ele apelidou de cantinho da baixaria.

— Stela, sua safada! — gritou.

Gargalhei dentro do carro olhando a expressão surpresa de Maria Clara.

— Vou contar para Fernando — decretou.

— Não faça isso.


— Por favor, Stela. Ele precisa saber que o quartinho da adolescência
dele virou ponto de encontro.

— Não fala.

— Tudo bem, mas quer saber? Aquele quarto é muito bom para transar.
É longe de tudo, ninguém ouve nada.
— O quê? Você também usou?

— Na festa de noivado de Andrey. — Revelou com orgulho. —


Fernando e eu transamos lá.

— Que safada!
— Se aquela cama falasse...

— Ela falaria até língua turca — eu disse, e nós duas caímos na risada.

Enquanto colhia o sangue, subitamente senti uma pontada de felicidade


ao imaginar o resultado positivo, Ulrich poderia acompanhar todas as fases
da criança. E se fosse um bebê que viria para curá-lo dessa mágoa profunda
que o sufocava?

Era nisso que eu queria acreditar.


***

À tarde, Ulrich não veio visitar as crianças, e eu suspeitava que era por
causa da conversa que ele teve com meu pai.

Quando fui dormir, decidi, mais uma vez, ir para o antigo quarto de
Fernando. Aquele lugar fazia eu me sentir bem nos meus momentos de
pânico, como agora, após descobrir a gravidez. Peguei o celular, e para
aplacar a saudade, resolvi fuçar as redes de Ulrich. E então, para meu horror,
na sua última postagem, havia uma foto dele com uma mulher. E ela era
linda. Os dois bem juntinhos, em uma mesa de bar ou restaurante, e a legenda
dizia apenas “curtindo nossa última noite em São Luiz.”

Espera aí. Mas aquele rosto era familiar. O nome era Yasmim, mas não
me dizia nada. Onde eu vi essa mulher? Fui no perfil da mulher, mas era
privado. Saco. Seria uma prima? Uma amiga? Ele não tinha irmã...

Bom, não importava. Eu tinha confiança. Ulrich me deu inúmeros


motivos para isso. Só estava intrigada com essa legenda: “Última noite”.
Entrei no aplicativo para mandar mensagens.

EU: Oi. Já dormindo?


Mandei.

Esperei. Esperei. Ele nem mesmo tinha recebido ainda. Não estaria em
casa? Mas já passava das onze...

Esperei e acabei dormindo.

Quando acordei, já era dia, e na minha mente brotou a lembrança do


exame. Além da ansiedade, me flagrei esperançosa em estar mesmo
carregando um bebê.

Saí antes de meu pai e as crianças acordarem, peguei o exame, enfiei na


bolsa e deixei para ver em casa.
Quando cheguei, uma mensagem de Ulrich no celular.

ULRICH: Oi, vi agora, fui jantar com o pessoal do escritório e meu


celular descarregou.

Tudo bem. Deixei para responder depois. Agora eu tinha uma bomba
para encarar.

Tranquei a porta do quarto, balancei os pés para tirar os sapatos


enquanto caminhava, subi na cama e peguei o envelope.
— Certo. Força, Stela. Sua vida está prestes a mudar.

Soprei efusivamente, puxei o lacre e peguei o papel. Meus olhos


correram pelo meu nome, a visão deslizando até encontrar a palavra:
Positivo.

Eu estava mesmo carregando um terceiro turquinho no ventre.


40

ULRICH

— Foi um prazer trabalhar com você, querida. — Cora falou com


Yasmim, uma de nossas advogadas e amiga que agora estava indo embora
para o outro lado do país, onde se casará e trabalhará no escritório do futuro
marido. O aeroporto estava lotado como um dia normal em horário de pico, o
voo será em breve e como ela era bem próxima, Cora e eu decidimos trazê-la.
Além de nós dois, Gema também estava para se despedir, e Thadeo a trouxe.

— Para mim, foi uma honra, Cora. Eu estudei, me formei e você me deu
espaço no meio jurídico. Obrigada por isso. E Gema — segurou a mão de
Gema — É uma pena que não estarei aqui quando o bebê nascer, mas quero
fotos, ou vídeos do momento exato, se possível.
— Pode deixar, eu farei Thadeo filmar o momento e te mandar.

— Me tire fora do bolo. — Thadeo adiantou-se — A não ser que queira


me ver inconsciente caído no chão.

— Que cara fraco. — Tripudiei do meu amigo. — Gosta de ameaçar


pessoas com a espingarda, mas não consegue ver um pinguinho de sangue.
— Oh, Turco, você tem noção que um parto parece o nascimento do
Alien no filme?
Todos riram do comentário dele. Yasmim virou-se para mim.

— Queria ter conhecido seus filhos antes de ir. Eu os vi de relance no


casamento da Gema.
— Tenho certeza de que terá oportunidade. Caramba, ainda é tão
estranho falar isso. Meus filhos.

— Até hoje a gente está de queixo caído. — Cora comentou. —


Descobrir assim, que tem dois filhos já crescidos. Como eles estão lidando
com isso?

— Bem. — Falei. — Bem até demais. Eu acho que a falta repentina e


traumática que Miguel deixou, foi o empurrão para eles me aceitar, ao menos
como amigo. Estou morto de amor.
— Parecem bem espertos.

— Demais. Acredita que enganaram o criminoso e conseguiram fugir de


um sequestro? — Contei, orgulhoso. Cora e Yasmim, interessadas, me
fitavam atentamente, enquanto eu narrava o que havia acontecido dias atrás.

***

STELA

— Ulrich, eu preciso falar com você. É um assunto muito sério. — Ah,


merda, desse jeito não. Caminhando de um lado para outro em meu quarto,
eu ensaiava como ia falar com ele sobre a gravidez. Não poderia ser aqui, por
causa do meu pai. Precisa ser na casa dele.

E se eu chagasse e já dissesse: “Estou gravida e você é o pai.”


Não. Preciso prepará-lo antes, mesmo tendo certeza de que ele não vai
achar ruim. Ele vai ficar abalado, mas não achará ruim.

Ok. Vamos recapitular. Mandarei uma mensagem perguntando se está


em casa e a que horas posso vê-lo, então eu chego dez minutos atrasados,
para não dizer que estou desesperada, e aí...

Meu celular começou a tocar. Merda. Olhei no visor, era Maria Clara.
— Oi, Maria Clara.

— Stela, preciso te falar uma coisa.

— Pode dizer.
— É o Ulrich. Ele surtou... Gema acabou de me ligar. Não querem falar
com você.

— O quê? Meu Deus, como assim surtou? Onde ele está?

— Amiga, ele decidiu passar uns tempos na Turquia, depois de tudo que
aconteceu. Está nesse instante no aeroporto para viajar.
— Mentira! Maria Clara, que historia é essa? Ele jamais faria isso...

— Eu também achei. Mas Gema disse que Thadeo está com ele no
aeroporto e... até a Cora está lá, tentando fazer ele mudar de ideia.

Passou na minha mente que ele tinha dito que no nascimento de Raquel,
ele jogou tudo para o ar e foi para a Turquia. E se...
Meu Deus, meu Deus... isso não. Ulrich não pode fazer isso, logo
agora.

— Será que foi por causa do meu pai? Ele ficou tão irritado.
— Ligue para Gema. Não saia de casa, estou chegando aí.

— Tá, vou ligar. — Desliguei a chamada dela e com as mãos tremulas,


o coração apavorado, liguei para Gema.

— Gema — nem esperei ela dizer “oi” — O que está acontecendo?


Maria Clara me ligou...
— Stela, Ulrich decidiu passar uma temporada na Turquia, assim de
repente, sem falar com ninguém. Ele só quer fugir de tudo.

— Mas... logo agora? Ele parecia tão feliz com as crianças.

— Por que você não vem aqui e impeça ele? Estamos aqui no aeroporto.
Você pode dizer a ele tudo que sente e fazê-lo mudar de ideia. Vou fazer uma
ligação de vídeo para você ver.
— Tudo bem. — Sentei-me na cama, olhos saltados esperando o celular
tocar novamente. Quando tocou, atendi e vi, pela chamada de vídeo. Estavam
mesmo no aeroporto, e lá estavam todos eles, incluindo a mulher da foto do
Instagram. Então lembrei da legenda: “Nossa última noite.”

Ah, merda. Ulrich, vou te matar.

— Estou indo aí. — Decidida, falei com Gema.


— Maria Clara disse que ia passar aí para te buscar, venha mesmo Stela.
Impeça ele.

Ele não podia desistir da gente depois de ter passado anos lutando e me
esperando.

Por Deus! Era essa a oportunidade que eu precisava para tomar uma
atitude. Era a minha vez de agir e correr atrás dele. Fazer a loucura que
jamais imaginei. Agora era a minha vez de provar.
Eu não era uma mulher perfeita para dirigir um carro. Tentei quase oito
vezes para enfim conseguir tirar a carteira de motorista, e ainda bem que
Maria Clara estava chegando quando eu ia saindo.

— Entra no carro. — Comandou.

— Só dirija.
— Tá. Acalme-se. Estou te ajudando trazer o boy turco de volta.

Se ele estava jogando a toalha e indo embora, deixando-me aqui e


abandonando as crianças, talvez ele não mereceria esforço algum. Porém,
Ulrich não é qualquer homem que entrou na minha vida e se cansou
simplesmente. Ele é parte de mim, ele esteve ao meu lado mesmo quando eu
não sabia. Suportou ver a mulher que ele amava casando-se com outro, tendo
filhos com outro e depois descobriu que os filhos eram dele.

Ulrich merece todas as chances possíveis.

— Vamos, vamos... — bati na perna, desejando que o carro fosse tão


veloz como meus pensamentos.

“Você bem que podia trazer Ulrich de volta, estou morta de saudade
daquele homem.” Lembrei da fala da outra personalidade no meu sonho.

Acabei dando uma risada e limpando a lágrima que se formou.


Sim, outra Stela, vou trazê-lo de volta para a gente.

Cheguei ao aeroporto, Maria Clara estacionou o carro de qualquer jeito


e corremos. Entramos em passos apressados olhando para os lados,
procurando alguém que pudesse dar a informação. Aproximei-me do balcão,
empurrando as pessoas e pedindo licença.

— Oi, só uma informação. — Arfante, falei com a mulher — Onde está


saindo o avião para a Turquia?
— Turquia? Não temos nenhum voo para a Turquia nesse horário. A
não ser que fizer uma escala em outra cidade...

— Ai meu Deus.

— Você pode encontrar o portão de embarque...


Ela tentou me explicar e ainda falava quando a deixei, gritei obrigada
enquanto corria batendo os saltinhos médios dos meus sapatos no chão.
Porcaria! Eu deveria ter escolhido outro. Eu estava parecendo uma louca,
correndo enquanto o povo caminhava tranquilamente. Maria Clara na minha
cola.

Acho que demorou uns bons dez minutos até eu conseguir chegar no
portão de embarque. Eu estava correndo empurrando as pessoas, suando, com
o coração quase explodindo junto com o estômago.

E então eu os vi. Reconheci por causa de Gema mancando, apoiando no


braço de Thadeo.
— Ulrich. — Gritei o mais alto que podia. — Ulrich! — Tornei a gritar
enquanto corria e ele parou. Todos pararam e viraram espantados. Até as
pessoas que não tinha nada a ver com o assunto pararam.

Parei de correr e andei.

