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CAPÍTULO I – LINHAS GERAIS DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA

Para introduzir a família como objeto de estudo é necessário traçar, ainda que em
linhas gerais, os mais relevantes aspectos de suas transformações, porque a
compreensão de um instituto, nos dias atuais, não pode prescindir de uma avaliação
histórica, ainda que breve, do mesmo.
A própria noção de família sofreu importantes mutações ao longo do tempo,
merecendo também destaque o fato de o próprio vocábulo família envolver uma vagueza
terminológica, que se reflete no Direito, pois não recebe, até hoje, definição expressa
nos Códigos e Constituições de muitos países.
Além disso, especialmente no Brasil, família se confundia com casamento, que
era a única forma reconhecida e protegida pela lei, instituindo uma família patriarcal,
monogâmica e patrimonialista.
A evolução para a pluralidade de tipos, com a democratização e personalização
da família leva a uma importante mudança de paradigmas, que deve ser compreendida,
antes que se possa partir para a análise das modalidades da família conjugal
contemporânea e suas repercussões.

SUMÁRIO DO CAPÍTULO I. FAMÍLIA. 1 A difícil arte de conceituar a


família. 2 Origem da família. 3 Aspectos gerais das famílias grega e
romana. 4 A família contemporânea. 5 Direito de Família. 6 O
movimento de codificação no século XIX e a influência das escolas
positivistas na elaboração do Código Civil de 1916. 7 A proliferação
de leis especiais e de microssistemas: a descodificação. 8
Constitucionalização do Direito Civil. 9 As diretrizes teóricas do
Código Civil de 2002: cláusulas gerais e os princípios da eticidade,
socialidade, sistematicidade e operabilidade. 10 Direito Intertemporal
no Direito de Família.
2

1 A difícil tarefa de conceituar família

Não há como estudar o Direito de Família sem antes partirmos da análise da


própria família. A família, não apenas no Brasil, é considerada a celula mater da
sociedade, e por isso merece proteção do Estado.
A família, dada a sua inegável importância, é objeto de pesquisa por várias
ciências – como Biologia, Sociologia, Psicologia, Antropologia, etc e, por óbvio, pelo
Direito.
A existência de unidades, elementares e organizadas, intermediárias entre a
pessoa e a sociedade à qual pertence, formadas, primitivamente, para alimentação,
defesa e procriação, é fato comum a todas as sociedades.
Os costumes sociais dessas famílias ou nessas famílias abrangem diversas
manifestações e contêm especificidades próprias, conforme o local e tempo investigados.
Por isso, a formação da família é controvertida e variável, conforme as diversas
doutrinas a respeito.
Dois grandes grupos de opinião desenvolveram-se relativamente à evolução da
família: as opiniões do primeiro grupo, no sentido da chamada Escola Evolucionista,
afirmam que teria ocorrido uma evolução uniforme e progressiva, desde a situação
inicial de comércio sexual promíscuo, até o surgimento de outras formas de
organização familiar, culminando com a predominância da família monogâmica,
mediante uma cronologia histórica uniforme na evolução da humanidade; e, já o
segundo grupo, considera a monogamia a primeira forma de organização familiar em
todas as culturas originárias (assim consideradas as culturas dos povos que ainda não
conheciam o trabalho produtivo, vivendo somente dos recursos da natureza), e apenas
em culturas secundárias (caracterizadas pela existência da caça, pesca, pastorícia e
agricultura e pelo culto dos Totem), esporadicamente, teriam surgido outras formas de
união entre os sexos. Podem-se mencionar desde a tendência de base cultural, por meio
da teoria do estruturalismo de Lévy-Strauss (comparativa das famílias nas diversas
civilizações) até a abordagem histórica de Engels, fundada nos estudos de Morgan,
3

destacando a influência da sociedade sobre a forma e a estrutura da família, sob o


