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AVARITIA – REPRESENTAÇÕES DO PECADO DA

AVAREZA NA ICONOGRAFIA RENASCENTISTA

AVARITIA – REPRESENTATIONS OF THE SIN OF AVARICE IN


RENAISSANCE ICONOGRAPHY

Jéssyca Maira Silva1

1. Especialista em História, Cul- SILVA, Jéssyca Maira. Avaritia – representações do pecado da ava-
tura e Poder pela Universidade
Sagrado Coração e graduada em
reza na iconografia renascentista. M imesis, B auru, v. 4 0, n . 1 , p .
História pela mesma instituição. 41-64, 2019.
Professora efetiva de História do
Estado de São Paulo. Orientação
da Profª Drª em História Lourdes
Conde Feitosa. RESUMO
E-mail: jessyca.maira@gmail.
com
O presente artigo tem como escopo analisar a forma como o peca-
do da avareza foi representado pela iconografia renascentista no do-
mínio borgonhês e dos reinos germânicos, com base nas obras de
Hieronymus Bosch, Quentin Matsys, Marinus van Reymerswaele e
Hans Holbein, o Jovem. Para compreendermos os fatores que
determinaram a magnitude das críticas à cupidez nas sociedades
renascen-tistas, analisamos a construção do pecado da avareza
desde a apropriação de preceitos aristotélicos pelos primeiros
padres da Igreja à efetivação da filosofia tomista, associando a
intensificação de sua importância às mudanças econômicas
ocorridas no cenário europeu a partir do século XIII.

Recebido em: 27/12/2018


Palavras-chave: Pecado. Avareza. Usura. Arte. Renascimento.
Aceito em: 28/03/2019

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SILVA, Jéssyca Maira.
ABSTRACT Avaritia – representações
do pecado da avareza na
The present article aims at the representation of avarice as a sin by iconografia renascentista.
the renaissance iconography at the Burgundy and German Kingdoms, Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
based on the works of Hieronymus Bosch, Quentin Matsys, Marinus p. 41-64, 2019.
van Reymerswaele and Hans Holbein, The Younger. To comprehend
the factors that had determined the magnitude of criticism of ambition
at renaissance societies, we shall analyze the construction of avarice
as a sin from Aristotle’s precepts appropriation by the first priests of
the Church to the effectiveness of Saint Thomas philosophy, by as-
sociating the increase in its importance to the economic changes that
happened in the European history since the 13th century.

Keywords: Sin. Avarice. Usury. Art. Renaissance.

A CONSTRUÇÃO DO PECADO DA AVAREZA


Em nenhum outro instante da história da arte ocidental o pe-
cado da avareza se corporalizou em imagens com tanta frequência
e intensidade como no Renascimento, sobretudo no domínio borgo-
nhês e dos reinos germânicos.
Após o advento do protestantismo, da abertura e da difusão de
instituições de crédito, a ambição recebeu parcelas de legalidade que
a conduziu, de certo modo, ao ético. Essa conversão fez com que a
concepção hodierna de avareza fosse atenuada, porém, no contexto
renascentista era vista como uma transgressão incomensurável. Ain-
da que a compreensão plena de sua acepção no período analisado
seja intangível, podemos chegar próximo dela por meio da observa-
ção da veemência com que o tema foi retratado, assim como
através de uma análise conjuntural, considerando os processos
históricos que levaram o vício ao pecado de maior importância no
final da Idade Média.
A posse de bens materiais sempre esteve ligada a regras éticas
e religiosas. A avareza, a princípio uma conduta rejeitada no mundo
clássico, transfigurou-se na moral cristã e se alicerçou como peca-
do. Para iniciarmos a discussão acerca da historicidade da ideia é
necessário recorrer a Aristóteles, sobretudo ao conceito de hamartía
presente na Poética, e em Ética a Nicômaco, nos quais a cristandade
irá se apoiar para embasar a tese dos vícios da alma.

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SILVA, Jéssyca Maira. Hamartía era a expressão utilizada por Aristóteles a fim de de-
Avaritia – representações signar o erro cometido pelo personagem de uma tragédia. O termo,
do pecado da avareza na
cuja etimologia indica “desmedida”, estava associado a uma falha
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, de caráter que leva o indivíduo à queda, e, por conseguinte, afeta as
p. 41-64, 2019. ordens divina e política, que em conjunto com a individual, com-
põem o universo estrutural do mundo grego (MENDES, 2002 apud
DRUMMOND, 2014, p. 42). Na Idade Média, a palavra vício passa
a ser utilizada como uma consequência da hamartía, mas, foi ainda
na Antiguidade Clássica que os vícios humanos foram levantados
como um mal social (DRUMMOND, 2014, p. 42).
A filosofia aristotélica é essencialmente teleológica. Deste
modo, todas as ações humanas devem ser voltadas a um fim, o bem
supremo, e este desígnio só será alcançado através das virtudes. As
virtudes são as moderadoras entre a “falta” e o “excesso”, que, quan-
do cometidos, tornam-se vícios. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles
aludiu algumas virtudes e as contrapôs aos seus vícios por deficiência
e por excesso, concebendo a classificação dos males humanos que
será evocada pelos primeiros padres da Igreja, proeminentemente
pelos eremitas do deserto. Entre as doze virtudes listadas, encontra-
-se a liberalidade, cujo vício por excesso compreende o esbanjamen-
to, e o por deficiência, a avareza (SILVA, 1998, p. 131).
A filosofia antiga será, de fato, um dos pilares para a consoli-
dação das escolas filosóficas medievais. Seus fundamentos se torna-
riam adjutórios das Escrituras, detentoras de fortes embasamentos
contra a cupidez. Os textos bíblicos que seriam empregados com
maior frequência em prédicas são provenientes dos Evangelhos, com
exceção, no entanto, de duas passagens gravadas nos livros poéticos
e sapienciais. A primeira, encontra-se em Eclesiastes, livro que devi-
do ao seu manifesto desprezo pelo mundo se tornaria tão compatível
ao pensamento medieval, sobretudo em seu declínio. Trata-se dos
versículos 10-15 de seu quinto capítulo:

Aquele que ama o dinheiro nunca se fartará, e aquele que ama a riqueza
não tira dela proveito. Também isso é vaidade. Quando abundam os bens,
numerosos são os que comem, e que vantagem há para os seus possuido-
res, senão ver como se comportam? Doce é o sono do trabalhador, tenha
ele pouco ou muito para comer; mas a abundância do rico o impede de
dormir. Vi uma dolorosa miséria debaixo do sol: as riquezas que um possui-
dor guarda para sua desgraça. Caso essas riquezas venham a se perder em
consequência de algum desagradável acontecimento, se ele tiver um filho,
nada lhe restará na sua mão. Nu saiu ele do ventre de sua mãe, tão nu como
veio sairá desta vida, e, pelo seu trabalho, nada receberá que possa levar em
suas mãos. (BÍBLIA, Eclesiastes, 5, 10-15).

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Eclesiástico reforçaria a idealização de Eclesiastes no versí- SILVA, Jéssyca Maira.
culo 5 do capítulo 31, no qual designa que “Aquele que ama o ouro Avaritia – representações
do pecado da avareza na
não estará isento de pecado; aquele que busca a corrupção será por
iconografia renascentista.
ela cumulado.” Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
O Novo Testamento se destacaria devido aos recursos lúdicos p. 41-64, 2019.
empregados por meio das parábolas encontradas nos três evangelhos
sinóticos. As mais notórias seriam a de “Jesus e o jovem rico” ou
“A parábola do camelo e da agulha” (Mateus 19, 23-24; Marcos 10,
23-25; Lucas 18, 24-25), assim como a parábola do “Mau rico e do
pobre Lázaro”, presente em Lucas 16, 19-31).
Nos limiares da teologia, o monge Evágrio Pôntico, de Ca-
padócia, será o primeiro a organizar de forma sistemática as tenta-
ções para a alma através de uma perspectiva cristã. Em 375, foge de
Constantinopla e se refugia no Baixo Egito, onde passa dezesseis
anos no deserto como eremita até se unir a uma comunidade monás-
tica. Nesse ínterim, passa a delinear as principais doenças espirituais
que pungiam os monges, as quais ficaram registradas em Sobre os
oito vícios capitais, obra introdutória da Teologia Moral Católica
(DRUMMOND, 2014, p. 45). Entre os vícios elencados, novamente
a avareza se faz presente, pois, para o monge, a avareza é raiz de
todos os males e é ela quem nutre as demais paixões.
Por meio da articulação de elementos litúrgicos, bíblicos e
clássicos, Aurélio Prudêncio, monge e poeta da Hispânia Tarraco-
nense, dará continuidade à relação dos vícios cardeais iniciada por
Pôntico. Entre 405, em Galagúrris, é escrita a Batalha da alma,
ou Psicomaquia, poesia proselitística composta sob influência he-
xamétrica que retrata lutas alegóricas entre os vícios e as virtudes. A
epopeia associa a mensagem bíblica e a tradição patrística, “usando
amiúde de hemístiquios e expressões vergilianas nos combates entre
Vícios e Virtudes, exprime o conflito interior do cristão para conse-
guir uma conduta isenta de mácula” (SOUSA, 1998, p.113).
Representadas como soldados, as virtudes se levantam em
oposição aos vícios antagônicos a estas de forma a oferecer alguma
“proteção” contra os pecados. Entre os episódios bélicos, temos o
Ratio et Operatio versus Avaritia - A Razão e a Caridade contra a
Avareza -, na qual a Avareza, com seus sacos de ouro e sua boca
escancarada, precipita-se em direção à humanidade com seus demô-
nios aliados: a Especulação, a Voracidade, o Medo, a Ansiedade, o
Perjúrio, o Pavor, a Fraude, a Insônia e a Sordidez.
Ao alvejar os homens com os seus dardos, surge a Razão e os
cobre com seu escudo, de modo que apenas alguns saem arranhados.

