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O Leitor e o Labirinto
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Suely Fadul Villibor Flory

O Leitor e o Labirinto

1997

Editora Arte& Ciência


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© 1997, by autor

Editor: Henrique Villibor Flory


Diretor Administrativo: Alexandre Villibor Flory
Capa e Projeto Gráfico: Gregor Osipoff
Editoração eletrônica: Ronaldo Ivan Verginio
Nelson Miguel de Paula

Dados Internacionais de catalogação na publicação (CIP)


Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

Flory, Suely Fadul Villibor


F641l O leitor e o labirinto/ Suely Fadul Villibor Flory.– São Pau-
lo: Arte & Ciência, 1997.
p.
1. Romance português contemporâneo. 2. Leitor e leitura
– Estética da Recepção. 3. Estética da Recepção – Textos ficcionais.
4. Literatura portuguesa – Ficção – História e crítica. 5.
Saramago, José, 190 – Crítica e interpretação. 6. Mourão,
David, 19 – Crítica e interpretação. ITítulo.
CDD – 869.09
86909
869.3509

Índice para catálogo sistemático:


1.Romances: Literatura portuguesa: Crítica e interpretação 869.309
2.Literatura portuguesa: Romance: Século XX: História e crítica
869.3509

Editora Arte & Ciência


Rua Joaquim Antunes, 922 - conjunto 3
CEP 05415-001 - Pinheiros - São Paulo - SP
Tel/fax: (011) 253-0746/ (011) 3171-0477
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. ....................................................................................... 11
01. O romance português contemporâneo. Considerações Gerais ........ 11
02. A importância do leitor, co-autor do texto (Estética da
Recepção) ...................................................................................... 13

CAPÍTULO 1: Percurso Teórico - A Estética da Recepção ..................... 17


1.1 - Produção e Leitura ........................................................................ 17
1.1.1 - Os múltiplos enfoques da Estética da Recepção ........................... 23
1.2 - O espaço do leitor: os vazios do texto ........................................... 31
1.3 - A organização do repertório dos textos ficcionais ......................... 36
1.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia ..... 38

CAPÍTULO 2: O experimentalismo e a construção do romance no ro-


mance, como marcas de contemporaneidade na ficção portuguesa
atual ......................................................................................................... 47
2.1 - Perspectiva Panorâmica ................................................................ 48
José Cardoso Pires ........................................................................ 48
Agustina Bessa-Luís ...................................................................... 49
Lídia Jorge .................................................................................... 50
Antonio Lobo Antunes ................................................................. 51
José Saramago ............................................................................... 52
Teolinda Gersão ............................................................................ 55
Antonio Rebordão Navarro ........................................................... 55
Vergílio Ferreira ............................................................................ 56
David Mourão-Ferreira ................................................................. 57
Helder Macedo .............................................................................. 58

CAPÍTULO 3: O leitor confidente e as dualidades intrínsecas em


UM AMOR FELIZ de David Mourão-Ferreira ......................................... 61
3.1 - Localização do romance na obra do autor ..................................... 62
3.2 - O signo do duplo - Ambiguidade: Produção e efeito ..................... 64
3.2.1 - O narrador autodiegético e o mundo das relações ......................... 68
3.3 - O repertório ficcional e os limites de uma época ........................... 74
3.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia ..... 76
3.3.2 - Representação e Diegese - Os “pífios anos 80” ............................ 79
3.4 - Os vazios do texto e o papel do leitor ........................................... 81
3.4.1 - O autor implícito e o leitor-narratário (“Poiesis”, “Aisthesis” e
“Katharsis”) .................................................................................. 82
3.4.2 - Texto, Contexto e Metatexto - A invasão da narrativa pelo
discurso ......................................................................................... 85

CAPÍTULO 4: O leitor-organizador e a pluralidade das narrativas em


HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA. A montagem do texto pelo
leitor. ........................................................................................................ 87
4.1 - Localização do romance na obra do autor ..................................... 89
4.2 - A produtividade do romance plural .............................................. 94
4.2.1 - A montagem do texto e a pluralidade de narrativas (Enunciação e
Enunciado) .................................................................................... 97
4.2.2 - O narrador heterodiegético e a focalização múltipla .................... 100
4.3 - O inter-relacionamento História/história, realidade/ficção na
construção do texto de Saramago ............................................... 108
4.3.1 - O repertório ficcional em História do Cerco de Lisboa.
(Intertextualidade, dialogismo e pluridiscursividade. Auto-
reflexibilidade e polifonia) ............................................................ 111
4.4 - O labirinto esfíngico e a aventura do leitor sob a égide da
"Poiesis" - a comum construção. ................................................ 115

CONCLUSÃO: A dura conquista do texto: o leitor co-autor e a auto-


referencialidade do texto. (UM AMOR FELIZ e HISTÓRIA DO CERCO
DE LISBOA, romances modelares da narrativa portuguesa
contemporânea) ..................................................................................... 121
BIBLIOGRAFIA. ................................................................................... 129
0.1 - Bibliografia dos autores do “corpus” básico .............................. 129
0.2 - Bibliografia dos autores do “corpus” complementar .................. 129
0.3 - Bibliografia geral ......................................................................... 130
ANEXO 1 - Obras de David Mourão-Ferreira ........................................ 139
ANEXO 2 - Obras de José Saramago ..................................................... 141
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INTRODUÇÃO

O romance português contemporâneo Considerações Gerais

“A prática rica e multímoda da ficção portuguesa con-


temporânea arrisca-se justamente em indefinição por
definidas formulações que, mesmo que seja de modo inad-
vertido, atravessa, duplica ou interroga. Reflectir sobre
teoria dos géneros não pode significar a busca de uma
norma (mesmo que ela exista, aliás constantemente trans-
formada pelo relativismo histórico que sempre a conduz)
- mas consiste certamente em arriscar, na prática
irradiante de um sentido discursivo afim, uma compreen-
são (delimitação) que permita a evidência das
descolagens, o gosto das descoincidências, a surpresa
de uma desunião que, apontando o uno (um uno hipoté-
tico - e sempre por hipóteses caminhamos), informa o seu
seguir diverso”1

A literatura portuguesa contemporânea atravessa uma fase de


invejável produtividade, com a eclosão ou permanência de autores como
Antonio Lobo Antunes, Helder Macedo, Teolinda Gersão, José Cardoso
Pires, Vergílio Ferreira, José Saramago, Ivette K. Centeno, Agustina Bessa
Luís, Carlos de Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues, Antonio Rebordão
Navarro, David Mourão-Ferreira entre vários outros, da mesma ou maior
relevância, arrolando-se escritores de pelo menos três gerações: a que co-
meçou pelo neo-realismo entre 45 e 50, outra, já dos anos 60, que se dedica
a um romance intimista, existencialista, de maior subjetividade e, nos anos
70 e 80 em diante, autores das mais variadas tendências, todos com um
denominador comum: a renovação fundamental e profunda do romance,
revelando dimensões que demonstram a transformação de formas, a
textualização do romance, o acompanhamento, enfim, da mudança dos tem-
pos e contextos socio-ideológicos, dos quais a produção literária, com seu
caráter especular, tem sido um vivo e dinâmico reflexo.
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A dificuldade básica, com a qual nos deparamos na análise de


obras de nosso próprio tempo, advém exatamente do aspecto subjetivo e
delimitador do espaço-tempo a que pertencemos, da pequena ou nenhuma
distância entre nós e os autores estudados, da falta de uma perspectiva
histórica mais abrangente que nos facilitaria os julgamentos, classificações
e, até mesmo, uma maior objetividade e isenção críticas.
É possível, no entanto, percorrer o numeroso e heterogêneo
“corpus” dos textos narrativos atuais, procurando verificar características
recorrentes, denominadores comuns, ideologias conflitantes ou análogas,
tendências estéticas predominantes, tentando formular procedimentos de
articulação e produção literárias que deixem entrever a orgânica ficcional da
literatura de nossa época.
A alteridade, o desenvolvimento da problemática do outro em
seus mais diversos níveis - alteridade do gênero, alteridade do discurso,
alteridade do narrador, entre outras - é uma característica que advém da
textualização do romance, que se volta agora sobre si mesmo, questionando-
se, explicando-se, através da pluridiscursividade e da auto-reflexibilidade. A
construção do romance no romance, o texto que se constrói à vista e com a
colaboração do leitor, inserido num contexto de interações, de fusão de hori-
zontes de expectativas do emissor (polo da produção) e do receptor (polo da
recepção), configura um processo de auto-referencialidade, sublinhando o
caráter especular do romance-texto e o experimentalismo da ficção atual.
Assim sendo, a ficção contemporânea, de um modo geral, e parti-
cularmente o romance português preocupam-se com a superação de um sim-
ples re-lembrar, objetivando acima de tudo - como uma recriação de toda uma
concepção do mundo atual, fragmentário e múltiplo - incorporar o próprio
mundo, constituindo-se o próprio texto e seu discurso, na representaçãodessa
realidade inquietamente. Focalizando, simultaneamente, “estados de consci-
ência” e “aspectos concretos do mundo em torno”, o romance moderno privi-
legia o mundo dos valores, desviando o centro de gravidade do romance,
anteriormente centralizado na intriga, para as persongens “a quem as coisas
acontecem”2.
A ficção moderna liberta-se da coação absoluta do enredo e
lança novas luzes sobre a personagem, a quem as coisas acontecem, rom-
pendo-se o equilíbrio entre o “mundo dos factos” e o “mundo dos valo-
res”3, uma vez que se estabelece um nítido predomínio das personagens
sobre o suceder dos eventos, fugindo-se ao culto da história pela história.
O discurso dialógico prevê a presença do outro inserido na fala do narrador
e, por outro lado, as falas das personagens estabelecem a pluridiscursividade
e a relativização da diegese, onde o leitor percebe verdades e não a verdade.
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Revela-se, assim, a preocupação básica do romance contempo-


râneo em se vincular à esfera dos valores, através da sobreposição e inter-
relacionamento de diferentes visões de mundo, centrados nas persona-
gens - Essência - que contrastam com os valores da Aparência, decorren-
do daí a grande importância da pluridiscursividade, que elucida os proces-
sos de construção textual autonímica, criando um jogo especular entre os
vários locutores do romance.
Deslocando-se o centro de gravidade da intriga para a persona-
gem, novas luzes são lançadas sobre os choques de valores que decorrem
do inter-relacionamento das pessoas, num mundo em mudança. Inserida no
conflito, permanentemente aberto entre os homens, a personagem é enfocada
com insistência. De que lado ela se posiciona: a favor de valores caducos,
na sua defesa veemente?; ou contra eles?. Se está contra, de que maneira e
em que medida? Ou está à deriva, alheio ao desmoronar do mundo ao seu
redor, vivendo na irrealidade do passado, acreditando que tudo está em
ordem, ainda que vivendo no próprio caos?
A realidade incerta e indeterminável apresenta-se em articula-
ções multiformes, onde as antinomias do real são traduzidas pelo estabele-
cimento de sucessivos contrastes entre autores, textos sobre textos, visões
de mundo, configurando-se contradições de variadas ordens, que refletem os
conflitos que se inserem no mundo atual e na ficção que o modeliza.
Pretende, isto sim, representar a natureza enigmática do homem,
inserido nesta realidade imprecisa e flutuante, cujos valores em mudança
refletem-se no discurso ficcional, sendo o texto a própria mimese do real.
Estilhaços de pensamentos, fragmentos sem sentido, trechos
fraseológicos aparentemente desconexos, constroem novos significados
que podem refletir, de modo convincente, a perplexidade de um mundo
flutuante, fragmentário e sem contornos definidos, representando a nature-
za enigmática do homem, cujos valores em mudança refletem-se no próprio
texto ficcional.

A importância do leitor, co-autor do texto (Estética da Recepção)

A significação frasal é uma hipótese, que se erige sobre


uma quantidade de significados correlacionados, que,
por sua vez, são projetados sobre a base material dos
significantes. O núcleo do significado frasal assim obti-
do é definível como estado de fato (Sachlage). Na acepção
própria do termo, este estado de fato é o primeiro passo
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da recepção. Para a constituição do estado de fato, no


entanto, é necessária não só a atividade redutora do
leitor, como, ao mesmo tempo, uma atividade
catalisadora *, que ocupe os vazios.4

No contexto do romance português atual, torna-se cada vez mais


imprescindível a colaboração do leitor na decodificação da mensagem tex-
tual, daí a necessidade de se considerar a prioridade analítica do aspecto da
recepção sobre os da produção e da representação. A estrutura imanente,
verbal do texto - a produção como organização de estruturas - ou mesmo a
estética sócio-ideológica da representação - a reflexão ideológica como
tarefa legítima da literatura - não conseguem dar conta da obra literária em
sua totalidade, configurando-se antes como reduções apressadas. É preci-
so ir mais além, analisando e prevendo processos de interação que advêm
da participação dinâmica do leitor. A Estética da Recepção propõe a con-
cepção da abertura do horizonte de significação da literatura e da contribui-
ção indispensável do receptor que articula e realiza essa abertura.
Quando se lê um texto trabalha-se com hipóteses prévias, que
vão se confirmando ou não na leitura, ou se tem que voltar atrás e ler
novamente. A leitura configura-se, pois, como um ato interativo, onde se
trabalha por ensaio e erro.
O romance é o espaço textual onde se potencializam infinitas
possibilidades de relacionamento, cabendo ao leitor, através de suas pro-
jeções representativas e da estrutura de apelo do texto, ocupar os “bran-
cos” do texto, os “vazios”, o “não-dito”. Os diversos planos da narrativa
possuem significados secundários, conotativos, que coexistem com os
significados primários constituindo-se horizontes suplementares de sig-
nificação: o horizontal das conotações metonímicas e sequenciais e o
vertical das metafóricas.
O leitor, co-autor do texto ficcional, estabelece uma conjunção e é
dessa interação que decorre a presentificação da mensagem ficcional. O re-
ceptor traça uma linha congruente, que lhe assegura a descoberta do sentido
do romance, elaborando, através das constantes do próprio texto, as variá-
veis da recepção, espaço ou meio de reflexão, onde se pode mergulhar cada
vez mais, através de leituras e re-leituras.
Pretendemos, nesse estudo, verificar o papel catalisador do lei-
tor em dois autores bastante representativos da literatura portuguesa con-
temporânea: José Saramago e David Mourão-Ferreira. O primeiro utilizan-
do-se da história ficcionada, da alteridade do narrador, do discurso dialógico,
da intertextualidade com textos históricos e ficcionais e com diferentes re-
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gistros genológicos e o segundo baseando-se na pluridiscursivididade, na


polifonia da multi-focalização, na intertextualidade entre as falas das perso-
nagens - criando um painel dos “pífios anos oitenta” - na duração
bergsoniana, no predomínio e invasão do discurso sobre a narrativa. Com-
pete ao leitor a ocupação dos vazios, dos brancos do texto, usufruindo do
prazer estético da poiesis, uma vez que participa da construção do próprio
texto, ocupando os espaços que lhe são reservados; da aisthesis pela
possibilidade de configurar uma nova visão do mundo pela fusão de seus
horizontes de expectativae as do autor; e, da katharsis pela ativação de
suas representações projetivas, que podem levá-lo a uma re-elaboração de
conceitos individuais, através da interação com o texto ficcional.
Este livro pode ser sub-divido em partes: um percurso teórico
sobre a Estética da Recepção, principais teóricos e abordagens; uma refle-
xão sobre o romance português contemporâneo, vertentes e características
dominantes (“corpus complementar”), visando contextualizar os dois ro-
mances a serem analisados - História do Cerco de Lisboa de José Saramago
e Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira - (“corpus básico”); o repertó-
rio ficcional, as estratégias textuais, a construção do romance no romance,
as inter-relações entre emissor-mensagem-receptor, serão abordados em
três partes subsequentes, onde os romances do “corpus básico” serão
analisados, à luz dos aspectos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria
do Texto.
O objetivo final é demonstrar que o texto - polo da produção e
presença do autor implícito - insere-se num contexto - quadro espácio-
temporal e fusão de horizontes de expectativas - providenciando o campo
de atuação do leitor, em diversos níveis - polo da recepção - que constrói o
seu metatexto através do ato da leitura.

Notas
1
Maria Alzira Seixo - A palavra do romance. (Ensaios de Genologia e análi-
se). Lisboa: Livros Horizonte, 1986. p.8
2
Alexandre Pinheiro Torres - “Sociologia e Significado do Mundo Romanes-
co de José Cardoso Pires”. In; Posfácio da obra de José Cardoso Pires - O
Anjo Ancorado. 5ª ed., Lisboa: Moraes Editores, 1977.
3
Idem, Ibidem, p. 154.
4
Karlheinz Stierle - “Que significa a recepção dos textos ficionais?”. In:
Vários Autores - A Literatura e o Leitor. Selec. trad. e introd. de Luiz Costa
Lima. Rio: Paz e Terra, 1979, p. 138.
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Percurso Teórico - A Estética da Recepção


1.1 - Produção e Leitura

Today, one rarely picks up a literary journal on either


side of the Atlantic without finding articles (and often a
whole special issue) devoted to the performance of
reading, the role of feeling, the variability of individual
response, the confrontation, transaction, or interrogation
between texts and readers, the nature and limits of
interpretation - questions whose very formulation
depends on a new awareness of the audience as an entity
indissociable from the notion of artistic textos5

Nos últimos vinte anos pudemos presenciar, de início sutil e


silenciosamente, mas, na verdade, uma verdadeira revolução no campo da
teoria literária e do criticismo, quando palavras como leitor, audiência, re-
ceptor, antes vistas como conceitos óbvios e triviais, passam a ser uma
preocupação comum a várias correntes atuais de estudos críticos. Os jor-
nais literários publicam artigos cada vez mais numerosos, onde a concretização
do texto ficcional através da leitura, a variabilidade das respostas e proje-
ções individuais dos leitores, a natureza e os limites da interpretação
revelam uma preocupação comum com a recepção do texto literário, lado a
lado com os tópicos críticos tradicionais da criação e da representação
(genesis-mimesis).
O processo da leitura é estudado e analisado de todos os ângu-
los, em sua variabilidade, em seus valores intrínsecos, nas condições pes-
soais e históricas em que se encontram os leitores, considerando-se a pro-
dução do texto artístico, tanto uma construção do autor como uma re-cons-
trução pelo leitor, partindo da premissa básica de que uma obra literária só
existe, concreta e efetivamente, quando é atualizada pela leitura.
A preocupação com a produção e leitura do texto artístico já
aparece no conceito aristotélico de prazer, estudado por Jauss6, onde se
ressalta a dupla origem do prazer estético como decorrente de dois fatores: a
18

“admiração de uma técnica perfeita” (a composição do texto) e o “regozijo


ante o reconhecimento da imagem original no imitado” (o gosto do lei-
tor). Aliam-se um efeito de ordem intelectual e um efeito sensível, para
compor o caráter estético inerente à recepção do texto, sublinhando-se a
idéia aristotélica de que a natureza catártica é que determina a eficácia da
obra literária.
A reflexão formalista - de início com uma proposta redutora do
texto como imanência, artefato verbal, vendo a produção textual como orga-
nização de estruturas, com uma objetividade intemporal, analisada,
sincronicamente como uma autônoma construção de sentido e fundada na
transformação da e pela arte, e no conceito de estranhamento - vai se atenu-
ando com os estudos de Chklowski, Tynianov, Todorov, e, mais tardiamen-
te, Lotman, que vêem a obra literária, não somente como artefato verbal,
mas como objeto estético, como ponto de encontro entre o texto e o leitor.
Chklowski7 vê a arte como produto de uma série de procedimen-
tos estéticos do autor, utilizados para provocar um efeito de
“estranhamento” no leitor. Decorre daí a necessidade de maior concentra-
ção e interesse na decodificação da mensagem ficcional, sugerindo um tra-
balho de deciframento por parte do receptor da mensagem. A oposição
entre a língua prática (sistema primário) e a língua literária (sistema
modelizante secundário) ressalta o desgaste da primeira, decorrente da
referencialidade e imediatismo de sua função, em oposição à
desautomatização das modalidades habituais da percepção, complexidade
e até mesmo hermetismo da segunda, estética e artisticamente elaborada.
O conceito da obra como sistema é enfocado por Tynianov que
vê o texto como transformação, tanto na interação dos seus componentes,
como na sua mutação ao longo da história. O leitor é componente funda-
mental do processo, sendo constantemente invocado, uma vez que é a
própria percepção do receptor que vem a ser modificada pelo texto. Lotman,
mais tardiamente, embora enfoque o texto como produto de suas inter-
relações, já compreende que as séries de equivalências engendradas permi-
tem ao leitor possibilidades múltiplas de significação; é a plurisignificação
da mensagem ficcional. Afirma ele que a divisão do texto, em segmentos
estruturalmente equivalentes, possibilita uma determinada ordenação do
texto. Frisa, porém, que essa ordenação não pode ser totalmente realizada,
para que não se automatize e se torne estruturalmente redundante. O mate-
rial heterogêneo do texto é convertido em séries de equivalências que, ao
mesmo tempo, não descartam a sua heterogeneidade. A composição do
texto artístico supõe a organização sintagmática dos elementos do tema por
exemplo, mas a sua heterogeneidade é preservada, uma vez que esses ele-
19

mentos devem antes passar por uma decomposição paradigmática, que de-
pende de oposições fundamentais, postas em evidência dentro de um cam-
po semântico limitado por leitores diversos, em épocas distintas.
O estruturalismo tcheco prossegue e amplia as idéias formalistas,
compreendendo que é o processo de desautomatização da linguagem que
move a criação artística, cujo valor estético decorre das relações da própria
obra com a norma estética. Mukarovski ressalta a importância da norma
para garantir a sistematicidade do texto e providenciar o relacionamento
entre o autor e sua obra e entre a obra e o leitor. Os aspectos individuais da
recepção não interferem na realização do processo, pois, o que interessa é
a rejeição ou apropriação da regra pelo destinatário, possibilitando as rela-
ções entre o grupo social e o texto. É uma teoria voltada para a produção da
significação, pela contraposição do sentido a um código vigente, que seria
o mediador entre o texto e o meio social em que se insere. A percepção da
obra como uma realidade histórico-cultural, que não se esgota no próprio
texto, é um dos elementos de contextualização que transparece nos traba-
lhos de Jakobson, dos estruturalistas franceses e do new-criticism norte
americano que, embora centrados na análise imanente da obra de arte -
mensagem que gera seu próprio código - e na produção de sentido como
decorrência da organização de estruturas textuais, começam a se preocupar
com a contextualização da obra, tanto sincrônica como diacronicamente,
procurando compará-la com outras obras da mesma época, do mesmo autor
e até mesmo com obras de outras épocas.
Contrapondo-se ao estruturalismo, surge a crítica marxista que
afirma a necessidade de se avaliar a relação entre o artista e a sociedade e
não somente os mecanismos estéticos e a análise estrutural da obra literá-
ria. Lukács e Goldman, entre outros, priorizam uma estética da representa-
ção, que toma apenas o “reflexo” como tarefa legítima da literatura, preven-
do as influências da sociedade sobre o autor, deste para a obra e desta para
o leitor, não pressupondo, no entanto, a inversão de seus vetores - a influ-
ência da sociedade em que se insere o leitor na presentificação da obra.
Mikhail Bakhtin representa um ponto de viragem entre a crítica
da primeira metade do século e a crítica contemporânea. Contestando a
criatividade da “língua estética”, vítima, segundo ele, do mesmo processo
de desvalorização da língua prática, Bakhtin propõe uma teoria da lingua-
gem, que deverá estabelecer vínculos entre a comunicação e a ideologia,
baseando-se no caráter ideológico do signo linguístico. A palavra, refletin-
do as camadas sociais, não se caracteriza pela unidade, mas pela pluralidade.
A utilização do signo, elemento vivo e atuante, pelo falante manifesta suas
relações com o real. Considerando ainda a tentativa de unificação da lin-
20

guagem, através da adoção de uma norma reguladora, cabe à literatura não


a representação da norma mas a expressão do plurilinguismo social e da
pluridiscursividade nas falas das personagens do texto ficcional.
A natureza polifônica do romance, o uso da ironia, a
carnavalização, o dialogismo e a intertextualidade implicam no
questionamento da linguagem como instrumento de manipulação ideológi-
ca. A presença do leitor torna-se real como a presença de um “outro” inse-
rido no discurso do narrador, providenciando um diálogo entre os planos
do enunciado e da enunciação, que embora conflituoso, possibilitará uma
participação ativa do leitor na presentificação da mensagem ficcional.
A Estética da Recepção surge, nos fins dos anos sessenta,
propondo a abertura do horizonte de significação da literatura, ressaltan-
do a contribuição do leitor na concretização do texto e, acima de tudo,
enfocando a prioridade analítica do aspecto da recepção sobre os da
produção e da representação. Jauss propõe a organização de uma nova
história da literatura, baseada nas reconstruções da obra literária, decor-
rentes da sua recepção na época do autor e em diversas épocas, realizan-
do uma pesquisa sincrônica e diacrônica da recepção do texto pelo mes-
mo leitor através de re-leituras, e por leitores diversos. Assim sendo,
afirmava Jauss, em suas palestras na Universidade de Constança (“escola
de Konstanz”) que

Urgia renovar os estudos literários e superar os impasses


da história positivista, os impasses da interpretação, que
apenas servia a si mesma ou a uma metafísica da ‘écriture’,
e os impasses da literatura comparada, que tomava a
comparação como um fim em si. Tal propósito não seria
alcançavel através da panacéia das taxinomias perfei-
tas, dos sistemas semióticos fechados e dos modelos
formalistas de descrição, mas tão só através de uma teo-
ria da história que desse conta do processo dinâmico de
produção e recepção e da relação dinâmica entre autor,
obra e público, utilizando-se para isso da hermenêutica
da pergunta e resposta.8

A recepção é um processo gerador de significados que realiza


as instruções dadas por um texto num dado momento. A obra literária é
vista em inter-relação com a realidade histórico-cultural do autor e do leitor.
Jauss aponta a necessidade de se elaborar uma nova história da literatura,
baseada nas reconstruções da obra pelos leitores e na sua recepção em
épocas diversas.
21

Enfatiza, ainda, a necessidade de comunicação entre os dois


polos da relação texto e leitor, isto é o efeito - momento condicionado pelo
texto - e a recepção - momento condicionado pelo leitor, que possibilitam a
concretização do sentido como duplo horizonte: o literário, implicado pela
obra (interno) e a visão de mundo, trazida pelo leitor de uma determinada
sociedade. O seu conceito de leitor fundamenta-se em duas categorias: a do
horizonte de expectativas9 - somatória de códigos vigentes e de experiên-
cias sociais acumuladas - e da emancipação - efeito e finalidade da arte. A
receção do texto por vários leitores configura um movimento, que revela o
resultado da circulação inter-individual da obra, uma vez que o texto é visto
como uma estrutura sócio-ideológica. 10
Partindo da premissa que não há conhecimento sem prazer e
vice-versa, Jauss formula os conceitos de fruição compreensiva e compre-
ensão fruidora uma vez que o significado de uma obra de arte só pode ser
alcançado, se for esteticamente vivenciado. A natureza comunicativa,
transgressora e eminentemente libertadora da obra de arte potencializa-se
através da experiência estética, composta, segundo Jauss, por “três ativi-
dades simultaneamente complementares: a “Poiesis”, a “Aisthesis” e a
“Katharsis”.
A Poiesis corresponde ao prazer estético de se sentir co-autor
do texto, uma vez que o leitor se insere no texto, como encarregado de
atualizar as possíveis combinações de diferentes discursos, polifonia de
vozes, visões do narrador e das personagens; a Aisthesis é a consciência
receptora, o prazer de renovar sua percepção do mundo, a participação no
jogo lúdico do texto; a Katharsis é o prazer efetivo que liberta o leitor de
seu cotidiano, levando-o, através da fruição de si no outro, à liberdade
estética de sua capacidade de julgar e envolver-se.
Jauss, contestando a visão tradicional de que as personagens
se configuram pelas suas ações, acredita que os heróis ficcionais definem-
se antes pelas respostas desencadeadas no público. Assim sendo, consi-
dera as seguintes modalidades de identificação: associativa - a representa-
ção torna-se uma espécie de jogo entre o leitor e o texto; admirativa - a
corporificação de um ideal pelo herói dispõe o leitor na direção do reconhe-
cimento e adoção de modelos; simpatética - o herói se confunde com o
homem comum presentificado pelo receptor; catártica - leitor é capaz de
introjetar sua identificação, refletindo e analisando os fatos e ações que se
encadeiam; irônica - uma possível identificação é apresentada ao destina-
tário para, logo a seguir, ser ironizada ou completamente refutada.
Partindo, portanto, da ênfase dada ao polo da recepção, da ne-
cessidade de incorporar a aplicação e a hermenêutica na compreensão da
22

obra literária, Jauss propõe uma história da literatura, fundada na interação


mútua do texto e do leitor, sintetizando a recepção a partir de dois aspectos
básicos: o caráter estético e o papel social da arte.
Elabora sete teses sendo as quatro primeiras premissas das três
finais. A primeira tese apresenta o tema da concretização do texto pelo
leitor, uma vez que a obra de arte só existe quando é presentificada por um
receptor. A segunda tese considera os complexos de controle da obra, uma
vez que é ela que predetermina a recepção, oferecendo orientação ao seu
receptor. Ela atualiza o "horizonte de expectativas" e as regras lúdicas fami-
liares ao leitor. A reação de cada um é individual, mas a recepção é um fato
social, uma vez que o horizonte é coletivo e trans-subjetivo.
A noção de Jauss, de que o valor da obra artística é diretamente
proporcinal à sua negatividade, quanto às expectativas de seus primeiros
leitores, configura a terceira tese. Quanto maior a distância estética (a obra
está além de seu tempo), mais arte, uma vez que a reconstituição do horizon-
te determina o caráter artístico da obra no modo e grau de sua ação sobre
certo público, que ainda não se acha preparado para compreendê-la11. A
quarta tese desenvolve a noção da fusão de horizontes do autor, da obra e
do leitor, configurada na recuperação da pergunta do público, através da
análise da resposta que é o texto. Fundir horizontes, aparentemente díspares
e independentes entre si, resulta na compreensão do texto, interiorizado
pelo leitor através de suas projeções e de sua visão de mundo.
Baseando-se nessas quatro teses, aqui ligeiramente esboçadas,
Jauss estabelece um programa metodológico que se propõe a investigar a
literatura, a partir de três aspectos: o diacrônico, relativo à recepção das
obras literária ao longo do tempo; o sincrônico, pertinente ao sistema de
relações da literatura numa época determinada e a sucessão desses siste-
mas; a relação literatura/vida prática. A arte existe para contrariar expecta-
tivas e não para confirmá-las. Completam-se, assim, as sete teses que apre-
sentou em suas primeiras palestras na Universidade de Constança (Alema-
nha) em 1967, fundamentando-se, teoricamente, a necessidade de uma nova
história da literatura, baseada, como já dissemos, nas reconstruções da
obra e sua recepção em épocas diversas.
A noção de contrução de significados pelo leitor configura-se
através das repercussões de horizontes sociais do passado penetrando no
horizonte do presente, providenciando a compreensão e apreensão de um
“determinado momento”, atualizado pela leitura. No diálogo texto/leitor,
Jauss vê a análise textual - divisão do todo em partes, análise interpretativa,
estratégias discursivas e narrativas - inserida no contexto de produção e
recepção, onde avultam os pré-juízos, preconceitos e pressupostos do au-
23

tor e do leitor, presentificando-se uma constante auto-interrogação, decor-


rente da aplicação das respostas do texto às perguntas do receptor. (Lógica
hermenêutica da pergunta e da resposta).
A literatura comparada é também uma das preocupações do teóri-
co, que se debruça sobre o estudo da intertextualidade, ressaltando o papel
do “velho” (citações, referências, insinuações de outros autores, de outras
épocas ou da mesma época) que se torna “novo” num texto que o
descontextualiza. A análise das estratégias textuais esclarece como o autor
organiza, dialeticamente, as relações entre o individual e o coletivo, entre a
literatura nacional e as estrangeiras, a partir de seu próprio contexto socio-
ideológico. A consciência da presença mútua de um autor em outro, de uma
literatura em outra e a intensidade da função complementar do contexto esta-
belecem relações integrativas* (alusões, empréstimos, adaptações) e rela-
ções diferenciais (paródia, ironia), configurando-se inter-relações de unida-
de/alteridade, decorrentes dos próprios autores estudados, que devem estar
na base de qualquer análise que se pretenda comparativa.
Se é verdade que Jauss, como já constatamos, está interessado
na recepção da obra, do modo como ela é, ou deveria ser, recebida, Wolfgang
Iser12 - outro dos teóricos de Constança, contemporâneo e também importan-
te mentor da Estética da Recepção - concentra-se no efeito (Wirkung) produ-
zido pelo texto, ou seja, na ponte que se estabelece entre o texto literário * -
com sua ênfase na leitura paradigmática do intervalo, do não dito, das entre-
linhas, dotado de um horizonte aberto-e o leitor. Iser desenvolve uma teoria
do efeito estético, conduzindo, a partir dos processos de transformação, à
contituição do sentido pelo leitor, descrevendo a ficção como estrutura de
comunicação. O repertório ficcional, as estratégias textuais, as variantes de
leitura, o leitor implícito, os vazios do texto completam a perspectiva do texto
em si mesmo e sua recepção pelo leitor, cujo espaço é garantido pela própria
obra. Stierle13, dando continuidade às proposições teóricas de Iser, enfoca a
perspectiva do texto no sistema, uma vez que constata que o texto incorpora
sistemas de intervenção semiótica do contexto sócio-ideológico em que está
inserido. As teorias de Iser e seus seguidores serão estudadas no ítem se-
guinte desse ensaio, onde se verificará o espaço do leitor, a organização do
repertório, a ficção com efeito, enfim, como o texto prevê o leitor. (1.2. O
Espaço do leitor: os vazios do texto).