enfoque do desenvolvimento da técnica e da economia (Escola Evolucionista).1
Mas, qualquer que seja a abordagem, fato é que a família, apesar de sempre
passar por transformações, está presente na evolução da humanidade, antecedendo ao
surgimento do Estado, ao próprio Direito, e mesmo à Igreja, que sobre ela sempre
exerceu importante influência.
Mesmo o simples vocábulo família, como bem manifesta Françoise Zonabend,
“banalizou-se de tal forma em nosso dia-a-dia, tão corrente é na literatura, seja ela
erudita ou popular”, tornando difícil, até mesmo, listar todas as suas ocorrências.2
Pierre L. Van Den Berghe, aluno de Claude Lévi-Strauss, sustenta que as
ciências sociais fornecem, em geral, opiniões fragmentárias e incompletas do
comportamento humano, e, particularmente, da família humana.3
O autor reconhece a crescente contribuição da biologia e seus espetaculares
avanços - em especial nos dois últimos séculos, mas seu enfoque vai além da base
fisiológica da família. Por isso, critica sociólogos e antropólogos, para quem os demais
aspectos da estrutura e comportamento da família humana são fruto do aprendizado,
de normas culturais e programas sociais, suscetíveis a uma eventual infinidade de
variações possíveis, de uma sociedade a outra, de um indivíduo ao outro, e conclui: “o
comportamento e a cultura humanos não podem ser tratados como sistemas fechados,
compreensíveis só em seus próprios termos”. 4
De outro lado, parte da doutrina5 sustenta uma teoria naturalista da família,
considerando-a uma instituição natural, uma agregação natural ou um organismo
natural, como algo que nasce, espontaneamente, em decorrência da própria natureza.6
Além das já mencionadas dificuldades acerca da noção de família, vale destacar
que as leis e os Códigos não se ocuparam de conceituá-la, a exemplo do Código de
Napoleão.

1
CONVERTI, Luzia Rosa Leite de. As relações patrimoniais nas uniões sem vínculo legal. Rio de Janeiro:
Forense, 1985, p. 4.
2
ZONABEND, Françoise. História da família: Da família. Olhar etnológico sobre o parentesco e a família.
(trad. Maria da Assunção Santos). Lisboa: Terramar, 1996, v. 1, p. 13.
3
VAN DEN BERGHE, Pierre L. Sistema de la família humana: uma vision evolucionista. México: F.C.E.,
1983, p. 14.
4
Idem, p. 15.
5
CICU, Antonio. El Derecho de Família. Buenos Aires: Ediar, 1947, p. 109; DÍEZ-PICAZO, Luis. Família y
derecho. Madrid: Civitas, 1984, p. 21.
6
Critica-se essa teoria por ter conotações ideológicas.
4

No entanto, devido à inerente complexidade do objeto do Direito de Família, a sua


inclusão em um Código Civil tem sido sempre alvo de críticas, seja pela ausência de
tratamento de determinadas questões ou por inovações jurisprudenciais não positivadas,
seja por aqueles que pretendem a criação de um Código ou Estatuto próprio para tratar
dessa matéria.7

Na primeira metade do século XX, a Carta das Nações Unidas, votada pela ONU,
em 10.12.1948, fala no "direito de fundar uma família", sem quaisquer restrições étnicas ou
religiosas, acrescentando, em seu art. XVI, nº 3: "A família é o núcleo natural e fundamental
da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado".
De acordo com Diogo Leite de Campos, “a família, nomeadamente, é um quadro
essencial à humanização do homem. Sem um conjunto de valores sociais de coesão
não há sociedade, só indivíduos”.8
Hoje se fala de um direito fundamental à família, como sintetizou Carbonnier: “que
se oculte o direito de família; falemos antes de um direito do homem (e da mulher) à
família: é uma forma de direito à felicidade implicitamente garantida pelo Estado”.9
Como se vê, há diversidade de pontos de vista sobre o conceito de família, mas
afirma, com mais acerto, Philippe Malaurie, admitindo não ser possível delinear-lhe um
conceito abstrato e intertemporal, sendo, contudo, factível analisar o significado da
locução família, computando as características próprias de uma estrutura familiar
concreta, vigente em determinado tempo e espaço sociais; embora, ainda assim, com
as necessárias especificidades. Em conseqüência, deve-se reconhecer a coexistência
– em uma mesma época e em um mesmo lugar – de vários modelos de famílias, pelo
que o mestre francês diz ter sido possível a formulação do princípio da pluralidade dos
tipos.10