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SILVA, Jéssyca Maira. A Avareza, orgulhosa por ser aquela que triunfou sobre Judas e Acã,
Avaritia – representações mantém-se pávida ante a defensiva. Percebendo que não venceria
do pecado da avareza na
pela força, busca a vitória pela perfídia. Com um véu de preocupa-
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, ção maternal, cobre os seus cabelos desgrenhados e se transfigura
p. 41-64, 2019. como Temperança, de forma que os soldados não conseguem distin-
guir o inimigo. A batalha começa a vacilar. No entanto, surge furiosa
a Caridade em auxílio aos seus aliados confusos. A Avareza, tremen-
do de medo, tem os seus sentidos anestesiados, e então, vê o seu
pescoço pressionado pelas mãos da virtude, que o aperta até deixá-lo
sem sangue. Não há nenhuma ferida, a respiração é interrompida e o
corpo sofre dentro de si as agonias da morte. A Caridade, vitoriosa,
distribui os despojos aos necessitados.
A Psicomaquia engendrou uma nova configuração aos peca-
dos capitais. Foi a primeira obra a personificar os vícios da alma,
ca-racterística que, devido às múltiplas possibilidades visuais,
ensejou a criação de boa parte das produções artísticas que
simbolizariam as transgressões representadas dentro da alegoria de
“guerra interior” (AUGUSTO, 2011, p. 199).
Assim como Pôntico, o seu discípulo, João Cassiano, monge
e teólogo marselhês, dedicou-se ao combate dos males que afligiam
a vida monacal. Em 410, fundou seu próprio mosteiro nas redonde-
zas de Marselha, onde compôs De institutis coenobiorum et de octo
principalium vitiorum remediis (Das instituições dos mosteiros e das
oito falhas principais e seus remédios), compilação de doze livros
delineados a orientar a conduta ascética.
A avareza, caracterizada no livro VII como “amor às
riquezas”, sobreleva-se, junto à ira como o vício que prejudica o
discernimento do bem e do mal. Para Cassiano, “tal vício incitaria
o asceta ao cometimento de três delitos: a aquisição e acúmulo de
bens materiais, a tentativa de reaver as riquezas renunciadas ao
ingressar no mosteiro e a preservação consigo de parte dos bens no
momento de conversão à vida monástica” (BORGONGINO, 2015,
p. 5).
No século VI, Gregório Magno irá transmitir a doutrina
dos sete pecados para além dos muros dos mosteiros. Inspirado
por Agostinho de Hipona, tornou-se o maior defensor da ideia de
vícios e pecados, sendo suplantado somente no século XIII, quando
a Igreja oficializa a doutrina tomista.
Magno apresentou uma expressiva evolução na
organização mental de pecado. Primeiramente, os hierarquizou
segundo a gravidade destes, ou o que para a Igreja seriam as
maiores injúrias a Deus, de forma que foram dispostos, em ordem,
pelo orgulho, seguido pela

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inveja, ira, tristeza, avareza, gula e luxúria. Também foi o responsá- SILVA, Jéssyca Maira.
vel pela definição do modelo setenário derivado da associação mís- Avaritia – representações
do pecado da avareza na
tica do número sete como um número perfeito. Sobretudo, foi quem
iconografia renascentista.
conceituou a ideia de capital. Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
O termo capital tem sua etimologia em caput (cabeça, em la- p. 41-64, 2019.
tim). Para Gregório, os pecados capitais são como chefes que co-
mandam um exército de outros pecados. “Dos sete pecados cabeças,
derivam uma horda de vícios que geram outros vícios, entrelaçados
os pecados seriam como os galhos mais fortes de uma árvore e as
transgressões as suas ramificações” (DRUMMOND, 2014, p. 52).
Para Magno, a avareza desencadearia a traição, a fraude, a mentira,
o perjúrio, a inquietude, a violência e a dureza de coração.
Como aponta Schulz “a ideia de sete pecados capitais é uma
das formulações humanas mais interessantes para se pensar o modo
singular com que cada presente rearticula os legados de seu passa-
do.” (SCHULZ, 2011, p. 1). A partir das experiências antropológicas
acumuladas por quase um milênio, Tomás de Aquino (1225- 1274)
irá criar uma doutrina lacônica adequada à conjuntura moral do sé-
culo XIII. Em seus escritos fortemente inspirados pela patrística de
Cassiano e de Magno, projeta cerca de cinquenta males sobrevindos
dos pecados capitais, seguindo o mesmo raciocínio gregoriano de
ramificação.
A filosofia tomista resgataria conceitos teleológicos aristotéli-
cos, assim como a percepção de que os pecados se opõem às virtu-
des reversas a estes, e a de que todo pecado (no caso de Aristóteles,
vício) se fundamenta em algum desejo natural do homem, sobretudo
ao impulso do amor. “Enquanto as virtudes derivam de uma disposi-
ção apropriada do amor, os vícios se derivam de um amor doentio”
(DRUMMOND, 2014, p. 55). A avareza caracteriza-se, portanto,
como um desordenado amor pelo dinheiro, que se oporá, por conse-
guinte, à generosidade (liberalitas).
A avareza estava consolidada como pecado capital, e é propria-
mente entre os séculos XII e XVI que a doutrina dos sete pecados
capitais se difunde no imaginário coletivo e concomitantemente na
imagética da época (SCHULZ, 2011, p.25). As imagens elaboradas
nesse período, no entanto, não podem ser compreendidas como ilus-
trações do pensamento religioso, mas como instrumentos pedagógi-
cos e introspectivos em um momento de moralização generalizada
entre o clero e a sociedade.
Entre as imagens produzidas, uma pintura figura com clareza
o modelo setenário e a decorrência dos pecados em uma atmosfera

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SILVA, Jéssyca Maira. escatológica, os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do
Avaritia – representações Homem (Figura 1), até recentemente atribuída a Hieronymus Bosch,
do pecado da avareza na
hoje, a um de seus antigos seguidores. Em contraposição a um plano
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, de fundo tetro, sobressaem versículos de Deuteronômio “Gens abs-
p. 41-64, 2019. que consilio ets, et sine prudentia. Utinam saperent et intelligerent
ac novíssima providerent (Porque é uma nação insensata, desprovi-
da de inteligência. Se fossem sábios, compreenderiam, e discerni-
riam aquilo que os espera. 32, 28-29), e “Abscondam faciem meam
et considerabo novissima eorum” (vou ocultar-lhes o meu rosto e
ver o que lhes sucederá... Pois são uma geração perversa, filhos sem
lealdade 32, 20) (LEITE, 1958, p. 69).