1.1.1 - Os múltiplos enfoques da Estética da Recepção


As teorias literárias, baseadas na visão privilegiada do polo da
recepção do texto sobre o da produção, desenvolveram-se rapidamente na
Itália, França e Estados Unidos, retomando abordagens dos formalistas,
24

estruturalistas, e outros precursores e desenvolvendo uma multiplicidade


de enfoques sobre o leitor no texto. Deste modo seus estudos conside-
ram: o desempenho do leitor, o papel da intuição interpretativa, a compe-
tência sócio-ideológica, a diversidade de respostas individuais, a transa-
ção, confrontação e interrogação entre textos e leitores, a natureza e os
limites da interpretação, rastreando uma nova concepção da “audiência”
(audience), da recepção do texto literário como entidade inerente à noção
dos textos artísticos.
Nos Estados Unidos a Estética da Recepção vai encontrar di-
versos adeptos no âmbito dos estudos acadêmico-universitários,
refortalecidos com o advento de professores universitários europeus, des-
tacando-se entre eles o próprio Wolfgang Iser. Denominados por alguns
Reader-Response Criticism e por outros Audience-Oriented Criticism14,
os críticos e teóricos norte-americanos passam a se preocupar com os estu-
dos sobre a recepção, compartilhando as mesmas preocupações dos estu-
diosos da Escola de Constança.
Susam Suleiman, em seu ensaio “Introduction: Varieties of
Audience-Oriented Criticism”, publicado na obra The Reader in the text15,
elabora um agrupamento, por necessidade de exposição, de seis variedades
ou categorias de correntes críticas ligadas à Estética de Recepção (audience-
oriented criticism) levando em conta as ligações com teorias críticas anterio-
res e, principalmente, a multiplicidade de enfoques sobre o leitor no texto:
retórica (rhetorical); semiótico-estruturalista (semiotic and structuralist);
fenomenológica (phenomenological); subjetivo-psicanalítica (subjective and
psychoanalytic); sociológico-histórica (sociological and historical); e
hermenêutica (hermeneutic), frisando, no entanto, que essas aproximações
não se excluem, antes se completam e se mesclam entre si. Atendendo a essa
divisão, apenas para fins didáticos, tentaremos compreender as principais
abordagens de cada categoria, procurando relacionar obras e críticos, que se
enquadram em uma ou mais correntes teóricas aqui estudadas, bem como
precursores, que foram retomados, de tendências críticas anteriores.
O enfoque retórico e o semiótico-estruturalista têm em comum a
abordagem do texto literário como uma forma de comunicação. O autor e o
leitor são o emissor e o receptor da mensagem ficcional, estabelecendo-se
códigos comuns que permitem a sua compreensão e interpretação.
A categoria retórica engloba estudos cujo interesse primordial
reside na situação de comunicação, seu significado, conteúdo ideológico
ou força persuasiva. Apoiando-se nas obras precursoras de Wayne Booth
- The Rhetoric of Fiction (1961)16, J. L. Austin - How to Do Things with
25

Words (1962)17 e Stanley E. Fish - Surprised by Sin: The Reader in Paradise


Lost (1967)18 prioriza-se o conteúdo ético e ideológico da mensagem. É
preciso descobrir crenças e valores que possibilitem diferentes significa-
dos explícitos ou implícitos da mensagem ficcional. Waine Booth, o mais
representativo dos teóricos retóricos de uma primeira fase, elabora o con-
ceito de autor-implícito * que se define como um alter-ego “actual author’s
second self”, uma sombra disfarçada, presença que se esparrama e está por
trás de cada aspecto do texto e cuja imagem pode ser reconstruída pelo ato
da leitura. O autor implícito, no esquema proposto por Booth, tem seu
contraponto no leitor implícito, conceito que será bastante desenvolvido
por Wolfgang Iser, que reconhece que o texto prevê o leitor implícito assim
como revela o autor implícito. São ambos construções interpretativas e
como tal participam da circularidade de toda e qualquer interpretação. Em
sua obra posterior, A Rhetoric of Irony (1974), Booth analisa, dando conti-
nuidade às suas preocupações com a decodificação da mensagem ficcional,
textos irônicos onde os autores recusam-se a se desvelarem, ainda que
implicitamente, como Beckett por exemplo, configurando-se uma espécie de
instabilidade, sob o signo do niilismo.
É preciso alertar, no entanto, que o termo retórica é considera-
do em sua mais ampla extensão, como é visto pelos estruturalistas france-
ses, como Gerard Genette19, que se recusam a considerar a retórica como um
mero estudo de tropos, do mesmo modo que o crítico norte-americano Paul
de Man20, para quem retórica parece ser sinônimo para todo uso auto-
reflexivo da linguagem, seja criativo ou artístico. Os autores preocupam-se
em conceituar e desenvolver abordagens problemáticas das teorias literári-
as contemporâneas como: validade da obra literária; o significado visto
como sentido da obra em si mesma, inscrito verbalmente no texto e a signi-
ficação como o sentido da obra para o leitor, sendo o primeiro resultante do
polo da produção e a segunda do polo da recepção; autoridade e intenção;
o texto e sua natureza comunicacional.
Stanley E. Fish21 elabora o conceito, que desenvolverá posteri-
ormente, de comunidades interpretativas e a importância de se considera-
rem as diferentes recepções da obra literária, de acordo com a visão de
mundo de diferentes grupos sociais do presente e de épocas outras. Peter
Rabinowitz22 analisa em sua obra quatro diferentes tipos de audiência de
um texto artístico que classifica como: audiência presente ou atual, audiên-
cia autoral, audiência narrativa e audiência narrativa ideal (do ponto de
vista do narrador. Paul Ricouer23 discute a metáfora inserida nos textos em
seus mais diversos enfoques. Considera os leitores sob a ótica da retórica
clássica à retórica semiótica, semântica ou hermenêutica, analisando metá-
26

fora, primeiramente como uma palavra, depois frase e discurso e finalmen-


te como uma verdade paradoxal. A metáfora é estudada na situação de
discurso ou no texto onde aparece, uma vez que ela é, antes de tudo, uma
mudança conceitual de significado.
Os estudos de Tzvetan Todorov24 preocupam-se em conceituar
gêneros literários em suas origens, debatendo a validade, dilemas e parado-
xos da interpretação, situando-se num ponto de confluência entre as abor-
dagens retóricas e os enfoques semiótico-estruturalistas, que se
interpenetram e se confundem.
A categoria semiótico-estruturalista preocupa-se com a leitura
do texto artístico, não somente no sentido de interpretá-lo ou assinalar sua
significação, mas principalmente visando analisar os múltiplos códigos e
convenções que tornam possível a legibilidade do texto. Roland Barthes25,
por exemplo, vê a atividade estruturalista como sinônimo de semiótica. Os
estudos sob essa denominação são centrados nas análises e descrições
dos textos, no processo de leitura e sua contextualização, visando a cons-
trução do sentido através da análise estrutural e estabelecendo uma
semiótica do texto e uma semiótica do próprio código. O texto aparece como
a presentificação de uma seleção contextual, onde se pode reconhecer os
traços linguísticos responsáveis pelas diferentes estruturas de construção
e de funcionamento do discurso.
O discurso dialógico, o plurilinguismo, a polifonia do romance
são abordados por Mikhail Bakhtin26, que aponta como objeto principal do
gênero romanesco, o que o especifica e cria sua originalidade estilística, o
homem que fala e sua palavra, presentificada numa representação verbal e
literária. O discurso do “locutor” não é somente reproduzido ou transmitido,
mas sim “representado com arte” e, ao contrário do drama, representado pelo
próprio discurso. O locutor no romance é sempre, em diversos graus, um
ideólogo, e suas falas são sempre “ideologemas” (“ideólogeme”). Uma lin-
guagem particular no romance significa sempre um ponto de vista particular
sobre o mundo, envolvendo uma significação social. O discurso torna-se
objeto de representação no romance, que não corre o risco de se transformar
num jogo verbal abstrato. O signo linguístico contextualiza-se, e Bakhtin, em
sua postura dialética, estabelece a síntese entre o ato linguístico, que não se
reduz a um ato individual pois está inserido na concatenação sentencial do
texto, e o ato da leitura que somente pode ser compreendido num contexto
situacional. O signo é um fragmento de materialidade da realidade e presentifica
uma “penhora”, que permite ao leitor compreender a conotaçáo sócio-ideoló-
gica que rege o tema intencional do autor.
27

Arrolam-se, dentre vários outros teóricos que se preocupam com


a construção do sentido e análise semiótico-estrutural do texto, autores como
o já citado, Roland Barthes27 que embora não elabore uma teoria do texto,
apresenta no entanto, sete proposições para análise textual, que concernem:
ao método, aos gêneros, ao signo, ao plural, à filiação, à leitura e ao prazer.
O texto é visto como um campo metodológico, cujo movimento constitutivo é
a “travessia”, uma vez que se aproxima do signo e seu campo é o significante
- o infinito do significante remete a idéia de jogo -, e a obra funciona ela mesma
como um signo geral. Assim sendo, o texto é plural, pode ter vários sentidos,
é uma passagem que pode ser concretizada de diversas maneiras. Solicita do
leitor uma colaboração prática abolindo-se, ou pelo menos diminuindo-se, a
distância entre escritura e leitura. A aproximação do leitor ao texto deve cau-
sar prazer, pois é o espaço onde as linguagens circulam, ligando autor e leitor
numa mesma prática significante. É esse o conceito de prazer estético e das
experiências fundamentais da Poiesis, Aisthesis e Katharsis, que foram
enfocadas na primeira parte desse capítulo, na visão de Jaus, com base nos
conceitos de Barthes.
Gerard Prince28 aborda o papel do leitor, inserido no texto
narrativo como um personagem, um interlocutor do narrador,o “outro”
previsto pelo discurso dialógico do narrador, denominado por ele
narratário (“narrataire”). Seymor Chatman retoma o conceito e analisa,
em sua obra Narrative Structure in Fiction and Film29, as construções
do leitor real (“real reader”) do leitor implícito (“implied reader”) e do
narratário (“narratee”). A intertextualidade aparece nos estudos de
Jonathan Culler 30, de Michael Rifaterre31, que se preocupa, também, em
esclarecer os complexos de controle do próprio texto, onde a
intertextualidade aparece como absorção e transformação de outros tex-
tos por um texto.
Rifaterre constrói seu conceito de arquileitor (archilector), median-
te a determinação das passagens da obra, percebidas como esteticamente rele-
vantes através da comparação de várias leituras. O conjunto dessas passa-
gens (citações, palavras, passagens, descrições, diálogos, imagens) aponta-
das como estéticamente produtivas configura-se pela coincidência dos leitores
acerca de seu efeito estético, constituindo a estrutura estilística da obra.
Julia Kristeva32 por sua vez, vê o texto como um aparelho
translinguístico, onde se harmonizam a verticalidade (leitura paradigmática
da linha metafórica - intertextualidade, dialogismo) horizontalidade (leitura
sintagmática das relações metonímicas e de coesão textual). O
distanciamento do texto em relação à língua permite a reconstrução do texto
e as permutações de textos, campo por excelência das inter-relações da obra
28

com os seus arquétipos, numa relação de realização, de transformação de


transgressão * com obras e autores contemporâneos ou não.
Uma crítica retórica ou semiótico-estruturalista33 pode colocar a
questão da leitura - ou mesmo da legibilidade como pano de fundo, e con-
centrar-se na descrição de técnicas de persuasão, estruturas narrativas ou
temáticas, estilos individual ou coletivo, em resumo, aqueles aspectos dos
trabalhos literários, que tem sido tradicionalmente olhados como domínio
da análise textual.
A categoria fenomenológica, ao contrário das anteriores, está,
necessariamente, centrada na questão da leitura, no papel da imaginação,
na construção do significado, e, mais genericamente, na percepção estéti-
ca. O ato de ler é definido, essencialmente, como uma atividade produtora
de sentido, consistindo das atividades complementares de seleção e orga-
nização, de antecipação e retrospectiva, de formulação e modificação das
expectativas durante o processo da leitura.
Apoia-se na Fenomenologia de E. Husserl34, com os seus con-
ceitos de horizonte interno e externo, baseados nas experiências individu-
ais e coletivas, bem como nos conceitos de “concretização” (presentificação
do texto pelo leitor) e pontos de indeterminação de Roman Ingarden.35 Con-
siderando que seria um trabalho esgotante e incoerente para o escritor a
representação da realidade circundante de maneira plena, Ingarden prevê
que a obra deixa inúmeros “pontos de indeterminação” para serem preen-
chidos pelo leitor. *
Figura central dessa categoria de estudos da recepção ficcional,
Wolfgang Iser36 vai dedicar-se à compreensão da convergência texto/leitor,
tanto na concretização/presentificação da obra literária, como no preenchi-
mento dos “vazios”, dos brancos do texto (“pontos de indeterminação”),
observando que o texto prevê um receptor. É a estrutura de apelo do texto
que invoca a participação do indivíduo - o seu leitor implícito - organizador
e fertilizador da narrativa.
Iser busca na obra a estrutura funcional que determina os efei-
tos essenciais do texto sobre o leitor. Seu método, no entanto, não recorre,
como vimos em Rifaterre, à comparação de várias leituras (ainda que não
descarte esse recurso) mas sim a uma análise minuciosa do texto, a uma
descrição de seus dados objetivos e esquemáticos e aos correspondentes
“vazios” que devem ser preenchidos pelo leitor, através de sua atividade
imaginativa e sua visão de mundo, possibilitando diferentes abordagens do
mesmo texto ficcional. Os vazios, as indeterminações que perpassam todas as
linhas de qualquer texto (por exemplo: ações não contadas, sumários e elipses
29

temporais, aspectos obscuros de pessoas e objetos, suposições implícitas,


narrativas secundárias, falsas prolepses), têm para o crítico primordial impor-
tância como estímulo e canalização da atividade do leitor. Na verdade a des-
crição da forma de uma obra literária não irá se deter nos aspectos presentes
em um primeiro plano, mas sim nas sombras, nos hiatos e nas ausências, nas
elipses de vários tipos, configurando-se uma visão formal do que está por
detrás da trama, da negatividade organizada do texto. O leitor implícito é uma
das negatividades atuantes da obra. É uma ausência pessoal a que o texto
apela. É a presença do outro - do leitor real - previsto pelas próprias estratégi-
as textuais e muitas vezes atuando como personagem diegético tornado
narratário, “ser de papel”, construção estrutural do próprio discurso ficcional.
Os estudos de Iser abrangem muitos enfoques. Ainda que inseridos numa
linha fenomenológica relacionam-se com as teorias do ato da fala e com os
contextos histórico-culturais do discurso ideológico.
Karlheinz Stierle, discípulo de Iser, a partir da perspectiva do texto
em si mesmo e suas estruturas de apelo, vai preocupar-se com a perspectiva
do texto no sistema. Enquanto Iser elabora uma teoria das variáveis da recep-
ção, cujas constantes se encontram no próprio texto, centradas no caráter
auto-reflexivo do discurso ficcional, Stierle amplia esta visão afirmando:

A auto-reflexividade da ficção não implica a sua autono-


mia quanto ao mundo real. O mundo da ficção e o mundo
real se coordenam reciprocamente: o mundo se mostra
como horizonte da ficção, a ficção como horizonte do mun-
do. O âmbito da recepção dos textos ficcionais demarca-
se apenas na apreensão desta dupla perspectiva.37
Outra direção dos estudos recepcionais, categoria subjetivo-
psicanalítica oposta às abordagens anteriormente expostas, procura aten-
der não à estrutura comum, mas às variedades de respostas a uma mesma
obra. O interesse da análise das reações dos leitores pode ser psicológico,
revelando como a personalidade do receptor atua sobre a leitura e interpre-
tação de um texto artístico.
Norman Holland38 coloca como questão básica a relação entre
os modelos da crítica textual, objetivamente encontrados no texto, e a expe-
riência subjetiva do leitor sobre um texto. Desenvolve uma abordagem da
recepção ficcional, que compreende três passos: descrição objetiva do tex-
to como palavras num pedaço de papel; descrição psicológica da própria
resposta do leitor aos estímulos objetivos; identificação de pontos de cor-
respondência entre o texto objetivamente compreendido, e o receptor com
a sua experiência subjetiva do texto.
30

Outros teóricos dessa linha destacam-se, principalmente entre


críticos de língua inglesa como: David Bleich39, D.W. Harding40, Simon O.
Lesser41, Jane P. Tompkins42, embora possamos apontar estudos de france-
ses como o psicanalista Jacques Lacan43 e de Georges Mounin44, teórico da
literatura que argumenta que os estudos literários devem preocupar-se com
os efeitos emocionais e intelectuais dos textos literários sobre os leitores.
A categoria sociológico-histórica aborda uma questão consi-
deravelmente mais sofisticada, que interroga até que ponto as mudanças na
composição - e consequentemente na ideologia e gosto de um público
leitor nacional - têm contribuido para a emergência de novas formas literári-
as. Lucien Goldman45 conclue em seus estudos que todas as grandes obras
da literatura expressam a visão de mundo de uma classe social específica -
classe esta a qual pertence o próprio escritor e que constitue tanto a fonte
como a destinação de seus trabalhos. Exemplifica com a visão trágica nas
obras de Pascal e Racine que expressam o pensamento francês e a própria
sociedade da época onde se inserem estes autores.
A intenção básica dos críticos ligados a essa tendência da Estética
da Recepção é unir a dialética da produção e a recepção de obras literárias em
uma dada cultura, em um dado tempo e, por continuidades e descontinuidades
históricas, na recepção de obras individuais ou de autores específicos.
As teorias de Jauss, já esboçadas na parte inicial deste capítu-
lo, ligam-se às preocupações sociológico-históricas que justificam suas
proposições de uma nova História da Literatura, fundamentadaa recepção
das obras literárias em seu próprio tempo e através do tempo, por leitores
contemporâneos e de épocas distantes, traçando-se, deste modo, a histó-
ria da recepção de uma obra. Esta história propõe-se a reconstruir a evo-
lução das sensibilidades, das mudanças de gerações ou épocas, das trans-
formações e oscilações do gosto, das ideologias dominantes, do ser his-
tórico por detrás do texto. Não importa chegar a uma visão, supostamente
válida da obra, diante de outras equivocadas ou errôneas, mas sim aceitar
todas as visões de uma obra como expressões legítimas de horizontes
históricos, correspondentes às diversas épocas e leitores, que atualiza-
ram interpretações diversas do mesmo texto ficcional.
Podemos arrolar, entre os críticos que se posicionam nessa linha
teórica, nomes como Hans Ulrich Gumbrecht 46, Peter Uwe Hohendahl47,
Georg Lukács48, Pierre Zima49 entre outros.
O último dos enfoques da Estética da Recepção (Audience-
Oriented Criticism para os americanos) é a categoria hermenêutica. O
criticismo nesta categoria passa da interpretação autoritária para o
31

relativismo, como nos trabalhos do desconstrutivismo inspirados nos es-


tudos de Jacques Derrida.50 Rejeita-se a idéia de intenção autoral e enfatiza-
se a autonomia do texto como objeto poético, ressaltando-se os diversos
aspectos da obra que revelam sua vulnerabilidade a quaisquer afirmações
absolutas sobre o seu significado e significação. A crença no texto como
um objeto pleno, o campo de signos usados para produzir uma significação
ou até mesmo lugar de complexas significações de um sujeito a outro, é o
objeto real da teoria da desconstrução de Derrida. O encadeamento
sintagmático, a análise estilística, o eixo conotativo das metáforas, os ele-
mentos diversos do texto são desmontados e analisados pelo receptor, que
pode realizar várias e diversas leituras do mesmo texto ficcional, na mesma
época ou em épocas distintas.
E. D. Hirsch Jr51 dedica-se à análise hermenêutica preocupando-
se sobremaneira com o problema da interpretação da obra literária, distin-
guindo o significado (meaning) como o sentido da obra em si mesma, ver-
balmente inscrito no texto e a significação (signification), que é o sentido
da obra para os leitores. Para compreender o significado é preciso conhecer
as convenções sociais vigentes na época em que a obra foi escrita, os
pressupostos e preconceitos do autor e as estratégias textuais que revelam
o autor implícito. A significação, por sua vez, repousa na temporalidade
marcada do leitor, na sua visão de mundo e na avaliação do efeito do texto,
presentificado através do ato da leitura.
Harold Bloom, Jonathan Culler, Stanley Fish, Hans Georg
Gadamer, Paul Ricoeur, George Steiner, Tzvetan Todorov52 são outros teóri-
cos dos estudos literários que podem ser arrolados entre os hermenêuticos.
É preciso observar, no entanto, que os seis categorias, ou variedades dos
estudos da Recepção dos textos ficcionais aqui arrolados, não são estan-
ques e, muitas vezes, obras diferentes de um mesmo crítico são enfocadas
em categorias diversas, mesclando-se tendências, teorias e aparatos críti-
cos. O ponto comum a todos é a preocupação com o estudo de obras
literárias, a partir do polo da recepção, da concretização do texto através
da leitura. Verifica-se ainda que os novos estudos críticos tanto europeus
(Estética da Recepção) quanto anglo-americanos (Reader-Response
Criticism ou Audience-Oriented Criticism) revelam uma relação de continui-
dade com as gerações precedentes dos estudos literários, enfatizando a
análise do processo da leitura em suas condições pessoais e históricas, em
sua variabilidade e seus valores intrínsecos.
32

1.2 - O espaço do leitor: os vazios do texto

“As estruturas centrais de indeterminação no texto são


seus vazios (Leerstellen) e suas negações. Elas são as
condições para a comunicação, pois acionam a interação
entre o texto e o leitor e até certo nível a regulam.” 53

O ato da leitura coloca lado a lado dois protagonistas que se


defrontam: o texto e o leitor. De um lado temos o texto trazendo o mundo de
valores e o horizonte de expectativas do autor, implícito nas estratégias
textuais, inserido no contexto sócio-cultural, com um repertório enriqueci-
do por intertextos, referências, ideologias que se organizam numa estrutura
de comunicação. Do outro lado o leitor, indiscreto, questionador, procu-
rando por respostas. No primeiro momento tendo para auxiliá-lo a sua intui-
ção, mas logo a seguir, utilizando-se da investigação e da reflexão que lhe
permitem o adentramento da investigação, a compreensão das tensões inte-
riores, que interagem na complexa organização textual. De início, uma sen-
sação de estranhamento, uma assimetria entre o texto e o leitor, que embora
não seja determinada de antemão, vai lhe permitir múltiplas possibilidades
de compreensão.
É verdade que o leitor nunca poderá retirar do texto a certeza
explícita de que a sua interpretação, ou a sua compreensão, seja a mais
correta ou verdadeira. A impossibilidade da experiência alheia faz do texto
uma experiência plural que, embora possua complexos de controle em seu
sistema de combinações, precisa reservar um lugar, dentro desse mesmo
sistema, para o leitor, a quem cabe atualizar a mensagem ficcional. Este
lugar é dado pelos vazios (Leerstellen) que se oferecem para a ocupação
pelo receptor. Configura-se, assim, a assimetria fundamental entre o texto e
o leitor, possibilitando a comunicação no processo da leitura. É verdade
que essa comunicação só terá êxito mediante a mobilização das representa-
ções projetivas do leitor, como esclarece Iser:

À medida que os vazios indicam uma relação potencial,


liberam o espaço das posições denotadas pelo texto para
os atos de projeção (Vorstellungsakte) do leitor. Assim,
quando tal relação se realiza, os vazios desaparecem.54

O texto é, portanto, pura virtualidade, uma vez que tanto a sua


constituição, como a sua presentificação só podem ocorrer em uma consci-
ência, estabelecendo-se os polos do emissor e do receptor, sempre presen-
tes em qualquer ato de comunicação. O texto de ficção deve ser considera-
do uma comunicação e o ato da leitura uma relação dialógica, onde se
33

configura uma dialética baseada na tensão e na argumentação. O fracasso


na comunicação e no diálogo é uma possibilidade que não pode ser descar-
tada, e, sendo assim, é preciso que texto e leitor atinjam a convergência, a
fusão de horizontes, possibilitando a configuração de uma situação comum
que facilite a constituição de sentido do texto.
Iser afirma, a partir da teoria de interação, que a relação interativa
deriva da contingência dos planos de conduta, pois é impossível vivenciar
a experiência alheia. O equilíbrio torna-se possível com o preenchimento
dos vazios pelas projeções do leitor e a interação fracassa quando as proje-
ções do leitor se impõem, independentemente do texto. Tomando por base
a teoria da interação exposta por Edward E. Jones e Harol B. Gerald em sua
obra Foundations of social psychology55, Iser arrola quatro tipos de con-
tingência: a pseudocontingência: os parceiros se conhecem tão bem que
ocorre o desaparecimento da contingência; a contigência assimétrica: um
parceiro renuncia ao seu plano de conduta e segue o outro sem resistência;
a contigência reativa: o parceiro reage sempre ao plano de conduta do
outro, estabelecendo reações de momento - domínio da contingência; a
contingência recíproca: um parceiro enriquece o outro, embora haja, apa-
rentemente, uma hostilidade mútua.
A contingência do texto ficcional coloca em abalo a interação
texto-leitor. No entanto, é também ela própria que assegura o sucesso
desta reação, pela possibilidade que abre de uma situação comum a um
(Texto) e outro (Leitor), a “fusão de horizontes”. O texto de ficção, por
sua própria contingência (eventualidade, imprecisão), está fora de toda
situação normativa, dificultando a constituição imediata de sentido, mas
solicitando a cooperação do leitor, que se vê diante de uma variedade de
interpretações.
A contingência do texto ficcional confirma a diversos leitores
uma informação diferente e, a um mesmo leitor a possibilidade de diferentes
enfoques no curso de uma leitura ou releitura. Decorre daí o caráter do texto
como organismo vivo, que se configura como inventário de estímulos
(significantes), aos quais responde o leitor com as suas disposições repre-
sentativas, estabelecendo-se o circuito do processo de leitura.
A leitura define-se como um processo dinâmico relacional, que
possibilita diversos acessos ao texto, colocado sempre em uma nova pers-
pectiva e presentificando uma configuração, um modelo organizado que é a
situação global do texto. Este se constitui, ao mesmo tempo, como uma
unidade e como uma multiplicidade: a unidade do “todo organizado” e a
multiplicidade das variáveis que são os diferentes reflexos das relações do
leitor, ocupando os “brancos”, os vazios do texto. Em suma, a leitura é o
34

desdobramento do texto sobre o modelo de um processo de realização,


determinando o real como “aquilo que ele se torna” no decurso da leitura. A
relação texto/leitor - CIRCUITO DA LEITURA - desdobra-se enquanto pro-
cesso de constantes realizações de significados, a cada vez produzidos e
modificados pelo próprio leitor.
A atividade básica do leitor reside pois na constituição de sen-
tido, estimulada pelo texto, que advém da conexão dos seus elementos
constitutivos, das articulações e da necessidade de uma combinação, res-
ponsável pela coesão do texto, através do preenchimento de seus vazios, e
de seus brancos (“não-dito” para Umberto Eco)56
Os vazios quebram a conectabilidade do discurso ficcional, si-
nalizando, tanto a ausência de conexão, quanto as expectativas que decor-
rem do uso cotidiano da linguagem, onde a conectabilidade é pragmatica-
mente regulada. Elementos que providenciam a interrupção desta conexão,
os vazios tornam-se o critério de distinção entre o uso da linguagem ficcional
em oposição à linguagem cotidiana, uma vez que aquilo que nesta é sempre
dado, naquela há de ser primeiramente produzido.
Nos textos referenciais (pragmáticos) a multiplicidade de signifi-
cações possíveis é constantemente reduzida, através das conexões dos
segmentos textuais, para que se garanta a recepção de um objeto determi-
nado (objeto real), enquanto que, na obra de arte (objeto intencional), a
conectabilidade interrompida pelos vazios torna-se variada, permitindo um
número crescente de possibilidades, exigindo decisão seletiva do leitor na
combinação de seus esquemas e segmentos estruturais. Os vazios não
estão apenas na construção do sentido, mas aparecem também nas estraté-
gias do repertório: narração fragmentada, multiplicidade de narradores,
focalização múltipla, cortes temporais, intertextualidade, pluridiscursividade,
dialogismo, entre outras.
Os vazios quebram ainda a “good continuation”57 (continua-
ção desejável) provocando o reforço da atividade de composição do
leitor, que deve combinar esquemas opositivos, contrastivos,
contrafactuais, encaixados ou segmentados, muitas vezes contra a ex-
pectativa aguardada. É preciso recorrer à sua atividade imaginativa para
estabelecer a coerência significativa do texto. A funcionalidade dos
vazios do texto é mais restrita, por exemplo, nos romances de tese, cujo
discurso ideológico objetiva uma leitura mais direcionada, e onde o es-
paço do leitor não pode ser tão amplo que comprometa o engajamento
desejado ou a própria tese proposta. Por outro lado, os vazios são co-
mercialmente explorados nas estórias seriadas, nos folhetins que criam
suspense pela utilização do “não-dito”, “dos brancos” - subentendi-
35

dos, insinuações, quebra de continuidade e outros recursos. Nos textos


artísticos, nos romances onde predomina a literariedade, os vazios são
tematizados em diálogos interrompidos, em fragmentação sintagmática,
em segmentação temporal. O jogo da enunciação (ato de narrar) e do
enunciado (diesese, a história contada) configura um esboço de uma
motivação implícita, desconhecida até do próprio personagem e que
deve, muitas vezes, ser descoberta pelo leitor, antes ou mesmo junta-
mente com os actantes da ação ficcional.
A principal propriedade estrutural do vazio reside no fato de, a
partir das relações interrompidas dos segmentos estruturais do texto, pos-
sibilitar a organização de um campo, como projeções recíprocas desses
segmentos, dados pelas perspectivas do tempo. Durante o desenrolar tem-
poral da leitura, o ponto de vista do receptor desloca-se entre as perspec-
tivas e assim, forçosamente, um segmento até então temático recua a posi-
ção de horizonte, condicionando a atribuição de outras perspectivas a no-
vos segmentos temáticos.
Melhor explicando, pode-se afirmar que a mudança de lugar do
vazio é um pressuposto básico para que as operações ocorram dentro do
campo de referência. O agrupamento de segmentos se concretiza ao obrigar
que o ponto de vista do leitor se desloque entre eles. O segmento, focaliza-
do pelo ponto de vista do leitor torna-se temático. Transformando-se uma
posição em tema, as outras que não são tematizadas não desparecem mas
antes se deslocam para uma posição marginal do campo, adquirindo um
caráter de horizonte. Contitui-se deste modo o horizonte de expectativas do
leitor, que é projetado pelo texto através de suas estruturas de apelo. Quan-
to mais preso a uma postura ideológica encontre-se o receptor, menores
condições terá ele de aceitar a estrutura básica de compreensão de tema e
horizonte, que controla e possibilita a interação texto-leitor. É o leitor implí-
cito, ocupando seu lugar na cadeia de comunicação constituida pela tríade
emissor-mensagem-receptor.
Uma teoria semelhante à do leitor implícito de Iser58 é a do leitor-
modelo de Umberto Eco59. Sobre o conceito de leitor-modelo, Eco acredita
que o texto estrategiza seu próprio destinatário, como condição básica, não
apenas da própria capacidade comunicativa, mas inclusive, da própria
potencialidade significativa. Nesta mesma linha sugere a figura do autor-
modelo. Este se configura como uma hipótese interpretativa, que vai se
desenhando para o leitor nas estratégias e repertório textuais, numa leitura
do “não-dito”, dos intervalos do texto, que permitem a compreensão da
cosmovisão autoral. A concepção do autor-modelo de Eco aproxima-se da
teoria do autor implícito de Waine Booth, que já mencionamos anteriormen-
36

te, e que é também decorrente do repertório, estratégias e horizonte de


expectativas, constituintes estruturais do texto ficcional.

1.3 - A organização do repertório dos textos ficcionais

Porque, se ao princípio era o Verbo, no fim é o Texto. E só


no texto poderemos encontrar os sentidos (e, com eles, o
recomeço de tudo)60
A convergência texto-leitor só se efetua no fundo de uma situa-
ção. Na impossibilidade de uma situação face a face das relações
interpessoais (relações diádicas) é preciso que o próprio texto crie essa
situação, para que se instaure o processo de comunicação, enfim, o que
está presente de uma só vez no uso comum do ato da fala, precisa ser
construído pelo texto narrativo. Os textos de ficção não podem se realizar
apoiando-se em processos adquiridos e convenções determinadas, é preci-
so encontrar processos e convenções que emanem do próprio texto, cons-
tituindo um repertório e criando uma situação contextual que venha a ga-
rantir a eficácia da comunicação.
O sentido do texto constitui-se no que ele mesmo oferece para
ler - tanto no que é dito, como no que não é dito. São os vazios, como já
vimos no ítem anterior, responsáveis pela assimetria fundamental entre o
texto e o leitor, que dão origem às múltiplas possibilidades de comunicação
no processo da leitura.
Relacionando-se os postulados de Austin, sobre o uso comum
da fala61, ao ato da leitura, podemos organizar os elementos do texto em:
repertório: convenções indispensáveis para o estabelecimento de uma
situação que contemple as convenções comuns ao emissor e ao receptor;
estratégias: processos aceitos pelo leitor e criados pela potencialidade do
texto; realização: participação do leitor. Partindo do pressuposto que, ao se
dedicar à leitura de uma obra o indivíduo demonstre sua disposição em
participar do processo, cabe ao texto organizar os dois primeiros.
O repertório constitui-se de um conjunto de convenções, tradi-
ções, normas históricas e sociais - o húmus sócio-cultural de onde o texto é
proveniente - que, formando o quadro ou cercadura do texto, reaparece,
não com o seu sentido primeiro, mas sim valendo como um polo de
interações. É também, como ressaltam os estruturalistas praguenses, a rea-
lidade extra-estética, o componente onde a imanência do texto é transgredida.
Os elementos do repertório têm um estatuto plural no texto,
37

são uma lembrança do fundo sobre o qual se apoiam. Não se limitam


exclusivamente nem pela origem, nem pelo seu emprego, mas se abrem
através de sua capacidade relacional. É preciso conotar não somente
novo/velho, mas, principalmente, novo/repetição. É indispensável não
somente reconhecer o familiar, mas principalmente perceber o novo uso
que dele se faz. Resulta dessa percepção uma figura de consciência e é
precisamente aí que a linguagem não referencial e não pragmática da
literatura encontra a sua função.
Cada época possui seus próprios sistemas de sentido que orga-
nizam a cercadura, o quadro de referências do texto, segundo decisões
seletivas, e sua pertinência nunca poderia englobar a totalidade do mundo.
A aparente simplificação e imobilização, que a cercadura dos sistemas pro-
picia, advêm de aspectos perceptivos, interpretações da realidade, valores,
isto é, de formas determinadas de elaboração da experiência configurando-
se o contexto situacional do autor, compondo o repertório do texto e
modelizando a realidade, num sistema de escolhas seletivas, onde o dito e o
não dito assumem igual importância.
A ficção permite dizer alguma coisa que os sistemas dominantes
de sentido colocam entre parênteses, os limites de uma época, o que é
ignorado ou contestado. Re-estabelece-se, portanto, através da literatura a
coerência global da realidade, uma vez que a ficção não se opõe à realidade,
mas antes a comunica.
São componentes centrais do repertório textual as normas
selecionadas de realidades extra-textuais e as alusões literárias,
enfocadas sob duas perspectivas: algumas alusões têm sua origem nos
sistemas de sentido particulares de cada época, e outras nas soluções
ficcionais dadas por textos anteriores. A alusão a uma literatura passada
abre um horizonte conhecido, mas não se esgota nesta evocação. De-
corre daí o papel significatico da intertextualidade, onde o velho é visto
como novo, num contexto que o modifica. Presentifica-se, através da
“penhora”, o elemento comum que viabiliza uma segunda leitura
conotativa e paradigmática, uma variação representativa, que configura
o mundo sobre o qual o cotidiano esboçado na obra vai se constituir em
uma experiência estética do leitor.
É preciso lembrar, ainda, que o romance cria um modelo ideológi-
co-verbal do mundo, pressupondo um grupo social diferenciado, onde se
inserem as personagens de um mundo possível ficcional, em interação in-
tensa e essencial com outros grupos sociais, que compõem a sociedade
representada na narrativa. É a desintegração desse grupo, antes estável e
uno, e agora privado de seu equilíbrio interno e de sua auto-suficiência, que
38

viabiliza um terreno socialmente produtivo para o romance, configuran-


do-se um processo de transformação, num campo de decorrências plu-
rais e simultâneas.
O repertório dá conta dos diversos horizontes de expectativa,
gerados pelos grupos sociais que interagem na narrativa ficcional. São ho-
rizontes do passado interferindo e compondo um horizonte do presente.
São ideologias que se definem por oposições, obrigando o leitor a aceitá-
las ou negá-las, criando sua própria visão dos fatos e personagens da
diegese ficcional, presentificando-se o texto através da comunicação dinâ-
mica texto/receptor.