— Stela? — Thadeo estava chocado.


Fiquei a um metro de distância deles, recuperando o folego e apertando
firme minha bolsa. Desconsiderei a mulher com ele, e o carrinho de malas
que ele empurrava.

— Eu fui má com você porque era a maneira que eu encontrei para


tentar afogar o amor que eu sentia. Eu não achava justo sentir tanto por você,
tanto que nem beirava o que sentia pelo Miguel.
— Stela, o que houve...? — ele estava totalmente assustado e levemente
preocupado.

— Deixe-me falar. Isso não é um debate. — As palavras começam a vir


com facilidade e eu só coloquei tudo para fora — Durante todos esses anos,
você foi forte por nós dois, você cuidou de mim, mesmo quando eu não sabia,
você poderia ter me mandado para a puta que pariu, mas persistiu e ficou.
Talvez eu não seja tão forte e determinada, mas o pouco de força que eu
tenho é para lutar por uma vida ao seu lado com os nossos filhos.

— Stela, é claro que eu...


— Me dê uma chance e eu prometo que farei de tudo, dia após dia, para
amenizar a dor que você passou por não ter feito parte da vida das crianças.
Eu não sou o melhor exemplo de mulher, tenho meus problemas e meus
transtornos que você conhece, mas eu te amo tanto e isso é puro e sincero.

Merda, as pessoas estavam em volta olhando para mim, mas


impressionantemente o nervosismo e aflição estava se aplacando e eu me
sentia corajosa. Limpei uma lágrima e esperei. Ulrich estava pasmo me
encarando.

— Estrelinha? — Sussurrou.
— Stela. Apesar de ela ter me dado o impulso.
Ainda confuso, ele diminuiu a distância entre a gente e me tomou nos
braços, de uma forma tão apaixonada e repleta de alívio, que eu quase caí em
pranto de emoção. Afundei o rosto em seu peito, deixando seu cheiro me
impregnar e suas batidas cardíacas encherem meus ouvidos.

Gentilmente, tocou em meu queixo, para que eu o olhasse.


— Eu não me apaixonei pela garota perfeita, na escola, em nossa
adolescência. Eu me apaixonei pela simplicidade e fragilidade que estavam
em você. Você é mais forte do que pode imaginar, tem o poder de carregar o
mundo nos ombros enquanto suporta sozinha sua própria dor. E só para
deixar claro, é tão bom ouvi-la dizer que me ama... — inclinou o rosto sobre
o meu e beijou-me.

Ouvi palmas em volta, mas não desviei o beijo e quando fitei seus olhos,
implorei:

— Por favor, não vá embora para a Turquia antes de dar mais uma
chance para a gente.
— O... quê? Turquia? — Ele afastou-se e olhou para Thadeo e Gema,
antes de voltar a me encarar. — Eu não estou indo viajar. — Ergueu as
sobrancelhas.

— Não? Mas... e as malas...? — apontei para o carrinho de malas — O


aeroporto...

— Yasmim, colega de trabalho está indo. — Olhei para a mulher e ela


acenou, sorridente para mim. Ulrich continuou: — Ela é amiga de Gema e
viemos nos despedir. Por que pensou...
— Ah, meu pai do céu! — Tampei os olhos com uma mão. — Eu vou
acabar com essas duas sem vergonhas.
— Na verdade, nós quatro. — Abri os olhos e vi Ana Rosa e Diana se
aproximando. Maria Clara já estava ao meu lado. — Desculpa, Stela. A ideia
foi toda minha. — O risinho de gente safada estampando em sua face.

— O que está acontecendo? — Assim como Ulrich, Thadeo estava


abismado e confuso. — Você está metida nisso, Germânia?
— Essas pilantras armaram para mim. — Acusei apontando para as
quatro. — Inclusive Gema. Elas ligaram me dizendo que Ulrich estava indo
embora, para eu impedir. Por isso cheguei aqui desesperada.

— E você fez isso achando que eu ia embora e não queria me perder?

— Sim.
Nos olhamos compenetrados, como se nada mais existisse. Mas Thadeo
cortou o clima gargalhando.

— Mana, desculpe. a cena foi comovente, mas não acredito que caiu em
uma pegadinha orquestrada por Maria Clara.

— Eu disse que poderia ser má ideia. — Diana falou.


— Pelo jeito não foi má ideia. — Ana analisou.

— Não custava nada tentar. — Gema me direcionou um olhar de


desculpa — Foi só um empurrãozinho, já que ficamos com medo de ela não
ter coragem de se declarar nunca.

— Isso. — Ana Concordou. — No impulso é sempre melhor.


Afastei-me de Ulrich e sentei-me em uma das cadeiras do saguão de
espera.

— Merda! Estou morta de vergonha... corri igual uma condenada,


gritando no meio do povo.
Ulrich se sentou ao meu lado, ele ria também.

— Então se arrependeu?

Encarei-o.

— Do que te falei? Claro que não. Não deixe uma palavra solta ao
vento. Foi tudo sincero. Mas não precisava eu chegar aqui correndo como se
o mundo fosse acabar.

— Foi emocionante. — Ele me cutucou — E fofo. Se eu soubesse tinha


filmado.
— Para. — Tentei não rir.

— Então, agora somos... namorados? — Ele instigou.

— Somos?
— Um momento, vou fazer da forma que sempre quis fazer. — Ele
levantou-se, firmou apenas um joelho no chão em pose de cavalheiro e
segurou minha mão. — Stela Capello, você quer namorar, noivar e se casar
comigo?

Olhei para ele, passei os olhos por todos em volta. Minhas cunhadas
pilantras torciam ao meu favor. Apesar de tudo não estava com raiva delas.
Elas extraíram de mim o meu lado maluco que age sem pensar, que vai atrás
do que quer e luta pelo amor. Senti-me como se Estrelinha e eu corrêssemos
lado a lado. Ela não precisava voltar quando eu tinha controle da situação.

— Eu queria falar sim para cada ano que te perdi. — Respondi a Ulrich
— Sim, sempre sim. — Ele levantou-se e me abraçou beijando-me e
suspendendo meus pés do chão, como em uma típica cena de fim de filme.
Aqueles que eu assistia e sonhava que algo parecido pudesse acontecer
comigo.
E não é que aconteceu?

Após o beijo, Ulrich juntou as mãos como em uma prece e sussurrou só


para eu ouvir:
— Rômulo, obrigado por ter a rola mais irresistível do mundo e
conseguir tirar o Miguel de cima da minha mulher.

— Para com isso. Olha o povo ouvindo.

— Vai ter que me aturar pelos próximos sessenta anos Stela Capello. —
Cochichou no meu ouvido e depois emendou: — e Estrelinha.
— Ah, cacete. Circulando todos. Essa é a parte que fazem as pazes e
vão transar logo depois. Eu sei por que isso aconteceu comigo. — Thadeo
comentou, levando todos ás gargalhadas.

— Thadeo! Olha minha mãe escutando... — Envergonhada, Gema deu


uma cotovelada nele.

— Bom que sua mãe saiba que eu te amo muito e te mantenho sempre
muito bem servida.
Até Cora ria, balançando a cabeça.

— Quero ir para sua casa. — Confessei baixinho para Ulrich. — Agora.

— Eita. Tem algo em mente?


— Sim. O que tenho em mente não se pode fazer na mansão. Tem que
ser na sua casa.

— Vai me fazer gemer igual um condenado?

Rindo, respondi no ouvido dele:


— Vou.
— Te venero, mulher. É hoje que você volta a provar meu ayran.
41

ULRICH

Entramos de mãos dadas, andando rápido pelo saguão do prédio. O


porteiro olhou desconfiado, porém apenas bateu a mão me cumprimentando.
Jamais imaginaria que estávamos correndo para transar. Porém se ele olhasse
um pouco para baixo poderia ver a mala estufada formada em minha calça.
Meu pau sabia o que estava prestes a acontecer e como um festeiro, tinha
dado início a pré-festa sozinho.
Foi no elevador que o bicho pegou pra valer. Stela estava ofegante,
recostada contra o espelho, e nossos olhares feito brasas cravado um no
outro. De repente, avançamos nos beijando.

As mãos dela percorreram pelo meu corpo apertando meus músculos,


satisfazendo-se de uma sede que eu sentia igual. Stela me queria e não havia
coisa melhor do que saber que é desejado pela pessoa que ama.
A mão feminina pousou em minha calça e automaticamente afastei
meus lábios dos dela para ofegar. Stela apertou, sentiu o contorno do meu pau
e sorriu; a face ruborizada repleta de paixão.

— Eu morri de saudade todos esses dias.


— Eu morro de saudade há treze anos. — Retruquei mexendo com os
sentimentos dela. Stela sabia disso e concordou balançando a cabeça.

— Coitada da maldita alma que ousar se enfiar entre a gente novamente.


— declarou, corajosa.

As portas abriram, puxei Stela e corri para casa. Entramos e ela me


empurrou contra a porta.
— Está possuída pela Estrelinha? — Zombei, arrancando um sorrido
dela.

— Vai ter que dar conta do tesão de duas em uma. — Ela afastou para
se despir, agitou os pés fazendo os sapatos voarem, a bolsa também caiu e eu
também me despi rapidamente. Quando abri o zíper da calça, Stela a tomou
das minhas mãos, e puxou revelando a cueca; a coisa estava linda, esticada
quase rasgando, babando de desejo.

Mordendo o lábio, ela admirou. Eu também estava queimando, os


nervos saltados e a paciência mínima. Puxei-a para mim, beijando-a faminto,
moendo seus lábios com os meus, devorando a boca e língua dela, enquanto a
empurrava até que suas pernas batessem no sofá. Stela sentou-se e eu fiquei
de pé.
Enfiei os dedos nos cabelos dela penteando-os para trás. Ela levantou os
olhos para me fitar eu quase desmoronei. Eu a queria, rápido, mas estava me
controlando.
Stela tocou em minha cueca e pareceu suspender a respiração enquanto
percorria os dedos pelo contorno, como se estivesse estudando algo que
nunca tinha visto. Eu fiquei paralisado, pulsando, esperando.

Puxou um pouquinho a cueca bem na região da perna fazendo assim a


cabeça do meu pau escapar. Engoli seco. ela beijou. Beijou só a cabeça que
estava para fora a cueca e como se não fosse muito, chupou devagar,
fazendo-me quase subir pelas paredes.

— Eu adoro sentir seu gosto em minha boca. — Confessou e puxou


totalmente a cueca e meu pau pulou tão duro que parecia uma rocha. Gemi ao
primeiro contado da mão em volta dele e me seguida a língua em toda a
extensão; passou uma vez, chupou a cabeça, lambeu outra vez de cima a
baixo, chupou mais uma vez. Uma sucção lenta e gostosa, uma boa tortura
para um cara que estava a dias sem sexo.

Segurei os cabelos dela, tirei o pau da boca, dei umas batidinhas na


bochecha fazendo-a rir e empurrei pelos lábios novamente. Stela não tinha
ainda habilidade nisso, mas eu controlei devagar, saindo e entrando até o
limite que ela conseguia. Quando estava quase explodindo e enchendo sua
boca de meu gozo cremoso, interrompi e afastei-me.

Estávamos desesperados e só deu tempo tirar a calcinha dela e com


ansiedade a flor da pele, sentou-se em mim. Pele com pele, nem importamos
com preservativo.
Stela deslizou com cuidado, sua vagina engolindo centímetro por
centímetro, até estar totalmente sentada, encaixados, preenchida por inteiro,
minha largura sendo abraçada pelo interior úmido e pulsante. Eu a sentia
contrair em volta de mim, e solucei gemendo tamanho prazer.