Figura 1 - Seguidor de Hieronymus Bosch. Os Sete Pecados Mortais e Os Quatro Novíssi-


mos do Homem. 1490 - 1510. Óleo sobre madeira, 120 x 150 cm. Museo del Prado, Madri.
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hieronymus_Bosch-_The_Seven_Dea-
dly_Sins_and_the_Four_Last_Things.JPG. 2018.

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SILVA, Jéssyca Maira.
Avaritia – representações
do pecado da avareza na
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
p. 41-64, 2019.

Figura 2 - Seguidor de Hieronymus Bosch. Os Sete Pecados Mortais e Os Quatro Novíssi-


mos do Homem. 1490 - 1510. Óleo sobre madeira, 120 x 150 cm. Museo del Prado, Madri.
Detalhe: Inferno.

Figura 3 - Seguidor de Hieronymus Bosch. Os Sete Pecados Mortais e Os Quatro Novíssi-


mos do Homem. 1490 - 1510. Óleo sobre madeira, 120 x 150 cm. Museo del Prado, Madri.
Detalhe: A Morte do Pecador.

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SILVA, Jéssyca Maira. Nos cantos, dispostos em formas de círculo, quatro cenas re-
Avaritia – representações presentam os quatro novíssimos do homem: a Morte do Pecador, o
do pecado da avareza na
Juízo (ressurreição dos mortos), o Paraíso e o Inferno, respectiva-
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, mente. Vale ressaltar a semelhança entre a Morte do Pecador com A
p. 41-64, 2019. Morte do Avarento, a qual será analisada posteriormente.
Na área central temos outro círculo, análogo a uma íris. Nele
estão presentes os sete pecados capitais, cada qual simbolizado por
uma cena da vida cotidiana. Na parte correspondente à avareza,
um juiz subornado defende o seu contratante. Por fim, no centro da
mesa, na pupila do olho vigilante, Cristo recém-ressuscitado observa
as ações humanas. Logo abaixo uma mensagem adverte o observa-
dor: Cave cave Dominus Videt – Cuidado, cuidado, o Senhor vê.
(LEITE, 1958, p. 69).
Todavia, é no Inferno que evidenciamos a magnitude dos pe-
cados capitais no imaginário renascentista. Os mesmos personagens
presentes na íris reaparecem em meio a torturas condizentes às trans-
gressões cometidas. O avarento é fervido com suas moedas em um
caldeirão, a mesma punição prevista na legislação medieval aos fal-
sos moedeiros (LEITE, 1958, p. 70). As advertências presentes na
obra são representadas através de configurações precisas, denotando
a relevância do pecado na vida do homem e o impasse entre a con-
templação da vida mundana e a busca pela salvação antes do Juízo,
dualidade que ficaria manifesta na última e mais notória obra de Hie-
ronymus Bosch – O Jardim das Delícias Terrenas.
Outros artistas reproduziriam o modelo setenário, ou o pecado
da avareza especificamente, com a mesma veemência presente na
mesa dos pecados capitais. Pieter Brueghel, o Velho, um dos mais
eminentes seguidores do estilo de Bosch, dedicou aos pecados ca-
pitais uma série a qual, a partir de 1557, passou a ser publicada pela
Europa através da técnica de metalogravura. Nos domínios germâ-
nicos, Dürer demonstrou sua primorosa técnica ao elaborar A Avare-
za, obra que articula a crítica a cupidez a outro movimento artístico
vigente – o vanitas.

REVOLUÇÃO ECONÔMICA NO SÉCULO XIII


O apego a bens terrenos, como vimos, foi alvo de inúmeras
críticas desde a Antiguidade e se tornou um pecado de grande mag-
nitude no cristianismo. As imagens medievais e renascentistas, nas
quais o dinheiro aparece frequentemente tanto de maneira simbólica

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quanto literal, são sempre pejorativas e tendem a induzir o observa- SILVA, Jéssyca Maira.
dor a temer as riquezas. Mas, se observarmos a relevância atribuí- Avaritia – representações
do pecado da avareza na
da ao pecado da avareza notamos que houve um retrocesso em sua
iconografia renascentista.
classificação desde a Antiguidade Tardia ao final do século XII. A Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
ascensão de sua gravidade ocorrerá no século XIII, adquirindo maior p. 41-64, 2019.
vigor no decorrer do Renascimento.
Na hierarquização dos pecados por Pôntico, a avareza aparece
em terceiro lugar, na de Cassiano aparece em quarto e na de Magno,
apenas em quinto. Mas, quando analisamos a categorização de Aqui-
no, na segunda metade do século XIII, vemos que ele a coloca em
segundo lugar, ficando atrás apenas da vaidade.
Essa reconfiguração pode ser explicada a partir das alterações
da concepção de riqueza e das relações de poder ocorridas na Idade
Média. Le Goff em A Idade Média e o dinheiro salienta que o di-
nheiro, no sentido em que o compreendemos hoje, é um produto da
modernidade. Na Idade Média, ele não aparecia em primeiro plano
no ponto de vista econômico, nem no ponto de vista político, nem
no ponto de vista psicológico e ético. O que hoje designamos como
dinheiro não era o que essencialmente faria alguém rico no medievo.
O homem “rico” não era aquele que detinha dinheiro monetizado;
a riqueza estava associada à posse de homens e terras, e, acima de
tudo, ao poder, principalmente quando ligado à Igreja. (LE GOFF,
2015, p. 9).
Até o final do século XII, a distinção social prevalecente con-
trastava então potentes e humildes, ou seja, poderosos e fracos. Em
seguida, no século XIII até o final do século XV, opõe-se dives e
paupers – ricos e pobres –, na forma como entendemos os termos
hoje. A literatura da Alta Idade Média esporadicamente apresenta a
palavra “rico”, a qual, quando mencionada, estava atrelada antes aos
poderosos do que aos donos de fortunas. (LE GOFF, 2015, p. 11).
Essa dissociação entre o poder e o dinheiro possibilitava a
existência de uma pessoa pobre e rica concomitantemente. Le Goff
exemplifica essa condição ao relatar a existência de um catalão po-
bre e rico simultaneamente. “Pobre” no sentido de não ser livre e
estar submisso ao rei, que, devido à valentia desse homem ao
lutar contra muçulmanos, tornou-o rico, ainda que sempre
“pobre”. (LE GOFF, 2015, p. 24).
Essa modificação nas relações de poder é justificada devido
ao impulso do dinheiro na virada do século XII para o século XIII.
Para Le Goff, essa passagem se dá devido a acontecimentos funda-
mentais:

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SILVA, Jéssyca Maira. Os principais são a passagem do mercado itinerante para o mercado se-
Avaritia – representações dentário, o progresso urbano, o desenvolvimento do lucro e as primeiras
do pecado da avareza na tentativas para justificar, em certos limites e certas condições, a lenta pas-
iconografia renascentista. sagem da condenação absoluta da usura e dos usurários a certa indulgência
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, a respeito do lucro e do juro e daqueles que enriqueceram; a difusão da
p. 41-64, 2019. moeda e sua regulamentação, devida em particular ao reforço dos poderes
públicos e principalmente monárquicos; a promoção da imagem do traba-
lho e a ascensão do ensino e da prática do direito. (LE GOFF, 2015, p. 31).

Essas modificações possibilitaram a ascensão financeira an-


tes incogitável aos que viviam em condição servil. A elevação do
padrão de vida das populações provocou uma nova diferenciação
social, dando início aos burgueses “novos ricos” e aos cidadãos ur-
banos pobres. Segundo Huizinga, nos séculos que sucederam essa
transformação econômica – XIV e XV – as riquezas passaram a ser
desejadas com mais avidez e contrastavam mais vividamente com a
miséria que as rodeava. (HUIZINGA, 1996, p. 9).

A INTENSIFICAÇÃO DO PECADO DA
AVAREZA NA BAIXA IDADE MÉDIA
Como aponta Huizinga, a doutrina medieval filiava as raízes
de todo o mal no orgulho ou na ambição. Essa crença estava emba-
sada na premissa de que A superbia initiumsumpsit omnis perditio
(O orgulho é a raiz de toda perdição) e na passagem das escrituras
Radix omnium malorum est cupiditas (A cobiça é a raiz de todos os
males - Vulgata, 1 Timóteo 6, 10). Todavia, parece que do século XII
em diante, passaram a achar o princípio do mal mais na ambição do
que no orgulho. Como dito anteriormente, durante a época feudal
e hierárquica, o poder ainda não estava associado ao dinheiro, mas
atrelado à pessoa e ao temor religioso que ela suscitava. O pensa-
mento feudal exprimia a sua grandeza por meio de atos simbólicos,
como uma homenagem prestada de joelhos durante uma cerimônia
a fim de aprazer o orgulho do homenageado. O orgulho consiste em
um pecado simbólico, e, por vir do orgulho de Lúcifer, estava envol-
vido em um caráter metafísico (HUIZINGA, 1996, p. 27).
A ambição não estava revestida de um caráter simbólico, era
um pecado mundano, um ímpeto da carne. Segundo Schulz, durante
a Alta Idade Média e Idade Média Central, os pecados mais graves
eram os espirituais, aqueles que denotassem uma atitude negativa
de espírito, como, por exemplo, rejeição e desprezo por Deus, na

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medida em que os pecados carnais seriam menos graves. (SCHULZ, SILVA, Jéssyca Maira.
2011, p. 26) No entanto, no fim da Idade Média, as alterações de Avaritia – representações
do pecado da avareza na
poder devido ao acréscimo da circulação da moeda permitiram aos
iconografia renascentista.
que desejassem satisfazer suas ambições a possibilidade de amonto- Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
ar riquezas (HUIZINGA, 1996, p. 27). p. 41-64, 2019.
Nesse momento, as críticas inerentes à ânsia pela materiali-
dade atingem a plenitude, tanto entre os teólogos quanto entre os
intelectuais sem envolvimento direto com a Igreja. Na literatura res-
soa o repúdio contra a avareza, e, mormente, aos novos ricos. No
limiar da Renascença, o poeta aretino Francesco Petrarca, o “pai do
Humanismo”, escreve os primeiros sonetos da história da literatura,
entre eles o Trionfi (“Triunfos”), obra composta por seis poemas que
enaltecem, respectivamente, o Amor, a Castidade, a Morte, a Fama,
o Tempo e a Eternidade. Cada um dos triunfos exaltados suplanta o
abordado anteriormente. (SILVA, 2011, p. 228). No Triunfo da Mor-
te, a Morte, representada como uma senhora de vestes negras, discur-
sa aos que ainda vivem sobre a sua imparcialidade e inexorabilidade,
ressaltando a efemeridade da vida e a finitude das glórias terrenas:

“Pontífices, e reis, e imperadores,


Que ora são nus e pobres, como vemos.
Que foi de suas riquezas e primores?
Dos cetros e vestiduras reais?
Das mitras e das purpúreas cores?
Triste o que a esperança põe em bens mortais!”