1.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia

As obras literárias são feitas de outras obras literárias. São sig-


nos calcados sobre signos, uma vez que se caracterizam pela utilização
funcional e estética de um tecido de citações, textos feitos e refeitos em re-
leituras. O contexto socio-ideológico e cultural é também mimetizado pelo
romance, através das estratégias estruturais e da auto-reflexibilidade de um
discurso voltado sobre si mesmo. A literatura se faz diálogo entre textos,
entre texto e contexto, entre texto e leitor. Os textos literários dizem sempre
mais do que literatura, dizem também da sociedade, das ideologias, da
história, da psicologia mas com toda a intensidade, que só é possível na
modelização de um mundo ficcional.
A leitura de uma obra literária envolve, a partir de certo nível de
interpretação, uma re-leitura. Quem lê, lê na obra aquilo que os outros já leram.
Na verdade, mesmo sem ter lido um clássico, Homero por exemplo, nós já o
lemos em outras obras que revelam leituras de Homero. O dialogismo e a
intertextualidade possibilitam essa circulação de significados e significações,
estabelecendo inter-relações entre o que está previsto no texto e o que advém
da recepção, configurada pelas projeções e representações do leitor.
O discurso dialógico - dialogismo - bastante estudado por
Bakhtin62, estabelece uma relação direta entre o texto e o leitor, uma vez
que pressupõe a antecipação do discurso de um outro no próprio discur-
so do narrador, como se na própria fala deste estivesse encravada a répli-
ca do leitor. O interlocutor necessário, o receptor da mensagem ficcional,
o polo que se fecha e permite a completude do círculo de comunicação,
está sempre presente na figura do leitor, parceiro do diálogo concretizado
pelo ato de ler. O leitor tornado narratário, é uma das personagens da
diegese ficcional, é o tu, receptor da mensagem, previsto pelas próprias
estratégias textuais.
39

Num sentido mais amplo é possível estender o diálogo entre o


sujeito da escrita e o destinatário, para um diálogo com textos outros, cons-
tituindo-se três elementos dialogantes: autor implícito no texto e leitor vir-
tual58, que se dispõem em dois eixos perpendiculares: da horizontalidade:
diálogo do sujeito da escrita com o destinatário virtual e da verticalidade *:
diálogo do texto com outros textos. Ampliando ainda mais, poder-se-ia
inserir a leitura crítica, que configura uma metalinguagem, em dois eixos que
se sobrepõem aos dois primeiros: o horizontal - “diálogo do crítico com o
seu leitor virtual - e o vertical - diálogo do texto crítico com outros textos
críticos. A partir dessas duas posturas básicas torna-se viável efetuar uma
sobreposição com os seus consequentes cruzamentos transversais: “diálo-
go do crítico com o leitor do autor (considerando sempre esse leitor como
um elemento estrutural do enunciado poético), o diálogo do crítico com o
leitor actual do autor (o que ele não podia prever, o que a continuação da
história e as mudanças da cultura lhe deram, por vezes a séculos de distân-
cia), o diálogo do texto crítico com outros textos poéticos contemporâneos,
anteriores ou posteriores aquele sobre o qual concentra a atenção”.59
Apesar de se configurar como uma complexa rede de interações,
o “dialogismo metalinguistico” não pressupõe um enriquecimento da
intertextualidade. As múltiplas relações apontadas acima preveem a manu-
tenção das fronteiras discursiva e textual, ou seja a manutenção da repre-
sentação, e, a intertextualidade, no seu sentido básico, envolve a abolição
das fronteiras pela força transgressora da escrita.
Na verdade, a intertextualidade realiza-se no interior do texto
ficcional, pelo aproveitamento, transformação e incorporação de alusões,
montagens, citações, referências, imitações, paródias, reproduções de ou-
tros textos, inseridos no próprio discurso, que revelam o “velho” de um
novo ângulo, ou sob uma nova perspectiva, conservando-se um sentido de
“penhora” que perdura no texto. A intertextualidade não somente condiciona
a utilização do código, como se destaca, explicitamente, no próprio nível de
conteúdo da obra.
A compreensão da intertextualidade, como essencialmente liga-
da à poeticidade e à evolução literária, é relativamente nova. Não se trata de
pesquisar influências e fontes, que pretendam explicar a obra pela pesqui-
sa, ainda que erudita, da biografia do autor; nem mesmo leituras embasadas
em visões críticas da história, psicanálise ou sociologia. É fundamental
verificar a funcionalidade e a incorporação dos intertextos na produção de
uma obra única, definindo-se a narrativa literária de signos, fundados nas
inter-relações de textos artísticos, transpostos uns para os outros. 60
A pluridiscursividade que Bakhtin 61 nomeia como
40

plurilinguismo (plurilinguisme) decorre da necessidade de se materializa-


rem discursos ideológicos originais, de diferentes personagens, abrangen-
do graus diversos de independência literária e semântica, podendo refratar
as intenções do autor e servindo-lhe, até certo ponto, de segunda lingua-
gem. Assim as falas das personagens, abrangendo diversos graus de inde-
pendência literária, semântica e com uma perspectiva própria, constituem
falas de outros na linguagem do narrador, estratificando-se em gêneros,
profissões, sociedade e, num sentido mais restrito, visões de mundo, indi-
vidualidades e orientações. A pluridiscursividade revela-se nos dialetos
caracterizadores dos diversos locutores da diegese ficcional, penetrando
no romance, ordenando-se aí de um modo especial e constituindo um siste-
ma literário original, que rege o tema intencional do autor.
A multiformidade social e plurilinguística, que o prosador utiliza
no seu discurso, é o ponto de convergência de vozes diversas, inclusive a
sua, para a qual as outras vozes criam um fundo, sem o qual a prosa não teria
“efeito” literário. A pluridiscursividade, incorporando componentes históri-
co-sociais do contexto no discurso ficcional, configura a interpretação de
uma pluralidade de ideologias assumidas pelos personagens do romance.
Instaura-se, assim, um dinamismo e interação constantes entre as vozes do
romance, que se confrontam na discussão de problemas, revelando a impor-
tância do discurso plural na organização da polifonia do romance.
O sistema ideológico do mundo real penetra na construção
narrativa, através do discurso literário, um sistema modelizante secun-
dário, caracterizado pelo uso da pluridiscursividade, do dialogismo, da
intertextualidade, da carnavalização introduzindo, deste modo, uma vi-
são plural e polifônica da realidade circundante que se presentifica na
diegese ficcional.
A polifonia romanesca constrói-se nas complexas redes de rela-
ções dialógicas, que se configuram entre todos os elementos estruturais do
romance: nas réplicas entre diálogos aparentes e diálogos interiores; nas
vozes distintas dos personagens com suas idéias, reflexões e atos, com
diferentes nuances e tonalidades; nas montagens dos segmentos diegéticos,
providenciando uma abrangência espácio/temporal, onde se concretizam
múltiplas rupturas e crises.
A carnavalização do discurso ficcional revela-se na
neutralização de fronteiras, no mundo às avessas, manifestando-se na
narrativa irônico-humorística, onde se desvanecem as fronteiras sociais e
as linguagens. O dialogismo e a pluridiscursividade propiciam a interação
de vozes plurais e a eclosão de discursos específicos, como o autobiográ-
fico, o dramático e o epistolar, numa organização peculiar, que se faz diá-
41

logo entre o absoluto e o relativo, entre a verdade e a mentira, entre leitu-


ras sobrepostas de obras, configurando-se uma estrutura de apelo, atra-
vés da contingência ficcional.
A fragmentação diegética, a segmentação temporal, as ideologi-
as conflitantes e as digressões meta-históricas absorvem atmosferas soci-
ais e envolvem o leitor, o tu a quem o discurso é dirigido, numa comunica-
ção dinâmica e ativa.
Estabelecem-se correlações entre os sistemas expressivos e os
sistemas de conteúdo do texto, que vão compor o estatuto semiótico e
ideológico do romance. Ativam-se, simultaneamente, a representação, cen-
trada na estrutura imanente da obra, bem como o efeito, reflexo dos atos de
compreensão fundados no leitor, presentificando-se os sistemas de códi-
gos que atualizam a pluralidade inerente à obra literária.
Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia
definem uma nova visão do romance, em toda a sua amplitude, frisando-
se a importância do papel catalisador do leitor na concretização da mensa-
gem ficcional.
Na junção das práticas discursivas, que têm organizado a narra-
tiva de nossos dias, acentua-se o caráter polifônico, multifacetado e auto-
referencial do romance contemporâneo, visto e analisado sob o signo da
teoria do texto, porque “se ao princípio era Verbo, no fim é o Texto. E só no
texto poderemos encontrar os sentidos (e com eles, o recomeço de tudo)”

Notas
5
Susan R. Suleiman - "Introduction : Varieties of Audience - Oriental
Criticism"- IN - The Reader in the text. Princenton: Princenton Universaty
Press, 1980, pp. 314.
6
Hans Robert Jauss - "O prazer estético e as experiências fundamentais da
Poiesis, Aisthesis e Hatharsis "- IN - A literatura e o leitor - Seleção, tradu-
ção. introdução de Luiz Costa Lima Rio: Paz e Terra, 1979, pp. 63 a 82.
7
V. Chkloushi - "A arte como procedimento"- IN - Teoria da Literatura.
Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1978, pp. 39 a 56.
8
Hans Robert Jaus - "A Estética da Recepção: Colocações Gerais"- IN - A
Literatura e o leitor. Seleção, tradução e introdução por Luiz Costa Lima
Rio: Paz e Terra, 1979, pp. 47 a 48
9
Hans Gadamer fala, em fusão de horizontes históricos na mesma linha de
Jaussem sua obra Wahrheit und Method ( Verdade e Método) 1960 e E.
42

Hursserl em Erfahreit und Urteil (Experiência e Julgamento) 1948 introduz a


diferença entre horizonte interno e externo (fenomenologistas)
10
E. Benveniste - Problemas de Linguística Geral. SP: Nacional 1976 - anali-
sando o texto em sua natureza comunicacional, fala em dois movimentos de
decodificação do discurso linguístico: de um lado a horizontalidade, direta-
mente ligada ao sujeito, ponte entre o e4missor e o receptor da mensagem e, de
outro lado, a verticalidade onde a importância primordial reside na situação,
isto é, na contextualização da mensagem em um dado espaço e numa deter-
minada situação.
11
Esta noção também é compartilhada por Paul Ricoeur La Metaphore vive
(hermenêutica negativa) e Derrida - Literatura et la difference (teoria da
descontrução textral) e é especialmente aceita pelos modernos teóricos
12
Wolfgang Iser - “Der Leservorgang” (O Processo da Leitura) e “Die
Wirklichkeit der Fiktion” (A Realidade da ficção) IN R.Warning (organiz.) -
Rezeptionaesthetic, Teorie und Praxis. UTB - 303. Muenchen: 1975, pp. 253-
256 e pp. 277-342.
e ainda:
Wolfgang Iser, “Théorie de la Reception en Allemagne”. Poétique. Paris:
Seuil (39): 275, set. 1979.
Outras obras do autor: vide Bibliografia Final.
13
Karlheinz Stierle - “Que significa a recepção dos textos ficcionais” - IN -
Vários autores - A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção. Sel.
trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio: Paz e Terra, 1979. pp. 133-188.
14
Denominação adotada por Susan Suleiman e Inge Crosman na coletânea
de ensaios de diversos autores americanos e europeus, sobre a Estética da
Recepção, organizado e editado por elas, e intitulado The Reader in the text
- Essays on Audience an Interpretation. Edited by Susan R Suleiman and
Inge Crosman. Princeton: Princeton University Press, 1980.
15
Idem, Ibidem - pp. 3-45.
16
Chicago: Univer. of Chicago Press, 1961
17
New York: Oxford Univ. Press, 1962
18
New York: St., Martin’s Press, 1967
19
Figures I, II, III. Paris: Seuil, 1966, 1969, 1972.
20
Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism.
New York: Oxford Univer. Press, 1971.
21
Surprised by sin: The Reader in Paradise Lost. New York: St. Martin’s
Press, 1967.
22
“Truth in Fiction: a Reexamination of Audiences” IN Critical Inquire 4,
1977.
23
La Métaphore Vive. Paris: Seuil, 1975.
24
“The origin of Genres”. IN New Literary History 6, 1975.
43

25
“Elements de Semiologie” - Communications 4, 1964
- “Introduction à l’analyse structurale des récits” - Communications 8, 1966.
- S/Z - Paris: Seuil, 1970.
26
Esthétique e Théorie du Roman. Paris: Gallimard, 1978.
27
“Elements de Semiologie” - Communications, 4, 1964.
- “Introdution à l´analyse structurale des récits” - Communications 8, 1966
- S/Z - Paris: Ed. Seuil, 1970.
- “De l´oeuvre au texte” - Revue d´Esthétique 3, 1971.
28
“Introdution à l´étude du narrataire” Poétique 14, 1973.
29
Ithaca: Cornell Univ. Press, 1978.
30
“Presupposition and intertextuality” - M.L.N. 91 - 1976.
31
Semiotics of Poetry. Bloomington: Indiana Univers. Press, 1978.
32
“A produtividade dita texto”. IN Vários autores - Literatura e Semiologia.
trad. Célia Neves Dourado. Petrópolis: Vozes, 1972.
- Introdução à Semanálise. trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
33
Susan R. Suleiman e Inge Crosman arrolam, na “Introdução”
(“Introduction”) e na Bibliografia Comentada (“Annoted Bibliography”),
inúmeros críticos e obras que se destacam, não só como precursores dos
estudos sob a leitura do texto literário, mas muitas vezes, começando pelo
estruturalismo e semiótica prosseguem seus estudos em direção à Estética
da Recepção ou “Audience-Oriented Criticism”, como aparece na obra The
Reader in the Text - Essays on Audience and Interpretation. Princeton:
Princeton University Press, 1980. Selecionamos, dentre eles, os que já tive-
mos oportunidade de analisar como:
Mieke Bal - Narratologie. Paris: Klincksiek, 1977.
Emile Benveniste - Problemas de Linguística Geral. (1ª ed. francesa), 1966
Claude Brémmond - “La Logique des possibles narratifs. Communications
8, 1966.
Umberto Eco - A theory of semiotics. Blomington: Indian Univ. Press, 1976.
Stanley Fish - “Literature in the Reader: Affective Stylistics” - New Literary
History - 2. 1970
Northrop Frye - Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
Boris Gasparov - “The Narrative Text as an Act of Communication” - New
Literary History - 9. 1978.
Gerard Genette: Figures I, II, III. Paris: Seuil, 1966, 1969, 1972.
A. J. Greimas - Sémantique Structurale. Paris: Larousse, 1966.
Kate Hamburger - The Logic of Literature. Bloomingto: Indiana Univ. Press,
1973
Philippe Hamon - “Por um estatuto semiológico da personagem” - (Paris,
1974) “Qu´est-ce qu´une description?” Revue de théorie et d´analyse
44

litteraires - n.3, 1975. p.466-485.


Romam Jacobson - “Questions de Poétique” - 1973. Linguística e Comuni-
cação. São Paulo: Cultrix, 1963
Iuri Lotman - A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978
Tzvetan Todorov - Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil,
1970. Littérature et signification. Paris: Larousse, 1967.
Boris Uspensky - A Poetics of Composition. Los Angeles: California Univ.
Press, 1973
Harald Weinrich - Literatur fur Leser. Stuttgart: Kohlhammer, 1971.
34
Erfahrung und Urteil. Hamburg: Claasen. 1948.
35
A obra de arte literária. trad. de Albin E. Beau, Maria da Conceição Puga
e João F. Barreto. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1973. (O original Das
Literarische Kunstwerk é de 1967).
*
Sua grande contribuição advém do fato de que a idéia de concretização
rompe com uma visão tradicional da arte como mera representação. Chama a
atenção para a estrutura de recepção necessária em toda a obra literária, embo-
ra não se preocupe em relacionar este fato como um ato de comunicação.
36
Wolfgang Iser - “Theorie de la reception em Allemagne” Poétique.
Paris:Seuil (39): 275, set. (1979)
- The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response. Baltimore: Johns
Hopkins Univ. Press, 1978. (Do original alemão Der Akt des Lesens: Theorie
Aesthetischer Wirkung - 1976).
- Outras obras de Iser estão arroladas na Bibliografia Final.
37
Karlheinz Stierle - “Que siginifica a recepção dos textos ficcionais?” IN: A
Literatura e o Leitor. selec. trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio: Paz e
Terra, 1979, pp. 133-188. (p. 171).
38
The Dynamics of Literary Response. N.York: Oxford Univ. Press, 1968.
- “Literary Interpretation and Three Phases of Psychoanalysis”. Critical
Inquire 3. 1976.
39
Literature and Self - Awareness: Critical Questions and Emotional
Responses. N.York: Harper and Row, 1977.
- Subjective Criticism. Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1978.
40
“Psychological Processes in the Reading of Fiction”. British Journal of
Aesthetics 2. 1962.
41
Fiction and the Unconscious. Boston: Beacon Press, 1957.
42
“Criticism and Feeling”. College Englisch 39 (1977). p.169-178.
43
“Seminaire sur La lettre Volée. IN: Ecrits I. Paris: Seuil, 1966.
44
“Devant le Texte”. Etudes Littéraires 9, 1976.
45
Pour une sociologie du roman. Rev. ed. Paris: Gallimard, 1965.
- Structures mentales e creation culturelle. Paris: Editions Anthropos, 1970.
46
“Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica e métodos de uma
45

ciência da literatura fundada na teoria da ação”. IN: A Literatura e o Leitor.


selec. trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio: Paz e Terra, 1979.
47
“Introduction to Reception Aesthetics”. New German Critic 4, nº 10 (1977).
48
Teoria do Romance. Lisboa: Editorial Presença. s/d. (original alemão Die
Theorie des Romans) 1971.
49
Pour une sociologie du texte littéraire. Paris: Union Generale d’Editions,
1978.
50
L’Ecriture et la différence. Paris: Seuil, 1967.
- “Le Facteur de la vérité”. Poétique nº 21. 1975.
51
The Aims of Interpretation. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1976.
- Validity in Interpretation. New Haven: Yale Univers. Press, 1967.
52
As obras que caracterizam o enfoque hermenêutico dos autores citados
são:
- Harold Bloom - Kabbalah and Criticism. New York: Seaburg Press, 1975.
_____________ - “Poetic Crossing, Rhetoric and Psychology”. Georgia
Review 30. 1976.
- Jonathan Culler - “Beyond Interpretation: The Prospects of Contemporay
Criticism”. Comparative Literature 28. 1976.
- Stanley Fish - “Interpreting the Variorum” - Critical Inquire 2. 1976.
- Hans Georg Gadamer - Wahrheit und Methode. Iubingen: Mohr, 1960.
- Paul Ricouer - Le Conflit des interprétations: Essays in Hermeneutics.
Paris, Seuil, 1969.
- George Steiner - After Babel - Cpt V - “The Hermeneutic Motion” - New
York: Oxford Univ. Press, 1975.
- Izvetan Todorov - Symbolisme and Interpretation. Paris: Seuil, 1978.
53
Wolfgang Iser - “A interação do Texto e o Leitor”. IN: A Literatura e o
Leitor. sel. trad. e introd. por Luiz Costa Lima. Rio: Paz e Terra, 1979.
54
Wolfgang Iser - “A interação do texto com o leitor”. IN: A Literatura e o
Leitor. op. cit.
55
Apud “A interação do texto com o leitor”. IN: A Literatura e o Leitor.
op.cit. p. 106
56
Leitura do texto literário (Leitor IN Fabula). Lisboa: Ed. Presença, 1979.
*
De acordo com a tradição husserliana, Roman Ingarden distingue: os obje-
tos reais - passíveis de determinação completa -; objetos ideais - devem ser
constituídos uma vez que são autônomos; objetos intencionais - objetos de
arte não se submetem a uma determinação exaustiva.
57
Conceito da Psicologia da Percepção que “indica a ligação consistente de
dados da percepção em uma forma de percepção, assim como a ligação das
formas de percepção entre si.” W. ISER - “A interação do texto com o leitor”.
In: A literatura e o leitor. op.cit., p. 109.
*
Em Os maias, de Eça de Queiroz, por exemplo, o leitor descobre, juntamento
46

com as personagens, a ocorrência do incesto que atinge os dois irmãos -


Carlos Eduardo e M. Eduarda - e tem como consequência a dispersão total
da família.
58
The implied reader. Baltimore and Lonfon: The Johns Hopkins University
Press. 1974 (Do original Der Implizite Leser. Munich: Wilhelm Fink, 1972)
59
Leitura do Texto Literário. (Lector in Fabula). Lisboa: Editorial Presença,
1979.
60
Maria Alzira Seixo - A palavra do romance. Lisboa: Livros Horizonte,
1986, p. 20.
61
Segundo Austin são três os postulados que possibilitam o sucesso do ato
da fala: a enunciação performativa que pressupõe convenções comuns ao
locutor e ao destinatário; o estabelecimento de processos aceitos por um e
outro; a disposição das pessoas envolvidas em tomar parte da ação
linguística: “apud” Wolfgang Iser - “Théorie de la Reception en Allemagne”.
IN: Poétique nº 39, set, 1979.
Para ampliação desse assunto ler: J. L. Austin - How to Do Things with
Words. New York: Oxford University Press, 1962.
62
Mickhael Bakhtin - Questões de literatura e de estética (A teoria do
romance). São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC, 1988.
63
Júlia Kristeva, “Sémiotiké”. Paris: Seuil, 1969.
Apud Leyla Perrone Moises. A Intertextualidade Crítica. IN: Poétique nº
27. trad. de Clara Crablé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979, p.215-216.
64
Idem, Ibidem, p. 216.
65
Um desenvolvimento mais pormenorizado da intertextualidade, implícita e
explícita, pode ser encontrado em; Laurent Jenny - “A estratégia da forma”.
Poétique nº 27. trad. Clara Crablé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979, pp. 5-49.
66
Questões de literatura e de estética (A teoria do romance) op.cit. p.119,
136-152.
Na verdade, no Dicionário de Narratologia, (Carlos Reis e Ana Cristina M.
Lopes. Lisboa: Almedina, 1987. pp. 321-323) o termo pluridiscursividade
aparece como a correspondente tradução do “plurilinguisme” da edição
francesa aqui citada. A tradução brasileira, diretamento do russo editada
pela UNESP/Hucitec em 1988, com o título: Questões de Literatura e de
Estética (A Teoria do Romance) opta pelo termo plurilinguismo..
47

O experimentalismo e a construção
do romance no romance, como marcas de contemporaneidade na
ficção portuguesa atual

O romance contemporâneo debate-se com problemas de


remodelação de estrutura que incidem fundamentalmen-
te sobre os mecanismos de representação: a nível da lin-
guagem (articulação sintáctica e ortodoxia semântica),
a nível de construção de um universo (composto por ele-
mentos classicamente determinados) e a nível de uma
mundividência explícita (o sentido que se desprende da
significação, a apreensão de um significado a instituir
como meta ou, pelo menos, sintoma). Gênero narrativo
por excelência, é no plano da organização sequencial
dos constituintes de sentido que os outros níveis provam
o seu maior ou menor grau de adequação a essa consci-
ência da alteração estrutural e a validam.67

O experimentalismo no romance contemporâneo decorre, acima


de tudo, de remodelações estruturais que atingem todos os níveis dos me-
canismos de representação: o discurso dialógico, fragmentado, a
pluridiscursividade, a articulação das linguagens e registros sublinham o
nível da linguagem; por sua vez, a construção de um mundo possível
ficcional, modelizado a partir do mundo real, implica na fragmentação
diegética, na espacialização dos segmentos temporais, nas estratégias tex-
tuais que configurando a emergência de uma coerência interna, no nível do
universo criado pelo próprio romance; e, finalmente, o nível de uma
mundividência explícita apoia-se na construção de sentidos, a partir do ato
da leitura, pela ocupação dos vazios e brancos do texto, pela fusão dos
horizontes de expectativa do emissor e de seu destinatário, decorrente da
interação e participação em processos comuns de significação, contidos no
texto e decodificados pelo leitor, através de suas projeções interpretativas.
Gênero em evolução, ainda sem definições acabadas, o romance
48

participa ativamente das mudanças decorrentes do rápido processo de trans-


formação que caracteriza a sociedade contemporânea, refletindo-a mais pro-
funda e substancialmente que qualquer outro gênero. Antecipou, e ainda
antecipa, a futura evolução de toda a literatura, pelo autoquestionamento
de sua própria construção; pela maior liberdade de linguagem, renovada
por conta do plurilinguismo extra-literário, mimetizado pelos extratos roma-
nescos da língua literária; pelo discurso ambíguo invadido pelo riso, pela
ironia e pela paródia; pelo contato vivo com um presente em processo,
ainda não acabado, que aflora como área de domínio, plenamente assimila-
da, pelo romance de nossos dias.
Assim sendo, os estudos sobre o romance preocupam-se com
os registros e descrições das mais variadas formas romanescas, mas, ne-
nhum dos registros, mesmo considerado como um conjunto de característi-
cas várias, consegue qualquer formulação que sintetize o romance como
um gênero pronto, com um, ou até alguns traços fixos ou invariáveis.
Bakhtin ressalta essa constatação, propondo-se, no entanto, a
estabelecer “particularidades estruturais e fundamentais do mais maleável
dos gêneros” na tentativa de o compreender melhor:
Aponto três dessas particularidades fundamentais que
distinguem o romance de todos os gêneros restantes: 1. A
tridimensão estilística que se realiza nele; 2. A transfor-
mação radical das coordenadas temporais das represen-
tações literárias no romance; 3. Uma nova área de
estruturação da imagem literária no romance, justamen-
te a área de contato máximo com o presente
(contemporaneidade) no seu aspecto inacabado.68
Tendo em mente essas abordagens sobre o romance, acentua-
damente o contemporâneo, torna-se fácil compreender a grande variedade
de textos narrativos, com as mais diversas e até contraditórias característi-
cas, que constituem a produção ficcional portuguesa de nossos dias.

2.1. Perspectiva Panorâmica

Se considerarmos O Delfim (1968) de José Cardoso Pires, como


uma data limite, que marca o fim do neo-realismo ortodoxo - ainda presente
em várias obras de autores diversos - podemos admitir, em Cardoso Pires,
Carlos de Oliveira, no próprio Saramago de Levantado do Chão e outros, o
advento de um segundo neo-realismo mais complexo e sofisticado, com a
reflexão sobre o país, sobre a Revolução dos Cravos (1975), onde o enfoque
49

social mescla-se com a consciência de novos procedimentos formais, den-


tro do gênero romanesco. O Delfim é o romance da construção do relato.
Revela-se a superação de uma certa referencialidade neo-realista, constitu-
indo-se o texto numa pesquisa gradual da verdade, que vai se construindo
com o auxílio do leitor. O que se representa é a busca tortuosa e árdua da
verdade. O narrador apoiado na lição do mestre estabelece a importância da
inserção do sujeito num espaço e tempo, localizados por objetos, envolvi-
do num jogo de interesses e valores, utilizando a memória para produzir um
conhecimento em processo.
Procura-se apreender, através de testemunhas e da reconstrução
dos fatos, a verdade última, que se articula em dois níveis narrativos: o plano
da enunciação e o plano do enunciado, cuja inter-relação vai possibilitar a
construção dessa verdade, gradativamente e diante do próprio leitor, cúmpli-
ce na reconstrução dos eventos que articulam a ação dramática da intriga.
A narrativa encerra-se com a despedida do narrador e de um
companheiro de vigília que é o próprio leitor, tornado narratário, persona-
gem também do texto ficcional. O processo laborioso de pesquisa e “caça”
faz emergir a auto-referencialidade do romance, com a relativização do saber
e da verdade.
Outra vertente do romance atual português, marcada pela rare-
fação do enredo, densamente psicológica, mostrando a fragmentação do
homem, dividido entre a essência e a aparência - que se reflete nas técnicas
do fluxo da consciência, nos monólogos interiores e na concepção
bergsoniana do tempo - enraiza-se no Presencismo de José Régio, Branqui-
nho da Fonseca, com precursores do nível de um Raul Brandão. A Síbila de
Agustina Bessa Luís, publicada já em 1954, apresenta, aliada a um estilo
invulgar e personalíssimo, uma formulação romanesca inovadora, onde o
discurso da narradora integra em si mesmo não só as vozes de inúmeras
personagens, como os acontecimentos que as modelam, construindo uma
perspicaz percepção do mundo sufocante, que marca a circularidade do
tempo e da vida.
O existencialismo de Vergílio Ferreira liga-se também a essa ver-
tente - Aparição (1959) - com os questionamentos básicos do SER, do SER
COM OUTRO e do SER PARA A MORTE, numa organização romancesca
exigente, onde se sobressai a voz polarizada do narrador, concentrando em
si toda a problemática e as visões das outras figuras do romance e inaugu-
rando um tipo de romance que coloca em pauta os valores universais do
homem, em suas indagações angustiadas: - de onde viemos?; quem so-
mos?; que destino temos?.
50

A par dessas vertentes, surgem ainda, entre os mais recentes


autores da ficção portuguesa, romances matizados por determinantes só-
cio-psicológicas, pela influência - as vezes mesmo negada - do “noveau
roman” francês, com multiplicação de intrigas paralelas, coincidentes ou
conflitantes, que sublinham temas e situações, sem a justificativa das
injunções naturalistas. Providenciam antes o alargamento da forma roma-
nesca, com a utilização de diversos registros, como o biográfico, o epistolar,
o histórico, que coexistem, interrogam-se e interagem com o discurso
ficcional do próprio texto.
Tentaremos verificar, em alguns romances e autores escolhidos
como amostragem, as diversas tendências que marcam o romance portugu-
ês contemporâneo, desde as raízes neo-realistas e presencistas, até as abor-
dagens existencialistas e sócio-psicológicas dentre outras, frisando as rup-
turas, fragmentações, polifonia, autoreferencialidade e alteridade que se
fazem presentes, das mais variadas formas, sublinhando o caráter plural e
enriquecedor da ficção lusa atual.
A raiz neo-realista destaca-se na literatura de resistência, que se
coloca contra a repressão e a massificação social. Desloca-se o polo dos
privilegiados para o dos “humilhados e ofendidos”, lançando-se um fecho
de luz sobre as personagens e seus conflitos, num mundo marcado por
injustiças de toda a sorte. A idéia de resitência vai estar ligada à forma que,
por sua vez, está à serviço de uma denúncia de alienação sem que o roman-
ce seja transformado em panfleto. Dentre os muitos romances que refletem
a fragmentação e a desestruturação do mundo e do discurso no romance
português contemporâneo, destacamos alguns que se prestam para
exemplificar as afirmações aqui expostas. Nessas obras instaura-se uma
linha ficcional de realismo fantástico, cujas conotações refletem os princi-
pais aspectos de um relacionamento social e político, marcado pela ausên-
cia de liberdade, pela penúria, pela ignorância.
Nessa linha ficcional insere-se O Dia dos Prodígios - (1980) - de
Lídia Jorge. O romance baseia-se num dia de prodígio, uma espécie de fim
do mundo, quando uma cobra voou. As personagens - Carminha Parda,
Carminha Branca, José Pássaro Volante e sua esposa Branca, que como
Penélope tece uma colcha com o desenho de um dragão que a escraviza -
vivem num meio asfixiante e esclerosado. O século XX chegou com atraso
em Vila Maninha que, como Portugal, - vive fora do Tempo. Inventa-se o
“réptil que voa” para se poder sustentar um mundo vazio, opressivo e
injusto. As personagens são marginalizadas, obsecadas pela idéias de pe-
cado (dragão) e pela repressão. A homologia entre o dragão do prodígio e o
dragão da repressão configura um processo de desalienação, pretendendo
51

mostrar que as pessoas desejam ou criam prodígios fugindo à realidade, à


opressão de um país anquilosado e voltado para o passado.
A introspecção, os dramas psicológicos, a trama densa e a
diegese fragmentada refletem a influência presencista que se adensa na
predominância do “mundo dos valores” sobre o “mundo dos fatos”69, com
a tendência marcante de fugir ao culto da história pela história, vinculando-
se à esfera dos valores através das personagens.
Os Cus de Judas, de Antonio Lobo Antunes, trai a influência de
suas raízes presencistas, uma vez que é um romance de aprendizado - sendo
inclusive indicado pelas letras do alfabeto - revelando a trajetória de um
jovem, dilacerado entre o passado em África e o presente em Portugal,
sentindo-se “estrangeiro” em ambos os lugares. O tempo psicológico, a
recuperação do passado pela memória, permite que no espaço de uma noite
- enquanto a personagem principal, um médico, conversa com uma mulher -
toda a sua vida seja relembrada. A metáfora do herói, no período que decor-
re entre sua juventude e maturidade, é a perda de sua inocência e ilusão. Vai
à Africa para “ser homem” e vivencia uma verdadeira descida ao inferno,
que o transforma em um dentre os vários “voltados” da guerra, marginaliza-
dos, sem lugar no seu próprio país. Vagando de bar em bar, procura no
álcool o paraíso perdido, o passado irrecuperável, o único modo de re-
encontrar-se no próprio cerne de sua auto-destruição.
Antonio Lobo Antunes, que já publicara Memória de Elefante
(1979), segue publicando na década de 80, Conhecimento do Inferno (1980),
Explicação dos Pássaros (1981), Fado Alexandrino (1983), Auto dos Da-
nados (1985), As Naus (1988), culminando em 1990 com Tratado das Pai-
xões da Alma, um dos seus melhores romances, e o último deles - A Ordem
Natural das Coisas (1992-outubro) dentre a longa série já publicada, onde
se patenteia sua grande potencialidade criativa e inovadora no plano da
linguagem: pluridiscursividade, monólogos interiores possibilitando a
introspecção psicológica, discurso dialógico; no plano diegético: a trama
configura-se através de vozes e pontos de vista de vários personagens,
enriquecida pela polifonia e multifocalização; no plano da construção das
personagens: vetores ideológicos de uma sociedade em mudança, opressi-
va, densa e profundamente hipócrita. Insere-se a obra numa outra vertente,
matizada por determinantes sócio-psicológicos, mimetizando o mundo em
crise, através de um discurso multifacetado, introspectivo e repetitivo.
Tratado das Paixões da Alma constrói-se sob o signo da
dualidade. São dois os personagens principais, o Juiz de Instrução e o
Homem (que se descobre no decorrer da narrativa, “coincidentemente”,
chamar-se Antunes, como o próprio autor do romance) que se alternam nos
52

papéis de personagens, de narradores e até mesmo de narratários, repre-


sentando muitas vezes o papel do outro, implícito no discurso do narrador.
O passado evocado e o presente vivenciado providenciam também um mo-
vimento binário, onde se inserem as possibilidades bifrontes de todos os
eventos, sob a égide do bem e do mal, onipresentes e questionados no
próprio texto ficcional.
Os demais personagens formam o cenário humano que irá
representar uma amostragem da sociedade ambiciosa e mesquinha, aci-
ma de tudo hipócrita, parodiada pelo discurso irônico, que marca
idelevelmente a narrativa, levando-nos a ler o que está por detrás, o
avesso dos fatos, cuja realidade subterrânea pode-se inferir através do
não-dito, das lacunas, enfim, dos vazios e brancos do texto, que se
oferecem à ocupação, requerendo movimentos cooperativos, conscien-
tes e ativos por parte do leitor.
“A diegese é enganosamente simples. Num momento qual-
quer de um presente recentíssimo, o Estado inicia o desmantelamento e
captura de um grupo de terroristas” 70, do qual fazem parte o Homem, o
Artista, o Padre, o Estudante, o Bancário, a Dona do lar dos Velhos,
entre outros participantes citados esporadicamente. Um dos membros
do grupo, - o Homem (Antunes), é preso e um Juiz de Instrução (Zé),
escolhido a dedo, é designado para dirigir o interrogatório. Ocorre, po-
rém, que ambos foram criados juntos, embora numa relação de subservi-
ência, onde o Homem era “o filho dos patrões”, outrora ricos, podero-
sos e agora decadentes, e o Juiz, o filho do caseiro alcoólatra e da mãe
servil, que consegue, através de estudos, pagos pelos patrões, chegar
ao cargo que ora ocupa, invertendo, aparentemente, os papéis de
dominador e dominado. Na verdade, essa inversão de posições vai se
revelar totalmente inóqua, uma vez que ambos são mortos pela máquina
repressora de uma polícia política.
O homem em crise, as ideologias conflitantes, as lutas político-
sociais são retratados através de meta-narrativas, intertextos, polifonia de
vozes e focalizações levando-nos a constatar a relatividade dos aconteci-
mentos e da verdade.
Memorial do Convento (1982) de José Saramago apresenta a
“forma como resistência, fundindo textos de vários autores e fazendo de
seu discurso um amálgama de influências, que refletem a alienação do pró-
prio povo. Ficcionando a própria História, embora não se configure como
um “romance histórico” 71, esta obra presentifica uma análise da situação
de hoje através do confronto com a moralidade do passado. É no passado
que encontramos as raízes dos problemas atuais portugueses.
53

O tempo histórico é o Século XVIII, sob o reinado de D. João V.