Retirei seu sutiã, e beijei cada um dos seios; parei apenas para rugir
quando ela se levantou e deslizou tudo de uma vez indo até o fim. Puta que
pariu! O arrepio percorreu da minha nuca, passou pela minha espinha até
chegar nas pernas.

— Oh... droga. — Que delícia... Ulrich. — Soluçou.


— Eu quero isso todos os nossos dias. — Balbuciei.

— A gente tem treze anos perdidos para recuperar.

Pegamos o ritmo, rápido e fundo, sem pena de meter. Ela queria tudo e
eu não queria sair de dentro tão cedo.
A sala encheu-se de gemidos e batidas de nossos corpos, eu estava
quase lá, mas a abracei, deitei-a no sofá e voltei a arremeter, forte e rápido.
Stela passou as unhas em meu corpo, e a cada batida que eu dava, ela se
libertava, sorrindo e gemendo alto, pura felicidade.

Quando gozou, ela me abraçou apertando, puxando-me para mais perto,


e a intensidade de seu orgasmo, latejando em volta do meu pau, me fez
acabar em leite cremoso dentro dela. o mais puro leite turco, que um dia eu
disse que ela provaria, mas preferiu me bater.

Hoje ela sorria enquanto eu a preenchia e não tinha nada de arrogante


nisso, porque era a minha mulher e eu estava disposto a passar o resto da vida
dando a ela esse prazer a ponto de sorrir.

Tomamos banho, dei um roupão Stela e fiquei de tolha em volta da


cintura. Peguei um pote de sorvete no freezer e levei para a sala. Sentamo-nos
no tapete, recostados no sofá.
— Comprou esse pote de sorvete desse tamanho no lugar de encher a
cara de álcool?

— É uma forma mais saudável de um turco chorar um romance


acabado. Peguei uma colherada e levei a boca. Stela me olhava como se
quisesse dizer algo, mas optou por encher a boca de sorvete. Algo me
encucava.
— Como será a partir de agora? Sobre morar juntos...

— Eu sugiro continuar como estamos e manter o quartinho do Fernando


como nosso ponto de encontro. Até a gente se casar...

— Uau! Stela Capello tomando a iniciativa de falar em casamento? —


Enfiei outra colherada de sorvete na boca. — Para quando pensa?
— Que tal mês que vem? — Me olhou, especulativa.

Quase cuspi todo o sorvete. Fitei-a espantado.

— Mês que vem?


— Ulrich... — deixou a colher dela no pote e me encarou, seriamente.
— Tenho algo muto importante para te contar, mas me diga uma coisa, como
você acha que eu acabei engravidando duas vezes? Vocês... quer dizer, você
e eu sendo a outra personalidade, usávamos proteção?

— Sim. Claro. Apesar que pode ter acontecido uma ou duas vezes sem...

Stela mudou de posição ficando de frente para mim.


— Sabe, tive um sonho um dia desses. Um sonho com a outra...

— Estrelinha?

— Sim. Eu sonhei que ela saia do espelho e me mostrava algo, era como
uma lembrança e era muito vívida, muito real.
— E o que era?

— Eu estava no seu quarto, furando camisinhas com um broche. Você


acha que ela quis engravidar de você de propósito? Ou foi apenas um sonho
qualquer...
— Caramba! — Horrorizado, mexi nos cabelos, repensando todos meus
encontros com Estrelinha. Pelo que eu a conhecia, ela tinha feito isso de
propósito. — Ela... a outra... sabia o tempo todo que Nathan podia ser meu
filho...

— E não te contou. — Stela emendou meu raciocínio.

— Caralho... Stela. — Levantei do chão e parei no meio sala, levemente


irritado por ter sido passado para trás por ela. Embora, agradecido por ela ter
me dado um filho. — Obrigado por me contar...
— Mesmo não tendo certeza de que é real, eu não podia te esconder
isso. Não quero nunca mais esconder nada de você. E tem algo mais. — Stela
também ficou de pé, pegou a bolsa e procurou algo dentro. — Eu procurei
todas as formas de te dizer isso, Ulrich. Eu não sei qual será sua reação, mas
não te julgo, afinal, nem mesmo eu sei ainda o que pensar.

— O que é?

— Aqui. — Entendeu um envelope para mim. De repente, estava


novamente insegura e aflita.
— Fique calma. — Falei. — Estamos juntos, não importa o que
acontecer. Stela assentiu e com a voz trêmula, revelou:

— Eu... estou grávida.

Abri o envelope rapidamente e dei de cara com um exame com o


resultado positivo. Fitei-a.
— Um terceiro filho, Ulrich.

Uma descarga de emoção tomou meu corpo a ponto de me fazer perder


os movimentos. Fiquei paralisado, o papel caiu da minha mão, meus olhos
nem piscavam.
— Diga alguma coisa. Ficar parado feito uma estátua não está ajudando.
— Stela insistiu, como se tivesse medo da minha reprovação. Algo que
jamais aconteceria.

— Um filho... — com as mãos na cabeça, andei de um lado para outro.


— Um filho. Outro filho.

— Ulrich.
— Puta que pariu. — Aproximei-me dela e a abracei — Um filho, Stela!
Um que eu possa acompanhar, estar ao lado desde o primeiro
momento...Caramba! Que soco no estômago. Mas um soco bom.

— Você gostou? — Ela riu, em meus braços.

— Eu estou meio tremendo. caralho! Se eu gostei? A felicidade está


aumentando conforme a ficha caí. — No mesmo momento, eu já estava
rindo.

— Ok. Você é um pouco emocionado. — Acompanhou-me na risada.

— Sim, eu sou. Eu sou a porra de um pai emocionado. Eu vou acabar


com você de tanto te beijar e te amar. — Peguei-a nos braços e girei. — A
ironia é que eu fui o primeiro a dar netos para o velho Capello. — Vangloriei.

Stela me abraçou apertado, o rosto em meu peito. Enchi sua cabeça de


beijos agradecendo milhares de vezes em pensamento.
Agora sim, eu sentia o sabor da felicidade.
42

STELA

Nathan e Raquel estavam sentados diante do sofá onde Ulrich e eu


estávamos. Eles se mostravam apreensivos, aparentemente com medo da
notícia que tínhamos para dar.
Raquel olhou para a mão de Ulrich em minha perna e desviou
rapidamente para fitar meus olhos.

— Meus amores — comecei — Vocês não são mais bebês. Já podem


entender várias coisas da vida dos adultos.

— Vocês estão namorando de novo? — Impaciente, Nathan questionou.


— Calma, vou chegar lá. Mais tarde vocês entenderão melhor. Eu já
conversei com vocês sobre o exame de paternidade, já sabem que Miguel e
eu nos divorciamos e ele decidiu se afastar. Eu sei que ainda estão superando
tudo isso, mas sei também que vocês querem me ver feliz.

— Sim, mamãe, queremos. — Raquel balançou a cabeça concordando.

— Eu quero dizer, que depois de anos afastados, Ulrich e eu queremos


ficar juntos. E eu ficarei muito feliz se ele estiver ao meu lado.
— Eu também ficarei muito feliz com a mãe de vocês ao meu lado.
Ulrich completou minha fala. Parecíamos dois adolescentes pedindo
permissão para namorar, seria cômico se não fosse real. Tanto eu como
Ulrich não queríamos nossos filhos de cara virada para a gente, nos olhando
como se nós tivéssemos enganado eles, portanto, nada melhor que colocar as
cartas na mesa.

— Tudo bem. — Nathan soprou, baixinho, um pouco relutante.

— Tudo bem mesmo?

— Ah, mãe... eu não vou ser um menino birrento que chora para você
fazer o que eu quero. Se vocês dois gostam de ficar juntos então eu não vou
falar nada.

— O Nathan tem razão. Raquel ensaiou um sorrisinho simpático para


nós. Mãe, se você vai ficar sorrindo, feliz, então eu não vou falar nada
também.
Eu sabia que eles gostavam de Ulrich, e nos últimos dias estavam se
esforçando para engolir toda essa historia de “novo pai”, mas tinham medo
do desconhecido. Eles não sabiam como seria de agora em diante e nossa
missão era deixá-los confortáveis com a relação.

— Vocês vão... se casar? — Raquel questionou apenas curiosa.

— Algo mudou, minha filha, e por isso, vamos sim nos casar. —
Boquiabertos, Nathan buscou rapidamente o olhar da irmã como se estivesse
comunicando em pensamento. Eu não os esperei contestar, decidi dar logo a
notícia: — Eu vou ter um bebê, por isso iremos nos casar tão rápido. —
Coloquei a mão no ventre atraindo o olhar deles. Nathan arregalou os olhos e
colocou as duas mãos na cabeça. — Vocês vão ter um irmãozinho e ele
também é filho do Ulrich.

Os dois ficaram em silêncio pelos próximos segundos. Senti a mão de


Ulrich apertar minha coxa. Nós dois, adultos, em suspense, esperando a
reação deles.

— Diga alguma coisa. — Incentivei.

— Meu Deus! — Raquel levou as mãos à boca. — Já não basta o


Nathan me pirraçando, vai vir mais um? É menino ou menina?

— Ainda não sabemos. — Ulrich respondeu.


— Eu esperava um Xbox e agora vou ganhar um irmão babão? —
Nathan protestou — Espero que seja menina, pois não vou dividir minhas
coisas.

Segurei o riso, mas Ulrich não conseguiu e riu.

— O que a mãe de vocês está falando, é que uma nova vida está a
caminho e por isso decidimos que precisamos ficar juntos, para nos ajudar.
Eu vou ajudar ela, ajudar com o bebê que vai chegar e com vocês dois.
— Bom, se é você que vai olhar o pirralho, tudo bem para mim. Nathan
deu de ombros se mostrando aliviado por não ter que ser babá. Raquel, por
sua vez, estava pensativa nos encarando.

Quer nos dizer algo, filha?

Eu estou um pouco feliz. Metade.


E a outra metade?
Preocupada. Vamos sair daqui? Onde vamos morar?

— Isso vamos resolver mais tarde. Ulrich se levantou e aproximou-se


deles. — Eu sonho com um tempo em que vocês vão me ver como pai e
tenho toda paciência do mundo para esperar. Para mim será um passo muito
grande também, e a vida de nós quatro está mudando drasticamente. Mas
seremos uma família, unida, que vai superar tudo e juntos. Posso ganhar um
abraço de boas-vindas?

Afastada, observei ele abrir os braços diante dos nossos filhos.


Primeiramente os dois ficaram estáticos, encarando Ulrich, depois Raquel
balançou o pescoço concordando e ficou de pé, e Ulrich a abraçou. Nathan
ainda tinha sentimentos conflitantes e seu olhar era confuso, apesar de
conformado. Ulrich o chamou com a mão, Nathan deu dois passos e o
abraçou. Então Ulrich os acolheu, juntos, em um único abraço. Beijou os
cabelos de cada um e só então se afastou.

— Que bom que eu encontrei vocês a tempo.

***

— Estou me sentindo como uma adolescente enganando os pais. No


caso, enganando nossos filhos. — Falei com Ulrich, deitada com ele na cama
do cantinho da baixaria. — Eu disse a eles que você não viria dormir aqui.
— Que sina a minha. Precisando da permissão dos filhos para poder
comer a mãe deles.