A aversão dos humanistas à cupidez foi enfática a ponto de


Dante destinar aos gananciosos um dos círculos do Inferno. O Quar-
to Círculo, as Colinas de Rocha, estava destinado aos pródigos e
avarentos. Nesse recinto montanhoso, estavam fadados a empurrar
fardos uns contra outros em meio a injurias ingentes, cada grupo cri-
ticando a forma como o outro se relacionava com o dinheiro.
Mas não é somente no Inferno que há um lugar reservado para os
avarentos. Sebastian Brant, humanista e satirista germânico, irá inseri-
-los em sua nau. A Nau dos Insensatos, publicada pela primeira vez
em 1494, consiste num poema satírico de perspectiva moralizante no
qual o autor aponta as falhas da sociedade de seu tempo por meio da
alegoria da nau dos loucos: a nau representa o mundo, e os seus tripu-
lantes perturbados, a humanidade. O próprio Bosch irá dedicar à ale-
goria uma pintura, atualmente exibida no Louvre como La Nefdesfous.
Brant tripula a sua simbólica embarcação com insensatos de
várias categorias, sendo dedicado um capítulo do livro para cada per-
fil de loucura. No terceiro capítulo, “Da cobiça” o poeta afirma que:

52
SILVA, Jéssyca Maira. Insensato é todo aquele que acumula bens, mas não tem paz nem alegria,
Avaritia – representações e não sabe quem herdará tudo isso quando chegar o momento de empre-
do pecado da avareza na ender sua viagem ao porão sombrio [...] Quem acumula coisas passageiras
iconografia renascentista. confina a alma em um túmulo feito de excrementos e imundices. (BRANT,
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, 2010, p.31)
p. 41-64, 2019.
Outro fator que virá fomentar intensas críticas à posse e ao
vínculo ao dinheiro será a prática da usura – o empréstimo a juros
–, duramente questionada entre os séculos XII a XIX. Devido ao
fortalecimento econômico do século XIII, o dinheiro irá ganhar um
debate teórico mais consistente entre os teólogos. Os textos bíblicos
que seriam mais utilizados contra a cobrança de juros de um credor
cristão sobre um devedor cristão foram os de Lucas 6, 35 “fazei bem
e emprestai, sem daí esperar nada”; de Levítico 25, 35-36 “Se teu
irmão se tornar pobre junto de ti, e as suas mãos se enfraquecerem,
sustentá-lo-ás, mesmo que se trate de um estrangeiro ou de um hós-
pede, a fim de que ele viva contigo. Não receberás dele juros nem
ganho; mas temerás o teu Deus, para que o teu irmão viva contigo.”;
e de Deuteronômio 23,20 “Poderás exigi-lo (juros) do estrangeiro,
mas não de teu irmão”. Esse último texto seria utilizado como justifi-
cativa pelas práticas de usura entre judeus e cristãos, que perduraram
até 1394, quando os usurários judeus foram substituídos definitiva-
mente pelos cristãos. (LE GOFF, 2015, p. 108-109).
Para os críticos eclesiásticos, as principais consequências da
usura consistiam no estabelecimento do pecado da cobiça (avaritia).
Além de ser um pecado contra a justiça, como salienta em particular
Tomás de Aquino, a usura é acima de tudo, um roubo. O roubo es-
tava fundamentado na premissa que “o tempo só a Deus pertence”.
Como a usura se configura através da cobrança do tempo transcorri-
do entre o empréstimo e seu reembolso, o usurário usurpava o tempo
de Deus. E como completa Fernandes e Maschio, “o excessivo e
descontrolado pelo dinheiro, a cobiça sem fim pelos bens materiais,
tudo isso conduziria a uma espécie de idolatria. Deus seria colocado
em segundo plano”. (FERNANDES; MASCHIO, 2011, p. 6).
A princípio, aos usurários não havia alternativa senão a morte
e a danação. O papa Leão I atestava que a usura levava à morte da
alma. No terceiro concílio de Latrão, ocorrido em 1179, ficou deter-
minado que os usurários fossem estranhos nas cidades cristãs e que
a eles devia ser recusado um enterro religioso. Dessa forma, os espí-
ritos dos usurários seriam entregues nas mãos dos demônios e seus
corpos sepultados no Inferno. (LE GOFF, 2004, p. 10.)
Contudo, como aponta Ariès, havia certo “recurso” para os
usurários que desejavam salvar a sua alma sem necessariamente ab-

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dicar seu amor pelos temporalia. As doações, sejam em vida ou post SILVA, Jéssyca Maira.
mortem através dos testamentos, foram o meio religioso e quase sa- Avaritia – representações
do pecado da avareza na
cramental de associar riquezas à obra pessoal de salvação (ARIÈS,
iconografia renascentista.
2017, p. 112). Novamente no Inferno de Dante, canto XVII, versí- Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
culo 58-69, encontramos um célebre usurário, Reginaldo Scroveg- p. 41-64, 2019.
ni, banqueiro paduano que é reconhecido devido ao brasão de sua
família – uma porca azul e gorda (na Baixa Idade Média a usura era
relacionada ao engordar).

E um, que de uma porca azul, e prenhe de seus bacorinhos,


tinha marcado um saquinho branco,
me disse: “Que faz aqui, você nesta fossa?
Vá-se embora agora; mas uma vez que você ainda é um vivente,
saiba que me vizinho Vitaliano
sentará aqui à minha esquerda.
Entre esses florentinos, eu sou paduano,
frequentes vezes eles me encheram is ouvidos,
gritando: venha o cavaleiro soberano
que trará a bolsa de três bicos!”
Quanto a isso, ele torceu a boca e puxou a língua para fora
como um boi que lambe o focinho.