Enquanto França e Inglaterra inauguram os tempos modernos, Portugal
vive em clima de Idade Média, início do tempo das conquistas. Tudo vem
da Colônia para pagar as manufaturas importadas; o poder discricionário
do rei é uma realidade de injustiça e opressão; a inquisição e os autos de fé
servem para canalizar a atuação da massa popular e conservar o domínio da
Igreja sobre o povo e a própria nobreza.
A diegese desenvolve-se em dois planos: o sublime e o popular,
que se constituem em duas formas de se “chegar ao céu”. De um lado, no
plano do sublime, temos a construção de um convento em Mafra, para
pagar o “milagre” de um herdeiro que asseguraria a sucessão de D. João V,
e, por outro lado, no plano do popular, a construção da “passarola” por
Frei Bartolomeu de Gusmão, auxiliado por duas pessoas do povo, campo-
neses sem instrução - Blimunda e Baltazar Sete-Sóis. No decorrer do roman-
ce, o sublime se transforma em baixo e o baixo em sublime. As duas maneiras
de se conseguir chegar ao alto - construir um convento para comprar a
complacência divina ou construir uma “passarola” que, movida pelas “von-
tades” tiradas ao homens por Blimunda, desafia o próprio Deus e consegue
subir ao céu - envolvem-se com interesses econômicos e religiosos, mar-
cando uma total subversão de valores na sociedade retratada no romance.
Simbolicamente é a vontade do homem que move tudo o que
existe, e o romance de Saramago serve de crítica ao presente, onde as pes-
soas vivem ainda dos sonhos miríficos das conquistas, esquecendo-se de
que o homem vale pela sua vontade, pelo fazer e não pela sua acomodação
alienada e alienante. Em Levantado do Chão, publicado anteriormente (1980),
por exemplo, Saramago mostra-nos que o FAZER Social, a luta do povo
oprimido contra as injustiças seculares, pode conseguir modificar a aliena-
ção social que os condena “desde sempre”.
A raiz neo-realista faz-se presente em ambos os romances, acen-
tuadamente no contexto ideológico de Levantado do Chão, e implicitamen-
te, como pano de fundo tanto do passado histórico como do presente
conotado em Memorial do Convento, onde o realismo fantástico coexiste
com o dialogismo, a carnavalização, sublinhando o tema da construção, na
realidade (o convento) e no sonho fugidio (a passarola). Envolvem-se ma-
téria fictícia, matéria histórica e personagens com atributos supra-huma-
nos, flutuando a narração numa zona de sombras, onde interagem a aventu-
ra da sociedade e a interdição dos sonhos impossíveis.
José Saramago publica ainda, entre outros, O ano da morte de
Ricardo Reis (1985), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de
Lisboa (1989) e o recente Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) demons-
54

trando uma linha coerente de revitalização e interrogação do passado, rea-


lizando um movimento para fora das molduras estereotipadas e para dentro
da problematização da natureza do processo histórico.
Concretiza-se a narrativa numa rede textual, onde afloram contí-
nuas e diversas possibilidades de sentido e ação, atraindo o leitor para
dentro do texto, partícipe da co-apropriação de fatos históricos - realidade
extratextual - pela própria diegese. Recria-se o mundo ficcional através da
revitalização de sentidos e da construção textual, fundada na produtivida-
de de intertextos, onde o velho aparece com um novo sentido. O crivo
crítico da ironia, a inversão dos papéis secundários e dos principais, a
valorização do feminino, o resgate de “potenciais” personagens “inferio-
res” da história providenciam o processo de construção da verdade, que
não se sonega, antes é posta a nu, recontada pela diegese ficcional, e
presentificada pelas estruturas de apelo do texto.
História do Cerco de Lisboa, que analisaremos em outro capítulo
desse estudo, tem como princípio condutor a metáfora do apagamento, da
rasura que se estende desde a primeira até às últimas páginas. O “deleatur”, o
sinal de eliminação de palavras pode rasurar até mesmo certas decisões da
história. O revisor Raimundo Benvindo Silva, personagem principal, insere-
se num estatuto de passividade, que é contestado, no momento em que ele
resolve intervir no livro que está revisando, mudando o episódio histórico do
auxílio dos cruzados na libertação de Lisboa às mãos dos mouros.
A alteração da visão da história permite reativar a dinamização
da comparação entre o passado histórico (século XII) e o presente (século
XX). O cenário repete-se. Na narrativa histórica surge o romance de
Mogueime e Ouroana, que sublinha o romance presente de Raimundo e
Maria Sara, aos pés da cidade prestes a ser conquistada.
A sobreposição de três narrativas - a histórica, a do revisor e a
do autor - que fluem simultaneamente e se entrecruzam potencializa uma
interpenetração do tempo e do espaço, permitindo, a partir da produtivida-
de diegética, a reflexão sobre o Portugal de hoje, sem a asfixia dos mitos
históricos, agora questionados e subvertidos.
O Evangelho Segundo Jesus Cristo é um texto que pressupõe
um texto anterior (o Novo Testamento) para com ele dialogar. A diegese
apoia-se num presente simbólico e indicial que atualiza diante do leitor a
vida e o sofrimento de Jesus. O uso de provérbios, chavões, lugares co-
muns, citações populares e literárias são configurados com um novo senti-
do, que se apóia na apropriação cultural, na inversão das formas do sagra-
do, no enfoque antes humano do que divino da figura de Jesus. A
55

plurissignificação do texto se concretiza através do processo desconstrutor


da linguagem, que possibilita a participação do leitor. A multiplicidade de
focalizações vai sublinhar as muitas faces da verdade, que podem mudar
segundo o curso das leituras e re-leituras do texto.
A iconografia está na base da construção das descrições do
texto, como verificamos logo no primeiro capítulo, que se abre com uma
leitura da pintura de Durer - O Cristo no Gólgota, com todos os seus
detalhes. A enigmática tigela negra, de grande valor simbólico na narra-
tiva, está igualmente presente no quadro, utilizado como base das des-
crições iniciais.
A diegese evolui através de metanarrativas, polifonia de vozes,
focalizações e intertextos que vão compondo e re-compondo a realidade de
um evangelho apócrifo, sob uma ótica diversa da cristã, mas igualmente
válido à luz dos valores humanos de uma sociedade em crise.
O romance de Teolinda Gersão - Paisagem com mulher e mar ao
fundo (1982) - realiza uma inversão do motivo, tradicionalmente positivo, do
mar na literatura portuguesa. Nesta obra, o mar é a força inconsciente que
tudo avassala e entorpece. É algo negativo que cerca os portugueses, opri-
mindo-os, obrigando-os à dispersão e tornando-os um povo sem raízes.
Portugal é como o barco da loucura dirigido pelo Senhor do Mar (persona-
gem identificado como O. S. - Oliveira Salazar), uma espécie de tótem
onipresente e mítico.
A protagonista Hortênsia - viúva de um arquiteto e cujo filho
morrera na África - dialoga com sua nora que espera um filho. A recriação de
um espaço (família) e de uma linguagem (fala de Hortênsia) representam a
única maneira de quebrar a realidade sufocante e opressora que obriga
todos à diáspora.
No final do romance quebra-se a imagem do Senhor do Mar e
nasce o neto de Hortênsia renovando-se a esperança de superar a
descaracterização e a perda de identidade, que marcam as pessoas em todo
o desenrolar da narrativa.
A situação narrativa de confidência, o discurso intimista, a temática
da solidão e da espera, o desnudamento do vazio existencial revelam-se numa
multiplicidade de planos, que oscilando entre o simbólico e o lúdico, vão permi-
tir a produção da significação através da interação projetiva do leitor.
O Discurso da Desordem, já na década de 70, (1972), de Antonio
Rebordão Navarro, reflete, de modo exemplar, o romance contemporâneo
aparentemente desconexo, mas criando um universo fragmentado, paralelo
ao seu próprio discurso. O homem é focalizado através de metanarrativas,
56

intertextos, polifonia de vozes e pontos de vista que nos fazem conhecer a


relatividade dos acontecimentos, reservando-se ao leitor o papel de
organizador da narrativa, que se concretiza através do ato da leitura.
O centro de gravidade é desviado para as personagens, privile-
giando-se a esfera dos valores em detrimento dos fatos em si, que são tão
mutáveis como os olhos que os vêem e as consciências que os interpretam.
Evidencia-se, consequentemente, a interpenetração do tempo e
do espaço, uma vez que o tempo não se propõe mais a representar o fluxo da
vida, o seu caráter efêmero, a sucessividade dos acontecimentos, mas sim a
simultaneidade desses eventos, sob as mais variáveis perspectivas. Privi-
legiam-se descrições de momentos vividos, onde estão fundidos segmen-
tos temporais de diferentes níveis com o espaço físico e psicológico, procu-
rando-se captar as correntes íntimas do ser humano, a partir das aparências
exteriores. O entrecruzamento de diferentes espaços acaba por nos levar à
dissolução da idéia tradicional de tempo, sobrepondo-se um novo conceito
de tempo, psicológico, denso, durativo.
A convivência diária das personagens - jornalistas, intelectuais,
escritores, professores e pessoas do povo - faz com que alguns fatos, como
uma festa onde ocorre um falso atentado à vida de um homem de negócios,
cenas do cotidiano ou a história de uma velha solitária que tinha um sapo
por companhia, sejam enfocados por diversos e diferentes narradores con-
figurando-se os discursos, como mimeses das falas das personagens,
inseridas no contexto social a que pertencem.
Outros autores destacam-se no quadro da ficção portuguesa
atual com uma produção constante, como os já citados Vergílio Ferreira e
José Cardoso Pires, e outros de igual valor, como Augusto Abelaira,
Almeida Faria, Urbano Tavares Rodrigues, Marina Ondina Braga, Filomena
Cabral, Maria Judith de Carvalho, Agustina Bessa-Luís, Maria Velho da
Costa, João de Melo, David Mourão-Ferreira, Helder Macedo, cada um
com suas características próprias, mas tendo em comum a preocupação de
modelizar a realidade desconexa do mundo atual, sob a ótica das persona-
gens, representadas pelo seu discurso. O discurso apropria-se da narrati-
va privilegiando-se, não a verossimilhança diegética - reprodução de acon-
tecimentos -, mas o seu reflexo através do mundo de valores dos persona-
gens, do narrador e do narratário.
Vergílio Ferreira 72, por exemplo, descreve uma trajetória em suas
obras, vindo desde o romance tradicionalmente estruturado - Vagão J liga-
do ao neo-realismo - até aos seus romances de cunho existencialista - Apa-
rição, Estrela Polar, Nítido Nulo, Até ao Fim entre outros - cuja fragmen-
57

tação temporal/estrutural exige, cada vez mais, a presença e atuação do


leitor na decodificação da mensagem ficcional.
O romance Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira que será
analisado nos capítulos subsequentes desse estudo, privilegia o discurso
indireto livre do narrador, os discursos citados e os discursos transpostos
das personagens propiciando uma alternância entre o “telling” (contado) e
o “showing” (mostrado) atualizando o dinamismo textual e possibilitando a
fusão de duas linguagens no interior de um mesmo enunciado. Coexistem,
portanto, duas leituras paralelas, configurando-se um eixo sintagmático - lei-
tura horizontal da diegese ficcional - e um eixo paradigmático de significação
- leitura vertical dos vetores ideológicos e metafóricos da mensagem contida
no texto. Fundem-se realidade, ficção, versos e referências a outros autores,
no discurso irônico do narrador autodiegético, deixando transparecer o que é
latente ou contestado, na sociedade que o cerca.
A personagem central feminina - a enigmática Y-protagonista,
juntamente com o narrador autodiegético, de um caso de amor feliz - faz-se
de início veladamente, através do discurso e focalização de um narrador
emocionalmente envolvido, que nos revela, pouco a pouco a mulher mítica,
original, parceira do homem na sua realização amorosa. Desenha-se, no
desenrolar da diegese ficcional, o quadro de uma sociedade fragmentada,
onde o homem em crise encontra-se retesado entre a essência e a aparência,
vivendo, numa mentira consentida, o seu “amor feliz”.
O texto revela, em sua dualidade, o que é marginal, o que é real
sob o manto da aparência, sublinhando a dificuldade de se permanecer fiel
a si mesmo, realizando um intertexto sutil com versos de Fernando Pessoa e
empregando o pronome de primeira pessoa do plural, para permitir a inclu-
são do narratário no discurso do narrador.
Entrecruzam-se o plano da enunciação - através das reflexões,
dos discursos entre parênteses que sublinham o ato de escrever - e o plano
do enunciado - onde convivem, num presente diegético, as pesonagens
envolvidas na trama ficcional.
O narrador utiliza, ainda, a polissemia das palavras, uma vez que
pela palavra re-inventa-se o mundo modelizado pelo texto artístico.
Os meus ´Objectos´! Já penseis chamar-lhes
´Hobbyjectos´; já desejei chamar-lhes ´hollyjectos´ o meu
marchad de Lausannse, esse desmancha-prazeres, é que
tem torcido o nariz a ambas as designações” (Mourão
Ferreira - Um amor feliz, p. 19).

O questionamento dos valores sociais e dos próprios valores


58

individuais do personagem-narrador permite-nos, portanto, uma dupla vi-


são de todos os fatos e reflexões, presentificados pelo seu discurso. A
alternância entre narrar e representar (diálogos) configura um horizonte de
expectativas, partilhado pelo autor implícito e pelo leitor virtual, revelando,
como já vimos antes, o que fica por detrás do real, o que estava latente e
passa a ser desvelado. O discurso dialógico, no plano da enunciação, infiltra-
se dos pontos de vista do autor implícito, pressupondo ainda, como parcei-
ro do diálogo, o leitor virtual que assume o papel de narratário na estrutura
do narrado, confundindo-se com a personagem-confidente.
Publicado em 1991, Partes de África de Helder Macedo - crítico
e professor universitário, autor de poemas, artigos e ensaios críticos sobre
vários autores portugueses de Dom Dinis a Jorge de Sena - é a sua estréia
na ficção e brilhante estréia.
Romance em plural, que se constitui de uma somatória de diver-
sos registros romanescos, destacando-se quatro tipos de narrativas que se
desenvolvem simultaneamente: um romance de tese, um romance de via-
gem, um romance memorialista, um romance familiar, sem contar com a obra
Um drama Jocoso de um certo Luis de Garcia Medeiros.
O protagonista, narrador auto-diegético de sua própria história,
é a voz emissora que vai modelando um texto complexo, que abole as fron-
teiras entre o fictício e o factual.
A vida do protagonista-narrador é o fio condutor que providen-
cia a unidade diegética, fragmentada em segmentos temporais e espaços
distintos, cada qual com suas ocorrências, seus costumes, ideologias, seus
habitantes típicos. Configura-se um mosaico, onde as diversas narrativas
interpoladas refletem uma visão caleidoscópica das partes no todo e das
partes que se libertam do todo, procurando vida independente, como pe-
quenas histórias que se explicam e se iluminam.
Partes de África é um romance polifônico que, por aproximação
metonímica ou por conotação metafórica, explora a produtividade da visão
especular das personagens uns sobre os outros, desvelando, sob as más-
caras da ficção, a experiência pessoal de diferentes “Áfricas”, onde se fun-
dem a realidade e a ficção.
Vemos, portanto, que nos romances atuais os estados de cons-
ciência são apresentados mas não decifrados, cabendo ao leitor o exercício
de uma participação consciente, que o exorte a ir um pouco além da página
impressa. À primeira leitura, a obra confunde o leitor que, em lugar da sen-
sação de segurança e domínio - abrigo -, vai experimentar como narratário,
como leitor participante do texto, juntamente com as personagens, a inse-
gurança e a incerteza de uma realidade flutuante.
59

A angústia, a solidão, o medo e o sofrimento estão presentes,


com frequência, na temática contemporânea não somente para expressar a
perplexidade e fragilidade do homem, diante da falência de antigos valores,
mas também como um modo de intensificar as situações de conflito, a
ambiguidade diegética e os muitos ângulos da verdade.
Por outro lado romances, onde a ação organiza-se numa fábula
complexa - como no já citado Memorial do Convento por exemplo -, utili-
zam-se dos fatos como pretextos para que possamos compreender as per-
sonagens, em toda a sua complexidade e densidade humanas. Debatendo-
se num mundo de aparências, o homem vê-se sufocado pelas pressões e
injustiças de uma realidade fragmentada e multifacetada, onde coexistem
grandes injustiças, concretizadas nas profundas diferenças sociais e nas
lutas entre opressores e oprimidos.
Dentre os diversos romances que constituem a produção
ficcional portuguesa das duas últimas décadas, com obras e autores da
maior relevância, destacamos os romances Um Amor Feliz (1986) de
David Mourão Ferreira e História do Cerco de Lisboa (1989) de José
Saramago, de um lado pelo seu valor intrínseco e, de outro lado, porque
se destacam como representações modelares do romance português atu-
al. Retratam a sociedade contemporânea, o homem dilacerado, as lutas
político-sociais, mimetizadas através da fragmentação diegética, da
sobreposição de metanarrativas, da intertextualidade, entrelaçando-se,
na tessitura de ambas, ficção e metalinguagem. A construção do roman-
ce no romance e a auto-referencialidade solicitam do leitor uma ativida-
de dinâmica de interação, que o coloca no espaço dramático do texto
encarregado de presentificar as contiguidades metonímicas e o eixo das
combinações metafóricas para chegar à compreensão e interpretação da
mensagem ficcional.
O romance, gênero em processo, reflete mais substancial e sen-
sivelmente a evolução da própria realidade. O mundo fragmentado, dividi-
do entre essência e aparência é mimetizado pelo discurso ficcional com os
seus diversos registros romanescos, sua estrutura fragmentada e
caleidoscópica, mutável ou flutuante, segundo focalizações variáveis, re-
servando-se ao receptor a montagem pessoal da diegese ficcional. A fábula
é secundária. As personagens assumem o primeiro plano, como já vimos,
com o seu discurso tão desordenado às vezes como as suas vidas, basea-
das em aparências. Narradores e narratários - leitores participantes - pode-
mos nos encontrar à procura da unidade perdida e reencontrada nos diver-
sos momentos de nossas vidas e nas diversas leituras de romances, que
modelizam a perplexidade dos dias em que vivemos e a complexidade do
mundo atual.
60

Notas
67
Maria Alzira Seixo - A palavra do romance (Ensaios de Genologia e análi-
se). Lisboa: Livros Horizonte, 1986, p.185.
68
Mikhail Bakhtin - Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do
romance). São Paulo: UNESP/Hucitec, 1988. pp. 403/404.
69
Alexandre Pinheiro Torres - “Sociologia e Significado do Mundo
Romancesco de José Cardoso Pires”. In: Posfácio - PIRES, José Cardoso. O
Anjo Ancorado. 5a. ed., Lisboa: Moraes Editora, 1977, p. 153.
70
Fernando Mendonça. Resenha crítica - Antonio Lobo Antunes - Tratado
das paixões da alma. Colóquio Letras n. 125-126. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, jul/dez 1992. p.296-297.
71
Maria Alzira Seixo em sua obra A Palavra do Romance (Lisboa: Livros
Horizonte, 1986) à p. 23, define muito bem a particularidade desse romance,
como podemos constatar pela passagem abaixo:
“A obra de José Saramago tem procurado, e de modo particularmente sensí-
vel a partir de Memorial do Convento, textualizar a memória que confronte o
ser com o tempo; daí que os seus livros tenham sido lidos, em muitos casos,
como romances históricos - o que, obviamente, e de uma perspectiva rigoro-
sa da teoria literária - não são. O que acontece é que José Saramago, convoca
o passado, aliás fielmente reconstituído (mas com intromissões do tipo fan-
tástico que o alteram, note-se), para o filtrar de modo consciente por uma
óptica do presente - o que é inteiramente diverso do que acontece com o
romance histórico, onde o presente se abandona como tal para mergulhar
completamente no passado e nele se integrar; (...)
72
O autor foi estudado em minha tese de doutorado: Tempo de SER. Tempo
de FAZER. A Temporalidade essencial e o espaço do leitor nos romances de
V0ergílio Ferreira, defendida na Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
UNESP, 1988 e publicada pela Editora HVF/CERED/UNIP, São Paulo, 1993.
61

O leitor-confidente e as dualidades intrínsecas em Um Amor Feliz


de David Mourão-Ferreira.

A palavra interiormente persuasiva é uma palavra con-


temporânea, nascida de uma zona de contato com o pre-
sente inacabado, ou tornado contemporâneo; ela se ori-
enta para um homem contemporâneo e para um descen-
dente, como se fosse contemporâneo.A concepção parti-
cular do ouvinte-leitor compreensivo é constitutiva para
ela. Cada palavra implica uma concepção singular do
ouvinte, seu fundo aperceptivo, um certo grau de respon-
sabilidade e uma certa distância”.73
O leitor-confidente em Um Amor Feliz é o ouvinte-leitor, a quem
o narrador autodiegético dirige sua palavra “interiormente persuasiva”. O
discurso dialógico, privilegiando o momento presente, foco de irradiação
de toda a diegese, providencia a palavra contemporânea de um presente em
processo, de um diálogo confessional, envolvendo narrador e narratário,
personagens à deriva numa sociedade em transformação. O leitor, o outro
inserido no discurso do narrador, ultrapassa o espelho e vê-se no discurso
confessional do protagonista sentindo-se esse você, em cumplicidade ínti-
ma com o narrador, que o questiona, e o considera um seu igual, despindo-
se da autoridade desumanizada de criador e assumindo-se, acima de tudo,
como criatura, com todos os seus anseios, virtudes e vícios.
O texto se constrói sob o signo do duplo, pela ambiguidade do
discurso dialógico, e pela intersecção dos planos da enunciação e do enun-
ciado, onde dialogam o eu-narrador e o eu-narrado, inseridos ambos na
trama ficcional.
A análise de Um Amor Feliz, objetivo central desse capítulo,
partirá de uma contextualização do romance na obra de David Mourão-
Ferreira, considerando a seguir: a produção e efeito da ambiguidade e do
dialogismo num texto marcado por dualidades intrínsecas; o narrador auto-
diegético e o mundo das relações; o repertório ficcional e os limites de uma
época; a intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia textuais; a repre-
62

sentação e a diegese - retrato dos “pífios anos 80”; os vazios do texto e o


papel do leitor, finalizando pela invasão da narrativa pelo discurso, caracte-
rística marcante do romance em estudo.

3.1 - Localização do romance na obra do autor.

A obra de David Mourão-Ferreira é não só vasta como


variada. Faltava-lhe, porém, um romance. Um Amor Feliz
preencheu essa lacuna e, ao mesmo tempo tornou-se um
livro exemplar no conjunto da produção romancística dos
últimos anos, e exemplar por dois motivos: como parâme-
tro da tendência atual, e como padrão de qualidade da
ficção portuguesa contemporânea.74

O romance Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira situa-se


num ponto de confluência entre o homem, ser histórico-social, obrigado a
viver e con-viver com o mundo das aparências - a sociedade ironicamente
enfocada neste livro - e o homem, ser ontológico, procurando sua verdade
no próprio existir - SER - e na completude essencial, que advém do relacio-
namento amoroso - SER EM OUTRO.
Primeiro romance publicado pelo autor, que se iniciou na litera-
tura em 1945, quando na revista Seara Nova (nº 927), sairam seus primeiros
poemas, David Mourão-Ferreira exerce intensa atividade intelectual como
poeta, crítico, ensaista, contista, novelista, dramaturgo, conferencista,
polemista e agora romancista. É impossível pensar a história da literatura e
da cultura portuguesa da segunda metade de nosso século, sem sublinhar
seu nome ou ressaltar seus estudos críticos, ensaísticos, sinais visíveis de
sua personalidade fascinante e complexa.
Dominando a arte versificatória como poucos, entretecendo a
técnica tradicional e as lições da modernidade, ele é o poeta das explosões
de Eros, confrontando o corpo e o mundo, utilizando os sentidos como a
possibilidade de ter acesso ao outro, enfim, realizando um amálgama, entre
a filosofia do seu tempo, da linguagem poética e da comunicação. De seus
poemas aflora a mulher, em densa e serena inquietação, na infinita
vulnerabilidade de seu corpo, somatória de outros corpos e outras mulhe-
res, que se sublimam na evocação da mulher ausente - signo de restrição
para a pluralidade de sentidos, desafio, sonho, fascínio, mulher mítica, par-
ceira do homem em suas necessidades e prazeres.
Multiplicam-se seus livros de poesia, publicados desde 1950
com A Secreta Viagem e a seguir com grande regularidade: Tempestade de
63

Verão (1954), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), Do Tempo ao Coração


(1966), Cancioneiro de Natal (1971), Matura Idade (1971), As Lições do
Fogo (antologia) (1976), Entre a Sombra e o Corpo (1980), Os Ramos Os
Remos (1985), O Corpo Iluminado (1987), entre outros.
Na ficção publicou contos e novelas da maior relevância, onde
as estratégias narrativas realizam-se pela interferência do insólito na
concatenação diegética, pela caracterização das personagens através de
seu próprio discurso ou pela inserção dos sujeitos num mundo de relações
intersubjetivas, que se revelam entre sombras e vozes irônicas ou
contemplativas, como por exemplo, subliminarmente em Os Amantes (1968)
e mais notadamente em As Quatro Estações (1980).
Professor universitário (Faculdade de Letras de Lisboa), diretor
de revista literária (Colóquio/Letras) diretamente envolvido com a cultura e
a intelectualidade portuguesa (já foi secretário de Estado da Cultura logo
após a Revolução de 25 de abril) é ainda crítico respeitado e tradutor.
Dono de uma prosa aliciante, utilizando-se das mais diversas
estratégias estilístico-estruturais, o texto de David Mourão-Ferreira é mar-
cado pelo dialogismo, pela pluridiscursividade, pela auto-reflexibilidade,
tornando o leitor um parceiro indispensável, confidente solicitado a partici-
par continuamente, preenchendo os “vazios”, o “não-dito”, lendo o que
está por detrás, o que é contestado, os limites do homem e de seu tempo.
Um Amor Feliz 75, já várias vezes re-editado, foi considerado o
romance do ano em 1986, tendo sido agraciado com os mais diversos
prêmios: Grande Prêmio de Ficção da APE (Associação Portuguesa de
Escritores); Prêmio Cidade de Lisboa; Prêmio Pen Clube e Prêmio D. Dinis,
da Casa de Mateus.
A utilização de um discurso confessional configura, desde o
início, um diálogo com uma personagem confidente, que representa o pró-
prio leitor inserido no texto. O romance fundamenta-se na fusão de antíte-
ses entre o religioso e o profano, entre o efêmero e o essencial, entre a
verdade e a aparência, criando uma cumplicidade íntima, entre o emissor e o
destinatário da mensagem ficcional.
O erotismo aflora, embora muitas vezes etéreo como o próprio
discurso, celebrando o amor e a ausência da amada, fazendo do amor um
“jogo mental”, uma “desmesurada hipótese” conceitos presentificados logo
de início nas epígrafes do próprio texto. O romance revela-se como uma
síntese das idéias, das obras, e das tendências estéticas contemporâneas,
justificando-se portanto, a análise pormenorizada desse texto, sem dúvida
extremamente representativo do autor e de sua época.
64

3.2 - O signo do duplo - Ambiguidade: Produção e Efeito (Plano da


enunciação e plano do enunciado)

Nem sei porque me apetece contar-lhe a si, precisamente


a si, esta vulgaríssima história de um amor feliz.
Mentira! Claro que sei. Foi justamente você quem no
começo deste ano me revelou um segredo de que eu nun-
ca tinha chegado a suspeitar. E me confiou mesmo a fór-
mula de certas circunstâncias indispensáveis à existên-
cia de um ´amor feliz´:
´Uma pessoa casada... só com outra pessoa casada.´
Apesar de você ainda ser mais nova que a Y, logo de
imediato se firmou, entre nós dois, desde a primeira vez
que nos encontramos, uma espécie de cumplicidade que
não queremos ou não podemos levar longe demais. Mas
confesse que é divertido, para nós ambos, este reticente
pacto de auxílio mútuo76

O signo do duplo, a ambiguidade que marca, indelevelmente, o


discurso ficcional, configura-se logo no segundo capítulo, onde o narrador
se confessa a uma personagem confidente, que representa a presença do
leitor, tornado narratário, “ser de papel”, personagem criado também pelo
próprio texto.
Responsável pela presentificação da obra através do ATO DA
LEITURA, o leitor (receptor da mensagem) estabelece com o narrador (emissor
da mensagem) um “pacto de auxílio mútuo”, uma cumplicidade, que o leva
a encarnar esse você, interlocutor necessário, confidente induzido a ser e a
aceitar sua participação compulsiva na clandestinidade desse “amor feliz”.
A construção dos sentidos do texto vai realizar-se pela evoca-
ção do narrador que, embora apoiado em anotações (feitas em uma agenda),
vai recuperar o factual com o auxílio do ficcional, pela fusão dos registros
lírico e confessional que sublinham o discurso e contaminam o próprio
leitor, obrigado a atualizar suas projeções representativas na decodificação
da mensagem.
Partindo da dualidade básica que se estabelece entre o plano da
enunciação e o plano do enunciado, o narrador autodiegético é, ao mesmo
tempo o eu-narrador e o eu-narrado, enquanto personagem protagonista da
trama ficcional.
65

Verifica-se, a partir do ponto de vista do narrador, uma mudança


de enfoque, privilegiando-se não os fatos mas as pessoas a quem os fatos
acontecem, configurando-se, consequentemente, a invasão da narrativa
pelo discurso e providenciando o amálgama discurso-narrativa, onde o pri-
meiro detém a primazia, por conter o mundo de valores que preside à elabo-
ração do texto.
O eu-narrador estabelece um diálogo com o eu-narrado no pró-
prio discurso ficcional, ponto de partida para que se concretizem os diálo-
gos com as outras personagens, na fusão do presente do enunciado - pas-
sado diegético que se presentifica diante de nós - e do presente da
enunciação, do ato de escrever, criando-se, ficcionalmente, um presente
comum ao narrador e ao narratário e dando-nos a ilusão do que o primeiro
narra os fatos a medida que os vivencia.
Através da construção de um texto intrinsecamente dialógico,
apoiado na pluridiscursividade das falas das personagens, organiza-se um
horizonte de expectativas do emissor (autor) que passa a ser partilhado
pelo receptor (leitor), configurando-se a montagem de uma situação
contextual, que substitui a situação face-a-face das relações interpessoais
e garante a eficácia da comunicação. É o espaço do leitor que participa da
narrativa ocupando os “vazios do texto”, o “não-dito”, recriando o texto
ficcional pelo ato da leitura e revelando o que na sociedade fica latente, é
virtual ou contestado, enfim, os limites de uma época.
As epígrafes iniciais, elementos de ligação entre o título e o
romance, estabelecem um diálogo “in absentia” entre um eu-emissor (autor
implícito) e um tu-receptor da mensagem (leitor virtual), passando a fazer
parte do estatuto plural do repertório de Um Amor Feliz, onde o velho se
relaciona com o novo, estabelecendo um polo de interações e possibilitan-
do a plurisignificação textual, a partir do fundo sobre o qual se apóia. É a
“penhora”, de que fala Wolfgang Iser, que nos irá possibilitar um ponto
convergente, um ponto comum entre autor e leitor, norteando a
presentificação da mensagem ficcional.
Deste modo os textos de Stendhal e Savinio, utilizados na aber-
tura do romance, providenciam este ponto comum, uma vez que o receptor
iniciará a leitura da obra, a partir dos mesmos pressupostos que orientaram
seu emissor:
Ne pas aimer, quand on a reçu du ciel une âme faite
pour l´amour, c´est se priver soi et autrui d´un grand
bonheur.
STENDHAL
66

L´amore propriamente non esiste. É una ipotesi, una gran-


de, una smisurata ipotesi.
ALBERTO SAVINIO
Il più sicuro modo di felicità è il movimento mentale: il
´gioco´ mentale.
ALBERTO SAVINIO
Le vrai métier de l´animal est d´écrire um roman dans un
grenier, car je préfère le plaisir d´écrire des folies à celui
de porter un habit brodé qui coûte huit cents francs.
STENDHAL

Os conceitos de amor, felicidade e do verdadeiro mister do ho-


mem, explícitos nas epígrafes acima, norteiam e balizam a leitura do romance
que, fundamentalmente, se apoiará e desenvolverá as afirmações ali conti-
das, realizando o privilégio de demonstrar e atualizar a cosmovisão do au-
tor, através do discurso do narrador autodiegético. O amor é uma
desmensurada hipótese, é um jogo mental, é uma construção do próprio
homem que, atuando no plano das possibilidades e das hipóteses, não
corre o risco de se decepcionar ou de se desiludir.
A apresentação da personagem central feminina - a enigmática
Y, protagonista, juntamente com o narrador autodiegético, de um caso de
amor feliz - faz-se de início, veladamente, através do discurso e da
focalização de um narrador emocionalmente envolvido, que nos vai des-
velando, pouco a pouco, a mulher mítica, original, parceira do homem na
realização amorosa. O “xaile branco”, de solteira, com a sua cor, símbolo
de pureza, embora de “malha entreaberta e larga”, simboliza o amor sem
culpa no plano da essência, uma vez que ambos são atraídos, irresistivel-
mente, um pelo outro, apesar da interdição social representada pelo fato
de já serem casados.
O discurso do narrador autodiegético dirige-se a um interlocutor,
ainda não identificado, instaurando-se uma longa fala, de natureza intrinse-
camente dialógica:

Digamos, para simplificar, que se chama Y. (E, surpreen-


do-me a murmurar: Ípsilon...) Além de não querer nem
poder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa;
ou o que menos deveria interessar-nos. (A.F., p. 11)
E mais adiante:
Estrangeira sim. Ou em parte estrangeira.
67

Bonita? Mais, muito mais que bonita. É antes uma da-


quelas mulheres sobre quem até as outras mulheres,
desportivamente engolindo em seco ao ouvirem a seu
respeito o moribundo adjectivo ´bela´, não conseguem ir
muito além de comentários deste gênero: ‘Só é pena que
seja um pouco parada’. Ou então: ‘Aquele pescoço...
Aquele pescoço não vai aguentar-se por muito tempo’.
(A.F., p. 12)
O narrador reflete sobre a palavra do outro, compreendendo a
enunciação como a réplica de um diálogo. O discurso se enriquece pela coe-
xistência das vozes do eu e do outro, objetivando a plurisignificação que
advém de pontos de vista diversos. A elaboração do discurso do narrador
autodiegético prevê possíveis indagações do narratário e as responde.
As reticências, as dúvidas do narrador na busca da melhor ma-
neira de contar seu encontro com a Y, deixam vazios e espaços a serem
preenchidos pelo leitor, que vai compondo a personagem, juntamente com
o seu autor:
Mas o orgulho é que geralmente predomina. Sobretudo
por ter sido ela quem... Como hei-de dizer? Por ter sido
ela quem veio ao meu encontro, quem afinal espontane-
amente... me escolheu * (A.F., p. 14)
A introdução da personagem interlocutora do narrador faz-se
no segundo capítulo, providenciando a ambiguidade diegética em vários
níveis. Em primeiro lugar realiza-se a fusão personagem-interlocutora/lei-
tor-narratário, uma vez que, em muitas passagens, perde-se a consciência
de uma personagem autônoma e resta-nos a sensação de que o diálogo se
realiza diretamente entre o narrador e o narratário:
(Como poderei resistir, daqui a pouco, à tenta ção de re-
produzir esse nosso diálogo? Sempre me empolgou acres-
centar à mais que certa efemeridade de uma conversa a
muito provável efemeridade do seu registro.)
‘Uma pessoa casada’, repetiu você, ‘só com outra pessoa
casada’. E que de preferência uma delas seja mais velha.
De preferência o homem. De preferência mesmo um tanto
mais velho, pouco disposto a correr novos riscos, parti-
cularmente capaz de não cair na tentação de embarcar
em mais outro OUTBOARD conjugal. (A.F., p. 17)
68

3.2.1 - O narrador auto-diegético e o mundo das relações


Por outro lado introduz-se, através da ironia e da paródia, uma
dicotomia marcante entre o mundo da essência e o mundo da aparência. O
mundo da essência repreesentado pelo narrador-personagem, na sua indi-
vidualidade de artista (escultor), e pela personagem-interlocutora, igual-
mente pelo seu trabalho artístico (poeta), que lhes permite assumir a insatis-
fação e a busca constante do outro, como completude natural de si própri-
os. O mundo da aparência presentifica-se através dos relacionamentos so-
ciais preconceituosos e falsos, ironicamente modelizados pelo texto ficcional.

