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Que Horas Ela Volta?

Anna Muylaert

(Roteiros do Cinema Brasileiro)

2014
36 INT. ÔNIBUS FARIA LIMA - NOITE 36

Val e Jéssica estão em pé num ônibus na Faria Lima. Ao lado delas,


a mala.

VAL
Aqui é o famoso Largo da Batata.

JÉSSICA
Já me falaram.
Que tem mais nordestino que no Nordeste. Mais quantas horas?

VAL
Agora tá perto! Eles tão doidos pra te conhecer.

JÉSSICA
Eles quem?

VAL
O Fabinho, a Dona Bárbara, o Seu Zé Carlos.

JÉSSICA
E quando a gente vai lá?

VAL
Agora, ô xente!
A gente tá indo pra lá.

Jéssica se assusta.

JÉSSICA (surpresa)
A gente tá indo pra lá agora?

VAL
Claro, pra onde você achou que a gente tava indo?

JÉSSICA
Pra sua casa. VAL Filha, eu moro lá.

Tensão. Jéssica se cala. Val se cala. Tempo.

JÉSSICA (indignada)
Quer dizer que você tá me levando pra casa dos seus patrões?

VAL (mal)
Eu moro lá.

JÉSSICA (firme)
Val... me desculpa, mas eu não quero ficar na casa dos seus
patrões. Você não tem uma casa sua?

VAL
Não.

JÉSSICA (chocada)
Como não? Depois de tantos anos você não tem uma casa sua?

VAL
Jéssica, eu moro no emprego!

JÉSSICA
Não posso acreditar! A Sandra sabia disso?

VAL
Sabia, claro.

JÉSSICA
Por que ela não me falou?

VAL (tensa)
Por favor, se acalma.

Jéssica fecha a cara.

VAL (CONT’D)
Você vai adorar conhecer o Fabinho.

JÉSSICA
Eu não quero conhecer o Fabinho.

Val fica mal.

VAL
Eles são gente boa.
Depois a gente vai olhar um lugar pra você.
Pra gente.

JÉSSICA
Depois quando?

VAL
Logo. Tempo.

JÉSSICA (muito indignada)


Eu não tô acreditando nisso.
Você tá me levando pra ficar no quartinho dos fundos
da casa dos seus patrões?

VAL
Ela mandou comprar um colchão novinho pra você!

JÉSSICA (brava)
Colchão novinho?
Qual o tamanho desse quarto?
Val se cala.

37 INT. QUARTO DE VAL - NOITE 37

Quarto de Val escuro. Abre-se a porta, trazendo um pouco da luz da


área de serviço. Val entra. Acende a luz animada. Percebe-se que
foi feita UMA GRANDE FAXINA E ARRUMAÇÃO. VAL Esse é meu cantinho.
Jéssica entra receosa e olha.

JÉSSICA (mal)
Não tô acreditando nisso.

VAL
Olha o colchão novinho que ela mandou comprar pra você. Primeira
classe! Val puxa o colchão novo, ainda embrulhado no plástico.

JÉSSICA
Primeira classe?
Olha o tamanho desse quarto! Não tem nem 10 metros quadrados!
Olhe pra isso, nem cabe o colchão!

VAL (otimista)
Olha aí, já coube!

Jéssica pisa no colchão e olha os OBJETOS NOVOS NA ESTANTE.

VAL (CONT’D)
Gostou?
Isso tudo eu comprei pra montar uma casa com você...

Jéssica olha pra ela. Senta. Val olha, senta ao lado dela. Põe a
mão na mão dela. Jéssica tira a mão.

JÉSSICA
Onde eu vou estudar?

Ouvem-se BUZINAS.

VAL
Eles chegaram!

Val levanta-se animada, abre a porta e sai. Jéssica,


delicadamente, fecha a porta e a janela. Senta na cama e olha
tudo, desolada.

38 INT. SALA DE JANTAR - NOITE 38

A família está terminando o jantar, enquanto Val serve a mesa.


Eles comem a cocada que Jéssica trouxe. Em pé, ao lado,
Jéssica,centro das atenções, segura UM RAMO DE ROSAS VERMELHAS -
comprado em sinal. Fabinho está calado, futucando no iPhone.

DONA BÁRBARA
A Val sempre fala de você! O tempo todo. É Jéssica pra cá, é
Jéssica pra lá... Seja bem-vinda!

SEU ZÉ CARLOS
Já conhecia São Paulo?

JÉSSICA
Só de foto. Filme. E internet.

FABINHO
Olha... ela fala igual a Val quando chegou...

SEU ZÉ CARLOS (comendo a cocada)


Que maravilha essa cocada!

Val olha para ela, sorridente, orgulhosa.

DONA BÁRBARA
A Val me falou que você vai prestar vestibular, é isso?

JÉSSICA
É isso.

DONA BÁRBARA
E você vai prestar vestibular pra quê?

JÉSSICA
Pra arquitetura.

Fabinho tira os olhos do iPhone.

FABINHO (chocado)
Na FAU?

JÉSSICA
Na FAU.

Dona Bárbara não aguenta e solta uma risadinha. Val não entende.

VAL
Nossa. Qual o problema?

FABINHO
Não... É que a FAU é uma das faculdades
mais difíceis de entrar. Você sabe né?

JÉSSICA
Eu sei.

Val sai.

SEU ZÉ CARLOS
Não desanima a menina! O ensino lá era bom?
Val, pega o guardanapo?

JÉSSICA
O ensino lá não era bom não...
Áliás, era bem era ruim...

DONA BÁRBARA
Pobrezinha...

JÉSSICA
Mas minha avó é professora, então ela sempre ajudou...
E eu tive um professor de história, o João Emanoel,
que ajudou muito. Ajudou todo mundo lá.

DONA BÁRBARA
Ah foi? Ajudou como?

JÉSSICA
Ah, ele ensinou história do Brasil com uma visão crítica,
mandou a gente pra biblioteca, deu livro, mostrou filme,
montou grupo de teatro, fez excursão...
Fez a gente botar a cabeça pra pensar.
Val volta com o guardanapo.

DONA BÁRBARA
Que bom. Os pequenos heróis da vida, gente...

JÉSSICA
No caso, grande...

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