Reginaldo carregou até a morte a fama de usurário “manifes-


to”, ou seja, de profissão. Os seus juros, que chegavam a 100%, fez
com que ele ficasse conhecido por sua ininterrupta avareza e ganân-
cia. Após a sua morte, seu filho, também banqueiro, Enrico Scro-
vegni, a fim de salvar a alma do pai, e inseguro da salvação de sua
própria, construiu uma capela em Pádua – Capela dos Scrovegni – e
encomendou de Giotto a decoração parietal. Em uma das pinturas
intitulada como Juízo Final (Figura 2), o próprio Enrico é retratado.
“Na parte inferior, dividida por uma cruz, encontram-se os eleitos ao
Paraíso, de um lado, e os condenados ao Inferno, do outro. Enrico
encontra-se representado no afresco, obviamente entre os eleitos e,
ainda a ofertar uma maquete da capela à Virgem.” (FERNANDES;
MASCHIO, 2011, p. 8).

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SILVA, Jéssyca Maira.
Avaritia – representações
do pecado da avareza na
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
p. 41-64, 2019.

Figura 4 - GIOTTO. Juízo Final. 1306. Capela Scrovegni, Pádua. Fonte: https://upload.wikime-
dia.org/wikipedia/commons/1/16/Last-judgment-scrovegni-chapel-giotto-1306.jpg. 2018.

Em um momento em que a imortalidade dependia das ações


temporais, o financiamento da capela e dos afrescos retrata a pre-
ocupação do usurário com a salvação de sua alma. No entanto, os
artistas sem envolvimento com banqueiros mecenas iriam retratar
aqueles que estavam envolvidos com o dinheiro, não somente usurá-
rios, de forma pejorativa. Na Baixa Idade Média e no início da mo-
dernidade, a arte estava engajada na luta contra a avareza e ao mau
uso do dinheiro. Quentin Matsys, pintor flamengo cujos trabalhos
são conhecidos por sua perspectiva satírica e moralista, conclui em
1514 O Cambista e a sua mulher (Figura 3), cujos mesmos moti-
vos também foram representados na obra homônima de Marinus van
Reymerswaele, de 1539 (Figura 4). Em ambas as obras encontramos
um cambista em meio ao seu local de trabalho examinando uma das
muitas moedas espalhadas sobre a mesa. Ao seu lado temos a sua es-
posa, que deixa de ler seu livro religioso que está em suas mãos para
admirar o montante do marido. Para alguns historiadores da arte, os
casais de Matsys e Reymerswaele seriam a própria representação da
ganância. (REDONDO, 2000, p. 4).

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SILVA, Jéssyca Maira.
Avaritia – representações
do pecado da avareza na
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
p. 41-64, 2019.

Figura 5 - MATSYS, Quentin. O Cambista e a sua mulher. 1514. Óleo sobre painel, 71 x 68
cm. Musée du Louvre, Paris.
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9f/Quentin_Massys_001.jpg. 2018.

Figura 6 - REYMERSWAELE, Marinus van. O Cambista e sua mulher. 1538. Óleo sobre
painel, 79 x 107 cm. Museo del Prado, Madri. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipe-
dia/commons/d/d6/Marinus_Claesz._van_Reymerswaele_001.jpg. 2018.

56
SILVA, Jéssyca Maira. Os seguidores de Reymerswaele darão continuidade nas críti-
Avaritia – representações cas do mestre. Em Os Avarentos (Figura 5), vemos encenados dois
do pecado da avareza na
coletores de impostos, cuja riqueza é evidenciada por suas vesti-
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, mentas. Na mesa temos várias moedas espalhadas junto a uma joia a
p. 41-64, 2019. ser avaliada. Um dos homens segura uma moeda enquanto faz, aten-
to, anotações. Mas o destaque da obra está no semblante contorcido
dos dois homens pela concentração cobiçosa. A face caricata de um
dos coletores revela o escárnio do autor pela infamada profissão e
por aqueles que a praticavam. O autor, de forma subjacente, adverte
aos ambiciosos: a vida é curta, tal como a chama no castiçal prestes
a se apagar.
Em outras obras, os usurários irão aparecer confrontando a
própria morte, como é o caso do Der Rychman, de Hans Holbein, o
Jovem, e A Morte do Avarento, de Hieronymus Bosch. O Der Rych-
man (Figura 6), de Holbein, faz parte da série Simulachres & histoi-
res facées de la Mort, de 1538. A série é formada por xilogravuras
pertencentes à alegoria artística da Dança Macabra, que expressa
visualmente a universalidade da morte. (SCHMITT, 2015, p. 87).
Em Der Rychman – O Homem Rico – temos elementos em
comum com as pinturas de Matsys e Reymerswaele, tais quais as
moedas sobre a mesa, a chama no castiçal prestes a se extinguir e o
cenário ambientado no local de trabalho do feitor criticado. Outro
objeto nos chama a atenção: uma ampulheta, que nos sugere que o
homem retratado era um usurário, visto que o seu ofício estava re-
lacionado ao tempo. Ao examinarmos o cenário, deparamos com si-
nais que demonstram o apego e a preocupação em manter seguras as
suas riquezas, tais como as grades na janela e os espessos cadeados
nos baús. No entanto, é o próprio homem que oferece maior proteção
aos seus pertences. Na gravura, aparece exaltado em face da morte,
que tenta, acuada, tomar as suas moedas.

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SILVA, Jéssyca Maira.
Avaritia – representações
do pecado da avareza na
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
p. 41-64, 2019.

Figura 7 - Seguidor de Marinus van Reymerswaele. Os Avarentos. c. 1548. Óleo sobre pai-
nel, 124 x 95 cm. Bilbao Fine Arts Museum, Bilbao. Fonte: https://www.museobilbao.com/
in/obras-comentadas/van-reymerswaele-marinus-seguidor-de-33. 2018.