7
A respeito, vale mencionar que, atualmente, o IBDFAM apóia o Projeto de Lei n. 2285/2007, que propõe
a criação do Estatuto das Famílias, estatuto autônomo, desmembrado do Código Civil, cujo Livro IV seria
revogado. Ao que parece, o IBDFAM retoma a idéia lançada na França, pelos MAZEAUD, que desde os
anos 1970 proclamam a autonomia do Direito de Família e a necessidade de um Código familiar: in
MAZEAUD, Henri, MAZEAUD, Jean, MAZEAUD, Leon, CHABAS, François. Leçons de Droit Civil: La
famille. 7. ed., Paris: Montchrestien, 1995, p. 4.
8
CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de Direitos da Personalidade. 2. ed., Coimbra: separata do v. LXVI
(1990) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1992, p. 39.
9
CARBONNIER, Jean. A chacun sa famille, à chacun son droit. Essais sur les lois. 2. ed., 1995, p. 185-
186.
10
MALAURIE, Philippe, AYNÈS, Laurent. Cours de Droit Civil: La Famille. Paris: Cujas, 1989, p. 17.
5

2 Um rápido olhar sobre a evolução da família

Nos variados estudos sobre a origem e evolução da família, principalmente


ocidental, até a análise dos principais aspectos da família, em geral, duas
características estão sempre presentes: a monogamia e o patriarcado.
De acordo com Américo Luís Martins da Silva, depois de um estágio de
promiscuidade, foram-se restringindo as uniões sexuais, sendo esse o primeiro passo para
a organização familiar, com a repressão ao instinto promovida pela intervenção da cultura,
levando à formação de uniões monogâmicas e estáveis, que mais tarde vieram a ser
designadas casamento.11
A monogamia permitia uma convicção de paternidade, por conta da exclusividade
das relações sexuais, visando a transmissão de poder, direitos e patrimônio.12
O patriarcado está na base da estrutura familiar romana, que girava em torno da
potestas do pater familias, cujas características foram motivo da discussão, segundo
ensina Cláudio de Cicco, se seriam de direito natural, se suas disposições seriam
puramente de direito positivo; se se tratariam de uma imposição da natureza ou dotadas
de qualidades conseqüentes da cultura, dentre outras teses.13
Após a leitura do referido autor, pode-se afirmar que o patriarcado assegurava,
mais que permitia, a existência, validade e eficácia de um poder, não questionado, de
grande abrangência, sobre filhos e mulher. Poder esse, inclusive oponível inclusive a
terceiros.
Depois dessas linhas gerais, sobre a evolução histórica da família, salientando a
estrutura fundada na monogamia e no patriarcado, analisam-se, ainda que sucintamente,
os aspectos gerais das famílias grega e romana, devido à sua inegável importância.

