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Para introduzir a família como objeto de estudo é necessário traçar, ainda que em
linhas gerais, os mais relevantes aspectos de suas transformações, porque a
compreensão de um instituto, nos dias atuais, não pode prescindir de uma avaliação
histórica, ainda que breve, do mesmo.
A própria noção de família sofreu importantes mutações ao longo do tempo,
merecendo também destaque o fato de o próprio vocábulo família envolver uma vagueza
terminológica, que se reflete no Direito, pois não recebe, até hoje, definição expressa
nos Códigos e Constituições de muitos países.
Além disso, especialmente no Brasil, família se confundia com casamento, que
era a única forma reconhecida e protegida pela lei, instituindo uma família patriarcal,
monogâmica e patrimonialista.
A evolução para a pluralidade de tipos, com a democratização e personalização
da família leva a uma importante mudança de paradigmas, que deve ser compreendida,
antes que se possa partir para a análise das modalidades da família conjugal
contemporânea e suas repercussões.
1
CONVERTI, Luzia Rosa Leite de. As relações patrimoniais nas uniões sem vínculo legal. Rio de Janeiro:
Forense, 1985, p. 4.
2
ZONABEND, Françoise. História da família: Da família. Olhar etnológico sobre o parentesco e a família.
(trad. Maria da Assunção Santos). Lisboa: Terramar, 1996, v. 1, p. 13.
3
VAN DEN BERGHE, Pierre L. Sistema de la família humana: uma vision evolucionista. México: F.C.E.,
1983, p. 14.
4
Idem, p. 15.
5
CICU, Antonio. El Derecho de Família. Buenos Aires: Ediar, 1947, p. 109; DÍEZ-PICAZO, Luis. Família y
derecho. Madrid: Civitas, 1984, p. 21.
6
Critica-se essa teoria por ter conotações ideológicas.
4
Na primeira metade do século XX, a Carta das Nações Unidas, votada pela ONU,
em 10.12.1948, fala no "direito de fundar uma família", sem quaisquer restrições étnicas ou
religiosas, acrescentando, em seu art. XVI, nº 3: "A família é o núcleo natural e fundamental
da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado".
De acordo com Diogo Leite de Campos, “a família, nomeadamente, é um quadro
essencial à humanização do homem. Sem um conjunto de valores sociais de coesão
não há sociedade, só indivíduos”.8
Hoje se fala de um direito fundamental à família, como sintetizou Carbonnier: “que
se oculte o direito de família; falemos antes de um direito do homem (e da mulher) à
família: é uma forma de direito à felicidade implicitamente garantida pelo Estado”.9
Como se vê, há diversidade de pontos de vista sobre o conceito de família, mas
afirma, com mais acerto, Philippe Malaurie, admitindo não ser possível delinear-lhe um
conceito abstrato e intertemporal, sendo, contudo, factível analisar o significado da
locução família, computando as características próprias de uma estrutura familiar
concreta, vigente em determinado tempo e espaço sociais; embora, ainda assim, com
as necessárias especificidades. Em conseqüência, deve-se reconhecer a coexistência
– em uma mesma época e em um mesmo lugar – de vários modelos de famílias, pelo
que o mestre francês diz ter sido possível a formulação do princípio da pluralidade dos
tipos.10
7
A respeito, vale mencionar que, atualmente, o IBDFAM apóia o Projeto de Lei n. 2285/2007, que propõe
a criação do Estatuto das Famílias, estatuto autônomo, desmembrado do Código Civil, cujo Livro IV seria
revogado. Ao que parece, o IBDFAM retoma a idéia lançada na França, pelos MAZEAUD, que desde os
anos 1970 proclamam a autonomia do Direito de Família e a necessidade de um Código familiar: in
MAZEAUD, Henri, MAZEAUD, Jean, MAZEAUD, Leon, CHABAS, François. Leçons de Droit Civil: La
famille. 7. ed., Paris: Montchrestien, 1995, p. 4.
8
CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de Direitos da Personalidade. 2. ed., Coimbra: separata do v. LXVI
(1990) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1992, p. 39.
9
CARBONNIER, Jean. A chacun sa famille, à chacun son droit. Essais sur les lois. 2. ed., 1995, p. 185-
186.
10
MALAURIE, Philippe, AYNÈS, Laurent. Cours de Droit Civil: La Famille. Paris: Cujas, 1989, p. 17.
5
11
SILVA, Américo Luís Martins da. A evolução do direito e a realidade das uniões sexuais. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 1996, p. 52-55.
12
Shapiro citando Lévi-Strauss afirma: "a única coisa que se pode dizer é que a família conjugal monogâmica
é relativamente freqüente.": SHAPIRO, Harry. Homem, Cultura e Sociedade. (trad. CORACY, G. Robert,
CORACY, Joanna E., OLIVEIRA, Margarida Maria C), 3ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1982, p. 360.
13
DE CICCO, Cláudio. Direito: tradição e modernidade. Poder e autoridade na família e no Estado. Das
origens romanas ao Direito brasileiro moderno. São Paulo: Ícone, 1993, Introdução, p. 11 a 17.
6
14
ESMERALDO, Gema Galgani S. L.
www.informacaoesociedade.ufpb.br/ojs2/index.php/lies/article/view/354/276 . Falando de gênero para
informar e formar consciências. p. 2.
15
ARISTÓTELES. Os Pensadores: Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 145.
16
Idem, p. 174, 175.