— Olha a boca suja.

Ulrich mexeu-se embaixo do edredom e veio para cima de mim se


acomodando, encaixando seu corpo sobre o meu.

— Vamos de novo?

— Que fogo é esse?

— Não consigo me saciar. — Começou a beijar meus seios, desceu a


boca até chegar ao ventre, e então, beijou ali e fez uma caricia. Para meu
espanto, falou algo em uma língua que eu não entendi.

— O que disse? — Puxei a cabeça dele.

— Estou começando meu plano de falar com ele em turco. Falei agora
“desculpe a movimentação aí dentro meu filho, o papai e a mamãe estão
aproveitando o tempo perdido”.

— Você não presta. — Ri enquanto o beijava.

***

No dia seguinte, era um sábado e marcamos um almoço na fazenda. Eu


adorava quando nos reuníamos e vi ali a oportunidade de esclarecer para
meus irmãos todas as dúvidas que eles tinham a respeito de meu
relacionamento com Ulrich. Nosso pai já estava a par do meu transtorno e até
derramou lágrimas quando eu relatei. Ele sentiu-se impotente, por não ter
conseguido captar o que acontecia comigo, para assim, poder me ajudar. De
certa forma, decidi acreditar nele.

Aproveitei o momento depois do almoço, quando Maya, Raquel, Nathan


e Arthur saíram para explorar a fazenda na companhia de Laerte e Isabela,
uma das veterinárias da fazenda.

— Pessoal, preciso que prestem atenção no que vou falar. — Atrai os


olhares de minhas cunhadas e irmãos. — Depois de anos, vocês sendo
testemunhas do embate ferrenho entre Ulrich e eu...
— Consegui o que nenhum de vocês acreditavam, amansei a fera. —
Ulrich me interrompeu. — Deem boas-vindas ao novo cunhado. — Levantou
a taça de vinho.

Esperei os homens rirem levantando a taça de vinho concordando com


ele.

— Eu queria falar de uma forma mais formal, porém, já que ele


interrompeu, é isso, Ulrich e eu vamos nos casar.
— Mas já? — Andrey questionou. — Nem vão aproveitar o namoro?

— Conta para eles a novidade maior que o casamento. — Ulrich pediu,


o sorriso enorme.

Olhei para cada rosto na mesa, atentos esperando minha revelação. Meu
pai já sabia, e sorriu de uma forma tranquila. Ele tinha jogado a toalha,
desistido de brigar com tudo e todos, e decidiu apenas sorri agradecido com a
família a sua volta.
— Eu estou grávida.

Inicialmente o clima era de perplexidade. Ulrich e eu rimos ao fitar os


rostos pasmos.

— Como é que é? — Benjamin exclamou.


— Esse cara vai povoar de turcos a nossa família, é isso? — Thadeo
estava encarando a gente com o cenho franzido.
— Deixa de falar besteira. — Gema o cutucou. — Stela! Que felicidade!
Nós duas vamos ter bebê quase juntas, estou muito feliz, parabéns.

— Eu fui a primeira a saber. — Maria Clara vangloriou-se. — Stela


escolheu a mim para compartilhar o segredo pois segundo ela, eu era a única
que conseguiria esconder do marido.
— Como assim, Maria Clara? — Fernando a interrogou, intrigado.

— Amor, eu sou especialista em esconder segredos.

— Se fosse Gema, eu descobriria na mesma hora. — Thadeo comentou


— Tenho técnicas infalíveis de fazê-la falar.
— Espero que não inclua manteiga nessas técnicas. — Benjamin
debochou. Gema, envergonhada, tampou os olhos e todos a mesa explodiram
em gargalhadas.

— Eu não sei o que vocês estão falando — Nosso pai interrompeu as


risadas. Tínhamos até esquecido que ele estava à mesa. — Stela e Ulrich me
contaram essa manhã e eu só posso dizer que estou muito feliz que minha
filha enfim esteja encontrando o caminho dela. ver todos felizes é o que me
traz paz. Parabéns, e mal posso esperar para ver mais um neto.

— Um brinde aos dois integrantes da família que estão chegando, o do


Thadeo e o da Stela. — Fernando puxou o brinde.
Me emocionei quando todos levantaram suas taças brindando. Era tão
bom e satisfatório ver toda essa conexão e intimidade de uma família. Ulrich
sempre foi como um irmão para meus irmãos, eles não podiam querer alguém
melhor para estar ao meu lado.

— E agora, eu quero contar algo que aconteceu comigo desde que nossa
mãe faleceu e eu entrei em colapso naquela noite. — Comecei escolhendo as
palavras certas. Um silêncio imediato tomou conta da mesa. Todos os olhos
voltavam-se para mim. é algo complicado, que eu nem sabia que existia de
verdade. Eu tenho um transtorno... e dentre meus irmãos, apenas o Ben sabia.
Ele estava na cadeira ao meu lado. — Segurei na mão de Benjamin — E,
mano, eu quero mais uma vez te agradecer por ter cuidado de mim, todo esse
tempo, mesmo que eu não soubesse.

— Você tocou no ponto frágil de todos nessa mesa, Stela. A


curiosidade. — Fernando falou o que todos estavam sentindo.

— Tem a ver com suas gravidezes? — Ana Rosa indagou.

— Sim, Ana. Tem a ver. Acontece, que na noite do meu aniversário, eu


passei um trauma muto grande com a perda de nossa mãe. A doutora acha
que foi naquela noite que eu desenvolvi... — fiz uma pausa dramática, não de
proposito — O transtorno.

— E é algo grave? — Thadeo estava sério e preocupado.


— Estou em tratamento. Eu desenvolvi Transtorno dissociativo de
identidade.

— Que traduzindo é...

— Dupla personalidade.
Mais uma vez, silêncio cortante. Eles se entreolhavam chocados. Antes
de alguém falar algo, Benjamin tentou elucidar:

— Como no filme O clube da luta.

— Espera aí. — Andrey levantou a voz interrompendo meio chocado.


— Você se passa por outra pessoa? Por que eu nunca vi?
— Na verdade, você já a encontrou. — Ulrich respondeu. — No
hospital, o dia que seu João internou e Stela te deu uma bronca. Aquele dia
vocês estavam diante da outra.

— Puta que pariu. — Seus olhos pousaram em mim como se não me


reconhecesse. Na verdade, os olhares direcionados a mim eram todos de
surpresa e incredulidade. Isso causou pequeno desconforto, mas encontrei
apoio nos que já sabiam, Ben, Ulrich e meu pai. Mantive a cabeça levantada.
— Eu sabia que tinha algo errado aquele dia. — Maria Clara opinou —
Eu comentei com Gema que Stela não era daquele jeito. Como é essa outra
personalidade? Você pode e quer contar para a gente?

Assenti. Era isso que eles precisavam, de mais detalhes. tomei um gole
de vinho, olhei para Ulrich e de volta para todos a mesa com a atenção
voltada para mim.

— Eu ainda estou aprendendo sobre ela. Mas sei que quando a outra
assume... ela se vê como pessoa distinta, e não como Stela. Ela é muito
vaidosa, extrovertida, provocante e não leva desaforo para casa.
— Gostei dela. — Diana falou. Apesar do momento tenso, eu sorri.

— A doutora disse que ela sempre vai aparecer quando a Stela não
conseguir dar conta de um problema. — Ulrich complementou minha
explicação.

— Eu estou tomando controle da situação novamente voltei a falar. —


Meus irmãos calados me escutando, solidários a mim. — Porém, o que ela
fez durante esses anos, mudou para sempre minha vida. Enquanto eu odiava
Ulrich explicitamente, ela assumia o controle e ia para a casa dele. E foi
assim que engravidei sem saber. Eu não lembrava do que ela aprontava
durante a noite.
— Enfim o conceito de safadeza foi atualizado! — Maria Clara
exclamou.

— Quer dizer que... — Diana começou gaguejando incerta se estava


entendendo corretamente — Você dormia com Ulrich as escondidas... e não
se lembrava?
— Basicamente.

— Anos atrás... — Meu pai começou a falar e todos nos voltamos a


atenção para ele sentado a cabeceira da mesa. — Quando Stela ainda tinha
por volta de dezessete ou dezoito anos, eu flagrei uma noite, quando Ulrich
estava deixando-a lá na mansão. Eu não entendi, afinal estavam brigados.
Agora, entendo que Stela nunca teve consciência dessa lembrança.

— E você aproveitou da minha irmã, safado? — Andrey encarou Ulrich


de forma rude.
— Andrey tem razão. — Fernando levantou a voz. — Ulrich, como
assim cara? Você transava com ela e saia por aí pegando geral? Além de
conviver com todos nós escondendo algo tão sério da gente e dela mesmo?

— Não estou gostando nada disso. — Thadeo mostrou-se inquieto e


ficou de pé. Observei ele jogar os cabelos para trás e afastar um pouco. Era o
momento de Ulrich se explicar.

— Stela era a garota misteriosa que vocês tanto queriam saber. Ulrich
disse. — Eu não saia mais com ninguém uma vez que, tinha que esperar por
ela. Eu não sabia quando seriam as visitas, mas sabia que aconteceriam. Não
era justo da minha parte trai-la com outra, mesmo que ela não soubesse... não
se lembrava na manhã seguinte.
— Vocês não vão culpá-lo bem na minha frente. — Interrompi a fala
dele. — Ulrich poderia ter me delatado, poderia ter exposto o que eu fazia
para derrubar meu casamento, mas não fez. Ele pensou no meu bem estar. Ele
cuidou de mim, recebendo-me e levando embora em segurança.

Recebi um olhar grato dele, e sua mão segurou com força a minha.
Estávamos fortes, agora, eu estava mais forte do que nunca fui.
— Não me orgulho de tê-la enganado, mas se esses encontros furtivos
trouxe os nossos filhos, então eu estou feliz por ter feito isso.

— São informações complexas para a gente processar, precisaremos de


tempo. — Gema começou em um tom agradável. — Porém, tudo o que
falaram só reforçar o sentimento entre vocês e... Volte aqui, Thadeo. —
Chamou meu irmão quando ele deu a volta na mesa e foi em direção a Ulrich.

— Fica de pé aí. — Ordenou a Ulrich.


— Gente, acalme-se. — Eu pedi imaginando o pior. — É um almoço de
família.

— Levanta, Fernando! Vai lá separar a briga. — Maria Clara cutucou o


marido e Fernando ficou de pé.

— Sabe que eu saio no braço com você fácil, fácil, não é? — Ulrich se
levantou, mas já avisando que não tinha medo de Thadeo.
— Escuta aqui, cara — bateu o dedo no peito de Ulrich — Você dá
muita sorte por ter feito aquele trabalho comigo na escola.

— Eu fiz o trabalho todo e coloquei seu nome. — Ulrich declarou.

— Que seja. Você tem sorte que hoje estou em um dia de bem com
pessoas que vem da Turquia, senão você ia chiar no meu braço. Agora eu
quero falar uma coisa sobre esse indivíduo aqui — Bateu no ombro de Ulrich
— E preciso de atenção. Esse marmanjo aqui, sofreu coisas que muito
homem não aguentaria. E ficou firme, sempre sorriu, sempre ajudou cada um
de nós, e estava lá para acudir minha irmã quando ela precisasse. Hoje ele
está sorrindo, mas o coração dele está partido por ter perdido parte da vida
dos filhos e isso doí pra caramba. Então, irmãos Capellos, levanta essas
bundas da cadeira e venha dar um abraço no nosso turco, de agradecimento e
de boas-vindas. — Thadeo abriu os braços e Ulrich o encontrou em um
abraço forte, de irmãos.