11
SILVA, Américo Luís Martins da. A evolução do direito e a realidade das uniões sexuais. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 1996, p. 52-55.
12
Shapiro citando Lévi-Strauss afirma: "a única coisa que se pode dizer é que a família conjugal monogâmica
é relativamente freqüente.": SHAPIRO, Harry. Homem, Cultura e Sociedade. (trad. CORACY, G. Robert,
CORACY, Joanna E., OLIVEIRA, Margarida Maria C), 3ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1982, p. 360.
13
DE CICCO, Cláudio. Direito: tradição e modernidade. Poder e autoridade na família e no Estado. Das
origens romanas ao Direito brasileiro moderno. São Paulo: Ícone, 1993, Introdução, p. 11 a 17.
6

3 Aspectos gerais das famílias grega e romana

Por volta do ano V a. C., com o surgimento da cidade-Estado na Grécia antiga,


estabeleceu-se, para o homem livre, o direito de operar no espaço público, na vida da polis.
Para a mulher restava a vida na oikia – no espaço doméstico.
Explica Gema Galgani S. L. Esmeraldo que “no mundo da OIKIA se realizavam
atividades de reprodução familiar, da manutenção da vida, da sobrevivência da espécie.
Fenômeno pré-político era responsabilidade das mulheres, crianças, serviçais e escravos e
correspondia ao espaço privado, da família, cujas atividades eram restritas às mulheres”.14
Vem da Grécia uma noção singela e transparente da família nuclear, em que a mais
marcante diferença em relação aos dias atuais poderia ser apontada como a presença dos
escravos.
Aristóteles define a família como uma associação estabelecida por natureza para
atender às necessidades quotidianas das pessoas, denominando-se seus membros
companheiros de pão ou companheiros de comer. Cada família é comandada por seu
membro mais velho, como um rei, que se impõe, também, aos chefes de família
descendentes, definidos por laços de consangüinidade e submetidos à lei patriarcal, como
relatado por Homero, em Hesíodo (O Trabalho e os Dias): “Cada qual faz as leis para seus
filhos e esposas”.15
Consoante a representação aristotélica, a família, que era formada por membros
submetidos a um poder patriarcal, desenvolvia-se nas relações entre senhor e escravo,
marido e mulher, pai e filhos.
A família nuclear, descrita por Aristóteles, é marcada pela monogamia, sintetizada
na afirmativa de que “em um Estado, no qual esposas e filhos sejam partilhados, a afeição,
inevitavelmente, será mínima, com o pai incapaz de dizer ‘meu filho’, e com o filho incapaz
de dizer ‘meu pai’.16
Em Roma, da mesma forma, a família é estruturada a partir do poder paterno e da
monogamia no casamento. Domus é o termo utilizado para designar a habitação, mas

14
ESMERALDO, Gema Galgani S. L.
www.informacaoesociedade.ufpb.br/ojs2/index.php/lies/article/view/354/276 . Falando de gênero para
informar e formar consciências. p. 2.
15
ARISTÓTELES. Os Pensadores: Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 145.
16
Idem, p. 174, 175.
7

englobava também a família residencial. A palavra família abrangia, ainda, para além dos
escravos e dos bens, os descendentes submetidos à potestas de um mesmo pater familias.
Essa potestas continha, inclusive, o poder de o pater reconhecer ou não o filho.
Aquele não reconhecido era, simplesmente, rejeitado, repelido.
Como esclarece Veyne, "um cidadão não tem um filho: ele o toma, levanta (tollere);
o pai exercia a prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-la do chão, onde a
parteira a depositou, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhece e se
recusa a enjeitá-la. (...) Em Roma a voz do sangue falava muito pouco; o que falava mais
alto era a voz do nome da família".17
A família romana, independentemente de ser ou não ameaçada por eventual
impossibilidade de procriar, podia formar-se com autonomia dos laços sangüíneos. A
adoção era amplamente utilizada, seja por razões políticas, ou para assegurar a
continuação de uma estirpe, mas também como meio de controlar o movimento dos
patrimônios, p. ex., porque as heranças que o adotado recebesse caberiam ao pater
familias.
Como se resumiu e procurou demonstrar, a família greco-romana foi regida pelas
noções de monogamia e patriarcalismo, dos quais alguns aspectos chegaram até os dias
atuais, influenciando a normatização da família brasileira.

