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PISTAS E TRAÇOS DO CORPO

SUSPEITO: jAILTON, O
ESTUPRADOR DE ITAMBÉ

Nilton MlLANEZ

Todo eu sou corpo e nada mais; a alma nâo é


mais que um nome para chamar algo do cor-
po. (NIETZSCHE, 2008, p. 51-52).

o homem da multidão

"Olhava os passantes em massa e neles pensava em função de


suas relações gregárias. Em breve, porém, desci a pormenores e exa-
minei com minudente interesse as inúmeras variedades de figura,
roupa, ar, andar, rosto e expressão fisionômica." (POE, 2001, p.
392-393). Esta é atitude do personagem descrita por Edgard Allan
Poe, em 1840, que por trás da vidraça de um Café, em Londres,
examina diferentes tipos sem rosto que andam de um lado a outro.
Em meio a escreventes, batedores de carteira, jogadores profissio-
nais, revendedores judeus, mendigos de rua, mocinhas, prostitutas
e ébrios, o observador das ruas, mais um homem da multidão, bus-
ca amparo no exame do comportamento corporal e da expressão
do rosto de um desconhecido que começa a perseguir com o seu
olhar afinado: o homem sem rosto precisa ter sua expressão facial
decifrada.. Porém, o sujeito observador se distancia do sujeito
observado por meio de um conjunto de técnicas, regras e proce-
dimentos, peculiar à história da expressão no século XIX, marca-
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Nilton Milanez Pistas e traços do corpo suspeito: [ailton, o estuprador de ltambé

da pela ruptura dos estudos de Charles Darwin, em 1874, sobre dades que enquadram os sujeitos em uma sociedade regulada pela
a expressão das emoções do homem e do animal (COUR,TINE; norma da arte de bem apresentar-se em público, salvaguardando
HAROCHE, 1998). Paradoxalmente, essa separação dos olhares suas faces.
produz um duplo efeito: possibilita ao sujeito uma aproximação O rosto está, portanto, ávido para ser identificado. Quem é do
muito maior consigo mesmo, forçando-o a controlar suas paixões, bem e quem é do mal nessa estória? No final, é essa a pergunta
a domesticar seus gestos, à medida que se singulariza no meio da que se coloca. A necessidade de se proteger dos rostos sem face das
multidão, como também afasta-o de si mesmo, pois está em um multidões é imperiosa. Por isso, desde sempre houve técnicas de
momento histórico no qual a constituição dos saberes científicos e decifração dos rostos que requerem uma atitude semiológica para
especializados fundam uma ruptura entre o hOD;l~1D orgânico e o o reconhecimento dos sinais e traços de faces suspeitas. Como
homem sensível (COURTINE; HAROCHE, 1998). vamos, então, nos posicionar diante dessa história das expressões?
Isso só mostra cada vez mais que o desejo de não estar só exi- Como se constrói discursivamente a figura de um corpo suspeito?
ge o reconhecimento e identificação do outro, evitando o apaga- Como o criminoso pode ser construído na mídia?
mento dos fOStOSpara poder constituir a singularidade dos corpos, Essas questões me perseguiram ao me deparar com a construção
seja por meio de identidades marcadamente físicas ou passionais. midiática em torno de Jailton, o estuprador de Itambé nos jor-
Se a "[. .. 1 sociedade democrática apaga os indícios físicos tradicio- nais, blogs, fotos em murais, postes de luz e falas cotidianas na cida-
nais, embaralha os velhos códigos da sociedade de ordem, banaliza de de Vitória da Conquista, no interior da Bahia. Pretendo, então,
a postura, mascara as hierarquias." (COURTINE, 2008, p.341), compreender os mecanismos e elementos que manufaturam e pro-
é preciso estar alerta à morfologia das expressões como forma de duzem a imagem de um sujeito que vai de suspeito a criminoso por
mensurar a periculosidade das fisionomias. Por isso, a identidade meio de um conjunto de técnicas semiológicas de deciframento do
de um rosto precisa ser reconhecida imediatamente, traçando-se os corpo proliferadas pela mídia. Observarei, portanto, esse tipo de
indícios que a identificam. O corpo, nesse sentido, é visto como construção da posição do olhar de um sujeito sobre outro, conside-
um dispositivo para referenciar movimentos, atitudes, comporta- rando a produção de um saber e controle social que determinam o
mentos para sabermos diferenciá-Ios do que pode ser suspeito e que se pode ser chamado de corpo criminoso.
criminoso daquilo que não é. Exigir uma identificação vai, hoje,
muito além do que apresentar o RG. Há uma incitação em torno Arte do olhar, arte do detalhe
da visibilidade imediata do sujeito que se apresenta por meio da
tecnologia das redes denominadas de relacionamento, como orkut Os sistemas de identificação possuem suas técnicas e elaboração
ou facebook, que funcionam como um registro geral do sujeito, de estratégias que, ao meu ver, seguem a ordem de uma história dos
englobando sua vida doméstica e profissional, ampliando os limi- olhares e de suas sensibilidades, à ordem social de
adequando-se
tes da sua intimidade e dando garantias de que todos "são pessoas nosso tempo. Para tanto, vou fixar bases sobre uma teoria sernioló-
do bem". A mesma dicotomia estabelecida pelo século XIX entre gica para realizar essa empreitada em direção ao saber. "Chamemos
observador e observado é mantida, nesse caso, por fatores também de semiologia um conjunto de conhecimentos e de técnicas que
de sensibilidade às expressões, cuja decifração dos traços acaba por permitem distinguir onde estão os signos, definir o que os institui
criar a identificação de vidas normais e vidas suspeitas. A forma de como signos, conhecer seus liames e as leis de seu encadeamento."
gerenciamenro de controle desses RGs individuais vai do rosto ao (FOUCAULT, 2000, p.40). Isto dito significa que, para Foucault,
corpo como um todo e parece ter por finalidade produzir visibili- em As palavras e as coisas, não há uma teoria dos signos que não