Tratava-se do primeiro grande jantar oferecido por um


desses casais de diplomatas latino-americanos que mis-
teriosamente conseguem ter já entrado em relações, seis
meses depois de aqui terem chegado, com todas as pesso-
as - mesmo todas * , pensam eles - que se lhes afigura
indispensável conhecer em Lisboa. (A.F., p. 21/22)
O discurso indireto livre do narrador, os discursos citados e os
discursos transpostos das personagens propiciam uma alternância entre
o “telling” e o “showing”, atualizando o dinamismo textual e possibilitan-
do a fusão de duas linguagens no interior de um mesmo enunciado. Coe-
xistem, portanto, duas leituras paralelas, configurando-se um eixo
sintagmático - leitura horizontal da diegese ficcional - e um eixo
paradigmático de significação - leitura vertical dos vetores ideológicos e
metafóricos da mensagem contida no texto. Fundem-se realidade, ficção,
versos e referências a outros autores, no discurso irônico do narrador
autodiegético, deixando transparecer o que é latente ou contestado, na
sociedade que o cerca.
‘Já reparou?’, lançou-me você logo a seguir. ‘Já repa-
rou como parecemos uns pobres penduras entre todas
estas sumidades de Pediatria?’(A.F.,p. 17).
E, nas páginas seguintes:
Era o jantar de encerramento de mais umas jornadas In-
ternacionais de Pediatria, tão inevitavelmente
inolvidáveis que já ninguém hoje se lembra delas. Depois
da memorável sessão de fados para estrangeiro ouvir e
esquecer, (...) tinhamo-nos arredado um pouco, no últi-
mo andar daquele hotel pseudocosmopolita, para o vão
dessa janela de onde mal se via uma Lisboa sujamente
espectral, toscamente iluminada, a tirintar de desempre-
69

go, de expedientes e de salários em atraso, sob um esfar-


rapado capote de nevoeiro. (A.F., p. 18)
juraria, apesar de tudo, que nos encontramos ambos à
deriva entre o que somos por dentro e o que a nossa
época nos obriga a fazer. (A.F., p. 19)

O texto revela, em sua dualidade. o que é marginal, o que é real


sob o manto da aparência, sublinhando a dificuldade de permanecermos
fiéis a nós mesmos, realizando um intertexto sutil com versos de Fernando
Pessoa e empregando o pronome de primeira pessoa do plural para permitir
a inclusão do narratário no discurso do narrador.
Entrecruzam-se, assim, o plano da enunciação - através das re-
flexões, dos discursos entre parêntesis que sublinham o ato de escrever - e
o plano do enunciado onde convivem, num presente diegético, as persona-
gens envolvidas na trama ficcional.
O narrador utiliza, ainda, a polissemia das palavras, uma vez que
pela palavra re-inventa-se o mundo, modelizado pelo texto artístico.
Os meus ´objectos´! Já pensei chamar-lhes ´hobbyjectos´;
já desejei chamar-lhes ´hollyjectos´ O meu marchand * de
Lausanne, esse desmancha-prazeres, é que tem torcido
o nariz a ambas as designações (A.F., p. 19)
O questionamento dos valores sociais e dos próprios valores
individuais do personagem-narrador permite-nos, portanto, uma dupla visão
de todos os fatos e reflexões presentificados pelo seu discurso. A alternância
entre o narrar e o representar (diálogos) configura um horizonte de expectati-
vas, partilhado pelo autor implícito e pelo leitor virtual, revelando, como já
vimos antes, o que fica por detrás do real, o que estava latente e passa a ser
desvelado. O discurso dialógico, no plano da enunciação, infiltra-se dos pon-
tos de vista do autor implícito, pressupondo ainda, como parceiro de diálogo,
o leitor virtual que assume o papel de narratário na estrutura do narrado,
confundindo-se com a personagem-confidente.
As personagens, que constituem o mundo de relações onde se
insere o narrador autodiegético, são apresentadas e identificadas sob óti-
cas diversas, que se concretizam em três estratégias textuais: discurso e
focalização do narrador; discurso e focalização da própria personagem e
discurso do narrador com focalização da personagem. Assim sendo, a vi-
são que temos das personagens é composta por vetores diversos, repre-
sentados por enfoques de pessoas diferentes, em situções distintas, provi-
denciando sua configuração através da convivência, do relacionamento
70

social e dos atos cotidianos.


As mulheres de sua vida vão se delineando através da superpo-
sição de segmentos do passado que nos permitem compreender o desenro-
lar do próprio presente. A esposa - agora limitada a um papel maternal - já foi
a companheira, que o satisfazia com plenitude.
Tu, aos vinte, aos vinte e dois anos, já com saudades de
teres tido dezoito, e mal sabendo então o que te espera-
va: todo esse estúpido calvário de exames e mais exames,
de provas e mais provas (...) para te guindares aos pínca-
ros da Pediatria, pouco a pouco trocando o teu efêmero
viço de moreninha por essa cor de azeitona engelhada,
para não falar já na tua secreta renúncia a vires alguma
vez a ter filhos, ou com receio do pai que lhes caberia em
sorte, ou a fim de melhor cumprires a tua missão de mãe
dos filhos dos outros, de mãe dos teus alunos, dos teus
assistentes, do teu próprio marido.(A.F. p.38/39)
O interesse sexual arrefeceu mas restou um grande
companheirismo, afeto, e respeito pela figura humana da esposa. Os casos
amorosos se sucedem. O amor-loucura com a brasileira Xô leva-o a fugir
para Roma e lá ficar sem dar notícias. A esposa, algum tempo depois, vai
procurá-lo em Roma. Encontram-se e voltam a Portugal juntos, como se a
“mãe” tivesse lá ido para resgatar o filho de suas loucuras.
Sucedem-se os muitos casos e aventuras amorosas com Ana
Dora, Elvira, Isabelinha, Octaviana, Úrsula, “singelo A, E, I, O, U do mau
aluno que sou, repetente e relapso incorrigível, cabulão que nunca passa
da primeiríssima página da cartilha” (A. F., p.87). Fica patente a impossibili-
dade de uma relação mais duradoura. Decorre daí sua tese sobre as mulhe-
res que existem (a esposa, a Y) e as mulheres que só se mostram presentes
(as outras todas no passado e a ZU, filha da “mulher a dias” no presente).
Mas tu, Xô, tu é que foste, aqui há coisa de vinte anos, a
grande pedra de toque, a terrível exemplificação do meu
singular comportamento diante das mulheres que ´exis-
tem´ e das que se limitam, pelo contrário, a tão-só se
mostrarem ´presentes´.
E aqui tens, ao fim destes anos todos, a razão ou uma das
razões, Xô, por que tão miseravelmente bati em retirada
ao chegarmos a Roma, depois daquelas esplendorosas
três semanas passadas em Amalfi. (A.F. p. 87)
71

A busca incessante, a insatisfação e o enfado no relacionamen-


to com as mulheres vão sublinhando o comportamento do narrador/perso-
nagem, que se recusa à acomodação. É o artista em busca da emoção e da
beleza, que se renova, se esgota e torna a recomeçar. Procura, assim, na arte
(escultura) e na mulher, a beleza que se configura nas formas e, no corpo,
elementos de ligação entre o homem, a mulher e a arte.
A Y, no entanto destaca-se do abecedário das mulheres de sua
vida, representando a “Beleza”, a doação, a completude sexual, a protago-
nista e parceira de um “amor feliz”.
O amor que emerge sublevando preconceitos, interesses mes-
quinhos ou menores, acima e além do cotidiano, não se rende às exigências
menores. A Y surge como uma metáfora da perfeição, superando lugares
comuns e necessidades diárias do homem comum e tributável. Estranha,
diferente, cosmopolita, “em parte estrangeira” marcada por um discurso
eivado de estrangeirismos, a Y destaca-se da sociedade que a cerca.
É ela que o escolhe, como o escolheu a Arte, para ser o seu
eleito, pagando para isso o preço exigido da clandestinidade, do
desajustamento, da busca essencial do que é invisível aos olhos, e que só
transparece na criação artística.
A Y é definida através de substantivos, sublinhando valores
nocionais, definitivos, sem a superficialidade de adjetivos caracterizadores.
É a essência, o que realmente importa, a chave para sua compreensão:

Beleza; simplicidade; sensibilidade; sensualidade; inte-


ligência. E inteligência mais profunda, bastante mais viva
do que a sua discrição deixaria supor.
Acompanhando tudo isto (...) aquele irresistível pendor
para o sussurro, o murmúrio, o segredo, a confidência,
situando-se muitas vezes na fronteira indecisa entre o
silêncio e a palavra. (A.F. p. 41)

O seu espaço é o atelier - onde se encontram ambos, a Y e o


personagem/narrador - aberto para o céu, aberto para o rio, “sumido nas
entranhas da terra”, longe dos jornais e da TV. É, por excelência, o lugar
devido e próprio da arte, da realização pessoal, da busca da Beleza e do
ideal de perfeição.
Síntese da Beleza, da completude do homem/artista, esfinge im-
possível de ser decifrada pelo diapasão comum de outras mulheres, a Y
representa a conquista da Arte, sempre contraditória, oferecendo-se e ne-
72

gando-se, explicando-se inexplicável em seus comportamentos e atos,


onipresente sempre nos atos e pensamentos do narrador.
Como se orgulho me importasse! O que importa é a lumi-
nosa plenitude que a Y trouxe à minha vida, numa altura
em que eu já não esperava, por parte das mulheres, senão
esses fogachos e admiração com que elas próprias se ilu-
dem, ou se pretendem promover na opinião dos outros.
Isto para não falar de favores mais ou menos venais.

Da parte da Y, além de um desinteresse absoluto o mínimo


de concessões ao odioso despotismo do tempo.” (A.F. p.14)

Na página final do romance, a constatação do amálgama Y/Bele-


za, conotando a possibilidade de transcender a imanência, de “pairar acima
do mundo” pela posse, pelo contato e pelo amor à Beleza.
Mulher, Beleza, Arte fundem-se na figura da Y, indecifrável,
acima e além dos padróes convencionais, realização sempre almejada, ain-
da que fugidia.

Ó minha bela Câncer, com ascendente em Escorpião, que


figura contraditória faço eu ao pé de ti, sempre a oscilar
entre ímpetos de Touro e indecisões de Peixes! Tu, Água e
Agua: que fluida! Eu, Terra e Água: quantas vezes a lama
a espreitar-me.
Pergunto a mim próprio se o seu amigo terá razão: neu-
rótica a Y? Ou até psicótica? Se assim for, poderei acaso
gostar menos dela? Não será também psicótica a pró-
pria Beleza? Não será antes psicótico o amor da Beleza?
Mas só a Beleza e o amor da Beleza, por mais psicóticos
que sejam ou mais fora de moda que pareçam, conseguem
afinal empolgar-me e fazer-me pairar acima do mundo.
(A.F. p. 299)
Outras personagens femininas são enfocadas, como a ridícula
Lídia/Laurentina, caso fugaz da mocidade e a ZU, filha da diarista Floripes,
vulgar, venal, fazendo do sexo, uma arma para prender, enredar, conseguir
presentes e vantagens. A primeira atua como contraponto na construção
da esposa - a Sra. Doutora, quando ainda estudante de medicina - idealis-
ta, apaixonada em contraste com a vulgaridade de Laurentina, ironicamen-
te apelidada de Lídia, como a lírica pastora de R.Reis. A ZU, por outro
lado, serve de contraponto à caracterização da Y. Frequenta o mesmo
73

atelier, mas a hipocrisia, o jogo insinuante e matreiro, a cobiça por presen-


tes e vantagens materiais, a participação num conluio para prejudicá-lo e
destruir seu casamento - ela era a autora das cartas anônimas que acabam
por provocar uma ameaça de infarto na esposa - vão sublinhando as dife-
renças abissais entre seu caráter e atos com os da própria Y.
O relacionamento do escultor (que se chama Fernão, nome rara-
mente mencionado) com as mulheres - com os diversos e variados tipos de
´amor´ atualizados em sua trajetória vital - constitui a linha fulcral da ação
romanesca. É a ausência da mãe, já viúva, mais preocupada com a sua
frustrada carreira de cantora lírica e seu segundo casamento do que com o
filho; é o amor da esposa e agora, de algum modo, a “maternal proteção”
que lhe faltou na infância; é a personagem-confidente, poeta e artista, se-
melhante a ele, amiga apenas, com a qual vai construir sua teoria sobre o
amor-feliz, e, principalmente, destinatária, juntamente com o leitor-implícito,
da longa narrativa confessional que é a essência do próprio romance; são
os amores efêmeros de muitas mulheres como Lídia/Laurentina, Xô, Zu
entre várias outras; é o “amor-feliz” com a Y, completude existencial do
homem/artista, relações que se concretizam no desenrolar da diegese, com-
pondo a trama ficcional do romance.
Personagens masculinos, de fundamental importância no de-
senrolar da narrativa, sobressaem-se apenas dois: o Niassa e o escritor
David, “com o seu inseparável cachimbo”.
O Niassa representa a rebeldia estudantil, a juventude, a boemia
e o desajustamento social do artista. É o contraponto do personagem/
narrador que, antigo colega e agora escultor de sucesso, encara ironica-
mente seu “talento” vendo antes um trabalho inteligente de “marketing”,
que o Niassa não teve oportunidade de conseguir, cumprindo ele sim, a sina
do artista, do “gauche” que vive esquecido e morre sem ter conseguido o
reconhecimento, merecido ou não. Sua morte propicia o re-encontro de
Fernão e David, revelando-nos afinidades de amigos comuns, com posi-
ções ideológico-culturais semelhantes.
O poeta David, amante da personagem/confidente, é a presen-
ça física do próprio autor - David Mourão-Ferreira -, personificado no
texto ficcional. Relações de semelhança entre os fatos reais que marcam a
vida do autor e os fatos ficcionais que caracterizam esse personagem -
“de secundaríssima importância” no dizer do narrador - providenciam essa
identificação. É através dos diálogos entre David e o narrador/protago-
nista que se constrói um metatexto crítico sobre o fazer literário, consta-
tando-se a tematização da construção do romance no próprio romance.
74

Abre-se, consequentemente, um espaço privilegiado para o


leitor que vai sublinhando e preenchendo os vazios do texto, viabilizando
aproximações e conotações entre os diversos relacionamentos que se
concretizam na trama ficcional. A persongem-confidente, interlocutora do
diálogo é, por seu lado, a presença física do leitor virtual, tornado narratário,
e parceiro do narrador. O romance, como já dissemos, revela-se como um
longo diálogo com um “tu” “in absentia” mas personificado em uma das
personagens ficcionais. Percebe-se claramente este amálgama em passa-
gens diversas do texto, onde fica patente que o narrador conta sua histó-
ria, dependendo diretamente do contraponto produtivo da construção do
texto através do ato da leitura. Assim, a polissemia do contar providencia
significações as mais diversas, propiciando múltiplas interpretações:

“Mas conte comigo. E conte-me tudo.


Engraçado: contar a alguém, contar com alguém.
Você insiste”
Tem de contar comigo. Tem que contar-me tudo. Porque
ela conta muito na sua vida
Mais engraçado ainda: tudo é contar” (A.F. p.228)

A polissemia do significante contar, empregado com três signi-


ficados diversos sublinha a importância do interlocutor, do parceiro do
diálogo confessional, destinatário da mensagem e do próprio texto ficcional.
Temos assim, no plano da enunciação, a marca indelével da
ambiguidade que torna o discurso do narrador operante, funcional e alici-
ante. O leitor participa da narrativa pois os fatos lhe são revelados em
simultaneidade e contiguidade, situando-se no espaço dramático do texto e
não no tempo, permitindo o diálogo das personagens com os seus duplos,
através de discursos reveladores e sutis.

3.3 - O repertório ficcional e os limites de uma época.

O repertório de Um Amor Feliz providencia a construção de uma


situação-quadro - contexto em que se compreende o próprio texto -, apoian-
do-se na ambiguidade do discurso dialógico, na ambiguidade diegética e na
intertextualidade. O romance é uma longa fala do narrador-personagem, es-
tando implícita, no discurso dialógico do narrador, a réplica do outro. A
ambiguidade diegética fundamenta-se nas focalizações de pessoas diversas
sobre os mesmos fatos, transformando-se personagens e espaços em signos
ideológicos que balizam as intersecções entre o mundo da essência e o mun-
75

do da aparência, onde se debate o eu-narrado, personagem protagonista


da trama ficcional. A intertextualidade realiza-se pelo entrecruzamento
dos discursos de diferentes camadas sociais - pluridiscursividade - e pe-
las inserções de textos literários - versos, poemas, citações e alusões -
que aparecem com novo sentido, contextualizados pela utilização da iro-
nia e da paródia.
O jogo de dualidades, que se estabelece entre o narrador-prota-
gonista e a personagem-confidente, permite que a figura de um personagem
secundário - o escritor David, amante da personagem-confidente (calcado
como já apontamos no próprio autor David Mourão-Ferreira) seja criticado,
providenciando uma espécie de “mea culpa” do autor implícito - de quem o
narrador funciona como um “alter ego” - e possibilitando uma configuração
do espaço sócio-ideológico onde se desenrola a diegese ficcional. O hori-
zonte problemático de uma época, o contexto onde se compreende o pró-
prio texto vai tendo seus contornos definidos, possibilitando a fusão de
horizontes do emissor e do receptor da mensagem, constituindo-se no
“humus” sócio-cultural onde se inserem as personagens.
Depois de 25 de Abril, com aquela sina de lhe terem cabi-
do, como se diz, umas quantas responsabilidades políti-
cas (quem as não teve?, quem as teve de maneira respon-
sável?), dificilmente lhe perdoei, com este meu tempera-
mento de anarca, tê-lo visto para aí misturado, à ilharga
de pavõezinhos mais recentes, com uma frandulagem de
falhados, de ambiciosos e de charlatães, que a gente já
conhecia de ginjeira há quase trinta anos, que já desde
essa altura não poderia tomar a sério, e que ele tinha
mesmo obrigação de avaliar muito melhor do que eu. Um
dia, em nome de um dos tais (...) até caiu na esparrela de
me convidar para já não sei que almoço ou jantar ´ofici-
al´, que reuniria a fina flor da ´intelligentizia´ lusa, e em
que tive, como é evidente, o grandíssimo gosto de não
pôr os pés. (A.F., p. 77)

Configura-se o quadro da sociedade onde se inserem as perso-


nagens, em um mundo de relações e inter-relações, providenciando-se um
retrato de comportamentos dominantes e suas contradições. Os persona-
gens transformam-se em vetores ideológicos, simbolizando diversas pos-
turas e cosmovisões no painel da época que no texto se presentifica. O
Niassa, artista incompreendido, marginalizado pela sociedade e pelo suces-
so, David, poeta bem sucedido, colaborador de uma nova ordem social e
por ela decepcionado, o narrador-personagem, Fernão, escultor de sucesso
76

contestador e rebelde, inconformado com os estreitos limites do cotidiano,


à procura da Beleza e da realização, e todas as personagens femininas per-
mitem-nos uma visão caleidoscópica da sociedade contemporânea, questi-
onada e modelizada além dos seus próprios limites.

3.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia

Backhtin concebe todo o discurso como um diálogo, afirmando


que não há enunciado fora de suas relações com outros enunciados, e que
essas relações são análogas às relações entre as réplicas de um diálogo.
Decorre desse dialogismo a noção de intertextualidade. Essa perspectiva
permite a concepção de qualquer texto (notadamente o literário), como um
diálogo de vários registros: do narrador, do autor implícito, do destinatário,
do contexto cultural atual ou anterior onde se inserem o texto e o leitor.
Realiza-se, portanto, um cruzamento de superfícies textuais, configurando-
se uma pluralidade altamente operativa, um sujeito plural em diálogo: diálo-
go de discursos, diálogo de sujeitos numa encenação dramática, em que
reverberam múltiplos textos.
Todo texto é absorção e transformação de um outro texto, atra-
vés de um processo de escrita-leitura, onde uma citação, uma alusão, uma
apropriação de um texto reaparece fora de seu contexto primeiro; o “velho”
torna-se “novo” numa re-utilização que o descontextualiza, possibilitando
uma nova leitura, com uma variada gama de conotações.
Em Um Amor Feliz o discurso do narrador autodiegético, alter-
nando-se e entrecruzando-se nos planos do enunciado - tempo do relato,
do “presente” diegético onde duas pessoas “realizam” um amor feliz - e da
enunciação - tempo do ato de narrar, metatexto sobre a construção do pró-
prio romance, onde se inserem o autor implícito e o narratário, estabelece
um jogo de equívocos, com a utilização do discurso indireto livre (com o
uso de parênteses, aspas, reticências, inserção de falas no discurso do
narrador) e dos discursos diretos, instaurando-se o domínio do dialogismo
e da intertextualidade.

La me esquivei o melhor que pude à insitência das duas


escanifradas e ambulantes ruínas, garantido-lhes que já
estava a escrever (mentira), como derivativo a outros
trabalhos, essa inocente historieta de art fiction, e que
teria muito gosto em brevemente lhes enviar a ambas, só
para elas, claro, e que as não divulgassem, umas cópias
datilografadas. (Nova mentira, evidentemente: viesse eu
77

algum dia a escrever a historieta, quem me dera que a Lite-


ratura ma apreciasse, que a Informação ma difundisse! No
fundo não passo de um escritor frustrado) (A.F. p. 23/24)

A utilização do discurso entre parênteses - plano da enunciação,


do ato de narrar - estabelece um diálogo entre o leitor e o autor implícito, previs-
to pelo próprio texto. A ambiguidade é reforçada pela ironia que o leva a nomear
as duas mulheres, provavelmente uma professora de literatura e uma jornalista,
já velhas embora influentes, de Literatura e Informação, providenciando uma
leitura às avessas, já em pleno domínio do carnavalesco. O que se afirma no
plano do enunciado (discurso do narrador autodigético) é negado no plano da
enunciação (discurso entre parêntesis).
As personagens do romance são apresentadas também sob o sig-
no do duplo. Temos a focalização do narrador autodiegético e a focalização das
próprias personagens, possibilitando-nos a compreensão das suas caracterís-
ticas mais marcantes, não somente pelo discurso dialógico do narrador, mas,
mimeticamente, pelos seus próprios discursos. Realiza-se a intertextualidade
entre as falas de representantes das mais diversas camadas sociais.
Assim a diarista Floripes identifica-se pela enxurrada de pala-
vras que constitui o seu discurso, análogo ao de Laurentina, ambas de
camadas sociais mais pobres; a mãe do narrador-personagem pela influên-
cia do italiano, seu idioma natal, e a Y pelo uso de inúmeros vocábulos
estrangeiros, mostrando não somente seu cosmopolitismo, mas principal-
mente a fragmentação do seu eu, sua luta entre a consciência social do
certo ou errado, a par da verdade de seu amor, indispensável para “mantê-
la viva”. Sua culpa é atenuada pois vive num mundo enredado pela mentira
e falsidade. Falando sobre a carta da Y, quando precisa abandonar o país,
repentinamente, por problemas familiares, o narrador afirma que:
A transcrição integral seria penosa. Bastará o post
scriptum: até porque o sei de cor. Curiosamente (que
diria o Freud?), todos os seus curtos períodos começam
por ´não´:

Não calcula como custa. Não quero dizer Adieu. Não sei
se posso dizer Au Revoir. Não me procura (sic). Não me
esquece (sic). Não imagina como soube me fazer feliz.
Não sei quando volto. Não sei se volto. (A.F., p. 251)

O recurso do sonho é usado para estabelecer inter-relações en-


tre as personagens femininas: a Zu, a personagem-confidente, a Y e a sua
própria esposa, providenciando uma polifonia de vozes e visões, que se
78

confudem e se sobrepõem, montando uma nova imagem da mulher: mãe,


esposa, amante, amiga, numa simbiose altamente conotativa:

Outra vez você (a personagem-confidente) com a cara da


Zu, com o corpo da Zu. Mas a voz é sua; os cigarros os
seus; os jeans também.
Estamos numa sala abobadada, rectangular ou
trapezoidal, recoberta de estantes em três das paredes,
enquanto a quarta - que parece a mais ampla de todas -
se mostra constituída por uma única e enorme vidraça.
Reina, la fora, a mais completa escuridão: como se fosse
la fora o fundo do mar. E só o interior da sala se apresen-
ta profusamente iluminado. Temos diante de nós um re-
trato semelhante ao que fiz da Zu nessa mesma tarde: o
rosto, no entanto, é o da Y.
´Com estes olhos tinha de acontecer...´ comenta você, em
jeito de consolação, com todo o ar de estar a cumprir
uma visita de pêsames. ´Mas conte comigo. E conte-me
tudo´.
Vou a dizer-lho, mas já a minha mulher se encontra junto
de nós, incrivelmente mais magra, toda vestida de preto
(...) (A.F., p. 228)
A fusão das mulheres de sua vida providencia a constatação da
angústia que o assola quando separado da Y. Ela preenche um espaço vazio
de sua vida amorosa e sexual, que já foi ocupado pela esposa, agora grande
amiga e companheira, muito mais mãe do que amante. Aliás é sempre sob a
focalização de uma figura maternal que sua esposa aparece, constatando-se
sua seriedade como profissional e sua generosidade como ser humano, que
se refletem em suas falas e diálogos, marcados pela correção e sobriedade.
Mas é a Y, a mulher, a parceira sexual de um “amor feliz” que o põe
inquieto e ansioso, trazendo-lhe a completude de um relacionamento intenso,
que já não julgava possível. É através do discurso confessional do narrador
à personagem-confidente, interlocutora do diálogo ficcional, que podemos
compreender e avaliar os envolvimentos afetivos e sociais, bem como os
conflitos interiores, que vão delineando personagens - inclusive o próprio
narrador - de grande densidade humana e de complexa textura dramática,
disfarçadas sob a aparente futilidade de seus comportamentos.
O romance configura-se, pois, como um longo diálogo “in
praesentia” com uma personagem-confidente, mas, como já apontamos,
79

“in absentia” com um tu, narratário onipresente no discurso dialógico,


fazendo deste texto uma obra aberta a uma pluralidade de leituras, que
advêm da dinâmica participação do leitor na decodificação da mensagem
ficcional. A pluridiscursividade e a polifonia refletem-se nos diferentes
registros, nas falas das personagens que transitam entre os diversos pla-
nos da narrativa.
Presentificam-se, durante toda a narrativa, dualidades intrín-
secas e uma intertextualidade interna - diálogos entre discursos do texto
com o próprio texto, que nos permitem conhecer a verdade sob ângulos
diversos. O protagonista, enquanto narrador autodiegético transmite-nos
a sua visão do mundo como artista e como ser humano, convivendo com
outros seres à procura da comunicação, da completude amorosa e exis-
tencial, marcado pelo signo da rebeldia, que é também a marca de seu
discurso.

3.3.2 - Representação e diegese - Os “pífios anos 80”

Outro aspecto da intertextualidade que se pode constatar nessa


obra realiza-se com trechos, citações, versos, poemas, excertos de outros
autores que aparecem inseridos no discurso, constituindo-se em estratégi-
as textuais, parte integrante do repertório ficcional.
O sentido do texto repousa, como já vimos, num conjunto de
convenções, tradições, normas históricas e sociais - o “húmus socio-cultu-
ral” de onde o texto é proveniente, bem como nas normas selecionadas de
realidades extratextuais e alusões literárias. Cria-se um modelo ideológico
verbal do mundo, a partir do repertório do texto que emana do repertório do
próprio autor e deve encontrar certa consonância no repertório do leitor. É
esta interação que vai providenciar a fusão de horizontes de expectativas
numa situação comum, indispensável para a construção do sentido do tex-
to pelo leitor.
A utilização de passagens de outros textos - literários, musicais,
culturais - num processo intersemiótico, designando, como propõe J.
Kristeva, a transposição de um ou vários sistemas de signos em um outro,
pode-se fazer de forma sutil, sem marcas definidas, pode ser destacada com
aspas, negrito, parênteses, incorporando-se ao texto com um sentido novo,
que conserva a “penhora” de seu significado primeiro, mas é enriquecido de
diferentes conotações que providenciam a plurisignificação do texto artístico.
Temos, assim, exemplos onde se realizam sutis intersecções com
a poesia de Fernando Pessoa, usado como um patrimonio comum, uma
80

apropriação cultural decorrente de íntima e frequente convivência:


Juraria, apesar de tudo que nos encontramos ambos a
deriva entre o que somos por dentro e o que a nossa
época nos obriga a fazer. (A.F., p. 19)
e, bem mais adiante:
(...) umas velhas casas ainda vagamente senhoriais, uns
velhos portões entreabertos sobre o infinito de coisa
nenhuma, uns velhos muros cobertos de hera ou de vi-
nha virgem, a resistirem, humildemente heróicos, à vul-
garidade confrangedora de pelintras e pretensiosas
urbanizações, de casinhotas e fabriquetas que os vão
cercando.(A.F., p.122)

Observe-se, ainda, nessas citações o predomínio de um registro


lírico, que pode ser detectado pela repetição de sintagmas - “velhas casas”,
“velhos portões”, “velhos muros” -, ou pela adjetivação impertinente “mu-
ros humildemente heróicos”. Configura-se a contaminação do discurso
ficcional por procedimentos do discurso poético, providenciando-se um
espaço de reflexão e introspecção, produzida pelo narrador e presentificada
pelo narratário.
Mais adiante, a citação de Fernando Pessoa é marcada pelo
parêntesis, e re-utilizada como no texto original:

Ao balcão lá para o fundo, apenas uma empregada,


absorta e bonitinha, com o ar angélico de quem prefe-
ria comer chocolates (´come chocolates, pequena;
come chocolates!´) ao fadário de estar ali aviando li-
vros (A.F., p. 124)

O efeito que se pretende com esse intertexto, no entanto, é bem


diverso dos dois primeiros. É antes uma ironia complacente, uma crítica ao
descaso com a cultura e o pouco interesse em ser alguma coisa mais do que
“bonitinha”.
Na mesma página, mais abaixo, confirma-se a intenção irônica
do narrador, que busca na referida livraria manuais de astrologia, e é com
esse registro pseudo-científico, “mero cotejo de lugares comuns” que se
vai tecer o discurso narrativo. Na verdade esse intertexto sublinha a ironia
maior: a perda de tempo de um intelectual em procurar apoio e orientação em
“receitas de astrologia”. Ainda que a ironia e a paródia sejam marcas domi-
nantes nessas passagens, cria-se uma ambiguidade e um dialogismo entre
81

diferentes enfoques que oscilam entre a crença e a descrença. O leitor não


pode ter certezas e diversas variáveis da recepção podem ser aventadas, em
razão da relativização da verdade que se faz presente:
Poupá-la-ei ao suplício de lhe transcrever aqui na ínte-
gra o que os autores do referido manual (eram dois) opi-
navam acerca dos nativos de Touro com ascendente em
Peixes. Mero cotejo de lugares comuns: contatos fáceis e
numerosos; propensão para criar climas (?); amor das
artes, da natureza e dos prazeres, mas (sic) sem materia-
lismos excessivos; etc., etc. E tudo isso assim rematado:
Atracção pela Virgem. Oh, que manual mais
desactualizado! Para não falar já da inexistência de vir-
gens no mundo de hoje, Virgem é o signo da minha mu-
lher. (A.F., p. 124)
A ação dramática da diegese ficcional centra-se no relacionamen-
to amoroso entre o personagem-narrador (Fernão) e a bela Y, instaurando-se
o conhecimento mítico do homem e mulher primordiais, parceiros amorosos
que se completam. No entanto a construção do espaço textual providencia a
modelização de um mundo possível calcado na sociedade dos anos 80, “os
pífios anos oitenta” que se vão desenhando através das focalizações das
personagens, da intertextualidade interna (diálogos entre discursos internos
ao texto) bem como da intertextualidade externa (com textos de outros auto-
res) da pluridiscursividade e polifonia que se concretizam numa narrativa
marcada como já dissemos, pela ironia e pela paródia, configurando-se a
carnavalização do discurso, como um polo de interações, onde se encontram
narrador e narratário, construções estruturais do próprio texto.