— Obrigado por ter respeitado e amado a minha irmã. Mesmo quando


ela era uma megera e queria te bater.
— E vamos fechar a fábrica de turquinhos, não é? Já chega. —
Fernando abraçou Ulrich. Em seguida Benjamin e Andrey.

— Enfim será oficializado na nossa família. — Andrey deu um abraço


apertado em Ulrich. — Seja bem-vindo oficialmente.

— Pronto, circulando. — Thadeo bateu palma. — Foi uma cena tão


melosa que teremos estoque de mel para os próximos meses.
Nós estávamos sorrindo e emocionados com eles, mas vi meu pai
limpando a lágrimas que pareciam rolar sem sua aprovação.

— Pai, quer falar algo? — Instiguei.

— Sim. Quero. — Concordou.


Pedi para todos voltarem para os lugares e fazer silêncio. Meu pai
ofegou, com a mão tremula tomou um pouco de suco e falou:

— Eu não tive chance... na verdade, corrigindo, eu não dei chance á...


me apaixonar e ser feliz com alguém. Eu tive uma paixão... — Olhou
rapidamente para Diana. Sabíamos que era pela mãe dela que ele se
apaixonou no passado. — E deixei que esse sentimento destruísse meu
destino com a única mulher que merecia ser feliz. A mãe de vocês. — Nos
entreolhamos. Notei que Thadeo estava inquieto e Gema tratou de segurou a
mão dele. Nosso pai continuou:

— Podemos culpar várias pessoas pelo que houve na vida dos meus
queridos filhos. Eu mesmo, o pai da Germânia, o pai do Ulrich... ou vocês
mesmo que deixaram se levar em conversa dos outros, deixaram se
manipular. — Com o lenço, ele limpou mais lágrimas. Eu jamais vi meu pai
chorar com sofrimento tão explicito. Mas, nos surpreendendo, ele riu. Olhou
para cada rosto ali e riu. Enfim meu pai estava chorando de felicidade.
— Ainda bem que a Leticia abandonou meu filho Fernando. Porque só
assim ele encontrou sua parte perdida e está feliz aqui nessa fazenda. Ainda
bem que Diana foi persistente e ajudou o Benjamin a enxergar um novo
mundo, lhe dando um pequeno e grande motivo para viver. Ainda bem que
Ana Rosa voltou para a cidade e fez Andrey cortar cana, ela o derrubou do
pedestal e o mostrou como ser gente. Ainda bem que Gema fugiu do próprio
casamento e foi bater lá na vinícola. Eu não tinha mais esperanças para meu
filho, quem diria que a esperança viria de noiva? E agora, ainda bem que
Ulrich não desistiu e estava lá quando minha filha mais precisou. — Ele
encarou Ulrich e este não desviou o olhar. — Eu sei que não será fácil para
você me perdoar, mas eu não importo porque sei que cuidará da minha filha e
dos meus netos. Essa é a família Capello, seja bem-vindo Ulrich.

Ulrich apenas balançou o pescoço, anuindo.

— Vamos fazer um brinde? — Ele pediu e todos levantaram as taças. —


Meus filhos, quero que saibam que eu sinto, bem aqui no fundo, que enfim a
mãe de vocês repousa em paz. — Olhei para Ben e Thadeo, e uma lágrima
escorreu em minha face. — Porque onde ela estiver, ela sabe que nenhum de
vocês vai seguir os meus passos e ser infeliz. Vocês têm o resto da vida para
desfrutar. Um brinde a família Capello.

***
43

ULRICH

— Como funciona essa tal de regressão? O que você vê? — Indaguei a


Stela; peguei a mão dela e segurei entre as minhas. Ela estava nervosa na sala
de espera do consultório de doutora Eliana. Eu queria distrai-la.

— É interessante. A doutora vai acionando gatilhos, induzindo meus


pensamentos e então, lembranças escondidas começam a aparecer. As vezes
distorcidas, como um sonho, mas as vezes bem reais.

— Não vai me ver pelado em uma dessas lembranças ocultas, não é? —


cutuquei-a rindo.
— E eu lá preciso acessar lembranças ocultas para te ver pelado? Você
não perde a oportunidade de tirar a roupa.

Rimos juntos. Ela tinha razão sobre mim. A vida era muito mais alegre
quando tirava a roupa.

Eu estava acompanhando-a nas sessões de regressão. Essa era a terceira


e podia-se dizer que ela progredia diante de nossos olhos. Era como se a outra
personalidade estivesse, agora, mais aparente nas atitudes de Stela, que nunca
teve alguém para lhe incentivar.

Eu a observei deitada no divã enquanto a doutora lhe guiava pelas


lembranças ocultas. Stela falava algumas coisas nos situando de onde estava,
qual memória estava visitando, e para minha surpresa, ela soltou uma
exclamação pasma.
— O que você viu, Stela? — A doutora perguntou em um tom baixinho.

— É minha primeira vez...com um homem. Foi... com Ulrich.

Meus lábios se curvaram automaticamente movidos pela surpresa. Stela


estava conhecendo tudo que vivemos sob sigilo. Conhecendo as ações de
Estrelinha.
Aquele dia tinha sido o melhor e mais confuso para mim. Lembro de
estar devastado por ela me odiar, graças a visita de Samia. Eu estava furioso
também, porque eu insistia tentando falar com Stela, e em uma dessas vezes
Miguel me tratou com muita petulância, eu perdi a cabeça, soquei o nariz
dele e foi motivo para Stela me odiar ainda mais.

Ela tomou as dores dele. Ela ficou do lado dele enquanto me mandava ir
embora como um cachorro sarnento. Miguel ganhou a batalha naquele dia e
por isso fiquei em choque quando, dias depois ela apareceu de repente para
me visitar no quarto alugado que eu estava morando.

E foi lá que tudo aconteceu. A nossa primeira vez.


Eu a amei, suando e gemendo por longas horas naquele dia. Sem querer
saber os motivos dela, apenas me doei. Sem saber que ali era o corpo de
Stela, mas a consciência de outra.

No dia seguinte ela era a mesma de antes que me odiava e queria que eu
sumisse. Ainda tentei contestar sobre a nossa noite e ela tratou minha fala
com escarnio, sem acreditar em mim.

A lembrança de nossa primeira vez me remete a outra lembrança


importante. Eu não fiquei ali tentando implorar atenção, porque no dia
seguinte recebi a notícia de que meu pai estava morto. Pedi dinheiro
emprestado a Andrey e viajei. Não por meu pai, mas pela minha mãe que
precisava de mim.

O que ele me fez, as torturas, a surra em público que marcou minhas


costas e coração para sempre, a humilhação diante dos olhares curiosos, o
desespero da minha mãe que não podia me ajudar enquanto eu, encolhido,
chorava baixinho de dor, tudo isso ia ficar para sempre preso dentro de mim,
mesmo que ele tinha virado cinzas.

E o mais desagradável, é que uma lembrança puxava a outra. Toda vez


que eu lembrava da minha primeira vez com Stela, recordava também do dia
que meu pai morreu.

— E então, como foi para você recordar a nossa primeira vez? —


Perguntei a Stela ao meu lado no carro enquanto eu dirigia. Ela acabara de
narrar, de modo incrédulo, tudo que tinha revivido na regressão.

— Eu estou em choque até agora. Porque eu jurava que tinha sido com
Miguel.

— Aquele pau fino.


— Deixa eu falar. — Segurou o riso. — E o mais engraçado é que ele
não percebeu que eu não era mais virgem. Eu lembro de ele falando que fez
com cuidado para não me ferir...
Gargalhei. Havia muito ciúme e gotas de raiva em minha gargalhada.

— É porque ele entende de rola.

— Não faça isso. — Stela me alertou, apontando um dedo para mim,


espremendo os lábios para conter o riso.

— Isso o que?

— Você foi babaca e maldoso agora, caçoando da sexualidade dele.

— Não caçoei. É a pura verdade. Ele gosta de pau, portanto é disso que
entende. Além do mais você se segurou para não rir.

— Sua culpa.

— Falando em pau. — Apontei para minha calça e pisquei para Stela.


— O que acha de pagar essa corrida com uma mamada?
— Que corrida?

— Essa ué, estou sendo seu motorista.

Ela entendeu a piada, riu e colocou a mão nos olhos.


— Meu Deus. — Massageou as pálpebras. — E eu ainda vou me casar
com uma pessoa dessa.

— O marido perfeito. Aquele que sempre oferece uma mamada para a


esposa adorada.

***
Decidimos, da noite para o dia, nos casar. Estávamos enrolados, sem
roupa, na cama, quando Stela levantou a mão admirando o anel de noivado
que eu lhe dei.

— Vai mesmo se casar comigo? — Perguntei.


— É logico. — Sussurrou.

— Quando?

Abaixou a mão e me olhou.

— Está com pressa?

— Até que não — Juntei os lábios em uma careta — Só esperei por


treze anos.

Ela se mexeu na cama, virando-se e ficando de frente para mim.


— Às vezes tenho medo de nos casar e perder isso.

— Isso o que?

— Essa coisa entre a gente. Essa paixão, o tesão, a intimidade.


— Stela...

— Eu já fui casada e sei. Chega um momento que cai em rotina.

— Você se casou errado. Nunca foi casada com um turco que faz ayran
e comidinhas especiais, te ama loucamente, te faz rir e te faz ficar com raiva.
Te coloca para dormir como também te leva nas alturas a ponto de termos
que vir trepar no quarto mais longe para ninguém ouvir o pau quebrar, além
de te colocar para mamar, lhe ensinando a engoli tudo e a me acomodar em
sua garganta. Um que conhece os seus dois lados, os seus medos e suas dores
além de ser pai de seus filhos. Você simplesmente casou errado.
— Caramba, eu não quero perder nada disso.

— Então seja rápida e coloque logo uma aliança nesse dedão aqui —
Mostrei o dedo anelar para ela — O anelar, ao lado desse que você tanto
adora.
— Para de ser tão pervertido.

— Estamos no quartinho da baixaria, aqui pode. E então, qual sua


resposta? Vai conhecer um casamento de verdade ou esperar o tempo passar?

— Eu quero. O pacote completo. Ela girou e subiu em mim.


— Exclusividade total.

— Mal posso esperar. — Stela riu, maravilhosamente feliz.

— Para quando? — Indaguei.


— Semana que vem?

— Semana que vem.

E assim se fez. Em uma semana, estávamos reunidos na mansão onde a


cerimônia será realizada.

Nathan e Raquel estavam aos poucos me aceitando na vida deles desde


que pegamos o resultado de exame de DNA que confirmou minha
paternidade. Eu decidi dar aos dois todo o tempo que eles precisassem; só o
fato de eu poder vê-los e saber que eram meus filhos, já era suficiente.

Eles chegaram da escola com a mãe, e eu já os esperava. Stela sabia do


que se tratava.
— Tenho algo para vocês. — Avisei, demostrando grande euforia.
— O que é? — Nathan jogou a mochila em qualquer canto e correu até
mim. Quando olhou para as duas caixas no sofá, deu um gritinho de surpresa
e alegria. Raquel manteve-se discreta, ela era como eu, não se vendia tão
fácil.