7
englobava também a família residencial. A palavra família abrangia, ainda, para além dos
escravos e dos bens, os descendentes submetidos à potestas de um mesmo pater familias.
Essa potestas continha, inclusive, o poder de o pater reconhecer ou não o filho.
Aquele não reconhecido era, simplesmente, rejeitado, repelido.
Como esclarece Veyne, "um cidadão não tem um filho: ele o toma, levanta (tollere);
o pai exercia a prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-la do chão, onde a
parteira a depositou, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhece e se
recusa a enjeitá-la. (...) Em Roma a voz do sangue falava muito pouco; o que falava mais
alto era a voz do nome da família".17
A família romana, independentemente de ser ou não ameaçada por eventual
impossibilidade de procriar, podia formar-se com autonomia dos laços sangüíneos. A
adoção era amplamente utilizada, seja por razões políticas, ou para assegurar a
continuação de uma estirpe, mas também como meio de controlar o movimento dos
patrimônios, p. ex., porque as heranças que o adotado recebesse caberiam ao pater
familias.
Como se resumiu e procurou demonstrar, a família greco-romana foi regida pelas
noções de monogamia e patriarcalismo, dos quais alguns aspectos chegaram até os dias
atuais, influenciando a normatização da família brasileira.
4 A família contemporânea
17
VEYNE, Paul. O Império Romano: História da Vida Privada. (trad. REIST, Hildegard). v. 1.. São Paulo:
Companhia das Letras, 19991, p. 23.
8
18
FOUCAULT, Michel. La verdad y las formas jurídicas. México: Gedisa Mexicana, 1986, p. 91 e segs.
19
O art. 50, n° 5, da Lei do Divórcio (Lei n° 6.515 de 1977), deu nova redação ao art. 240 do Código Civil
de 1916, acrescentando-lhe parágrafo, pelo qual está previsto que: “a mulher poderá acrescer aos seus os
apelidos do marido”.
9
20
MALAURIE, Phillippe. Op. cit., p. 47.
21
Internationalisation des droits de l’Homme et evolution du droit de la famille: Colloque du Laboratoire
d’études et de recherches appliqués au droit prive – Université de LIlle II. Avant-propos de Françoise
Dekeuwer-Défosser. Paris: L.G.D.J., 1996.
10
22
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de
Família. Junho– julho/2004, n. 24, ano VI, p. 151.
23
SHORTER, Edward. Naissance de la famille moderne: XVIIIe siècle. Paris: ed. Du Seuil, Points Histoire,
1981.
24
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e Civilização.(trad. Ruy Jungmann). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, v. 2, p. 267.
11
25
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 17-
18.
26
GIORGIANNI, Michele. “La morte del Codice Otocentesco”, in Rivista di Diritto Civile, Padova, Cedam,
1980, anno XXVI, p. 52).
12
27
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado.Coimbra: Almedina, 2006, p. 27-28.
28
SILVA, Maria de Fátima Alflen da. Direitos Fundamentais e o novo Direito de Família. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 120.
29
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 167.
13
a eventual colisão de um princípio com outro será resolvida pelo intérprete mediante
ponderação de valores, realizando-se o balanceamento principiológico e podo fim à
aparente antinomia. 30
Nesse contexto surge o Código Civil de 2002, com o objetivo de reunificar o
sistema, remodelado para torná-lo aberto, marcado pela técnica legislativa das cláusulas
gerais e sob forte influência de princípios e valores constitucionais, tendo em vista seu
escopo de dar efetividade aos direitos fundamentais.
Como explica Judith Martins-Costa, “as cláusulas gerais constituem o meio
legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico de princípios
valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de
conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de
diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no
ordenamento positivo”. 31
A incompletude das normas configuradas pela técnica das cláusulas gerais significa
que as mesmas não têm fattispecie autônoma, pois exigem a progressiva e constante
atuação do juiz em sua formação, mediante o reenvio a outras normas do sistema ou a
padrões, valorativos ou comportamentais, que podem ser extra-sistêmicos. Nas palavras
de Judith Martins-Costa, “um standard ou um valor moral, retirados da prática da sociedade
civil, se considerados por si sós não são, por evidente, normas juridicamente aplicáveis.
Contudo, mediados pelas fontes, constituirão o conteúdo – e, portanto, o critério de
aplicabilidade – dos enunciados (ou modelos) abstratamente previstos nas cláusulas
gerais”. 32
Em outros termos: as fontes de produção jurídica – sejam a lei, os princípios
gerais, o costume ou a analogia (art. 4°, LICC) – geram estruturas normativas ou
modelos jurídicos, cujo conteúdo não é estático, pré-determinado e intangível. Ao
contrário, colocam-se na experiência jurídica positiva de forma dinâmica, dando,
conseqüentemente, vida e movimento aos modelos, ao mesmo tempo em que estes
recebem vida e movimento das fontes.33
30
MAFRA, Tereza Cristina Monteiro Mafra et alii. A LICC e o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro:
Forense, 2008, p. 90-91.
31
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no direito obrigacional. São
Paulo: RT,1999, p. 274.
32
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no direito obrigacional. São
Paulo: RT,1999, p.335.
33
Idem, p. 332-333.
14
34
REALE, Miguel. O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 31.
35
COUTO E SILVA, Clóvis do. Exposição de motivos para a reforma do direito de família. In Anteprojeto do
Código Civil. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1975, v. 155, p. 153.
36
Idem, ibidem.