Figura 8 - HOLBEIN, Hans (o Jovem). Der Rych Man. Xilogravura. National Gallery of
Art, Washington, D.C.
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hans_Holbein_d._J._-_The_Rich_Man;_
The_Queen_- _WGA11612.jpg. 2018.

58
SILVA, Jéssyca Maira. Em a Morte do Avarento (Figura 7), vemos a dualidade presen-
Avaritia – representações te no final da Idade Média entre o apego à vida terrena e a divina sal-
do pecado da avareza na
vação. Semelhante à cena presente na mesa dos pecados capitais, en-
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, contramos um moribundo momento antes de ser alvejado pela morte.
p. 41-64, 2019.

Figura 9- BOSCH, Hieronymus. Morte do Avarento. 1485 - 1490. Óleo sobre painel, 93 x
31 cm. National Gallery of Art, Washington DC.
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/48/Jheronimus_Bosch_050.
jpg. 2018.

59
Ao lado do avaro esvaído há um anjo suplicante intercedendo SILVA, Jéssyca Maira.
junto à luz de Cristo pela salvação do moribundo. Antagonizando o Avaritia – representações
do pecado da avareza na
anjo, um demônio se revela pela cortina do leito de morte e oferece
iconografia renascentista.
ao avaro o que a morte ameaça arrebatar-lhe: tudo que mais amou Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1,
em sua vida – uma bolsa robusta, repleta de riquezas. O mísero per- p. 41-64, 2019.
manece divido entre acatar a advertência do anjo e receber a bolsa
do demônio. Irresoluto, estende os seus braços lívidos e delgados em
direção à bolsa, enquanto mantém os seus olhos direcionados ao cru-
cifixo. Um segundo demônio se curva para observar o acontecimen-
to. Caso o moribundo renuncie a oferta, será salvo, caso contrário,
estará condenado. A morte à espreita, seguindo a estética de cadáver
putrefato da Dança Macabra, mostra-se soberana com a sua toga. Ela
está prestes a atingir o homem inânime.
Segundo Ariès, a Morte do Avarento se enquadra na iconogra-
fia das artes moriendi dos séculos XIV ao XVI, na qual o Juízo não
mais se passa em um espaço interplanetário, e sim à beira do leito,
e começa quando o acusado ainda respira. “É o homem livre que se
tornou o seu próprio juiz. O céu e o inferno assistem como testemu-
nhas ao combate do homem com o mal – o moribundo tem o poder,
antes de morrer, de ganhar ou perder tudo” (ARIÈS, 2017, p. 108).
Outra característica nos chama a atenção na obra, diferente-
mente da Morte do Pecador, o avaro encontra-se sem a companhia
de seus familiares e de clérigos para lhe conceder a extrema-unção. A
única pessoa presente na pintura consiste no que aparenta ser um con-
tador, que indiferente ao moribundo repõe moedas em um saco segu-
rado por um demônio híbrido de rato dentro de um baú. Os demônios
envoltos ao baú possuem uma simbologia subjacente. A natureza dos
ratos, distintamente esfaimados e prolíferos, implica num simbolis-
mo de cupidez (LEITE, 1958, p.80). Outras obras de Bosch utiliza-
riam da mesma simbologia, além de apresentarem outros motivos
que demonstrariam críticas à ganância, tais quais O Carro de Feno, O
Jardim das Delícias Terrenas, e As Tentações de Santo Antão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aversão à posse de bens materiais esteve enraizada no Oci-
dente desde a Antiguidade, no entanto, com o advento do cristianis-
mo, cuja doutrina pondera a riqueza de forma pejorativa, a condena-
ção à cupidez se intensificou, levando a avareza ao índice de pecado
capital.

60
SILVA, Jéssyca Maira. No decorrer do século XIII, a Europa passou por transforma-
Avaritia – representações ções econômicas que vieram a alterar as estruturas sociais e as rela-
do pecado da avareza na
ções de poder que vigoravam desde a Alta Idade Média. O Renasci-
iconografia renascentista.
Mimesis, Bauru, v. 40, n. 1, mento Comercial e Urbano, a difusão da moeda e o desenvolvimento
p. 41-64, 2019. do lucro possibilitaram a acumulação de riquezas, antes intangível
aos que pertenciam ao terceiro estamento. Nos séculos que sucede-
ram essa evolução, as riquezas passaram a ser desejadas com avidez,
tornando o pecado da avareza mais expressivo do que anteriormente.
Outros fatores fomentaram críticas à posse de bens materiais,
tais como o nascimento das instituições de créditos e a prática da
usura. Os burgueses “novos ricos”, os usurários, ou qualquer outro
cujo ofício estava relacionado a transações financeiras, tonaram-se
alvo de censura tanto pelo corpo eclesiástico quanto pelos intelec-
tuais sem envolvimento direto com a Igreja. O manifesto repúdio à
avareza ficou gravado nos escritos deixados pelos humanistas, assim
como pelos artistas que viveram durante a transição da Baixa Idade
Média para a Idade Moderna.
As obras de arte adequariam as críticas a avaritia aos movi-
mentos estéticos vigentes. No entanto, a maior finalidade destas con-
sistia em advertir os observadores sobre as adversidades aterradoras
que cairiam sobre aqueles que demonstrassem apego à vida munda-
na e aos bens terrenos.

AGRADECIMENTOS
A todos que me apoiaram a adentrar em um tema tão pouco
explorado, principalmente a minha professora Lourdes Madalena
Gazarini Conde Feitosa, que há oito anos me guia nessa jornada.

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