— O que tem nas caixas, Ulrich? — Nathan gritou impaciente.


— Bom, vocês dois vão poder abrir com uma condição.

— Que condição? — Ele estava muito aflito.

— Aqui. — Entreguei um envelope para cada um deles. — É um


convite.
— Um convite? — Raquel repetiu, intrigada. Abriu o dela com cuidado,
enquanto o irmão rasgava sem paciência.

— Leia, filha. — Stela a encorajou.

Ela respirou fundo e leu:

“Querida filha, nós, os seus pais, Stela e Ulrich, a convidam para o


nosso casamento. Sua presença é muito importante, além de sua
colaboração.

Queremos que aceite, juntamente com seu irmão, ser os nossos


guardiões das alianças.”

Com carinho,

Os noivos.
— Tudo bem. — Ela dobrou o papel e assentiu.

— Filha, não se sinta pressionada. — Stela falou.

— Não estou. — Sorriu sendo convincente — Eu quero. Mãe, você está


muito feliz todos esses dias, eu quero ajudar.

— Obrigada, filha. — Stela a abraçou e quando se afastaram eu abri


meus braços para ela.

— Negócio fechado?

— Sim. — Sorriu e me abraçou.

— Isso é para você. — Peguei uma das caixas e entreguei a ela. Raquel
sentou-se para abrir, com cuidado.

— Tem a mesma coisa escrita no meu? — Nathan balançou o papel.


— Sim. Qual sua resposta?

— Calma, tenho que descobrir o que tem dentro da caixa, para saber se
vale a pena.

— Nathan! — Stela ralhou com ele. Eu apenas ri.

— Vou abrir. — Avisou e pulou na caixa rasgando o papel. — Como é


que é? — Gritou desorientado, com as mãos na cabeça, ao ver o Xbox que
tanto quis. — Meu Deus, a nova geração. Obrigado, Ulrich. — Correu até
mim, enlaçando minha cintura.

— E qual sua resposta? — Perguntei.

— De que?
— De levar nossas alianças no casamento.

— Tá. Eu levo. Meu Deus, olhar essa máquina!


E agora, ele parecia nervoso dentro de um terno que se parecia com o
meu.
— Tudo bem, amigão? — Inclinei sobre Nathan e arrumei sua gravata
torta.

— Sim.

— Tudo bem em relação ao casamento?

— Sim. Você é até legal. Eu ainda gosto do meu outro pai e ainda vou
conversar com ele, mas não quero mais morar com ele. Você e a mamãe são
legais.

— É bom ouvir isso. Eu te adoro, meu filho. — Sem que Nathan


esperasse, o abracei. Quando afastamos ele sorriu e saiu do quarto.

— Olha só, o pai do ano! — Olhei para trás lembrando que estava em
um quarto com os irmãos Capello.
— Pai do ano, mesmo. — Benjamin concordou — O cara ganhou em
uma bolada só, três filhos.

Aproximei-me de um espelho e olhei minha gravata.

— O melhor é sabermos que nossa irmã, enfim está em boa companhia.


— Fernando comentou.
— Esse turco foi esperto, ele conquistou a gente primeiro para depois
seduzir a Stela. — Andrey ironizou nos fazendo rir.

— E tá errado? — Thadeo berrou levantando um copo — Ele deu sorte


que eu gostei do flerte dele, senão tinha virado meu inimigo.

Gargalhamos pela fala dele.


— Você me ama, Thadeo.

— Pois já pode agradecer por a gente gostar de você. Senão estava


agora levando um couro nesse momento.
— Toma aqui. — Benjamin me entregou um copinho de uma dose; deu
um para cada irmão. — Só para dar coragem. Esse é o último casamento
Capello dessa geração. A próxima, estaremos aqui velhos e de pau mole
enquanto nossos filhos viris e jovens tomam conta de tudo. — Serviu Corote
em cada copinho.

— A sociedade que se prepare, a fera da nova geração tem nome e


endereço: Átila Capello, o herdeiro da manteiga. — Thadeo declarou e
debulhamos em risadas.

— Será que ele vai seguir os passos da manteiga? — Benjamin instigou.


— Claro que sim. Filho meu é raiz, como o pai.

— Isso é porque vocês não conhecem o grande negociador da nova


geração. — Tive o prazer de gritar — Nathan Capello Aslan. O mercenário
será insaciável.

— O lá de casa vai ser bom no laço. — Foi a vez de Fernando imaginar


— O maior produtor de leite que essa redondeza já viu.
— Calma que mulher também tem vez. — Andrey avisou e eu
imediatamente zombei:

— Será que a Alice vai colocar marmanjos para cortar cana igual a mãe
fez?

Mais uma explosão de gargalhadas.


— Que Deus ajude que a boate de Diana feche até Maya ter idade. —
Benjamin proclamou — Ela não vai passar na porta.

— A empresaria de sucesso que dança mascarada a noite. — Fernando


sugeriu sobre o futuro da filha de Benjamin.
— Vai tomar no seu cu. — O caçula se enfureceu — Vamos brindar
logo essa porra.

— Ao futuro. — Gritei.

— Ao futuro turco Capello. — Andrey corrigiu e viramos o copo na


boca.

***

Quando vi Stela vestida de noiva, entrar pelo corredor de flores, com


seu pai ao lado a guiando e os nossos filhos a frente, eu quase não aguentei.
Mas que merda de homem mole eu seria se derretesse no nosso momento
mais feliz? Eu nem mesmo queria piscar para não perder um milésimo de
segundo.

Era o meu casamento, e ela era a minha noiva. Coisa que nas minhas
fantasias mais distantes acontecia, porém, eu não costumava fantasiar tanto.
Eu já tinha considerado que havia perdido a batalha. Stela jamais seria minha.
Entretanto, eu estive enganado todo esse tempo. Ela não só se tornou minha,
e aceitou-me como seu em sua vida, como também me deu dois filhos de uma
única vez.

— Ora, ora. Vocês aceitaram vir ao casamento e ainda entraram com


sua mãe. — Falei com Nathan e Raquel. — Estou tão feliz por isso.
— Não venha com essa, você me subornou e sabe disso. — Nathan
revirou os olhos.

Raquel apenas deu um sorriso debochado e afastou-se tomando seu


lugar ao lado do irmão.
Apertei a mão de seu João e ele sussurrou:

— Enfim, o noivo certo. — Acenou e afastou-se para se sentar na


primeira fileira. Eu não me importei muito, minha atenção inteira estava em
Stela. Ela estava linda, deslumbrante. Vestida de noiva para torna-se minha
esposa.

— Agua mole em pedra dura... — sussurrei e ela riu.


— Para de deboche, ou eu fujo, como a Gema.

— Tudo bem, não está mais aqui quem debochou.

Eu passei por todos os casamentos dos irmãos dela, vendo Stela entrar
de mão dadas com outro cara, despedaçando meu pobre coração, que mesmo
sofrido sorria ao vê-la linda e feliz. Ver Stela sorri era meu ponto fraco, sem
foi. Eu sabia que por dentro ela estava quebrada e encolhida, e por isso que
me satisfazia vê-la bem.

Quem ama jamais desejará mal ao outro.

Mas então Estrelinha apareceu, e ela me trouxe um pedacinho da minha


Stela. Ela abriu as portas para que eu pudesse ter esperanças, ela deu a nós
dois uma ligação eterna: nossos filhos.

E quando o juiz perguntou se era de livre e espontânea vontade que


Stela me aceitava como marido, ela estava olhando para ele, e quando me
encarou eu tive quase certeza de que aquele brilho em seus olhos, um ar
esperto e malicioso, não era apenas Stela.
— Sim. — Ela falou com satisfação.
44

MIGUEL

MESES DEPOIS...

Fazia frio debaixo da ponte onde eu me encolhia enrolado em um


cobertor rasgado e sujo. Estava ficando com fome e enjoado ao mesmo
tempo.

Olhei os mendigos deitados e o cheiro que vinha deles era nauseante.


Como uma pessoa poderia viver assim...? Encarei minhas próprias roupas
rasgadas e meus pés sujos descalços e suspirei esgotado.
Tinha se passado muito tempo desde que saí de São Luís fugindo de
agiotas. E ainda bem que a polícia pegou toda a quadrilha. Quando eu soube
que pegaram eles por causa do Nathan e da Raquel, juro que gargalhei e
comemorei. Sempre seriam meus filhos de coração.

Um dia eu ainda iria encontrá-los, e teríamos uma conversa franca, mas


por enquanto eu achava justo que eles criassem um laço com o verdadeiro
pai. Eu tinha minha própria vida agora.
Já estava escurecendo e eu odiava ficar aqui a noite. Interiormente,
torcia para que isso acabasse logo.

Vi um carro parar do outro lado do viaduto e um homem desceu.


Esperou os carros passarem, atravessou correndo e veio diretamente até mim.
Rômulo.
— Meu Deus, Miguel... oh, Miguel. O que você fez de sua vida? —
Lamentou, incrédulo e chocado ao meu vir no chão junto aos mendigos.

Levantei o rosto e o olhei. Arrastei-me sobre o papelão buscando uma


posição confortável.

— Rômulo. — Ergui minha mão e ele afastou para que eu não o


tocasse. Estava com um lenço tampando o nariz. Vestia-se com luxo, como
sempre foi, e não mudou nada, continuava bonito. — Eu estou morrendo. —
Sussurrei. — Estou muito doente, não sei se sobrevivo pelos próximos dias.
— Não fale isso. Eu vou te dar algum dinheiro.

— Aquele dinheiro? — Ri amargamente. — O meu dinheiro, você quer


dizer.

— Não vamos lembrar dessas coisas. Eu estou aqui e vou te ajudar.

— O que você fez com a grana?

— Miguel...

— Você me deve isso. Só me diga o que você fez. Eu quero morrer em


paz, Rômulo...
Ele olhou para os lados, fitou os mendigos deitados, afastados e voltou-
se para mim.

— Eu roubei o seu dinheiro porque eu precisava. Eu estava afogado em


falcatruas, coloquei a pobre da Erica como laranja, fiz conluio com deputado
corrupto. Eu tive que pegar seu dinheiro Miguel. Eu preciso que você me
perdoe, antes de ir dessa para melhor.

Apoiando na parede, fiquei de pé e encarei ele. Joguei o cobertor velho


para trás e sorri.
— Bem vindo de volta ao Brasil, amor. Pronto, ele confessou, pode
levar.

Rômulo ficou atônito, sem saber o que fazer quando o delegado saiu de
trás do muro juntamente com policiais e Caio.

Mas que merda... deu um passo para correr, todavia, o comando do


delegado o parou.
— Fique parado.

— Eu quero meus advogados. — Berrou, as mãos para cima.

— Você vai ter essa chance.


— Você vai tomar um bom banho quando chegar em casa. — Caio
falou comigo e deu um selinho em meus lábios. Olhei para Rômulo confuso e
chocado ao ver a cena.

— O que foi? Nunca viu um casal feliz? A propósito, quero que conheça
Caio Alvorada, o meu noivo.

***

Meses antes...
Divorcio assinado. Era uma sensação estranha depois de anos casado.
Estar livre, sem nada e sem ninguém era ao mesmo tempo libertador como
desesperador. Puxei a aba do boné para baixo cobrindo um pouco meu rosto e
andei pela rua de cabeça baixa. Foi quando ouvi:
— Miguel?

Levantei o rosto e vi um carro parado e dentro dele, ninguém menos que


Caio.