3.4 - Os vazios do texto e o papel do leitor

A contingência do texto ficcional - eventualidade, imprecisão -


coloca em abalo a interação texto/leitor. Por outro lado é a própria contin-
gência de um discurso que assegura o sucesso desta relação pela confi-
guração de uma situação comum a um e outro através da fusão de toda
situação normativa, uma vez que se constitui como um organismo vivo,
um inventário de estímulos, aos quais o leitor responde com as suas dis-
posições representativas, no curso de uma leitura ou várias re-leituras.
A validade do familiar aparece suspensa no texto ficcional, pro-
videnciando, assim, a criação de vazios na interação emissor/receptor. Es-
tes vazios são eficazes pois, colocando em abalo a relação dialógica entre o
82

texto e o leitor, produz as codições de reconhecimento de uma situação -


quadro, onde texto e leitor atingem a convergência (fusão de horizontes,
situação comum). No discurso de ficção constrói-se aquilo que é dado,
preliminarmente, na linguagem corrente.
A leitura, como um processo dinâmico relacional, produz a di-
versidade de acessos ao texto, possibilitando vários enfoques ou perspec-
tivas que desenham, ao final, para o leitor, uma situação global do texto.
Essa relação se desdobra enquanto processo de constantes realizações de
significados, a cada vez produzidos e modificados pelo leitor.
Assim sendo, a mensagem ficcional é decodificada, não so-
mente através do que é dito, mas principalmente pelo não-dito, pelos
brancos e vazios, pelos intervalos que se estabelecem na construção do(s)
sentido(s) do texto.
Em Um Amor Feliz a ambiguidade, o jogo de dualidades intrínsecas
(enunciação/enunciado, narrador/narratário) o dialogismo e a intertextualidade,
a pluridiscursividade e a polifonia são estratégias textuais que, preservando a
contingência do texto ficcional, constroem o repertório, providenciando e pre-
vendo a possibilidade de uma situação comum com o repertório do leitor.

3.4.1 - O autor implícito e o leitor narratário (Poiesis, Aisthesis e


Katharsis)

É preciso, no entanto, sublinhar a funcionalidade e o efeito do


jogo que se estabelece entre o narrador, o autor implícito e o leitor narratário,
frisando-se que, tanto o último como o segundo, são representados por
personagens secundários inseridos na própria diegese ficcional. Recupe-
rando o que já foi estudado, repetimos que o autor implícito é representado
pelo personagem David, calcado sobre o próprio autor, e o leitor-narratário
incorporado pela personagem-confidente, parceira do diálogo, interlocutora
do narrador, configurando uma presença material do leitor no texto.
A presença do autor implícito faz-se, portanto, sob a ótica do
narrador, através de um personagem secundário, um escritor conceituado,
participando ativamente da vida cultural e política do país e amante da
personagem-confidente. Além dos objetos e descrições que o identificam
“inseparável cachimbo”, o sucesso intelectual e artístico, a meia-idade, a
calvície - o narrador autodiegético deixa transparecer afinidades reais entre
eles, embora, aparentemente, forte antipatia os separasse. São ambos artis-
tas afamados (escultor e escritor), planejam fugas e viagens que os libertem
do cotidiano, são homens maduros, amantes de mulheres bem mais jovens,
83

e vivem a experiência de um “amor feliz”. Assim sendo, apesar da aparente


inimizade entre eles, o narrador já pressente uma amizade futura:
O mais curioso é que pela primeira vez desde há muitos
anos me acontecia VER o seu amigo sem que por ele
sentisse qualquer espécie de animosidade. Até lhe des-
culpava o cachimbo; até estaria pronto a perdoar-lhe
outras coisas. Talvez a vossa escapada a Veneza intervi-
esse um pouco nessa minha boa vontade.
Mais ainda: que teremos também, em matéria de vida e
de ficção (onde acaba uma?, onde começa a outra?),
provavelmente a mesma intrínseca disponibilidade. Quem
o diria! Talvez estivéssemos afinal predestinados a vir
um dia a ser amigos.(A.F., p.214/215)
Mais adiante, numa passagem bastante esclarecedora, o
narrador-personagem conversa com o escritor David estabelecendo uma
metanarrativa sobre a elaboração do próprio romance que estamos lendo
(O escritor David)
‘Pois então fica sabendo que pela minha parte tenho o
projecto de um romance a respeito de um tipo que és tu,
ou mais ou menos tu... Mais ainda: em que tu próprio
sejas o narrador. Isto é: um romance a teu respeito e con-
tado por ti.’

(narrador-personagem)
‘Parece complicado, rosnei.

(narrador-personagem)
‘E se eu já estivesse a escrever esse mesmo romance?’

(o escritor David)
‘Mais divertido ainda’ respondeu.
‘Será talvez necessário que tu queiras escrevê-lo para
que eu possa escrevê-lo. O que é o pobre do autor diante
dos poderes e dos caprichos do narrador?’

(narrador-personagem)
Continuei: ‘Imagina também que até resolvo colocar-te,
no romance em causa, como simples comparsa, como per-
sonagem de secundaríssima ordem que é o que tu mere-
ces?’ (A.F., p. 267/268)
84

Percebe-se, nitidamente, que se inter-relacionam seres reais e


seres ficcionais - de um lado autor e leitor e de outro narrador, narratário e
personagens - bem como os planos da enunciação e do enunciado, fundin-
do-se o real e o ficcional num todo único e orgânico.
Configura-se um “alter-ego” do autor implícito na figura do es-
critor David, amante da personagem-confidente, que vem possibilitar uma
“visão com”77 o narrador e ao mesmo tempo uma “visão por fora” do autor
da narrativa, através de uma criatura ficcional criada por ele mesmo.
Respondendo a uma interpelação do escritor-personagem se-
cundário - David, o narrador autodiegético, protagonista de um “amor
feliz” afirma:

´Sabes que mais?´,respondi. ´Escusas de me estar a levar à


certa. Queres um conselho? Dou-te mesmo uma data de
conselhos... Escreve sobre o Savinio, escreve sobre o
Stendhal: eles merecem. Continua a trabalhar na
Gulbenkian: a Gulbenkian merece. Continua a dar aulas,
continua a fazer conferências: os alunos e os ouvintes
merecem. Continua a escrever umas bonitas poesias emo-
cionantes para as meninas emocionadas as pespegarem
depois aos senhores com quem vão para a cama e para
esses mesmos senhores te ficarem então com uma certa
raiva: tu mereces... Mas o romance, o romance deixa-o
para mim. Cá saberei desv encilhar-me. (A.F., p. 269/270)

Todas as afirmações são calcadas nos fatos, na realidade da


vida de David Mourão-Ferreira. É o autor chamado para o texto, fundindo-
se o factual e o ficcional, através dos diálogos, dos intertextos, da represen-
tação do real no ficcional.
O leitor, feito co-autor do texto ficcional vivencia o prazer estéti-
co da “Poiesis” decorrente da construção do texto pelo ato da leitura, atu-
alizando possíveis combinações de discursos que se alternam, se
complementam e até se contradizem. A consciência receptora, o prazer de
renovar sua participação no mundo, de uma nova percepção da essência
humana através do jogo lúdico do texto, definem a “Aisthesis”. A fruição
de si no outro, a liberdade de potencializar sua capacidade de julgar e envol-
ver-se, de se poder ver refletido na própria diegese ficcional, libertando-se
do cotidiano, configura o prazer efetivo da “katharsis”.
Em Um Amor Feliz encontramos respaldo para vivenciar o pra-
zer estético da leitura, em todas as suas acepções, graças à construção de
85

um texto complexo, plural onde o espaço do leitor é preservado pela


artisticidade do discurso e pela modelização de um mundo ficcional, onde
nos encontramos autores/narradores, personagens e leitores em perma-
nente diálogo.

3.4.2 - Texto, Contexto e Metatexto - A invasão da narrativa pelo


discurso

O mundo das aparências revela-se através da paródia simbólica


- seres humanos/navios/barcos - e pela ironia das relações sociais falsas e
superficiais e o mundo da essência através das diversas formas de amor. O
amor/sexo, completude biológica e ontológica pelo “amor feliz” com a Y; o
amor/respeito, admiração quase filial pela esposa que substituiu a mãe,
sempre ausente e o amor/amizade com a personagem confidente. Constrói-
se, assim, o contexto onde se desenrolará a diegese ficcional.
As várias perspectivas narrativas, organizadas dialogicamente
a partir do uso simultâneo de discursos das mais diversas camadas sociais
- mimetizando as falas das personagens - introduzem a polifonia e a
pluridiscursividade possiblitando várias leituras do texto ficcional nos diá-
logos narrador-leitor, narrador-autor, narrador-personagens. A construção
do romance no romance configura um metatexto crítico, questionando e
justificando o próprio texto num processo de autoreflexibilidade.
Assim sendo, é através do discurso que o narrador nos apre-
senta um universo diegético, marcado pela ambiguidade, dialogando com o
narratário e alterando, consequentemente o movimento linear da trama.
Concretiza-se um jogo entre o eu que narra, o eu que vivencia e o tu que
passa a participar da ação. O domínio absoluto do narrador é quebrado pelo
dialogismo, pela pluridiscursividade, e pela intertextualidade, apresentan-
do-nos personagens inseridas num contexto, modelização do real que se
presentifica no texto ficcional, onde se constata a invasão da narrativa pelo
discurso, neste romance exemplar da ficção portuguesa contemporânea.
A Y, enigmática e misteriosa, simboliza a incógnita da própria
Arte, a busca incessante da Beleza, no corpo da mulher e na escultura do
artista. O nu da mulher, o corpo erotizado, o objeto do amor funde-se com o
mundo material, providenciando a cisão entre o viver erótico e sua repre-
sentação, como constatamos em sua própria poesia: “no teu corpo existe o
mundo todo”78. Síntese das mulheres plurais que povoaram e povoam a
vida do narrador/protagonista, a Y é a personificação da mulher ausente,
carne e estátua, perversa e serena, poesia, arte encarnada, mito:
86

(...) no longo capítulo da transferência dos corpos, nas


mulheres plurais, há só uma: a Ausente. Essa é a grande.
Essa é a real. A hipér bole da restrição para a pluralidade
dos sentidos, a monovalência sempre exterior, o desafio
ao percurso, a prova efectiva do drama, o dispositivo da
alteridade, a concreta e a arbitrária (...) A Ausente, a
sempre Ausente, é esse excesso evanescente - onde a som-
bra de um poeta/de repente nos abraça? 79

Notas
73
Mikhail Bakhtin - Questões de Literatura e de Estética (A teoria do roman-
ce). São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC, p. 146.
74
Fernando Mendonça - “A renovação do romance português”. O Estado
de São Paulo. São Paulo: 11 fev. 1989. Cultura, v.7, n.º 447, p.6.
75
As demais obras do autor estão arroladas no Anexo 1 (Ficha Bibliográfica
de David Mourão-Ferreira)
76
David Mourão-Ferreira - Um Amor Feliz. 3a. ed. Lisboa: Editorial Presença,
1987 (p. 16).
Todas as citações do romance no presente estudo serão dessa mesma edi-
ção, sendo indicada pela sigla A.F., seguida do número da(s) página(s).
77
Jean Pouillon - O tempo no romance. São Paulo: Cultrix/Edusp (1974). O
autor desenvolve os conceitos de “visão com”, “visão por fora” e “visão
por detrás”.
78
A Obra Poética I - Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, p. 241.
79
Maria da Glória Padrão - “Uma eleição” In Letras e Letras. Ano I, no. 8, 01
julho de 1988, p. 10.
87

O leitor-organizador e a pluralidade das narrativas em História do


Cerco de Lisboa. A montagem do texto pelo leitor.

Graças a este modo de conceber o tempo histórico -


projectando-o em todas as direções -, autorizo-me a pen-
sar que o meu trabalho literário, no campo do romance,
produzirá uma espécie de jogo contínuo em que o leitor
participa directamente, por meio de uma sistemática pro-
vocação que consiste em ser-lhe negado, pela ironia, o
que lhe fora dito antes, levando-o a perceber que se vai
criando no seu espírito uma sensação de dispersão da
matéria histórica e da matéria ficcional, o que, não sig-
nificando desorganização duma e outra, pretende ser uma
reorganização de ambas.(José Saramago)80-

O leitor de Saramago envolvido pelo jogo dialético entre maté-


ria histórica e ficcional, - cada uma envolvendo registros próprios, dis-
cursos que procuram mimetizar uma adequação à linguagem da época
histórica (sec. XII), à linguagem científica da História, à linguagem do
romance histórico tradicional e ainda à linguagem cotidiana da ação
ficcional -, vê-se obrigado a organizar uma pluralidade de narrativas, bus-
cando a significação da obra através de significados diversos, oferecidos
pelas estruturas de apoio do texto na sua multiplicidade caleidoscópica.
A montagem do texto obriga o leitor a percorrer a narrativa, na
senda de um narrador complexo, que não apresenta uma voz única mas,
bem ao contrário, é substituível, parece ter sempre a capacidade de se
transmutar em outro, aderindo a um ou outro personagem, cedendo-lhes
não só a focalização mas até mesmo a própria voz, assumindo-se como
uma pessoa coletiva e levando o leitor-narratário a se sentir identificado
com esse narrador que, de um modo ou de outro, aparece como uma cons-
tante ao longo da narrativa.
A re-leitura das raízes nacionais, através da incorporação no
discurso ficcional, de ecos da narrativa histórica do séc. XII e do romance
histórico tradicional, sublinha o caráter essencialmente português da
88

obra, falando de gente concreta, habitantes de um Portugal de ontem e


de hoje. A abertura para a auto-referencialidade - com a construção do
romance no próprio romance, o experimentalismo, a multi-focalização, a
reflexão sobre valores ideológicos e estéticos que sublinham a escritura
do texto - imprime a marca do universal, configurando-se o projeto esté-
tico do autor, tanto no esforço de superação de premissas persistentes
do realismo/naturalismo, quanto na busca de uma saída para o
subjetivismo exacerbado, que se faz presente em grande parte da ficção
contemporânea.
Aflora como implacável necessidade, a inevitabilidade de con-
frontar, a partir da ficção, o mundo dos comportamentos da sociedade
portuguesa dos primórdios (séc. XII), em sua época de formação, aos
nossos dias (séc XX), quando transcorre a ação principal da primeira
narrativa. O cenário histórico é totalmente diverso, mas o cenário huma-
no é, mais ou menos, o mesmo. A conquista e a realização do amor entre
Mogueine e Ouroana, às portas da cidade dominada pelos mouros, e
entre Raimundo e Maria Sara, às portas da indiferença e intolerância de
uma cidade dominada pelos livros - mimetizada pela própria editora -
equivalem-se e repetem-se. A alteração da visão da História permite
reativar, dinamicamente, a comparação entre o passado histórico e o
presente. É possível refletir sobre o Portugal de hoje, a partir da recons-
trução da História, superando a asfixia dos mitos tradicionais, sem os
quais se parecia impossível viver, possibilitando assim, a eclosão de
uma nova verdade, como se fosse possível resgatar pela ficção mais
verdades do que pelo próprio real.
O leitor sente-se imerso na complexidade de um romance
plural, com narrativas organizadas como círculos concêntricos irregu-
lares, que se tocam e interagem em suas construções de sentido, fun-
dindo História e ficção. Vê-se inserido num labirinto esfíngico e é
levado à aventura da concretização do texto ficcional sob a égide da
“poiesis”, a comum montagem do texto entre o polo da construção -
criação pelo autor - e da re-construção - presentificação do texto pelo
ato da leitura.
Seria esse procedimento ímpar na obra de Saramago? Signifi-
ca essa História do Cerco de Lisboa um novo caminho ou uma conti-
nuidade na obra do autor? Para que possamos compreendê-la em sua
abragência, necessário se torna ressaltar o itinerário ficcional de José
Saramago, situando o texto que ora analisamos, no contexto de outras
obras, ideologias e procedimentos estético- ficcionais que marcam seu
percurso literário.
89

4.1 - Localização do romance na obra do autor.

Recordo-lho que os revisores são gente sóbria, já viram


muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu, é
de história, Assim realmente o designariam segundo a
classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo
propósito meu apontar outras contradições, em minha
discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida,
é literatura, A história também, A história sobretudo, sem
querer ofender, (...)
—————————————————————————
O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito,
cultiva magistralmente a ironia, chego a perguntar-me
como se dedicou à história, sendo ela grave e profunda
ciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queria
a mim parecer que a história não é vida real, literatura,
sim, e nada mais, Mais a história foi vida real no tempo
em que ainda não poderia chamar-se lhe história, (...)81

História do Cerco de Lisboa é um romance de maturidade, se-


gundo alguns críticos talvez a melhor obra de Saramago, que, embora de
construção complexa, revela uma simplificação da linguagem, que a torna
mais acessível a um público mais numeroso. Extremamente inventivo, o
autor manipula com maestria o jogo temporal estruturado, na sobreposição
de três planos narrativos: a narrativa da História do Cerco de Lisboa escri-
to por José Saramago, a narrativa do romance histórico de mesmo nome,
escrito pelo Sr. Doutor, e a narrativa de um texto ficcional, também de
idêntico nome, decalcado no texto histórico, negando um fato real, e escrito
pelo revisor Raimundo Silva, personagem principal da primeira narrativa.
José Saramago sobressai-se, dentre os mais representativos au-
tores da ficção portuguesa atual, pela sua narrativa densa e complexa, onde
afloram contínuas e diversas possibilidades de sentido e ação, atraindo o
leitor para dentro do texto, partícipe da co-apropriação de fatos históricos -
realidade extra-textual - pela própria trama. Recria-se o mundo ficcional atra-
vés da revitalização de sentidos e da construção textual, fundada na produti-
vidade de intertextos, onde o velho aparece com um novo sentido. O crivo
crítico da ironia, a subversão de valores tradicionais, a valorização do femini-
no, o resgate de potenciais personagens “inferiores” da História/história,
providenciam o processo de construção da verdade, posta a nu e recontada
pelo texto ficcional.
90

Nascido há 66 anos em Azinhaga, Concelho de Santarém,


Saramago veio muito novo para Lisboa, onde cursou a escola até os 17
anos, tendo terminado, por razões financeiras, apenas o curso secundário
na Escola Industrial Afonso Domingues, em Xabregas, onde começou a se
interessar por literatura. Trabalhou cerca de dois anos numa serralheria
mecânica, que era o curso em que se formara, foi desenhista, empregado no
comércio e numa editora - Estúdios Cor - que dirigiu literariamente e onde
começou a viver dos livros e para os livros. Como jornalista co-dirigiu o
Diário de Notícias e foi colaborador de Seara Nova, mantendo colabora-
ção na revista Status do Brasil.
Escreveu seu primeiro livro em 1947, aos 25 anos - Terra com
Pecado - de cunho acentuadamente naturalista, apagado por ele de sua bio-
grafia e do qual, segundo entrevista no Jornal de letras, artes e idéias82, não
guardou nenhum exemplar, afirmando ainda que “depois desse tive mais
duas outras idéias, ainda devem andar por aí uns papéis...”
Volta a publicar apenas em 1966, já com 44 anos, Os poemas
possíveis e Provavelmente Alegria em 1970, não se tendo encontrado na
poesia e, considerando-se, apesar da qualidade de alguns de seus poemas,
como um poeta apenas razoável, chegando a conclusão que essa não era a
“sua forma”.
Escreveu contos e crônicas, em textos que se constituem em
embriões de tramas novelescas, com fragmentos de grande riqueza diegética,
publicados em Deste Mundo e do outro (1971) e em A Bagagem do Viajante
(1973). O Ano de 1993 apresenta-se como uma obra de instigante estrutura
versicular, mas com uma organização semântica de tipo narrativo, revelan-
do já a recusa do autor em se enquadrar nos moldes narrativos dominantes.
Manual de Pintura e Caligrafia (1977) segundo Maria Alzira
Seixo83 “se debate tematicamente (e só tematicamente, a meu ver, o que lhe
diminui singularmente o alcance) entre veios de plurissignificação como o
duplo, o retrato, a máscara, a interrogação da identidade e da cópia, a
aglutinação das diferenças e uma linearização narrativa, que procura assu-
mir tais veios como pontos de partida para uma reflexão sobre a função e os
efeitos da escrita, espécie de harmonização viva que contraria uma base
mimética e especular como a do desenho, ou da pintura (no “especular”
começa no entanto já toda a história de autoquestionação do sentido deli-
neado, a traço ou a sema, da imagem atraiçoada por diversificações de sen-
tidos ou pela própria incapacidade de fidelidade do artista(...)”.
Sua publicação seguinte é um livro de contos, Objeto Quase,
onde aflora uma narrativa perfeita, lapidar, que vai desnudando um mundo
91

de aparências na fragmentação e no vazio, no excesso e no engano que se


revelam em alegorias configuradas no nível simbólico, entre a referência
metonímica e a analogia metafórica. Utilizando-se de vários procedimentos
do fantástico, os contos problematizam o tema do labirinto: labirinto da
cidade, da viagem circular, da ideologia absurda, da identidade e até da
destruição do próprio homem pelo objeto que o oprime, denunciando a
brutalidade de certos costumes e até mesmo a desumanização e a morte do
homem num mundo quase objeto. O fantástico e o absurdo são renovados
em seus processos construtivos, onde a minúcia e a lógica do encadeamen-
to são trabalhados com maestria, contextualizados no amplo quadro cultu-
ral e sócio-econômico de nossos dias.
Levantado do Chão (1980) é seu primeiro romance de grande
êxito, agraciado com o “Prêmio Cidade de Lisboa” - 1981, onde se desenvol-
ve a saga de uma família de trabalhadores rurais, (os Mau-Tempo) da região
do Alentejo, sul de Portugal, enfocada em três gerações que se sucedem
desde o início do século, até logo após a revolução de 25 de abril.
Aproveitando-se de acontecimentos históricos de mais de meio
século atrás, o romance apresenta-se como um quadro da opressão de tra-
balhadores rurais pela burguesia fundiária, compondo, no entretecer da
vida dos “Mau Tempo”, uma painel da própria história portuguesa,
modelizada sob o registro ficcional.
A aproximação Saramago/Neo-realismo deve ser vista com bas-
tante cuidado. É preciso atentar para o fato que, embora a ideologia neo-
realista esteja presente na diegese ficcional - uma vez que se fundamenta na
problemática social da vida no campo, com a oposição de opressores e
oprimidos e a utilização de personagens-grupo - por outro lado, a constru-
ção de um discurso peculiar, marcado pelo uso da ironia e do fantástico e
pelas mudanças constantes de focalização, providencia um distanciamento
da estética neo-realista. Podemos constatá-lo pelo acentuado investimento
do autor no ficcional, fazendo surgir a figura do narrador/contador de histó-
rias que se permite julgar, comentar e sublinhar os fatos e idéias, pouco a
pouco assumidos por focalizações das próprias personagens, transforma-
das, ao final do romance, em narradores de sua própria história.
Os deslocamentos temporais, funcionalmente organizados - jogo
temporal - providenciam a fusão do passado e presente, sublinhando a
marca de intemporalidade e permanência do latifúndio, com sua estrutura
de dominação, que se vai desvelando em anos de opressão e luta.
Saramago, embora ideologicamente identificado com o neo-rea-
lismo, realiza uma revisão de suas propostas, através do inteligente inves-
92

timento nas potencialidades ficcionais do discurso, com a valorização da


literariedade e artisticidade do texto, ficcionando a trama sem compromis-
sos imediatos com o factual e não deslizando nunca para o panfletário,
ainda que se utilize de um linguagem marcada pelo registro da luta do cam-
po, possibilitando aos leitores, os mais diversos, maior acesso ao texto.
A dessacralização de mitos, a contraposição ao nacionalismo
passadista, a ficcionalização de fatos e heróis do passado são responsá-
veis pela imagem desmitificada de Camões, personagem central da peça
Que farei eu com este livro (1980), onde a figura humana do poeta, seu
sofrimento, sua vaidade e humilhação afloram no cotidiano, nos avessos
do sucesso, na luta pela sobrevivência, onde se encontram juntos escrito-
res de ontem e de hoje.
Memorial do Convento (1982) realiza uma co-apropriação dos
fatos reais, ligados a história nacional, reconstruindo o passado através da
ficção. A problematização da natureza do processo histórico, a fragilização
das fronteiras entre história e ficção permitem a re-criação do mundo através
dos sinuosos caminhos da construção textual, revitalizando sentidos e res-
gatando a vida humana, através de personagens secundários da história.
O romance atualiza uma visão dialética da convivência entre os
tempos, onde passado e presente se interpenetram e se redimensionam, toca-
dos pela cosmovisão carnavalesca, instalando-se o choque entre o oficial e o
não-oficial, entre uma pseudo-elite (nobreza e clero) e o povo, entre o sagrado
e o profano. Os momentos históricos são revisitados pela desmitificação dos
heróis, pelo questionamento do caráter ideológico da história positivista, que
ignora e silencia a verdade dos relacionamentos humanos, esmagados pelas
noções abstratas de pátria, nação, e pela glória, sempre lembrada, das con-
quistas miríficas que marcam o imaginário português.
As personagens vivem em tensão entre espaços que se opõem
entre o oficial e o clandestino: um rei - D. João V - que quer “comprar” um
herdeiro e “comprar o céu” construindo um fabuloso e majestoso convento
em Mafra (sec. XVIII); um padre - Bartolomeu de Gusmão - que deseja voar
em sua “passarola”, desafiando a Inquisição, em permanente alerta e con-
tradição entre seus atos e os dogmas religiosos que deveria acatar; um
soldado maneta - Baltazar Setesóis - que após a guerra vai trabalhar em
duas construções: a construção do convento, onde vende seu suor e parte
da própria vida e a passarola, sonho comum de se libertar do chão e de si
mesmo; uma mulher - Blimunda Sete Luas - que vê os homens por dentro e
pode atrair suas vontades para reuní-las e prendê-las numa bola de cristal,
único modo de se fazer voar a passarola, convivem e se inter-relacionam
num terreno de sedução, fantasia e realidade.
93

O discurso ficcional, marcado por um intenso dialogismo, realiza


uma síntese dialética entre contrários pelo uso da ironia, da paródia, atuali-
zando-se a figura do narrador, marcado pelo signo do duplo e pela alteridade.
De um lado temos um narrador que, à imagem de um literato do sec. XVIII,
utiliza uma linguagem marcada pelo barroco, onde palavra puxa palavra en-
volvendo o leitor em sua magia e, de outro lado, temos uma segunda voz,
implícita no próprio discurso, como um contraponto irônico que, parodiando
e solapando afirmativas aparentemente “sérias e graves” propicia uma se-
gunda leitura, através da cosmovisão carnavalesca.
Em 1984, a publicação de O ano da Morte de Ricardo Reis vem
comprovar as preocupações do autor com um projeto estético, que tem
como base um diálogo com a literatura portuguesa, privilegiando a
intertextualidade como sua estratégia por excelência.
A reconstrução ficcional de um heterônimo pessoano - Ricardo
Reis, ele próprio um ser ficcional - inserido na sociedade portuguesa
salazarista, providencia uma focalização transfiguradora, onde se interpõem
a realidade histórica, através de notícias, de jornais, pronunciamentos polí-
ticos, anúncios publicitários e a visão poética de um ser ficcional, em
descompasso com o ambiente que o cerca.
História do Cerco de Lisboa, publicada como já dissemos, em
1989, sintetiza procedimentos e estratégias textuais que já estavam presen-
tes, de um modo ou de outro, em obras anteriores, como: a articulação do
diálogo, a utilização de certo tipo de pontuação , o jogo entre discurso
direto e indireto, a alteridade do narrador, a intertextualidade, o dialogismo
e a carnavalização. Ainda que privilegiando uma maior limpidez narrativa,
um discurso menos marcado pelo barroco como em Memorial do Conven-
to, o romance apresenta uma estrutura narrativa complexa, com planos nar-
rativos distintos, providenciando um jogo com o tempo - fusão de segmen-
tos de diferentes épocas e níveis diegéticos - de fundamental importância
para a constituição de sentido do texto.
Saramago publicou ainda O Evangelho segundo Jesus Cris-
to 84, que conquistou o Grande Prêmio da Associação Portuguesa de Escri-
tores (APE) de 1991, onde, realizando uma re-leitura dos textos bíblicos,
propõe uma nova visão humanizada de Jesus Cristo, bem como a visão de
Deus e do Diabo, o bem e o mal, como ângulos diversos de uma mesma
dominação.
A intersecção de intertextos literários, históricos e bíblicos vai
propiciar a invenção e re-invenção de sujeitos históricos/sujeitos ficcionais,
num texto composto de outros textos, aparecendo a verdade como uma
94

incógnita, que se revela apenas no desenrolar da própria diegese ficcional.


O presente simbólico e indicial do sofrimento de Jesus e os intertextos
pressupõem releituras dos textos bíblicos, especialmente dos Evange-
lhos, para com eles dialogar. A utilização de provérbios, chavões, lugares
comuns e o próprio processo construtor e desconstrutor da linguagem, o
discurso carnavalizado, a dessacralização do registro bíblico vão propiciar
a emergência da plurisignificação desse texto, onde o leitor está encarrega-
do de estabelecer nexos e relações, ocupando os vazios, o não-dito concre-
tizando-se diversas leituras da mesma obra.
História do Cerco de Lisboa pode ser visto como uma síntese
do projeto estético de José Saramago, marcado por uma complexa constru-
ção de planos narrativos, um discurso envolvente e extremamente produti-
vo e uma intersecção de ideologias, que se confundem e se auto-explicam.
Acrescente-se ainda a pluridiscursividade, o dialogismo e a
autoreferencialidade, que explica o fazer romance na construção do próprio
texto, e justifica-se, plenamente, a escolha dessa obra para uma análise mais
pormenorizada, onde se objetiva demonstrar o papel do leitor na organiza-
ção da narrativa, através da concretização do texto pelo ato da leitura.

4.2 - A produtividade do romance plural

Julgo que se passa o mesmo que aconteceu com o


Memorial: se posso dizê-lo assim, tenho simultaneamen-
te duas necessidades - a de introduzir uma linguagem
que não contradiga aquilo que tem de exprimir, neste
caso o sec. XII, que logre uma certa adequação ao tempo,
mas que, por outro lado, essa adequação não seja tão
completa que se institua como barreira para a compre-
ensão total.
————————————————————————
Dado o carácter frustre da linguagem do sec. XII, tão
distante do português que hoje falamos, mais cauteloso
eu tinha que ser, para que a barreira à compreensão não
fosse intransponível. Digamos que utilizo uma lingua-
gem de hoje com ecos do passado, que permite uma sen-
sação de outro lugar e outro tempo, e também por isto, de
outra gente. 85

História do Cerco de Lisboa emerge no contexto da ficção


narrativa portuguesa como uma obra que reflete o romance contemporâ-
95

neo, aparentemente desconexo, mas criando um universo fragmentado, pa-


ralelo ao seu próprio discurso. O homem em crise e a sociedade multifacetada
são retratados através de meta-narrativas, intertextos, polifonia de vozes e
focalizações levando-nos a constatar a relatividade dos acontecimentos,
reservando-se ao leitor o papel de catalisador da narrativa, que se concreti-
za através do ato da leitura.
Configuram-se nessa obra três planos narrativos que
correspondem a três romances que, como já vimos anteriormente, coexis-
tem em um mesmo texto: a História do Cerco de Lisboa escrita por José
Saramago, cujos personagens principais são Raimundo Silva e Maria Sara,
revisores de ofício e amantes; a História do Cerco de Lisboa romance
histórico sobre a reconquista de Lisboa aos mouros pelos portugueses,
ajudados pelos cruzados, relativo ao fato histórico ocorrido em 1147 - sec.
XII, escrito pelo Sr. Doutor e revisto por Raimundo Silva e a História do
Cerco de Lisboa que está sendo re-escrita por Raimundo Silva que, modifi-
cando um fato histórico, parte do pressuposto que os cruzados NÃO ajuda-
ram os portugueses na reconquista de Lisboa, e onde emergem como perso-
nagens principais o soldado Mogueime e a jovem Ouroana, personagens
inferiores da História, guinados à posição de actantes.
A utilização de diferentes registros de linguagem para lograr
“uma certa adequação ao tempo”, ou a utilização de uma linguagem cienti-
ficamente adequada a um livro de História ou ainda a um romance histórico
tradicional, faz com que se alternem discursos que mimetizam as épocas
aqui modelizadas, com seus personagens característicos e suas ideologias
próprias. A intertextualidade providencia a produção de um discurso plural,
através de interações: de um narrador com outro narrador, de um discurso
com outro, de um tempo com outro, possibilitando a coexistência de contra-
dições ideológico-culturais do presente e do passado. Várias vozes se fa-
zem ouvir e focalizações diversas propõem diferentes ângulos de visão
configurando-se uma relativização da verdade e exigindo participação do
leitor com suas projeções interpretativas.
Na narrativa primeira, todo capítulo inicial, em discurso direto
com um registro coloquial entre um autor (Sr. Doutor) e seu revisor, coloca-
nos, de chofre, em contato com personagens que se revelam através de
suas próprias falas, num presente diegético que se atualiza diante de nós:

O Senhor Doutor é um homem prático, moderno, já está a


viver no século vinte e dois, Diga-me cá, os outros sinais
também levam nomes latinos, como o deleatur, Se os le-
vam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez
96

fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam, Na


noite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo, mas
eu não empregaria a frase, Calculo que por ser lugar-
comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases fei-
tas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de
almanaque, os rifões e os provérbios, tudo pode apare-
cer como novidade, a questão está só em saber manejar
adequadamente as palavras que estejam antes e depois.
(H.C.L. p. 13)
Compare-se o registro da citação acima com a apresentação do
“almuadem” no segundo capítulo ressaltando-se a objetividade do narrador
onisciente e heterodiegético, onde o discurso dialógico providencia um
intertexto com a linguagem dos romances históricos tradicionais, como cons-
tatamos no trecho abaixo:

Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a


pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente
do céu a diferença inicial que separa a noite da madru-
gada, o almuadem acordou.
(H.C.L. p.17)

e, duas páginas adiante:


A oração é melhor que o sono, Assalatu jay-run min an-
Nawn86, para os que nesta língua o entendem, enfim con-
cluiu clamando que Alá é o único Deus, La ilaha illa
llah, mas agora só uma vez que é quanto basta quando se
trate de verdades definitivas. A cidade murmura as ora-
ções, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda que
nos pátios apareçam os moradores. A almádena está em
plena luz. O almuadem é cego.
(H.C.L. p. 19)

Podemos constatar um outro registro, que realiza uma re-leitura


da linguagem dos cronistas antigos, especificamente Antonio Brandão:

Não eram de qualidade as coisas que trazia entre mãos o


esforçado príncipe D. Afonso Henriques que lhe consen-
tissem tomar muito repouso, nem os pensamentos ocupa-
dos na grandeza do negócio presente davam lugar a se
poder quietar e tomar alívio
(H.C.L. p. 146)
97

Os diferentes registros que se alternam, segundo os fatos, per-


sonagens envolvidos e épocas em que ocorrem, nos diversos planos narra-
tivos coexistem no texto ficcional, pressupõem diferentes vozes narrativas
que se sucedem, se confundem, se apoiam ou se contradizem, configuran-
do-se outro tipo de narrador que não tem voz única, é substituível e comple-
xo, fundindo história e ficção.