4 A família contemporânea

Os modelos e estruturas de famílias sofrem influência de inúmeros aspectos, sociais,


políticos, econômicos e também do controle de comportamento em dados período e
local.
Os avanços científicos e tecnológicos atuam também na evolução da sociedade. A
Revolução Industrial provocou o surgimento de uma ordem cultural disciplinadora,
autoritária e hierarquizada.
Desde o fim do século XVIII e começo do século XIX, assinala Foucault que se
desenvolve uma enorme produção de instituições destinada à vigilância e controle

17
VEYNE, Paul. O Império Romano: História da Vida Privada. (trad. REIST, Hildegard). v. 1.. São Paulo:
Companhia das Letras, 19991, p. 23.
8

permanente das pessoas, através de um conjunto de pequenos poderes, inferiores ao


Estado, criando-se uma espécie de rede institucional de normalização dos homens.18
No Brasil, o primeiro grande passo legislativo foi o chamado Estatuto da Mulher
Casada, correspondente à Lei nº 4.121, de 27.08.1962, que, basicamente: aboliu a
incapacidade relativa da mulher casada; proclamou-a colaboradora, no interesse comum
do casal e dos filhos; amenizou, assim, o poder de chefia do marido, embora o mantendo;
propiciou-lhe a reserva patrimonial, de livre administração e disposição, imune às dívidas
do marido; permitiu que mantivesse o poder familiar sobre os filhos do leito anterior.
A Lei do Divórcio (Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977) foi um marco
significativo na evolução da família e do Direito de Família brasileiros.
É que, no Brasil, as Constituições, desde o Império, tratavam somente do
casamento como modelo para a formação de família - reconhecida e protegida pelo
Estado -, mas esse casamento era indissolúvel.
A indissolubilidade refletia a forte influência religiosa na regulamentação do
casamento, cuja extinção pelo divórcio só foi introduzida no país em 1977, depois de
aprovada a Emenda Constitucional n° 09, com a correspondente regulamentação pela
Lei n° 6.515/1977 (Lei do Divórcio).
Além da faculdade de se pôr fim ao vínculo conjugal por ato de vontade das partes,
destacando, nesse sentido, a secularização ou laicização do casamento, a Lei do Divórcio
modificou o regime de bens supletivo legal – que até então era a comunhão universal e daí
em diante passou a ser a comunhão parcial -, e tornou facultativo que a mulher, ao se
casar, adotasse o sobrenome do marido.19
Mas as principais transformações no Direito de Família se deram a partir da
Constituição de 1988 que ampliou as formas de reconhecimento de família, tratando,
expressamente, das entidades familiares casamento, união estável e família monoparental.
Entretanto, o reconhecimento de outras entidades familiares, além da conjugal,
como a união estável, é apenas parte das transformações.
Questões relativas à limitação da natalidade, aborto, inseminação artificial,
fecundação em proveta, são algumas das questões controvertidas que a ciência promove

18
FOUCAULT, Michel. La verdad y las formas jurídicas. México: Gedisa Mexicana, 1986, p. 91 e segs.
19
O art. 50, n° 5, da Lei do Divórcio (Lei n° 6.515 de 1977), deu nova redação ao art. 240 do Código Civil
de 1916, acrescentando-lhe parágrafo, pelo qual está previsto que: “a mulher poderá acrescer aos seus os
apelidos do marido”.
9