— Oi. — Acenei e voltei a andar ignorando-o.


— Ei, venha aqui.

Parei de andar.

— Eu?
— Sim, venha cá.

Revirei os olhos, dei meia volta e aproximei do carro.

— Diga.

— Sou eu, Caio, parceiro de negócios. Não está me reconhecendo?


Estava te defendendo dias atrás.

— Não sou mais do ramo. — Tentei afastar, mas ele não permitiu.

— Quer almoçar comigo?


— Pra que? Divorciei da Stela, sai da Capello. Não tenho mais nada a
ver...

— Eu ainda te acho gato. Entra aí, vamos conversar.

— Sobre o que, pelo amor de deus, Caio? — Já estava perdendo a


paciência.

— Sobre como eu passei vontade de comer você e agora acho que tenho
a chance. Entra aí, porra.
E eu entrei. E ele quase acabou comigo. Me fez berrar feito uma cabra e
foi mais gostoso do que eu poderia imaginar.

Ele me levou para um hotel e ao chegar no quarto, tirou a camisa, e


avançou para cima de mim, rodeou meu pescoço com as duas mãos - eram
mãos enormes - e beijou-me com gula. Me deixou sem folego e
completamente pirado. Ele parava de beijar, colocava a língua para fora e eu
atacava feito um desesperado chupando-a e beijando sua boca de maneira
sedenta.

Caio nem precisou me dizer o que fazer, caí de boca em seus mamilos,
que para meu deleite, tinha um piercing em forma de argolinha em um deles;
chupei-os, puxando cada um com os dentes. Ele era forte, cheiroso e o
peitoral uma delícia; não totalmente liso, havia uma fina camada de pelos
loiros deixada estrategicamente. E como os mamilos eram rosadinhos, previ
que lá embaixo me esperava o paraíso.
Caí de joelhos diante dele, ensandecido. Caio tirou a calça e o volume
enorme apareceu na cueca e eu avancei por cima do tecido mesmo. adorando
me provocar, ele terminou de retirar a roupa, quando se libertou da cueca, eu
fiquei embasbacado com o tamanho e como eu previa, rosadinho. E não
permitiu que eu tocasse a boca.

— Aqui. — Ele caminhou até uma poltrona e sentou-se, o pau em riste.


— Venha mamar e alegrar o seu dia.

Ele me fez esquecer os problemas. Não tinha como pensar em outra


coisa com aquele homem enorme fazendo o que queria de mim.
O homem era um animal na cama, insaciável e tinha propensão a
dominar. Ele amava deixar o parceiro moído. Sempre vi Caio lá na Capello e
sentia atração, mas sabia disfarçar muito bem. Agora, porém, que eu estava
livre, eu aceitaria ir com ele para qualquer lugar que me chamasse. Fomos
então para São Paulo e eu passei a morar em sua mansão. Caio me levou ao
shopping, me deu roupas, sapatos, celular, relógios, óculos, tudo do bom e do
melhor.

— Achei ridícula sua atuação na sala da Capello aquele dia, correndo


dos irmãos. — Caio disse certo dia para mim. — Vai entrar numa aula de
defesa corporal. Você é muito fresco, Miguel, precisa amadurecer, crescer
para o mundo e eu vou te colocar no caminho certo.

E foi isso que ele fez.


Planejamos juntos como capturar Rômulo. Conversamos com o
delegado e armamos a emboscada. Quando Caio conseguiu localizar ele aqui
no Brasil, foi fácil todo o resto. Eu entrei em contato pedindo para ele me dar
uma chance e me visitar. Rômulo me subestimava e achava que eu nunca
seria capaz de armar algo. Ele atendeu meu pedido, foi ao meu encontro
debaixo do viaduto e está agora a caminho da delegacia.

Eu não acho que sou merecedor de uma nova chance e uma vida de luxo
com um homem maravilhoso, e por isso eu ia valorizar cada minuto de minha
nova vida. Caio me fez enxergar como eu fui cretino com Stela. Eu estava
arrependido do quer fiz, mas também sofri com a perda dos meus filhos. Eu
também fui enganado pelo velho Capello, entretanto, decidi trilhar o caminho
da superação e redenção.
45

STELA

As sessões de regressão estavam terminando. Foi uma árdua batalha que


doutora Eliana trilhou comigo. Ela acendeu uma luz no fim do túnel onde eu
poderia sair e me ver livre. Depois de anos sofrendo com o trauma de
infância – o qual foi pontapé do transtorno dissociativo - enfim agora, eu
conseguia visitar aquela parte do passado sem causar danos em meu corpo e
mente.

Eu tinha dado adeus a outra personalidade; ela não tinha por que voltar
quando a minha coragem de enfrentar obstáculos mais crescia. Doutora
Eliana disse que em muitos casos as duas personalidades sem fundem.

Eu estava aprendendo a encarar meus medos e demônios internos, e era


quase como aprender a caminhar. Um passo de cada vez, tão devagar que as
vezes irritava, porém, dessa vez eu não estava sozinha. Meus irmãos me
conheciam por completo, meu pai e Ulrich.
Além de duas vidas a caminho.
— Dois? — Benjamin berrou surpreso quando o contei que estava
esperando gêmeos. — Stela! Sua expressão era puro espanto.

— Pois é, mano. Eu estou até agora sem chão.


— Minhas pernas ficaram bambas na hora que a médica falou. — Ulrich
comentou, ainda meio pálido, desorientado. Caminhei para a cozinha onde
Diana estava pegando copos para nos servir um suco que segundo ela, nos
acalmaria.

— Cacete, tudo que esse turco toca nasce um filho? — Benjamin


comentou, lá na sala.

— É muito iorgut que eu bebo. — Ulrich retrucou — Engrossa a porra


toda.
— Estou ouvindo a baixaria de vocês. — Gritei.

— É motivo para comemorar, pessoal. — Diana serviu o suco e deu um


copo para cada um. — Vamos brindar a esse momento com suco de
maracujá.

— Somos os primeiros a saber? — Meu irmão indagou.

— Sim. Acabamos de sair da clínica.

— Sabe que a culpa é de vocês dois por serem gêmeos, não é? — Diana
lembrou esse fato.

— Mas a força do Iogurte do Turco ajudou. — Benjamin zombou.


— Cala essa boca. — Rindo, dei um tapa nele.

— Um brinde aos futuros dois integrantes da família. — Benjamin


gritou, a gente brindou e assustada, porém feliz, beijei Ulrich, o meu marido.

Depois da comemoração na casa de Ben, voamos para casa, eu estava


ansiosa para contar a novidade, que não foi recebida com empolgação.

— Dois bebês? — Nathan berrou inconformado. Raquel limitou-se a


colocar a mão na boca chocada. — Mãe!
— Meu filho, eu não tenho culpa. É Deus que decide.

— Vocês vão encher essa casa de bebês. — Protestou.

— É um para você e outro para sua irmã ajudar a cuidar. — Ulrich


provocou.

— Eu não vou ser babá de ninguém. — Ele já adiantou.

— Então vou ter que tomar seu Xbox. — Ulrich continuou provocando.

— Ah, meu Deus, então vou ter que aceitar. — Com o olhar baixo,
sofrido, sentou-se na ponta do sofá.
— Ele está brincando, meu filho. — Sentei-me ao lado dele — Vocês
vão gostar de seus irmãozinhos por livre e espontânea vontade, ninguém vai
obrigá-los a isso.

— Sua mãe tem razão. Eu estava brincando. — Ulrich fez um cafuné


nos cabelos dele — Vocês podem estar assustados agora, mas quando eles
chegarem, tão pequenos e fofinhos, vocês vão gostar automaticamente.

— Eu torço para que sejam duas meninas. — Raquel enfim falou algo.
— Eu fujo para a fazenda do tio Fernando se for dois meninos como o
Nathan.
— Ninguém vai fugir para lugar nenhum. — Ulrich intercedeu. —
Venha aqui, Mortícia. — Ela o atendeu e aproximou-se e ele a tranquilizou:
— Nossa pequena família está crescendo, isso é o que importa. O que acham
de sair para comemorar?
— Eu vou precisar de uma porção de batatas com cheddar duplo só para
mim. — Nathan ainda se fazia de desolado, o que poderia ser apenas
encenação.

— O cheddar duplo. — Ulrich e eu falamos juntos, lembrando do dia


que ele gritou “cheddar duplo” enquanto gozava; era uma bela coincidência.
Nós dois gargalhamos deixando Nathan e Raquel sem entender o que
acontecia.

— Nem pense em chamar os gêmeos de cheddar duplo. — Avisei


Ulrich, cochichando.

— Prometo.

Estávamos morando na mansão. No início, Ulrich relutou e tivemos um


grande debate sobre. Mas, ele chegou à conclusão de que era melhor nos
acompanhar do que tirar as crianças de um lugar onde eles já consideravam
familiar. Tinham sofrido essa troca de pai, e não era justo sofrer também com
um novo endereço e o afastamento do avô.

Além do mais, era a forma silenciosa que ele encontrou de se vingar do


meu pai, mostrando que o homem que ele tanto lutou contra, estava agora a
frente de sua mansão, casado com a filha dele e sendo pai de seus netos. Meu
pai simplesmente abaixou as guardas e tornou-se um bom vovô que adorava
maratona filmes antigos e ler bons livros e verdadeiramente feliz com tudo a
sua volta.

A cada mês que passava, eu ficava maior, mais pesada. Ulrich esteve ao
meu lado em todos os momentos e demostrava adorar o meu corpo. Não era
como se ele estivesse sendo obrigado a fazer, ele queria estar a par de tudo,
cuidar de mim, dar assistência de um pai. E eu nem queria comparar quando
foi Miguel, que não fazia nem metade.

Ele ia trabalhar, me ligava para saber como eu estava e saber se eu


estava bebendo água, porque de alguma forma estranha, o maior medo dele
era que eu desidratasse no calor infernal do Maranhão. Não satisfeito, ligava
para Maria pedindo para me dar um suco ou uma fruta, de preferência alguma
a em fibra para ajudar na minha digestão.
Se eu sentisse um desejo, poderia ser madrugada que ele ia
providenciar. Fazia massagem em minhas pernas e costas, me ajudava no
banho na banheira, não deixando de me amar mesmo eu estando enorme
como um mamute. E era justamente assim que ele se referia a mim: meu
mamute.

Enfim chegou o grande dia. Ulrich estava mais desesperado do que eu.
Nem mesmo tinha dormido a noite inteira. Verificou se o carro estava bom,
mesmo tendo outros vários na garagem do meu pai, verificou cinquenta vezes
as bolsas dos bebês, que são um menino e uma menina, e quando acordei, ele
já estava pronto, andando pela casa feito um fantasma.

Eu entrei para fazer a cesárea e ele decidiu que ficaria ao meu lado o
tempo todo. Ele ficou sentado ao meu lado, segurando a minha mão enquanto
os bebês vinham ao mundo. Ele até poderia estar nervoso, mas se segurou,
diferente de Thadeo, dias atrás quando Gema teve bebê, ele quase derrubou o
hospital entrando em pânico.
O menino nasceu primeiro. Ulrich chorou colocando a mão contra a
boca. Cinco minutos depois, veio a menina. Enrolaram os dois em panos
verdes próprios da sala de cirurgia, e veio me mostrar.

— Çucuklarim. — Ulrich sussurrou enquanto chorava ao meu lado.