4.2.1 - A montagem do texto e a pluralidade de narrativas. (Enunciação


e Enunciado)

A montagem do texto de História do Cerco de Lisboa apoia-se


numa pluralidade de narrativas, configurando-se uma teia complexa de pon-
tos de vista e posições ideológicas que se confrontam, de relações dialógicas
entre consciências várias de personagens, narradores e linguagens que se
inter-relacionam, cabendo ao leitor, através da fusão dos horizontes de
expectativa e da leitura do intervalo, a concretização da mensagem ficcional.
Sobrepõem-se e entrecruzam-se três narrativas que fluem simul-
taneamente, realizando uma interpenetração do tempo e do espaço, privile-
giando descrições de momentos vividos, onde se fundem segmentos tem-
porais de diferentes níveis com o espaço físico e psicológico, mesclando-se
realidade e ficção.
Temos uma narrativa primeira, partindo de uma situação-limite,
um ponto de viragem na vida do revisor Raimundo Silva, homem maduro e
metódico que, num ato gratuito e aparentemente incompreensível, insere
um NÃO num texto histórico, ao fazer sua revisão, modificando a verdade
histórica e passando de revisor a criador. Este fato vai provocar uma mu-
dança radical em sua vida, levando-o a experimentar o amor, embora tardio,
por Maria Sara - chefe dos revisores - ultrapassando as barreiras a que ele
próprio se confinara.
O livro que está sendo revisado por Raimundo - História do
Cerco de Lisboa, de autoria do Sr. Doutor - configura-se como uma
metanarrativa de 2.o grau (narrativa segunda) e, baseando-se em fontes
históricas, conta o cerco e libertação de Lisboa, ocupada pelos mouros,
pelos guerreiros portugueses auxiliados pelos cruzados.
O NÃO inserido neste texto falseia a verdade e dá margem à
outra metanarrativa de 3.o grau (narrativa terceira). O autor desta é o pró-
prio revisor - Raimundo Benvindo Silva que, aconselhado pela Dra. Maria
Sara, de início sua superiora e depois seu caso de amor -, escreve uma nova
História do Cerco de Lisboa, partindo do pressuposto de que os cruzados
98

teriam negado ajuda aos portugueses. Coexistem, nessa nova narrativa,


realidade e ficção, na reprodução dos diálogos travados antes e depois das
batalhas entre o rei e os cruzados, entre as diversas personagens - o enge-
nheiro, os soldados, os nobres, destacando-se o caso amoroso do soldado
Mogueime e da jovem Ouroana, que sublinha o romance presente de
Raimundo e Maria Sara, aos pés da cidade prestes a ser conquistada.
Questionando o discurso, o papel do revisor e do autor, o texto
ficcional providencia uma interação entre realidade e ficção entre história e
mito. As personagens de diferentes tempos e espaços são captadas a partir
das aparências exteriores. Os estados de consciência são apresentados
mas não decifrados, cabendo ao leitor o exercício de uma participação cons-
ciente, que o exorte a ir um pouco além da página impressa. À primeira
leitura, a obra confunde o leitor que, em lugar da sensação de segurança e
domínio - abrigo -, vai experimentar como narratário, juntamente com o
narrador e as persongens, a insegurança e a incerteza de realidades flutuan-
tes que se interpenetram.
O primeiro capítulo instaura a narrativa primeira - plano da
enunciação - centrada no revisor Raimundo Silva, e introduzida por um
narrador heterodiegético que, após as primeiras palavras - “Disse o revi-
sor” - cede a voz e a focalização a dois personagens-chave: o revisor e o
autor que passam a conduzir a narrativa, instaurando-se nesse diálogo um
metatexto sobre o papel do autor, do revisor e da própria obra narrativa. O
autor do romance histórico cuja revisão está sendo feita, aqui chamado de
Sr. Doutor, é o parceiro do diálogo com o revisor. A utilização do discurso
dialogado instaura a ambiguidade, providenciando o espaço do leitor, atra-
vés do “não-dito” e dos vazios do texto.

Disse o revisor, sim, o nome deste sinal é deleatur,


usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, a
própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras
soltas como para palavras completas, Lembra-me uma
cobra que se tivesse arrependido no momento de morder
a cauda, Bem observado, senhor doutor (...)
(H.C.L. p. 11)

O diálogo entre o autor e o revisor prossegue questionando e


explicando o texto através do discurso irônico, que desvela o real por trás
do fato, realizando um intertexto onde aparecem referências ao fazer artísti-
co, aos autores do passado e ao uso de lugares comuns e chavões, compro-
vando-se que o velho se torna novo e aparece com novo sentido no texto,
99

ordenando-se de modo especial, fundindo linguagens diversas, visões de


mundo e orientações individuais, constituindo deste modo um “sistema
modelizante secundário que estabelece seu próprio código.”87
Os autores emendam sempre, somos os eternos insatisfei-
tos, Nem têm outro remédio, que a perfeição tem exclusiva
morada no reino dos céus, mas o emendar dos autores é
outro, problemático, muito diferente deste modo, (...)
(H.C.L. p. 12)
................................................................................................
Certos autores do passado, se os julgarmos por esse seu
critério, seriam gente da espécie, revisores magníficos,
estou a lembrar-me das provas revistas pelo Balzac, um
deslumbramento pirotécnico de correções e aditamen-
tos, o mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que não
fique sem menção um exemplo pátrio, (...)
(H.C.L. p. 12/13)
................................................................................................
(...) os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os
narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e
provérbios, tudo pode aparecer como novidade, a ques-
tão está só em saber manejar adequadamente as pala-
vras que estejam antes e depois, (...)
(H.C.L. p. 13)
O segundo capítulo introduz, aparentemente, a narrativa histó-
rica, - o livro que está sendo revisado - através do discurso objetivo de um
narrador heterodiegético, onisciente, iniciando-se o presente do enunciado
da narrativa do 2.o grau e mudando-se o tempo e espaço da narrativa.

Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a


pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente
do céu a diferença inicial que separa a noite da madru-
gada, o almuadem acordou. (...) o almuadem não abriu
os olhos. Podia continuar deitado algum tempo ainda,
enquando o sol, muito devagar, se vinha acercando do
horizonte da terra (...)
(H.C.L. p. 17)
100

No desenvolver da narrativa, no entanto, constatamos que as


páginas iniciais do segundo capítulo não foram escritas por ninguém, uma
vez que o narrador nos informa que “Não o tem descrito assim o historiador
no seu livro”, (p.19) e, explicando o fato, afirma mais adiante:

Importaria saber, isso sim, é quem escreveu o relato da-


quele formoso acordar de almuadem na madrugada de
Lisboa.

..................................................................................................
A resposta surpreendente, é que ninguém escreveu, que,
embora pareça que sim, não está escrito, tudo aquilo
não foi mais que pensamentos vagos da cabeça do revi-
sor enquanto ia lendo e emendando o que escondidamente
passara em falso nas primeiras e segundas provas
(H.C.L. p. 22)
O discurso dialógico do narrador pressupõe a presença do
outro, inserido no próprio texto ficcional. É o leitor tornado narratário na
própria estrutura narrativa, personagem confidente do narrador, que se
confunde com o protagonista da narrativa primeira, o revisor Raimundo
Silva, focalizador de sua própria história e autor de um novo livro sobre
a História do Cerco de Lisboa, onde se mesclam o real e o ficcional.
O leitor realiza o encadeamento romancesco pelos vários possíveis
ficcionais que advém dos planos narrativos, fornecidos pelas estruturas de
apelo da obra que se sobrepõem na construção do texto plural. Fundem-se
história e ficção e a miscigenação de registros configura uma refração especu-
lar, que o leva a ler além das palavras, na história de ontem a história de hoje.

4.2.2 - O narrador heterodiegético e a focalização múltipla

Conhecemos o narrador que se comporta de um modo


imparcial, que vai dizendo escrupulosamente o que acon-
tece, conservando sempre a sua própria subjetividade
fora dos conflitos de que é espectador. Mas há um outro
tipo de narrador, mais complexo, que não tem uma voz
única; é um narrador substituível, um narrador que o
leitor vai reconhecendo como constante ao longo da nar-
rativa, mas que algumas vezes lhe causará a estranha
impressão de ser outro. Digo outro porque ele se colocou
num diferente ponto de vista, a partir do qual pode mes-
101

mo criticar o ponto de vista do primeiro narrador. O


narrador será também, inesperadamente, um narrador
que se assume como pessoa colectiva. Será igualmente
uma voz que não se sabe donde vem e que se recusa a
dizer quem é, ou usa duma arte maquiavélica que leve o
leitor a sentir-se identificado com ele, a ser, de algum
modo, ele. E pode, finalmente, mas de um modo não
explícito, ser a voz do próprio autor, dado que o autor,
capaz de fabricar todos os narradores que entender,
não está limitado a saber apenas o que as suas
personagens sabem, porquanto ele sabe, e não o esque-
ce nunca, tudo quanto tiver acontecido depois da vida
delas. 88

O narrador “que se assume como pessoa coletiva” é exatamente


o que se apresenta em História do Cerco de Lisboa. O outro inserido no
discurso narrativo advém dos diferentes pontos de vista, das focalizações,
da intertextualidade e da carnavalização que permitem um diálogo entre os
narradores dos diversos planos diegéticos, entre o narrador e as persona-
gens, entre narrador e o autor implícito e entre narrador e o narratário, leitor
implícito no texto ficcional.
A narrativa primeira é introduzida por um narrador
heterodiegético, e, logo a seguir conduzida pelo diálogo e focalização de
dois personagens: o revisor e o Sr. doutor. Configura-se o capítulo inicial
como uma metanarrativa onde se questionam os papéis do autor e do revi-
sor, a construção do romance, as tênues e discutíveis fronteiras entre histó-
ria e ficção, a importância da literatura para revelar o que está por detrás dos
fatos, os limites de uma época.
A ironia e o humor sublinham o discurso do narrador/narrado-
res acarretando duas consequências: o humor leva o narrador a rir de si
mesmo e a ironia o leva a renunciar a posse da verdade e do sentido,
potencializando-se a constitução de novos sentidos e de diferentes ângu-
los da verdade, presentificados pelo ato da leitura.

Disse o revisor , sim, o nome deste sinal é deleatur, usamo-


lo quando precisamos suprimir e apagar, a própria pala-
vra o está a dizer, e tanto vale para letras soltas como
para palavras completas, Lembra-me uma cobra que se
tivesse arrependido no momento de morder a cauda, Bem
observado, senhor doutor, realmente, por muito agarra-
102

dos que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria di-


ante da eternidade (...).
(H.C.L., p. 11)

As três primeiras palavras do texto “Disse o revisor” coloca-nos


diante de um narrador heterodiegético, como já mencionamos, que logo
após a apresentação de um personagem - o revisor - que depois viremos a
constatar ser o personagem protagonista - cede a voz emissora a dois per-
sonagens que dialogam entre si:
Dois personagens assumem a narração através do discurso di-
reto, o diálogo entre o revisor e o sr. doutor, mais dramático e envolvente,
possibilitando ao leitor situar-se no meio dos acontecimentos, sem o auxílio
do narrador inicial. A narrativa aparentemente prescinde do narrador e se
auto-desenvolve objetivamente, criando uma série de ambiguidades e, ao
mesmo tempo, estabelecendo pressupostos que nortearão todo o desen-
volvimento do romance.
Os assuntos discutidos pelo revisor e pelo sr. doutor estabelecem
uma metanarrativa, onde se enfoca a instabilidade das fronteiras entre o fictí-
cio e o factual, entre os papéis do autor e do revisor, questionando-se o fazer
literário, o papel da literatura, a intertextualidade e o discurso artístico, enfim,
a relação história/vida/literatura. A designação das persongens do diálogo
pelas suas profissões, utilizando-se de substantivos comuns, grafados com
minúscula - o revisor e o sr. doutor - possibilitam identificações e muitas
conotações. A primeira vista o sr. doutor, autor do livro que está sendo revi-
sado, poderia ser visto como um alter-ego do autor implícito, vetor de sua
cosmovisão autoral. Percebemos, logo a seguir, que a ironia das falas do
revisor possibilita uma dupla leitura de suas afirmações, constituindo-se numa
voz condutora que “usa de uma arte maquiavélica” levando assim o leitor “a
sentir-se identificado com ele, a ser, de algum modo, ele”.

A) Contentemo-nos com a ilusão da semelhança, porém, em


verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em
estilo profético, que o interesse da vida onde sempre es-
teve foi nas diferenças, Que tem isso a ver com a revisão
tipográfica, Os senhores autores vivem nas alturas, não
gastam o precioso saber em despiciências e insignificân-
cias, letras feridas, trocadas, invertidas (...)
(H.C.L. p. 11)
............................................................................................
103

Os autores emendam sempre, somos os eternos insatis-


feitos
(H.C.L. p. 12)
e mais abaixo, na página seguinte:
B) Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se senti-
riam os mais felizes dos homens nos tempos de hoje, dian-
te de um computador, interpolando, transpondo, recor-
rendo linhas, trocando capítulos, E nós, leitores, nunca
saberíamos por que caminhos eles andaram e se perde-
ram antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal
coisa (...)
(H.C.L. p. 13)

O uso da primeira pessoa do plural (autores/somos eternos in-


satisfeitos) no final da citação A e também na citação B - E nós, leitores -
providência uma inter-relação entre os papéis de autores e leitores, uma vez
que somos todos leitores de Eça e Balzac e todos igualmente humanos nos
erros cometidos que precisam ser corrigidos e na insatisfação que nos faz
almejar a impossível perfeição. A ironia do “revisor” reduz os srs. autores,
“que vivem nas alturas”, a sua dimensão de seres passíveis de erros,
desmitificando o papel do escritor, e reduzindo-o à dimensão humana, ho-
mem entre homens, tão passível de erro como qualquer de nós.
O diálogo que se desenrola contém, portanto, inseridos nas fa-
las das persongens, as vozes condutoras do leitor e do autor, implícitos no
metatexto sobre o fazer literário, sobre a interação história/vida real/ ficção,
sobre construção do texto composto de intertextos, cuja temática se estru-
tura sobre a imagem da sobreposição.

Na noite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo,


mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser lu-
gar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases
feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de
almanaque, os rifões e os provérbios, tudo pode aparecer
como novidade, a questão está só em saber manejar ade-
quadamente as palavras que estejam antes e depois.
(H.C.L. p. 13)
Duas páginas adiante, na continuidade do mesmo diálogo:
Recordo-lhe que os revisores são gente sóbria, já viram
muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu é
104

de história. Assim relamente o designariam segundo a


classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo
propósito meu apontar outras contradições, em minha
discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida,
é literatura, A história também, A história sobretudo, sem
querer ofender (...).
(H.C.L. p. 15)

Se a história é literatura, ela também é passível de mudanças,


supressões e acréscimos. Pode ser vista ou revista dependendo de óticas
diversas e até mesmo pela omissão ou apagamento de seus autores ou
revisores.
Estabelece-se como princípio condutor da significação do texto,
a metáfora da rasura, do apagamento [deleatur] que pode rasurar ou apagar
até certas decisões da história. Frisa-se, nesse capítulo inicial, o estatuto
passivo do revisor, que se deve negar a intervir no texto.

Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe


disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histó-
rica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do
quintal.
................................................................................................
Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapatei-
ro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor
aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nun-
ca se acabará no mundo, Tem sentido muitas tentações
de sapateiro na revisão do meu livro, A idade traz-nos
uma coisa boa que é uma coisa má, acalma-nos, e as
tentações, mesmo quando são imperiosas, tornam-se me-
nos urgentes (...)
(H.C.L. p. 14)
No entanto, por outro lado, insinua-se ou deixa-se em aberto a
hipótese desafiadora de que o revisor pode utilizar o deleatur na revisão da
história e na construção da verdade, uma vez que, sob sua guarda e arbítrio,
reside o poder de apagar, de eliminar erros reais ou imaginários ou de cometê-
los ele mesmo.
Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o
revisor. *
(H.C.L. p. 16)
105

As palavras finais - “suspirou o revisor” vão marcar ou provi-


denciar a volta do narrador heterodiegético, que deu início ao texto -”Disse
o revisor” e que havia permanecido na obscuridade durante todo o capítu-
lo, totalmente conduzido pelo diálogo entre o revisor e o doutor - pontos de
vista internos, visão com as personagens.
O segundo capítulo, mudando completamente o registro colo-
quial do primeiro capítulo, - presente diegético atualizado em diálogos -
showing - que providencia um agora dramático, sublinhando e reservando
espaços e vazios a serem ocupados pelo leitor - abre-se com um registro
objetivo, literário, onde o discurso indireto realiza um intertexto com o ro-
mance histórico tradicional, marcado pela presença do narrador “objetivo”
e onisciente, que conhece tudo aquilo que narra, colocando-se por detrás
das personagens, como demiurgo construtor do texto.
Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a
pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente
do céu a diferença inicial que separa a noite da madru-
gada, a almuadem acordou.

Aparentemente o leitor é agora apenas o espectador dos acon-


tecimentos, distanciados dele e do próprio narrador, pela objetividade rea-
lista do discurso indireto no plano do enunciado. No entanto, o cruzamento
do plano da enunciação, do presente do ato de narrar, onde a ironia vai
solapando a objetividade e sublinhando focalizações e ponto de vista ide-
ológicos do narrador, instaura-se um segundo sentido, providenciando o
espaço do leitor, pela ocupação dos brancos do texto, do não-dito do que
está por trás do real.

Segredo, e também prodígio, se não mistério


instransponível, é a virtude que elas [as huris do paraíso
de Maomé] têm de refazer a virgindade tão-logo a per-
dem, pelos vistos suprema bem-aventurança na vida eter-
na, o que definitivamente vem provar que não se acabam
com esta os trabalhos próprios e alheios, outrossim os
sofrimentos imerecidos.
(H.C.L. p. 17)

Algumas páginas após, a quebra da veracidade e verossimi-


lhança, estatuto de uma ficção que se propõe objetiva e realista na recriação
de verdades históricas inegáveis, é sutilmente questionada pelo discurso
irônico do narrador no plano da enunciação, e totalmente assumida como
uma negação das expectativas providenciadas no plano do enunciado:
106

Não o tem descrito assim o historiador no seu livro. Ape-


nas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou os
fiéis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se era
manhã ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porque
certamente, em sua opinião, o miúdo pormenor não inte-
ressaria à história, somente que ficasse o leitor sabendo
que o autor conhecia das coisas daquele tempo o sufici-
ente para fazer delas responsável menção.
(H.C.L. p. 18)
Na páginas seguintes, a narrativa progride com intertextos fre-
quentes com crônicas históricas do sec. XII, com os milagres de Ourique,
com o milagre da cura das pernas “encolhidas ou atrofiadas do menino
Afonso” - o primeiro referido por diversos cronistas portugueses e o se-
gundo, provavelmente invenção e acréscimo - providenciando, através do
plano da enunciação, a ironia e os comentários do narrador, que contesta
ou desmitifica fatos, crenças e mitos, tidos como verdadeiros e aqui questi-
onados pela utilização do discurso irônico:
(...) aquele milagre de Ourique, celebérrimo, quando
Cristo apareceu ao rei português, e este lhe gritou, en-
quanto o exército prostrado no chão orava, Aos infiéis,
Senhor, aos infiéis, e não a mim que creio o que podeis,
mas Cristo não quis aparecer aos mouros, e foi pena, que
em vez da crudelíssima batalha poderíamos, hoje, registar
nestes anais a conversão maravilhosa dos cento e
cinquenta mil bárbaros que afinal ali perderam a vida,
um desperdício de almas de bradar aos céus.
(H.C.L. p. 20)
e quanto ao segundo milagre [a cura das pernas atrofiadas do menino Afon-
so por intercessão da Virgem, que apareceu em sonho a D. Egas Moniz], o
narrador arremata:
Verdade é que não cumpriu D. Egas precisamente os di-
tados da Virgem, que muito explicado ficou ter-lhe ela
mandado que cavasse, entendemos nós que por suas pró-
prias mãos, e vai ele, que fez, deu ordem que outros ca-
vassem, os servos da gleba, provavelmente, já naquela
época havia destas desigualdades sociais. Agradecemos
à Virgem não ser ela melindrosa a pontos de fazer enco-
lher outra vez as pernas do menino Afonso (...)
(H.C.L. p. 21)
107

O discurso dialógico do narrador prevê o leitor como seu


interlocutor estabelecendo-se, no plano da enunciação, a cosmovisão e
repertório do autor implícito, que se vai desvelando ao leitor, providencian-
do uma situação comum, indispensável para configurar a fusão dos hori-
zontes de expectativas do emissor e do receptor, indispensável para com-
preensão da mensagem ficcional. A ironia, a referência às desigualdades so-
ciais e à opressão dos poderosos aparecem sublinhando e questionando o
“suposto” milagre. Resta ao leitor acreditar ou não, uma vez que o próprio
narrador questiona e satiriza as “verdades” que se incube de nos relatar.
Completando a perplexidade do leitor, cada vez mais obrigado a
colaborar na montagem da narrativa, o próprio narrador pergunta e responde:

Importaria saber, isso sim, é quem escreveu o relato da-


quele formoso acordar de almuadem na madrugada de
Lisboa, com tal abundância de pormenores realistas que
chega a parecer obra de testemunha aqui presente, ou,
pelo menos, hábil aproveitamente de qualquer documento
coetâneo (...).
....................................................................................
A resposta surpreendente, é que ninguém escreveu, que,
embora pareça que sim, não está escrito tudo aquilo não
foi mais que pensamentos vagos da cabeça do revisor
enquanto ia lendo e emendando o que escondidamente
passava em falso nas primeiras e segundas provas.
(H.C.L. p. 22)
Constatamos que o revisor é o narrador do formoso acordar de
almuadem que nunca foi escrito, foram “pensamentos vagos” na cabeça do
revisor. Configura-se, pois, o “narrador substituível, complexo”, que causa,
às vezes, a “estranha impressão de ser outro”, “narrador que se assume
como pessoa coletiva”, “voz que não se sabe de onde vem”, identificando-
se com o leitor, como afirma o próprio Saramago, ao caracterizar o narrador
de seu próprio livro no artigo “História e Ficção”.
No desenvolvimento do romance, cada vez mais a situação do
narrador, aparentemente marcada pela onisciência, veracidade e objetivida-
de realistas vai se revestindo de um caráter profundamente moderno, con-
testador e ambíguo através da focalização múltipla, do jogo dialético entre
passado e presente, da pluralidade de locutores cujos discursos
potencializam-se através do uso da ironia, da paródia e da estilização, con-
jugados à intertextualidade.
108

O investimento na subjetividade e na interiorização da voz nar-


radora, questionando o “mandamento épico” da objetividade histórica,
transmuta heróis e mitos em anti-heróis e seres humanos, abandonando a
simulação de realismo, através da ironia, do fantástico, colocando-se o
narrador em uma perspectiva marginal.
Raimundo Silva, personagem principal da História do Cerco
de Lisboa de José Saramago, é ao mesmo tempo revisor de um romance
histórico do mesmo nome e narrador do seu próprio romance, onde,
utilizando o seu poder de rasurar e modificar acrescenta um NÃO à
verdade histórica, que o faz passar da atitude passiva de revisor ao
papel criador de autor. Consequentemente os narradores que conduzem
as diversas narrativas fundem-se num narrador coletivo e complexo, em
diálogo constante com o leitor, narratário inserido no próprio texto que
lhe compete presentificar.

4.3 - O inter-relacionamento História/história, realidade/ficção na


construção do texto de José Saramago.

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que esco-


lheu, para a sua ficção, os caminhos da História: uma,
discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por
ponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidora
duma fidelidade que se quer inatacável; a outra, ousada,
leva-lo-á a entretecer dados históricos não mais que su-
ficientes num tecido ficcional que se manterá predomi-
nante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das
verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à
primeira vista inconciliáveis, podem vir a ser harmoni-
zados na instância narradora. 89

História do Cerco de Lisboa presentifica, de modo exemplar, a


atitude ousada, proposta por Saramago, de entretecer dados históricos numa
trama, predominantemente ficcional, onde se problematizam a natureza da
relação presente/passado, a revisão consciente e até irônica de fatos e
mitos históricos, buscando as falas minoritárias, os silêncios, os persona-
gens esquecidos da História, acordados e resgatados pela ficção.
A exploração da intertextualidade e da multiplicidade de discur-
sos, que compõem tanto a ficção como a história, propiciam o jogo entre o
fictício e o real (histórico) que se contrastam e se sobrepõem, re-escreven-
do a verdade no diálogo entre discursos e textos coexistentes no texto.
109

Ligando-se, por um lado, à tradição do romance histórico portu-


guês, através da reconstrução realista de ambientes e acontecimentos his-
tóricos, descritos ou evocados com grande poder imagético e riqueza de
detalhes, o texto de Saramago subverte e ultrapassa os limites do gênero
pelas características inovadoras que o constituem. A estrutura da narrativa
- estatuto do narrador, focalização, construção e função das personagens,
papel do leitor - é sublinhada pelas reflexões sobre o processo criativo/
narrativo, conduzindo de um lado à metatextualidade e de outro à uma
reinterpretação da História.
A onisciência do narrador não se limita ao conhecimento objeti-
vo dos fatos e dos pensamentos das personagens, mas o conduz a um
transcender cultural e temporal, que lhe permite uma visão abrangente da
realidade passada, presente e até futura. Declarando-se, nos comentários
metatextuais, explicitamente contemporâneo do leitor, o narrador faz aflorar
essa perspectiva entre os pormenores e detalhes históricos, através das
intervenções e anacronias que se atualizam nas suas focalizações, como
atalhos que aproximam o passado aos leitores modernos. A re-visitação do
passado torna-se possível através do contexto que o presente lhe inscreve.
A criação e construção das personagens é enfatizada pelos
comentários metatextuais (no plano da enunciação, do ato de narrar), como
resultante de uma fusão do verossímel (realista) e do fictício (subjetivo) não
sendo nem pura invenção nem representação mimética da realidade, antes um
amálgama possível de pensamentos, frases e ações. Os personagens
Raimundo - protagonista da narrativa primeira - e Mogueine - protagonista
da narrativa segunda, escrita ou pensada pelo próprio Raimundo - configu-
ram-se como figuras ex-cêntricas, invulgares, diferentes dos outros repre-
sentantes do meio. Raimundo é revisor, colocado à sombra do autor, num
estatuto de passividade que é destruído pelo NÃO, com que altera o texto e
a verdade histórica do Sr. Doutor, ensimesmado, solitário e fechado entre
seus livros; Mogueine, uma figura semi-histórica, aparecendo em referênci-
as de vários relatos históricos, com o nome grafado de modos diversos,
como o constata o próprio Raimundo em suas pesquisas, pertence ao gru-
po de figurantes marginalizados e esquecidos pela História. Trata-se, pois,
de uma história revisitada, reinventada e revista, daí o personagem ser
justamente um revisor.
O processo discursivo, marcado pela auto-referencialidade, pela
intertextualidade, pela pluralidade de registros - coloquial, histórico,
jornalístico, ficcional -, presentifica-se através de uma linguagem especular
onde avultam as implicações ideológicas e contextuais das expressões
linguísticas, bem como a ambiguidade e multiplicidade de sentidos das
110

palavras, impregnadas pelo duplo sentido da ironia, providenciando,


desde a comunicação inter-pessoal até o conhecimento intelectual e a
percepção do mundo.
Cria-se, assim, através das estruturas de apelo do texto, uma
situação comum, um ponto de confluência dos horizontes de expectati-
vas do emissor e do receptor da mensagem ficcional, através da cons-
trução conjunta de um repertório centrado na autoreflexibilidade so pró-
prio texto.O leitor encontra-se com o narrador em pontos comuns ou
situa-se, em pontos conflitantes, como um contraponto indispensável,
repensando o presente, avaliando registros históricos do passado, re-
velando-se tanto um como o outro, implícitos na própria construção do
texto ficcional.
A invenção e re-invenção da História leva a uma reflexão sobre
a linguagem, na sua relação dinâmica com esse referente, no seu poder de
dizer o real sempre de modo diferente, sob a forma discursiva, emendando
fatos históricos, revendo-os, colocando entre o texto e a vida um outro
espaço, o que se tece sobre o simbólico e o imaginário.
Tereza Cristina Cerdeira da Silva, sublinhando a importância
da auto-referencialidade, do anacronismo e da ambiguidade, frisa que a
ficção ultrapassa a relação ingênua de disputar com a história o espaço da
verdade. Cabe-lhe revisitar a História, reinventar o real ou o factual pelos
seus próprios meios, através do resgate, da elaboração e da sedução da
linguagem, instaurando a plurisignificação textual através de uma ou vá-
rias re-leituras. Memória e História constituem-se como seduções do lite-
rário, uma espécie de exercício, “onde cada domínio se exercita na ultra-
passagem do seu próprio modelo”, configurando-se ambos num novo
estatuto, voluntamente híbrido, que se realiza através do ficcional. Con-
clue, afirmando

José Saramago se inscreve, assim, na linhagem dos es-


critores portugueses contemporâneos que aprenderam
a revisitar de maneira crítica os domínios da História
oficial, não somente para desvelar, ao nível dos conteú-
dos, a sua presunção de poder apreender e domesticar
o real, de modo a fornecer a fórmula da “verdade” que
anula toda possibilidade de releitura: mas, sobretudo,
chegou à dúvida fecunda que o lança num terreno onde
a sedução da linguagem se faz poderosa - o da consci-
ência de uma ruína que é preciso saber reverter em be-
nefício da construção de sua própria ultrapassagem.90
111

4.3.1 - O repertório ficcional em História do Cerco de Lisboa.


(Intertextualidade, dialogismo e pluridiscursividade. Auto-
reflexibilidade e polifonia)

O comentário historiográfico em Saramago emerge dos


comentários do narrador, da específica selecção e cons-
trução dos personagens e da intertextualidade ou justa-
posição de discursos: o literário, com ecos da obra de
Pessoa, Camões, Eça de Queirós, João de Deus, o
jornalístico/propagandista, o oficial/institucional e o
histórico. Em História do Cerco de Lisboa esse comentá-
rio concentra-se na questão da narrativa da História,
aproximando e colocando num mesmo nível a História e
a literatura.91

História do Cerco de Lisboa apoia-se num sistema de combina-


ção entre três narrativas, configurando-se uma intertextualidade interna e
outra externa. A interna realiza-se entre os três enunciados que se entrelaçam
no plano da enunciação e a externa com textos de autores diversos, crônicas
históricas, referências e alusões, tanto à sociedade medieval - época do
cerco de Lisboa e do romance entre Mogueime e Ouroana - quanto à socieda-
de atual, onde se concretiza o caso de amor entre Raimundo Silva e Maria
Sara, ambos da “seita especial dos revisores”, presentificando-se, no plano
dos enunciados, a ambiguidade e o entrelaçamento dos segmentos tempo-
rais de diferentes níveis narrativos. O lugar do leitor - encarregado de atua-
lizar as possíveis combinações dos elementos constitutivos da obra - é
dado justamente pelo não dito, pelos “brancos” e “vazios”, que assim se
oferecem para sua ocupação dentro do texto.
O repertório de História do Cerco de Lisboa constitui-se de uma
polifonia de vozes e focalizações de personagens de diferentes contextos
históricos e sociais, inseridos em metanarrativas e intertextos, intrelaçando-
de, assim, na “tessitura” da obra, ficção e metalinguagem. A ficcionalidade
artística desse texto apoia-se justamente na sua capacidade de presentificar o
que é virtual ou contestado, ou de algum modo excluído, uma vez que não é a
denotação de tal sistema de sentido que o interessa, mas sim o limite que o
circunda, o seu horizonte de expectativas, estruturando-se um eixo de
conotações com amplas possibilidades de leitura.
Como já apontamos anteriormente, o plano do enunciado con-
tém três diegeses que se inter-relacionam: o amor “real” entre o revisor
Raimundo Silva e Maria Sara, a “história real” do cerco de Lisboa e a histó-
112

ria ficcional do novo cerco de Lisboa, escrita pelo revisor, agora autor,
Raimundo Silva, a partir de um NÃO inserido no texto que revisava, fun-
dindo-se o real - o cerco de Lisboa - e o ficcional - circunstâncias
modificadoras do cerco, diálogos e ações das personagens enfocadas
num mundo de relações:

Então o senhor doutor acha que a história e a vida real,


Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não
tenha a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse o
deleatur, suspirou o revisor.
(H.C.L. p. 16)

Temos, portanto, tanto no plano da enunciação quanto no do


enunciado, a marca indelével da ambiguidade que torna o discurso do
narrador operante, funcional e aliciante. O leitor participa da narrativa, pois
os fatos lhe são revelados em simultaneidade e contiguidade, situando-o
no espaço dramático do texto e não no tempo, obrigando-o,
consequentemente, a exercer um papel catalisador92 na recriação do texto
ficcional, presentificado pelo ato da leitura.

Raimundo Silva fechou o livro. Apesar de fatigado, a sua


vontade seria continuar a leitura; seguir os episódios da
batalha até ao desbarato final dos mouros, mas Gil de
Rolim, tomando a palavra em nome dos cruzados presen-
tes ali disse ao rei que, por este modo notificados do
memorável prodígio obrado pelo Senhor Jesus em re-
gião também ela tão apartada, ao Sul de Castro Verde,
em sítio que chamam de Ourique, província de Alentejo,
na manhã do dia seguinte lhe dariam resposta. Posto o
que, cumpridas as saudações e cerimonial da ordenan-
ça, igualmente se recolheram às suas tendas.
(H.C.L. p. 149)

Realiza-se, no trecho citado, a justaposição de discursos, a par-


tir da intertextualidade de diferentes registros, providenciando na fusão do
presente e do passado, do ficcional e do histórico, de dois planos diegéticos
que se interseccionam e se fundem: o romance do revisor Raimundo Silva,
protagonista da narrativa primeira, e Gil de Rolim, um dos Cruzados, perso-
nagem figurante da segunda narrativa - texto de História, sobre o cerco de
Lisboa em 1147, escrito pelo sr. doutor - bem como da terceira narrativa - o
“romance histórico” sobre o mesmo cerco de Lisboa, re-escrito e re-visitado
113

pelo mesmo Raimundo, antes revisor, e agora autor.