através de descobertas e novas técnicas, sendo temas em constantes debates, com


amplas implicações jurídicas no Direito de Família.
A partir da segunda metade do século XX, como explica Malaurie, ocorreram
grandes mudanças e a posmodernidade pôs em crise (pelo menos aparentemente) o
modelo da família conjugal. Produziu-se a denominada democratização da família com a
progressiva redução da potestas do pater familias até se retirar do marido a chefia da
sociedade conjugal.20
Substituindo a potestas romana, o pátrio poder (hoje denominado poder familiar)
transforma-se em poder de proteção, no interesse dos filhos, mais como complexo de
deveres, que como o antigo direito absoluto e orientado pelo princípio do melhor interesse
do menor (the best interest of the child).
A igualdade jurídica da mulher é o centro de grandes transformações
modernizadoras da família, que era antes fundada na base e poder patriarcal, e nessa
estrutura arcaica, a mulher ocupava plano secundário. Em princípio incapaz, sem
patrimônio próprio, casada, deixava a potestas do pai para ingressar in domo mariti,
subalterna, eternizando sua condição de capitis diminutio.
Essa situação atravessa os tempos até que, com as duas grandes guerras do
século XX, a mulher passa a assumir atividades antes restritas aos varões - o que o direito
não pode ignorar.
A visão que os legisladores dos Códigos oitocentistas, especialmente do Código
Civil de 1804, tinham da família não mudou na mesma velocidade das transformações
políticas, sociais, econômicas etc.
O Direito Civil era conhecido em função de um projeto familiar específico: da
família proprietária de bens (família burguesa), na qual o homem casado, como pai e
marido, era o chefe natural. Família e patrimônio historicamente são intimamente
ligados. 21
A partir do século XIX, ocorreram importantes transformações no âmbito do
direito de família, merecendo ênfase dois aspectos: a mulher se tornou capaz e o menor
passou de objeto a sujeito.

20
MALAURIE, Phillippe. Op. cit., p. 47.
21
Internationalisation des droits de l’Homme et evolution du droit de la famille: Colloque du Laboratoire
d’études et de recherches appliqués au droit prive – Université de LIlle II. Avant-propos de Françoise
Dekeuwer-Défosser. Paris: L.G.D.J., 1996.
10

A família, progressivamente, perde sua concepção como espaço e função


econômicos, passando a ser destacados os laços afetivos: o respeito aos sentimentos
tornou-se mais importante que a vontade de proteção a um patrimônio. Identificam-se, a
partir de então, as raízes de um fenômeno que pode ser denominado personalização da
família.22
A família fundada no casamento e organizada sob o princípio hierárquico do
23
patriarcado evoluiu para uma concepção individualista. A família, submetida à livre
escolha dos indivíduos, é hoje constituída de um feixe de relações interindividuais, sobre
as quais os Estados devem salvaguardar o equilíbrio e a coesão, em nome do respeito à
vida privada e à família, de um lado, e; de outro, aos próprios interesses da sociedade,
pois se trata de proteger sua base.
Na feliz síntese de Norbert Elias, vivemos um período de transição, em que os
padrões mais antigos foram contestados, mas os novos ainda não surgiram, deixando
abertas para debate muitas questões tidas por certas e naturais pelas gerações
anteriores: “Os filhos começam a pensar a partir do ponto em que os pais pararam suas
reflexões, começam a perguntar por razões em casos em que os pais não viram razão
para indagar: por que deve ‘a pessoa’ comportar-se desta maneira aqui e daquela outra
ali? Por que isto é proibido e aquilo permitido? Qual é o propósito desse preceito sobre
as maneiras e daquele, sobre a moral? Convenções que foram aceitas durante gerações
passam a ser problematizadas”.24

22
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de
Família. Junho– julho/2004, n. 24, ano VI, p. 151.
23
SHORTER, Edward. Naissance de la famille moderne: XVIIIe siècle. Paris: ed. Du Seuil, Points Histoire,
1981.
24
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e Civilização.(trad. Ruy Jungmann). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, v. 2, p. 267.
11