Depois descobri que significava: “Meus filhos.”
Eu disse a ele que daria a ele o direito de escolher os nomes das crianças
já que Nathan e Raquel foram escolhidos por Miguel e eu. Ulrich escolheu
dois nomes de origem turca para os bebês. Kerem para a menina e Erkan para
o menino.

***

Um ano depois os bebês conheceram as terras do pai deles. Era também


a nossa primeira vez na Turquia. Minha primeira vez desde os quatorze anos
quando conheci Ulrich e desejei conhecer tudo que ele falou. Agora eu via
com meus próprios olhos. E era um paraíso na terra.
Estávamos em uma sacada de uma propriedade que era de Ulrich. Ali
tinha tapetes coloridos, estava adornada com luzes e pinturas, todavia, o que
mais me impressionou foi a imensidão rochosa da Capadócia. Até onde os
olhos alcançavam, a vista mais bela que já vi. Montanhas, rochas, e o céu
azul pintado com os balões que nunca paravam de voar levando pessoas para
conhecer o lugar lá de cima.

Apoiada na grade da sacada, assisti a cena da natureza. Ulrich abraçou-


me por trás.

— Eu cumpri minha promessa. Te trouxe em minha terra.


— Que bom que não desistiu de mim, meu amor. — Virei-me para ele.
— Que bom que lutou por mim, quando eu já tinha desistido.

Ele segurou meu maxilar e beijou-me ternamente.

— Hoje eu te como na capadócia. — Soprou contra meus lábios.


— Ah, pelo amor...! Ulrich, estávamos em um momento fofo. —
Protestei.

Ele riu, abraçando-me.


— Tudo bem, desculpa. Não falo mais. Porém, é logico que vou te
comer bem gostoso em terras turcas. Agora vamos dar uma voltinha de
balão?

— Sério?

— Já está pronto.
— Ai meu Deus. Só nós dois?

— E desde quando pais de quatro filhos tem o luxo de ficar só os dois,


Stela? — Ele gargalhou. — A turma vai junto.

E fomos os quatro juntos, voando no balão pelo céu da Capadócia.

***

ULRICH
Mais tarde, naquela noite, depois de um maravilhoso jantar turco que
minha mãe preparou, enfim me vi sozinho com minha esposa. Como eu a
prometi, eu queria amá-la aqui, em terras turcas.

— As crianças dormiram? — Perguntei quando Stela entrou no quarto.


— Sim. — Foi direto para a mala procurar uma camisola — Nathan
ainda tentou me convencer a deixá-lo mais uma hora no celular. Você precisa
ser mais firme com ele.
— Deixa que eu sei lidar com ele.

Acabei de falar e me surpreendi com ela vindo para cima de mim.

— O que acha de irmos naquela sacada? Quero transar ao ar livre.

— Xiu. As crianças estão aqui ao lado, podem acordar. — Sussurrei


temeroso.

— Não vão acordar. — Sussurrou — Vamos. — Puxou meu braço. —


Não vai negar isso a sua esposa, não é?

— Logico que não. Jamais. — Pulei da cama e saímos na ponta dos pés.
Corremos pelo corredor e chegamos à sacada. O céu estava lindo, coberto de
estrelas. Stela acendeu duas lanternas e me empurrou contra um monte de
almofadas bordadas coloridas. Senti gosto do batom...

Ela nunca passava batom antes de transar...

Afastei-a e encarei. Os olhos estavam em brasas, puro desejo. Me


olhava de forma divertida e então, sussurrou:
— Há, quanto tempo...

— Estrelinha? — Com olhos saltados, afastei-me bruscamente. Ela riu


diante do meu susto.

— Sou eu, meu amor, a Stela. — Berrou batendo palmas — Foi só uma
pegadinha e você caiu.
— Ah, sua...! — Baguncei os cabelos, revoltado e aliviado. — Cara, não
se brinca com isso. — Meu coração disparado.

— Desculpa. — Ela ria sem parar e veio me abraçar. — Mas sabe que
eu não me importaria se ficasse com a Estrelinha, não é?

— Não vamos falar mais nisso. Você ouviu a doutora Eliana. A outra
personalidade se fundiu com você, não vai mais voltar.

— É. Não vai mais. — Empurrou-me para a cama e se deitou em cima.


beijou-me e rolamos juntos entre os lençóis.
Enquanto ela me despia, e via Stela sorrir mordendo o lábio, eu me
perguntava se ela tinha se passado por Estrelinha para me enganar em uma
pegadinha, ou Estrelinha estava nesse momento se passando por Stela só para
me persuadir?

Eu nunca saberei, porém, não fazia diferença, as duas eram minhas.


EPÍLOGO

ULRICH

Dois anos se passaram tão rápidos, porém eu não sentia nostalgia e sim
satisfação por ter aproveitado cada instante com minha família.

Nathan com onze anos estava cada vez mais esperto e arquitetava
comigo uma máfia familiar para vigiar possíveis pretendentes de Raquel que
chegava aos quinze anos. Segundo os relatórios de Nathan, havia sim alguém
na mira da Mortícia turca, mas ele ainda não sabia quem poderia ser. Estava
descobrindo.

— Te proíbo de aterrorizar os amigos de Raquel. Stela me avisava


sempre e eu fingia de desentendido.
— Que amigos?

— Todos que vêm aqui fazer trabalho escolar e você começa a se fazer
de doido para escorraçar os coitados.

— Trabalho de escola, Stela? Eles vêm aqui interessados em minha


filha. Ela vai estudar e ser alguém na vida primeiro. Pensar em namoro é por
último.

— Então quando éramos adolescentes, você veio aqui em casa fazer


trabalho escolar só porque estava com segundas intenções comigo? — De
braços cruzados tentava me pressionar.
— Na verdade, eu estava interessado no Thadeo, mas você me fez
mudar de ideia. — Debochei.

— Idiota.

Stela tinha razão. Eu devia deixar as coisas acontecerem naturalmente.


Minha menina estava crescendo e eu só vivi três anos da vida dela e já estava
tão apegado.
Miguel enfim voltou depois de dois anos sumido. E não foi susto o fato
de que ele e Caio estavam juntos. A mídia noticiou o novo romance de Caio,
todos nós já sabíamos.

Miguel se reuniu com Raquel e Nathan e abriu o jogo com os dois,


sobre tudo que tinha feito contra Stela. Miguel buscava redenção e essa era a
melhor forma de ele conseguir: falando a verdade. Inclusive contou a Nathan
e Raquel que tinha se casado com um homem, um homem que eles
conheciam, o Caio.

Não havia mais espaço para magoas no coração dos meus filhos. Eles
estavam felizes, com uma nova família e perdoou o Miguel e prometeram que
iam visitá-lo nas próximas férias. Apesar de tudo, eles tiveram uma vida
inteira juntos.
Quando chegou o dia da festa de aniversário de quinze anos de Raquel,
eu juro que fiquei abatido. Era a tal mudança de fase, em que ela entraria com
uma boneca e um vestido de princesa e voltava com sapatos de saltos e
vestido mais adulto, simbolizando a perda da fase infantil. Meu coração se
apertava porque eu sabia que estava próximo de perdê-la para a vida. Estudar,
casar, ter a própria família.

Eu ajudei a preparar cada pequena coisa da festa. Fiquei com Stela


recepcionando os convidados e depois me sentei em uma mesa com os
irmãos Capello e seu João.
— Não vai ter aquela frescura de dança com o pretendente, não é? —
Benjamin questionou.

— Graças a Alá, não. — Levantei as mãos para cima — Raquel não tem
pretendentes.

— Amém. — Thadeo concordou.


A celebração começou. Raquel entrou tão bela como uma princesa, em
um vestido azul como o céu, digno de princesas, mas antes de tirar a saia
redonda do vestido, ela pegou um microfone surpreendendo a todos.

— Oi... oi, pessoal. — Começou, de forma tímida.

— O que ela está fazendo? — Stela exclamou. — Está saindo do


roteiro.

— Stela, deixa. — Puxei-a e ela sentou-se ao meu lado.

— Obrigada por estarem aqui essa noite. Hoje é um dia muito especial
para mim e quero falar algo sobre isso. Anos atrás, minha mãe estava no meu
lugar. Era o aniversário de quinze anos junto com meu tio Ben. — Ela acenou
para a gente. — E aquele dia foi muito importante para ela, é uma lembrança
que ela guarda com carinho e tristeza, porque não foi só o dia do aniversário
dela, foi o dia que minha avó virou uma estrela. Na época da minha mãe,
tinha a tradição de a aniversariante dançar com o pretendente, ela dançou
com o rapaz que ela gostava. Hoje eu tenho meu pretendente.

— Como é que é? — Thadeo gritou da mesa.

— Relaxa tio — Raquel falou — Ele tem a minha idade e é da minha


turma. Um beijo Edu. — Beijou a mão e soprou na direção de uma turma de
rapazes. Um deles recebeu o beijinho, me deixando de queixo caído. Ela
tinha conseguido tapear Nathan e eu.

— O Eduardo? — Nathan exclamou inconformado. — Eu nunca


imaginei. Ele vinha aqui em casa jogar comigo, esse traidor.

— Sshiu. Pessoal, me deixe continuar. — Ela pediu. — Hoje não irei


dançar com meu pretendente. Nessa noite eu quero chamar uma pessoa aqui
para ser o meu par. Eu quero dançar uma valsa de quinze anos com Ulrich
Aslan, o meu pai.
Eu ouvi todos aplaudirem enquanto eu me levantava e andava na
direção de Raquel. Eu sentia-me em uma espécie de torpor, pego no susto. A
emoção me deixou sem ar.

Estendi a mão para minha filha, e quando a mão delicada pousou em


meus dedos, e levantou os olhos sorrindo para mim, eu quase desabei em um
pranto. Porque eu pensei que por pouco não havia perdido também esse
momento da vida dela, e ainda bem que eu tive uma chance a tempo. Eu não
a vi aprender a falar, nem a andar, nem ir ao primeiro dia de aula, mas agora
eu a conduzia pelo salão em uma valsa de pai e filha, mesmo que eu não
soubesse dançar, mas isso não importava. Eu tinha a vida inteira dos meus
filhos pela frente, para aproveitar.

FIM...
TRANSTORNO DISSOCIATIVO DE IDENTIDADE (TDI)
O transtorno dissociativo de identidade, chamado antigamente de dupla
personalidade, geralmente é uma reação a um trauma como forma de ajudar
uma pessoa a evitar memórias ruins. O transtorno dissociativo de
personalidade é caracterizado pela presença de duas ou mais identidades de
personalidades distintas. Cada uma delas pode ter um nome, histórico
pessoal e característica distintos.

O tratamento é a psicoterapia.
*Rara

*Casos por ano: menos de 150 mil (Brasil)

*O tratamento pode ajudar, mas essa doença não tem cura

*Crônico: pode durar anos ou a vida inteira

*Requer um diagnóstico médico

Fontes: Hospital Israelita A. Einstein e outros


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Ele é o quinto livro da série DINASTIA CAPELLO que é
composta por cinco irmãos, e tem a seguinte ordem:

Doce Domínio - (Fernando)

Segredos Indiscretos - (Benjamin)

Impiedosa Paixão - (Andrey)

O beijo da Fera - (Thadeo)

Sublime Amor - (Stela)

[1]
Caralho.
[2]
Juízo final islâmico.
[3]
Sim
[4]
Minha mãe.
[5]
Meu filho.

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