O discurso ficcional presentifica-se, primeiramente, através de
um registro coloquial, num momento presente da narrativa, assumido e fo-
calizado pelo narrador onisciente “Raimundo Silva fechou o livro (...)” até
“ao desbarato final dos mouros”. Na mesma linha, sem marcas de passa-
gem ou uma pontuação específica, a focalização e até mesmo a voz narrativa
são assumidas pelo cruzado Gil de Rolim, num registro histórico com ecos
de linguagem dos cronistas do sec. XII. “Gil de Rolim, tomando a palavra
em nome dos cruzados presentes ali disse ao rei que, por este modo noti-
ficados do memorável prodígio obrado pelo Senhor Jesus (...)” instauran-
do-se o dialogismo, pela inserção da fala do personagem no discurso do
narrador. Fundem-se presente e passado, com justaposição dos registros
ficcional e histórico, e no final do parágrafo, a ambiguidade da afirmação
“igualmente se recolheram”, reúne Raimundo Silva, Gil de Rolim e os cru-
zados, personagens de narrativas de diferentes níveis diegéticos, de seg-
mentos temporais distintos, num mesmo fato, situado não no tempo mas no
espaço textual, onde coexistem o ficcional e o histórico, fundidos na mesma
representação.
Verifica-se, portanto, que a produção do discurso é plural, cons-
tituindo-se em uma interação com outro sujeito ou sujeitos, implicados num
relatividade inter-discursiva. A coexistência de contradições ideológico-
sociais entre vários segmentos do passado, entre passado e presente, entre
textos de autores de diversas épocas, entre correntes, grupos e círculos do
presente no discurso ficcional, configura a pluridiscursividade, decorrente
tanto da pluralidade de discursos histórica e socialmente contextualizados,
como da discussão de um problema ou fato por várias vozes diferentes.
As intervenções do narrador, os anacronismos e os comentários
meta-textuais sobre a construção do romance no próprio romance, estabele-
cem um jogo interno que resulta na auto-reflexibilidade do próprio texto. Al-
ternam-se reflexões sobre a representação ficcional e sobre a relativização da
verdade, expressando certas formas de existência histórica do próprio sujeito
que reconstrói a história. O texto volta-se sobre si mesmo, contemplando-se
na auto-consciência de sua identidade literário-ficcional.

(...) em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quan-


to não for vida, é literatura, A história também, A histó-
ria sobretudo, sem querer ofender, (...)
(H.C.L. p. 15)
....................................................................................
114

O senhor doutor á um humorista de finíssimo espírito,


cultiva magistralmente a ironia, chego a perguntar-me
como se dedicou à história, sendo ela grave e profunda
ciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queria
parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e
nada mais. Mas a história foi vida real no tempo em que
ainda não poderia chamar-se-lhe história, Tem a certe-
za, senhor doutor, (...).
(H.C.L. p. 16)

O dialogismo, a intertextualidade presentificam-se na volta para


dentro de si mesmo, para a busca de raízes nacionais, com o texto composto
de outros textos, que, contextualizados, passam a fazer parte do estatuto
plural desse romance polifônico. Constrói-se uma teia complexa de relações
dialógicas entre consciências diversas, pontos de vista e posições ideoló-
gicas conflitantes, bem como entre todos os elementos estruturais do pró-
prio romance.

(...) este soldado Mogueime vai atrás de Ouroana como


quem da morte não vê outro modo de afastar-se, sabendo
no entanto que com ela tornará a enfrentar-se uma e
muitas vezes e não querendo acreditar que a vida tenha
de ser não mais do que uma série finita de adiamentos. O
soldado Mogueime não pensa nada disto, o soldado
Mogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa não
nasceu ainda.
(H.C.L. p. 325)

O narrador quebra a “good continuation”, a continuação dese-


jável estabelecendo com o leitor a contingência reativa, de que nos fala Iser,
uma vez que interrompe as reflexões introspectivas do soldado Mogueime
para revelar que essas idéias são suas e, pior ainda, auridas na poesia
portuguesa, ainda por nascer:

O soldado Mogueime não pensa nada disto, o soldado


Mogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa não
nasceu ainda
(Idem Ibidem)

O leitor é jogado de uma ficção no passado para uma constatação


real no presente, sendo levado a re-lembrar, abruptamente, que está no domí-
nio do ficcional, do imaginário, das verdades construídas e não “havidas”.
115

Deste modo, o dialogismo, a intertextualidade e a pluridis


cursividade constituem-se com formas específicas de especularidade, de
voltas do texto sobre si mesmo, fundadas na dinâmica narrativa, envolven-
do ação, tempo, espaço, personagens, narrador e narratário, nos diferentes
discursos que se articulam, inter-relacionam e interagem, através da auto-
reflexibilidade dessa obra complexa, deste cerco, onde nos embrenhamos
através de inúmeras leituras e de uma renovada fruição do prazer do texto,
de que nos fala Barthes 93 e nos present eia Saramago.

4.4. O labirinto esfíngico e a aventura do leitor sob a égide da Poiesis


- a comum construção.

(...) no romance de Saramago, ao lado dos elementos


tradicionais que remetem para o modelo ´clássico´ - como
o realismo da descrição histórico-social ou certa
tipificação do personagem - surgem elementos inovado-
res, que contestam esse modelo: a auto-referencialidade
da narrativa, a explícita consciência da linguagem, a
introdução dos personagens ex-cêntricos e fantásticos e
o comentário historiográfico que desafia a autoridade
da História, dirigindo-se-lhe como a um discurso, a um
texto, a uma narrativa.94

O texto de Saramago centrado, como já vimos, em três narrati-


vas, tendo como elemento comum o revisor Raimundo Silva - protagonista
da primeira, revisor da segunda e autor da terceira - utilizando-se da
pluridiscursividade decorrente dos diferentes registros do discurso ficcional,
das focalizações diversas, da auto-reflexibilidade, volta-se sobre si mesmo
discutindo as tênues fronteiras entre ficção e história e colocando o leitor
num labirinto esfíngico, encarregado de decifrar a mensagem ficcional ou
ser devorado por ela.
O dialogismo, a ironia que conduz à carnavalização do discurso,
a polifonia de vozes e ideologias conduzem o receptor do texto a uma leitura
do intervalo, obrigando-o a se aventurar na ocupação dos vazios, do não-
dito, construindo os sentidos do romance através de suas projeções
interpretativas.
Enquanto não alcançares a verdade, não poderás
corrigí-la. Porem, se a não corrigires, não a alcançarás.
Entretanto, não te resignes.
Do LIVRO DOS CONSELHOS
(H.C.L. p. 9)
116

A própria epígrafe do romance, norteando a decodificação da


mensagem, coloca o leitor sob a égide do questionamento: por que corri-
gir a ´verdade´, se, por definição, toda correção seria não-verdade,
inverdade? Que verdade é essa que precisa ser corrigida para ser
alcançada? A esfinge propõe seu enigma e aconselha o leitor a não se
resignar, uma vez que a busca da verdade é tarefa perene. Associando
essa epígrafe à figura de Raimundo Silva, o revisor que, acrescentando
um NÃO à um fato histórico real, corrigiu a verdade e criou sua própria
verdade - passando do estatuto passivo de revisor de textos alheios, à de
autor de seu próprio texto, demiurgo criador de uma narrativa própria -
temos uma prolepse do achado central do livro, o questionamento e a
relativização da verdade interior, fruto da busca incessante de cada um de
nós, sob a metáfora da rasura e a necessidade de mudança.
O narrador pressupõe, através do dialogismo intrínseco de seu
discurso, um interlocutor que o acompanha passo a passo, participando de
uma comum construção, que o leva a usufruir o prazer estético da POIESIS
como co-autor do texto. A narrativa que se auto-contempla sublinha a auto-
consciência de sua identidade literária ficcional, onde autor e leitor implíci-
tos partilham da produção e da recepção da mensagem ficcional, através da
criação e re-criação do texto.
O romance organiza um repertório, “humus sócio-cultural” de
onde provém o texto, conjunto de normas histórico-sociais, tradições, con-
venções, ideologias, e estéticas, que formam um quadro ou cercadura do
texto reaparecendo no texto não com o seu sentido primeiro mas como polo
de interações. Assim o cerco de Lisboa em 1147, a formação da nação por-
tuguesa, as ideologias da época são conotadas e atualizadas na leitura da
sociedade portuguesa atual.
A construção dos personagens-amantes Mogueime e Ouroana
- no distante Condado Portucalense, passado histórico onde rei, nobres,
cruzados e povo lutam com ou sem a ajuda dos Cruzados, diante dos muros
de Lisboa dominada pelos mouros, iniciam um caso de amor nos entreveros
da guerra - corresponde à construção de outro par - Raimundo Silva e Maria
Sara, igualmente amantes, sitiados pelas contingências de um presente
medíocre, que se confundem e se explicam, em projeções recíprocas
atualizadas pelo texto ficcional.

Como te chamas, mas é só um truque para começar a


conversa, se há algo nesta mulher que para Mogueime
não tenha segredos, é o seu nome, tantas são as vezes que
ele o tem dito, os dias não só se repetem, como se pare-
117

cem, Como te chamas, perguntou Raimundo Silva a


Ouroana, e ela respondeu, Maria Sara
(H.C.L. p. 290)

A sobreposição das figuras femininas Ouroana e Maria Sara, de


tempos cronológicos distintos providencia a sobreposição de passado e
presente, que se fundem no espaço textual, onde coexistem as duas perso-
nagens no mesmo tempo/discurso ficcional.
Em outra passagem, mais se ressalta a fusão/interação dos dois
casais distantes no tempo, próximos na vida, como se constata no tenso
diálogo entre Raimundo e Maria Sara, onde são sublinhadas as correlações,
idêntidades e aproximações entre os dois casais, na aparente trivialidade do
amor cotidiano:

Porquê essa insistência no revisor, Para que tudo fique


claro entre Mogueime e Ouroana, Explica-te, Tal como
ele nunca virá a ser capitão, eu nunca serei um escritor,
E tens medo de que Ouroana vire as costas a Mogueime
quando descobrir que nunca será mulher de um capitão,
Tem-se visto, Contudo, essa Ouroana viveu vida melhor
quando estava com o cavaleiro, e agora quis Mogueime,
suponho que ele a não forçou, Não estou a falar de
Ouroana, Estás a falar de mim, bem o sei, mas o que dizes,
não me agrada, Calculo, Dure esta relação o que durar,
quero vivê-la limpamente (...)
(H.C.L. p. 329/330)

Os intertextos, as apropriações de versos, citações, idéias, ecos


de textos de épocas diversas aparecem com novo sentido, sublinhando
pela “penhora”, uma lembrança do fundo sobre o qual se apoiam. A
ficcionalização da História permite ao leitor um movimento para fora da
moldura e um salto para dentro da história, que é literatura, uma vez que:
“tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobre-
tudo”. O narrador, declaradamente contemporâneo do leitor, insere a pers-
pectiva do presente para descrever e analisar detalhes, pormenores históri-
cos, míticos ou ficcionais da época passada que lhe serve de espelho. Os
anacronismos são utilizados como estratégias textuais para sublinhar o
contexto comum, onde se inserem o narrador e o narratário. Parte-se do
horizonte e do contexto do leitor para, através de interações, questiona-
mentos e aproximações, contestá-lo ou sublinhá-lo com as interligações de
eventos passados e presentes.
118

Assim sendo, as estruturas de apelo e o horizonte de espera do


texto, através de seu potencial de atuação, tanto no plano ético como no
estético, vão conduzir o leitor à construção de um horizonte de expectati-
vas, possibilitando, através do estabelecimento de uma situação comum, a
presentificação do texto pela leitura e a representação construída de uma
realidade múltipla em contínua mutação.

Notas

80
“História e ficção” - In: Jornal de letras, artes e idéias (J.L.). Ano IX, n.o
354, 18 a 24/04 de 1989, pp. 17 a 20. Citação: pp. 19/20.
81
Todas as citações do romance pertencem à edição abaixo e serão indicadas
pela sigla H.C.L. seguida do(s) número(s) da(s) página(s): José Saramago -
História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (H.C.L.
- pp. 15 e 16)
82
Ano IX, n.o 354. Dia 18 a 24 de abril de 1989. pp. 8 a 12.
83
A palavra do romance. Lisboa: Livros Horizonte, 1986, pp. 189/190.
84
As demais obras do autor estão arroladas no Anexo 2 (Ficha Bibliográfica
de José Saramago)
85
Entrevista concedida a José Carlos de Vasconcelos no Jornal de letras,
artes e idéias. J.L. - Ano IX, n.o 354. De 18 a 24 de abril de 1989, p. 10
86
Procedimento bastante comum no discurso narrativo de Peregrinação de
Fernão Mendes Pinto, que inseria a reprodução dos sons de línguas orien-
tais em seu texto.
87
Iuri Lotman - A Estrutura do Texto Artístico. trad. Maria do Carmo Vieira
Raposo e Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.
88
José Saramago - “História e Ficção” In Jornal de Letras, artes e idéias.
Lisboa, Ano X, n.o 400. De 6 a 12 de março de 1990. pp. 17 a 20. (p. 19)
89
José Saramago - “História e Ficção” IN Jornal de letras, artes e ideias
(J.L.) Ano X, n.o 400, 6 a 12/03/1990 - p.19.
90
Tereza Cristina Cerdeira da Silva - “José Saramago. A ficção reinventa a
história” IN Colóquio Letras, n.o 120. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
abril/junho 1991, pp. 174 a 178. (p. 178)
91
Helena Kaufman - “A metaficção historiográfica de José Saramago”. IN
Colóquio Letras n.o 120. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Abril-
junho 1991, pp. 124-136. (p. 133)
92
Papel catalisador uma vez que amplia a velocidade da reação, exercendo
uma função organizadora da narrativa. - Sobre o papel do leitor ver estudos
119

de W. Iser e K. Stierle - Percurso Teórico)


93
Roland Barthes - Le Plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.
94
Helena Kaufman - op. cit., p. 136.
121

CONCLUSÃO

A dura conquista do Texto: o leitor co-autor e a auto-


referencialidade do texto (Um amor feliz e História do cerco de
Lisboa, romances modelares da narrativa portuguesa
comtemporânea

Em suma, portanto, o vazio no texto ficcional induz e


guia a atividade do leitor. Como suspensão da
conectabilidade entre segmentos de perspectiva, ele mar-
ca a necessidade de uma equivalência, assim transfor-
mando os segmentos em projeções recíprocas, que, de
sua parte, organizam o ponto de vista do leitor como
uma estrutura de campo.95

Só o horizonte da segunda leitura pode converter a pri-


meira leitura, quase pragmatica e causadora de ilusão,
em uma leitura captadora da ficção. Pois só assim a
construtividade da ficção pode-se tornar objeto da fa-
culdade de julgar do receptor. Enquanto o texto prag-
mático deve ser trabalhado com vistas a uma intenção
que o transcende, o texto ficcional auto-referencial exi-
ge ser internamente trabalhado.96
....................................................................................
O texto como espaço textual, em que se multiplicam infi-
nitamente as possibilidades de relacionamento, e daí as
possibilidades de constituição da significação, torna-se,
na perspectiva do leitor, espaço ou meio de reflexão, em
que o leitor pode penetrar cada vez mais, sem nunca o
esgotar.97

A ocupação dos vazios do texto, embora guiada pelas suas es-


truturas de apelo, não prescinde da participação consciente e ativa do lei-
122

tor, estabelecendo a conectabilidade entre os segmentos estruturais da obra,


organizados segundo suas próprias projeções interpretativas e constituin-
do-se num campo, onde se potencializam sentidos e significados, tornados
em significação através do ato da leitura.
A “leitura captadora da ficção” exige do leitor o envolvimento
de sua capacidade de julgar, a interação de mecanismos de representa-
ção do texto e os seus próprios, buscando diferentes possibilidades de
relacionamento, interpretando a mensagem ficcional e compartilhando o
espaço textual, onde se revelam as múltiplas possibilidades de leituras
do romance.
A conquista do texto é uma atividade participativa que se revela
cada vez mais complexa nos romances contemporâneos, onde o discurso
objetivo das “figuras autorais” vê-se substituído pela intersubjetividade
de falas indiscriminadas - pluridiscursividade -; pelo texto auto-reflexivo
que se debruça sob si mesmo - auto-referencialidade -; pela fragmentação,
multiplicidade e experimentalismo que caracterizam o espaço-tempo em que
se insere o presente em processo.
Torna-se necessário refletir sobre a construção do romance, suas
diretrizes, suas características marcantes para que se possa melhor compre-
ender o estatuto contemporâneo, ou “pós-moderno”,como definem alguns
críticos, do romance português de nossos dias.
Os romances analisados nessa pesquisa representam, de modo
exemplar, duas vertentes da ficção portuguesa contemporânea que procura
seus próprios caminhos, voltando-se para as raízes de sua própria literatura
e revelando seu compromentimento com as tendências atuais da literatura
ocidental. Se, em Um Amor Feliz a presença de um narrador/protagonista -
narrador autodiegético - confere um caráter de maior subjetividade, permi-
tindo um mergulho na interioridade da personagem - raiz presencista - em
História do Cerco de Lisboa o narrador, aparentemente onisciente e fora da
história - narrador heterodiegético - revela-se em sua complexidade, multi-
plicando-se em três planos diegéticos, narrativas com os seus próprios
narradores, que se inter-relacionam e se entrecruzam. A recuperação do
presente funde história e ficção, permitindo a crítica da sociedade atual,
revelando-nos o viver mesquinho e limitado dos que fazem a história e dos
que correm o risco de serem engolidos por ela.
A oposição oprimidos/opressores ou vencedores/vencidos faz-
se pelo resgate de “personagens secundários” que a História esqueceu e
só podem ser recuperados pela ficção, revelando a incorporação e supera-
ção da ideologia neo-realista na configuração da situação quadro, da mol-
dura em que se insere o próprio texto.
123

Em Um Amor Feliz a univocidade, que aparentemente, se po-


deria estabelecer pela escolha do narrador autodiegético, quebra-se logo
no primeiro capítulo pelo dialogismo intrínseco, inerente ao próprio dis-
curso narrativo, e cristaliza-se no capítulo seguinte, onde se percebe que
o romance é um confissão, uma longa fala a uma personagem-confidente,
secundária na trama diegética, confundindo-se e representando o leitor,
tornado narratário na estrutura textual. O discurso revela-se como um
longo diálogo, onde o enunciado existe através de sua relação com outros
enunciados, estabelecendo-se no discurso do narrador, relações análo-
gas às relações entre as réplicas de um diálogo. A intertextualidade
presentifica-se no cruzamento das superfícies textuais, potencializando
diálogos entre escritor/narrador, narrador/confidente, confidente/leitor,
inseridos no contexto sócio-cultural do presente em processo, configu-
rando-se, nas estratégias e no repertório ficcional, tanto o autor implícito
quanto o leitor implícito, construções textuais inseridas no próprio dis-
curso narrativo.
A diegese vai-se construindo diante dos olhos do leitor, com
explicações, idas e vindas, reflexões do narrador - protagonista, à medida
em que se concretizam, na confissão à personagem confidente, os fatos,
personagens e relacionamentos. A trama é discutida, interrogada e monta-
da com a participação do leitor.
O texto volta-se sobre si mesmo e o metatexto sobre a constru-
ção do romance no próprio romance potencializa a auto-referencialidade
que sublinha sua construção a dois. A marca do texto é a ambiguidade:
ambiguidade do discurso dialógico, ambiguidade diegética - focalização de
pessoas diversas sobre os mesmos fatos - e ambiguidade decorrente da
intertextualidade das falas das personagens e do diálogo com outros textos
literários - versos, poemas, citações e alusões, que aparecem com novo
sentido, em diferentes contextos, filtrados pela ironia e pela paródia.
Em História do Cerco de Lisboa o discurso dialógico estabele-
ce uma rede de inter-relações mais complexas, uma vez que, como já vimos,
entrecruzam-se e sobrepõem-se três narrativas simultâneas, potencializando
a interpenetração do tempo e do espaço, privilegiando descrições dos mo-
mentos vividos em segmentos do passado e do presente, fundindo-se es-
paço físico e psicológico, mesclando-se realidade/ficção, nas tênues fron-
teiras entre história e literatura.
É um romance polifônico, onde as vozes de ontem e de hoje
fazem-se ouvir numa mescla de registros discursivos - coloquial, literário,
jornalístico, histórico -, onde se interpenetram contextos ideológicos, os
mais diversos, questionando-se a construção do texto através do próprio
texto. O leitor acompanha a construção do romance com o “revisor”, do
“revisor” e sobre o “revisor”, testemunhando as opções necessárias, a luta
pela expressão, a procura do registro pertinente e a modelização de um
124

mundo possível ficcional, cuja lógica interior, construída pelo repertório


ficcional, é mais verossímel do que o próprio real.
Podemos constatar, em resumo, colocando lado a lado os dois
romances, os enfoques e as estratégias textuais que se atualizam nas
duas obras:

Um Amor Feliz História do Cerco de


Lisboa

Narrador autodiegético Narrador heterodiegético


que se desdobra em três planos
diegéticos ("narrador plural")

Leitor-confidente represen- Leitor-organizador,


tado por uma personagem decifrador de enigmas, inserido
no próprio discurso do narrador

Sob signo duplo - dualidades Sob o signo do múltiplo -


intrínsecas pluralidade de narrativas

Ambiguidade: jogo: enunci- Ambiguidade jogo: enun-


ado/enunciação ciação/enunciado/1 (narrativa
primeira) jogo: enunciação/
enunciado/2 (narrativa segunda)
jogo: enunciação/ enunciado/ 3
(narrativa terceira)
125

Um Amor Feliz História do Cerco de


Lisboa

Alteridade: do discurso de um Alteridade: da própria figura do


narrador narrador/narradores e de seus dis-
cursos

Auto-referencialidade ou auto- Auto-referencialidade ou auto-


reflexibilidade. Construção do ro- reflexibilidade. Construção do ro-
mance no romance 1.representação mance dentro do romance:
de autor implícito personificado em 1. construção do próprio romance
um personagem secundário 2 . construção de um romance his-
(David) 2 ."visão com" o narrador tórico pelo revisor 3. construção
auto- diegético 3 . meta texto sobre de um texto histórico pelo sr. dou-
criação/arte/literatura tor 4. representação do autor im-
plícito no plano da enunciação: "vi-
são com" 5. intervenções dos nar-
radores das três narrativas 6.
metatexto sobre arte, história, lite-
ratura e suas tênues fronteiras

Sob a égide de Katharsis - a cons- Sob a égide da Poiesis - o prazer


trução de uma sociedade fanada do leitor, co-autor do texto -
("os pífios anos 80"), onde o ou- organizador da narrativa entre as
tro ultrapassa o espelho e vê-se fronteiras da História/estórias
no discurso confessional do
narrador

Intertextualidade: entre falas das Intertextualidade: entre textos


personagens de diferentes cama- históricos e ficcionais, com textos
das sociais, entre textos literários literários e crônicas históricos -
da literatura portuguesa e da lite- mergulho nas raízes da literatura
ratura européia portuguesa
126

Diegese: rarefação do enre- Diegese: trama complexa.


do. Poucos fatos e muita Muitas situações romanescas
introspecção subjetiva e psico- com reflexões sobre história, li-
lógica, sublinhada pela ironia. teratura, sociedade, através do
Crítica, a elite intelectual e à discurso irônico do narrador.
burguesia: artistas famosos, di- crítica:à sociedade polarizada
plomatas, médicos, intelectuais, entre opressores/oprimidos,
políticos tanto nas sociedades do passa-
do e do presente, quanto nos
planos do real ou do ficcional

Discurso: ironia, parodia, Discurso: ironia, paródia,


carnavalização; carnava carnavali zação: discurso plu-
lização: invasão da narrativa ral marcado pela diversidade de
pelo discurso registros

Como verificamos no desenvolvimento dessa pesquisa, os ro-


mances Um Amor Feliz e História do Cerco de Lisboa são obras represen-
tativas do romance português contemporâneo, onde assistimos a maturação
de nomes consagrados que produzem desde a década de 50, bem como a
proliferação de novos escritores surgidos nas últimas décadas, Verifica-se
um alargamento da temática socio-ideológica, acrescida das vivências da
revolução de abril, a guerra colonial e os lances da emigração.
A pátria portuguesa, a sociedade de ontem e hoje constituem
um “corpus” histórico, assimilado e questionado por diversos autores,
em busca de uma identidade nacional a conhecer ou sublinhar. O presente
em processo contextualiza-se num hoje dinâmico, mas também sufocante
e massificador, onde o homem fragmentado, tensionado entre a verdade e
a aparência, entre ideologias conflitantes, sofre o malogro das relações
humanas, presentificados em textos polêmicos, complexos e
questionadores.
A composição textual apoia-se na valorização da escrita, na uti-
lização de formas de pluralização discursiva, sob o primado da subjetivida-
de, com o predomínio da enunciação - ato de narrar - sob o enunciado - a
coisa contada, o narrado.
Diferentes estéticas dialogam nos textos/romances portuguêses
127

atuais, configurando-se a contaminação de cosmovisões decorrentes do


neo-realimo, do existencialismo, do “noveau roman” e do presencismo en-
tre outras. Configura-se uma apropriação e superação de técnicas naturalis-
tas, através da auto-reflexibilidade de um texto que se questiona e se volta
sobre si mesmo, buscando seu estatuto ficcional, mesmo quando se apóia
em suportes históricos, jornalísticos ou fantásticos.
Revela-se nos romances analisados a sedução irresistível de
formas ficcionais que se recusam a classificações e enquadramentos “na
organização tradicional de nexos perfeitos”, buscando antes registros mar-
ginais do romance, como os gêneros de primeira pessoa: confissões, auto-
biografias, diários, crônicas, ou ainda, a utilização do fantástico, do mágico,
do maravilhhoso cristão ou pagão, criando uma lógica interna, própria do
mundo ficcional, onde se relacionam autores e leitores.
Compreende-se, portanto, a necessidade de participação do lei-
tor, exercendo um papel catalisador, que venha a possibilitar a decodificação
de um texto complexo e denso. Parceiros na concretização da mensagem
ficcional, encontram-se autor e leitor em dois polos diversos, - polo da
criação e polo da recepção -, que se complementam e inter-relacionam.
O autor, no polo da produção/criação trabalha um discurso
dialógico e plural, onde afloram, através de estratégias textuais, suas ideo-
logias e sua cosmovisão, subjacentes à criação de um mundo possível
ficcional, potencializado pelo texto artístico. Por outro lado, o romance si-
tua-se num contexto onde avulta o polo da representação, providenciando
a construção do quadro espácio-temporal em que se insere. Através da
pluridiscursividade, polifonia, dialogismo e intertextualização cria-se um
contexto interno, coerente com o mundo ficcional construído pelo próprio
romance, bem como um contexto externo, onde se sobrepõem textos de
autores e épocas diversas da literatura e da história de ontem e hoje.
Constitui-se um metatexto, a partir da construção de sentido
do texto, propiciada pelo ato da leitura, bem como através da auto-
referencialidade, texto crítico voltado para a construção do romance no
próprio romance, questionando história, ficção, passado e presente, le-
vando-nos a ver o homem na sua natureza inerente, nos seus relaciona-
mentos e na sua dimensão de escritor, retesado entre a condição provisó-
ria de sua própria natureza e a permanência transcendente que só pode
aspirar através da arte.
Na verdade, o romance, “único gênero em evolução”, refletindo
“mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais
rapidamente a evolução da própria realidade” 98, contribui para a renovação
de outros gêneros, pela sua básica definição de arte em processo, que tem
antecipado e ainda antecipa os caminhos futuros da literatura e da própria
era moderna.
128

O romance português, em uma fase de invejável produtividade,


reflete a situação atual do próprio país numa época de mudanças e questi-
onamentos em busca de sua auto-definição.
“Mais uma vez, não é decerto adequado dizer-se que o romance
como género está em vias de acabar, esvaindo-se por outras formas de
escri ta; será, sim, de toda a justiça acreditarmos no seu revigoramento em
função de trânsitos diferenciados - pelo menos no caso da ficção portugue-
sa deste século, e muito particularmente, da do período actual, certamente
o mais rico que, em toda a sua história, ela pôde atravessar.”99

Notas
95
Wolfgang Iser - “A interação do texto com o leitor” IN VVAA - A literatura
e o Leitor. Selec. trad.. e introd. de Luis Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979, p. 130.
96
Karlheinz Stierle - “Que significa a recepção dos textos ficcionais”. IN:
VVAA. - A literatura e o leitor. op. cit.,p. 159.
97
IDEM, IBIDEM, p. 160/161.
98
Mikhail Bakhtin - Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Editora
UNESP/HUCITEC. p. 400.
99
Maria Alzira Seixo - A Palavra no Romance. Lisboa: Livros Horizonte,
1986. p. 181.
129

BIBLIOGRAFIA

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SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. 1. reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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139

ANEXO 1

OBRAS DE DAVID MOURÃO-FERREIRA

Poesia
*
1950 - A secreta viagem. Lisboa: Távola Redonda.
1954 - Tempestade de verão. Lisboa: Guimarães Editores.
1958 - Os Quatro Cantos do Tempo. Rio de Janeiro: Livros de Portugal.
1962 - In Memoriam Memoriae. Lisboa: Ed. Minotauro.
1962 - Infinito Pessoal ou a Arte de Amar. Lisboa: Guimarães Editores.
1966 - Do Tempo ao Coração. Lisboa: Guimarães Editores.
1967 - A Arte de Amar (reunião dos cinco primeiros livros). Lisboa:
Guimarães Editores.
1969 - Lira de Bolso (Antologia). Lisboa: Publicações Dom Quixote.
1971 - Cancioneiro de Natal. Lisboa: Editorial Verbo.
1973 - Matura Idade. Lisboa: Ed. Arcádia.
1974 - Sonetos do Cativo. Lisboa: Ed. Arcádia.
1976 - As Lições do Fogo (Antologia). Lisboa: Publicações Dom Quixote.
1978 - Vinte Poesias Inéditas. Porto: Brasília Editora.
1980 - Obra Poética, vols. I e II (inclui os livros inéditos À Guitarra e à
Viola e Ofício Órfico). Lisboa: Liv. Bertrand, 1980.
1980 - Entre a Sombra e o Corpo. Lisboa: Moraes Editores.
1980 - Ode à Música. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
1985 - Os Ramos Os Remos. Porto: Areal Editores.
1987 - O Corpo Iluminado. Lisboa: Editorial Presença.
1988 - No veio do cristal. Lisboa: Editorial Preesença.
Ficção
1959 - Gaivotas em Terra. Lisboa: Ed. Ulisseia.
1962 - O Viúvo. Lisboa: Ed. Estúdios Cor.
1963 - Tal e Qual o Que Era. Lisboa: Colecção Antológica “Best-Sellers”.
1968 - Os Amantes. Lisboa: Guimarães Editores.
1974 - Os Amantes e Outros Contos. Lisboa: Liv. Bertrand.
1978 - Maria Antónia e Outras Mulheres. Lisboa: Ed. Círculo de Leitores.
140

1978 - A Tua Véspera de Natal. In Natal (antologia). Lisboa: Ed. Arcádia.


1980 - As Quatro Estações. Lisboa: Galeria S. Mamede.
1986 - Um Amor Feliz. Lisboa: Editorial Presença.
1987 - Duas Histórias de Lisboa. Lisboa: Editorial Labirinto
1988 - Rampicante Sommerso. Roma, Japadre Editore.
Teatro
1956 - Contrabando. In Graal, n.2, jun-jul de 1956.
1965 - O Irmão. Lisboa: Guimarães Editores.
Ensaio e crítica
1960 - Vinte Poetas Contemporâneos. Lisboa. Ed. Ática.
1961 - Aspectos da Obra de Manuel Teixeira Gomes. Lisboa: Portugália
Editora.
1962 - Motim Literário. Lisboa: Editorial Verbo.
1966 - Hospital das Letras. Lisboa: Guimarães Editores.
1969 - Tópicos de Crítica de História Literária. Lisboa: União Gráfica.
1976 - Sobre Viventes. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
1977 - Presença da “Presença”. Porto: Brasília Editora.
1977 - Alexandre Herculano e a Valorização do Património Cultural
Português. Lisboa: Ed. da Secretaria Geral da Secretaria de Estado
da Cultura.
1977 - Lâmpadas no Escuro. Lisboa: Ed. Arcádia.
1987 - O Essencial Sobre Vitorino Nemésio. Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda.
1989 - Sob o mesmo tecto. Lisboa: Editorial Presença.

Obs: A data à esquerda do título refere-se à primeira edição da obra.


141

ANEXO 2

OBRAS DE JOSÉ SARAMAGO

Poesia
*
1966 - Os Poemas Possíveis. Lisboa: Portugália Editora. (Lisboa: Editorial
Caminho. 2.ed. 1982; 3.ed. 1985)
1970 - Provavelmente Alegria. Lisboa: Livros Horizonte. (Lisboa: Editorial
Caminho, 2.ed. 1985)
Ficção
1947 - Terra do Pecado (Primeiro romance. Apagado pelo próprio autor
de sua bibliografia. Não sobrou nenhum exemplar - testemunho de
José Saramago no JL, Ano IX, no. 354, de 18 a 24/04/89, 8-12.)
1975 - O Ano de 1993. Lisboa: Editorial Futura. (Editorial Caminho - 2.ed.
1987).
1977 - Manual de Pintura e Caligrafia. Lisboa: Moraes Editores. (Editorial
Caminho - 2.ed. 1984; 3.ed. 1986)
1977 - Objeto Quase. Lisboa: Moraes Editores. (Editorial Caminho - 2.ed.
1984; 3.ed. 1986)
1978 - Poética dos Cinco Sentidos. (Obra Coletiva) - O Ouvido. Lisboa:
Livraria Bertrand.
1980 - Levantado do chão. Lisboa: Editorial Caminho. (Trad. russa pela
Edições Progresso, Mocovo, 1982; Ed. Brasileira São Paulo: Difel,
1982; Trad. Alemã Berlim: Aufban Verlag, 1985)
1981 - Viagem a Portugal. Lisboa: Círculo do Livro. (2.ed. 1985 - Editorial
Caminho - 1984 - 2.ed., 1988)
1982 - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho.
1984 - O Ano da morte de Ricardo Reis. 6.ed. Lisboa: Editorial Caminho,
1986. (trad. espanhola - Barcelona: Seix Barral, 1985; 2.ed. 1987;
trad. italiana - Milão: Feltrinelli, 1985)
1986 - A Jangada de Pedra. Lisboa: Editorial Caminho. (trad. espanhola -
142

Barcelona: Seix Barral; 3.ed., 1987)


1987 - A Segunda Vida de São Francisco de Assis.
1989 - História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Editorial Caminho. (São Paulo:
Companhia das Letras. 1.reimpressão, 1989)
1991 - O Evangelho segundo Jesus Cristo. Lisboa: Editorial Caminho.
(São Paulo: Companhia das Letras, 1.reimpressão, 1991)
Teatro
1979 - A noite. Lisboa: Editorial Caminho. (2.ed. 1987)
1980 - Que farei com este livro? Lisboa: Editorial Caminho. (2.ed. 1981)
1993 - IN NOMINE DEI. Lisboa: Editorial Caminho.
Ensaio e crítica
1988 - “O meu iberismo” - IN Jornal de letras, artes e idéias, Ano VIII, no.
330.
1990 - “História e Ficção” - IN Jornal de letras, artes e idéias, Ano X, no.
400.
Crônicas e Editoriais
1971 - Deste Mundo e do outro (crônicas publicadas em A Capital em 68-
69). Lisboa: Arcádia, 1971. (Lisboa: Editorial Caminho - 2.ed. 1985;
3.ed. 1986)
1973 - A Bagagem do viajante (crônicas publicadas em A Capital e Jornal
do Fundão). Lisboa: Editorial Futura, 1973. (Lisboa: Editorial
Caminho - 2.ed. 1986; 3.ed. 1988)
1974 - As opiniões que o D.L. teve (editoriais publicados no Diário de
Lisboa). Lisboa: Seara Nova/Editorial Futura
1976 - Os Apontamentos. Seara Nova cronicas. (editoriais anteriormente
publicados no Diário de Notícias - 11/03 a 25/11/75)

Obs: A data `a esquerda do título refere-se à primeira edição da obra.

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