5 Os Princípios no Direito de Família contemporâneo

O fenômeno denominado constitucionalização, dentre outros aspectos, faz com


que as leis devam estar em conformidade com os direitos fundamentais, em sentido
contrário ao que antes ocorria, quando esses últimos dependiam da lei.
Buscando frear os desmandos do regime antecedente, no Estado Liberal de
Direito, o princípio da legalidade tornou-se o meio encontrado para substituir o
absolutismo do regime deposto. De acordo com René David25, no Brasil, como nos
diversos países da família romano-germânica, por muito tempo, consagrou-se o primado
da lei. O positivismo jurídico, concebido para manter a ideologia do Estado Liberal,
fundado na idéia de que o direito deveria ser reduzido à lei, restringia a atividade do juiz
a uma mecânica aplicação das normas jurídicas. E a lei devia ser dotada de
generalidade e de abstração. A generalidade era pensada como garantia da igualdade
(obviamente formal) e a abstração visava a longevidade do ordenamento jurídico.
Contudo, os Códigos oitocentistas, fundados em técnica legislativa rígida e
fechada, com a pretensão de resolver todos os problemas, logo se revelaram
insuficientes para tal missão.
Michele Giorgianni denominou crise da legalidade a insuficiência da lei, como
fonte principal do direito, para a solução de todos os conflitos, revelando o equívoco
inerente à idéia dos Códigos como modelos absolutos, capazes de abranger todas as
hipóteses, dando-lhes solução.26
Os juízes deixaram de ser a boca da lei, como queria Montesquieu, e passaram a
decidir com base no direito à luz da Constituição, de modo que a aplicação da lei esteja
em conformidade com os princípios da justiça e com os direitos fundamentais.
Por constituir um sistema fechado, imutável, construído sob forte influência da
Escola da Exegese, a insuficiência do Código Civil de 1916 para solucionar os conflitos
se instaurou, levando à proliferação de leis e a uma fragmentação do sistema, cada vez
mais fora do Código.
O Direito de Família no Código Beviláqua, a partir do fenômeno da
constitucionalização, sofreu drásticas modificações e passou a ser interpretado à luz dos

25
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 17-
18.
26
GIORGIANNI, Michele. “La morte del Codice Otocentesco”, in Rivista di Diritto Civile, Padova, Cedam,
1980, anno XXVI, p. 52).
12

princípios constitucionais, especialmente igualdade e liberdade, buscando dar


efetividade à dignidade da pessoa humana.
A personalização do direito privado começou desde a Constituição de 1988, pois,
na estrutura hierárquica da ordem jurídica, como direito ordinário, submete-se, conforme
Canaris27, ao imperativo da lógica normativa, pelo qual a legislação no campo do direito
privado esteja vinculada aos direitos fundamentais, segundo o princípio da primazia da
lex superior.
Instaurou-se um novo tempo. Um tempo para a efetivação dos princípios
constitucionais, voltado para dar efetividade aos direitos fundamentais nas relações
privadas.28
Além da busca da dignidade da pessoa humana, o Direito de Família, contido no
Código Beviláqua, fundado no patriarcado, na desigualdade entre homens e mulheres e
entre os filhos havidos ou não do casamento, que era a única forma de constituir família,
ao ser constitucionalizado, sofreu importantes transformações.
A igualdade substancial, entre homem e mulher e entre os filhos, nascidos ou não
de relacionamento conjugal, e a liberdade, estampada na ampliação dos modelos
constitucionalmente reconhecidos de entidades familiares, representaram e
permanecem como diretrizes para a interpretação e a aplicação do novo Direito de
Família, de forte base principiológica.
Os princípios, nas palavras de Humberto Ávila, “são normas imediatamente
finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de
parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado
de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária
à sua promoção”. 29
Princípios gerais do direito são pensamentos fundantes, estruturantes e
orientadores da ordem jurídica, que não se limitam a integrar as normas legais, mas
constituem tanto fonte de interpretação quanto de controle dos atos e negócios jurídicos.
Muitos princípios se apresentam em forma de normas, expressos nos textos legais,
inclusive elevados à extração constitucional, como fundamento último de legitimidade do
próprio ordenamento jurídico. E nenhum desses princípios é absoluto. No caso concreto,

27
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado.Coimbra: Almedina, 2006, p. 27-28.
28
SILVA, Maria de Fátima Alflen da. Direitos Fundamentais e o novo Direito de Família. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 120.
29
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 167.
13

a eventual colisão de um princípio com outro será resolvida pelo intérprete mediante
ponderação de valores, realizando-se o balanceamento principiológico e podo fim à
aparente antinomia. 30
Nesse contexto surge o Código Civil de 2002, com o objetivo de reunificar o
sistema, remodelado para torná-lo aberto, marcado pela técnica legislativa das cláusulas
gerais e sob forte influência de princípios e valores constitucionais, tendo em vista seu
escopo de dar efetividade aos direitos fundamentais.
Como explica Judith Martins-Costa, “as cláusulas gerais constituem o meio
legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico de princípios
valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de
conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de
diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no
ordenamento positivo”. 31
A incompletude das normas configuradas pela técnica das cláusulas gerais significa
que as mesmas não têm fattispecie autônoma, pois exigem a progressiva e constante
atuação do juiz em sua formação, mediante o reenvio a outras normas do sistema ou a
padrões, valorativos ou comportamentais, que podem ser extra-sistêmicos. Nas palavras
de Judith Martins-Costa, “um standard ou um valor moral, retirados da prática da sociedade
civil, se considerados por si sós não são, por evidente, normas juridicamente aplicáveis.
Contudo, mediados pelas fontes, constituirão o conteúdo – e, portanto, o critério de
aplicabilidade – dos enunciados (ou modelos) abstratamente previstos nas cláusulas
gerais”. 32
Em outros termos: as fontes de produção jurídica – sejam a lei, os princípios
gerais, o costume ou a analogia (art. 4°, LICC) – geram estruturas normativas ou
modelos jurídicos, cujo conteúdo não é estático, pré-determinado e intangível. Ao
contrário, colocam-se na experiência jurídica positiva de forma dinâmica, dando,
conseqüentemente, vida e movimento aos modelos, ao mesmo tempo em que estes
recebem vida e movimento das fontes.33

30
MAFRA, Tereza Cristina Monteiro Mafra et alii. A LICC e o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro:
Forense, 2008, p. 90-91.
31
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no direito obrigacional. São
Paulo: RT,1999, p. 274.
32
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no direito obrigacional. São
Paulo: RT,1999, p.335.
33
Idem, p. 332-333.
14

E não haveria de ser diferente no Direito de Família. Sob a diretriz do culturalismo


de Miguel Reale, o responsável pelo Livro IV – Do Direito de Família, Clóvis do Couto e
Silva, atentou para a concepção do “Direito como experiência” e do Direito de Família
como totalidade e complexo de valorações e comportamentos aos quais são atribuídos
significados suscetíveis de valoração jurídica, segundo certos valores morais e
finalidades práticas.34
Para Clóvis do Couto e Silva, o Direito de Família compõe-se de elementos que
não recebem e nem poderiam receber do ordenamento jurídico a mesma disciplina dos
seus efeitos. A sua regulamentação, no âmbito dos direitos pessoais, “é fortemente
impregnada de princípios éticos, de tal modo que os próprios direitos lesados não se
submetem aos mesmos cânones dos outros ramos do direito, como, por exemplo, o das
obrigações”.35
Segundo o mesmo autor, diversamente, o Direito Patrimonial da Família está
informado pelos princípios gerais do Código, assumindo, por vezes, a estrutura de uma
obrigação, e submetendo-se, em outras, a regras que integram o Direito das Coisas.36
Apontada a grande relevância dos princípios na interpretação e na aplicação do
Direito de Família contemporâneo, passa-se, a seguir, à análise do casamento.

34
REALE, Miguel. O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 31.
35
COUTO E SILVA, Clóvis do. Exposição de motivos para a reforma do direito de família. In Anteprojeto do
Código Civil. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1975, v. 155, p. 153.
36
Idem, ibidem.

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