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Pistas e traços do corpo suspeito: failton, o estuprador de Itambé
Nilton Milanez

Foto 1 - jailton, o esruprador de ltambé.


ser compreender e decifrar o corpo por meio de seus signos, ou
seja, suas pistas, traços e sinais dentro do quadro de uma pers-
pectiva de identificação, começando com o médico, passando
pelo conhecedor de quadros até chegar ao detetive, expressões
e mobilidades para a constituição das subjetividades. Retraçar,
portanto, a história do detalhe parece delinear um quadro
semiológico para a leitura e interpretação do corpo, ferramentas
afiadas para a compreensão da produção dos sentidos no interior
dos discursos, artes de existência na constituição dos sujeitos e
suas subjetividades.
Fonte: Foto postada no blog Sudoeste Hoje de Davi Ferraz (2009).
Jekyl e Hyde: a marca do mal
Negro, olhos puxados, boca carnuda, ombros largos, corpo
Seguindo as pistas de tradução corporal que ventilei ante- malhado em uma camiseta branca que contrasta e põe em evidên-
riormente, quero apresentar a foto de Jailton, o estuprador cia a cor de sua pele. No fundo uma parede azul e o que parece
de Itambé, designação produzida pela mídia de Vitória da ser a parte do batente de uma porta. Uma cena doméstica, de um
Conquista, no mês de outubro de 2009. Como nos posicionar- homem com os padrões de beleza de nossa época, entre foto coti-
mos diante dessa foto'? Para onde olhar? O quê olhar? A imagem diana e sensualidade, se não fosse o fato de se tratar do acusado de
parece exigir uma decifração para compreendermos o lugar pre- vários crimes, desde estupro até assalto a mão arrnadaê, Visto desse
enchido pelos sinais de identificação do suspeito. Diante da foto jeito, o olhar para a foto se modifica: o objeto é o mesmo, mas
de Jailton, buscamos encontrar os traços que o definem pelos nossa posição do lugar para olhá-lo é outra. Seus traço parecem ter,
seus atos criminosos. Sabemos, é claro, que não há um criminoso então, que revelar suas (i)moralidades. Mas onde elas estariam? Um
nato, porém nossa maneira de olhar para a representação fotográ- detalhe na foto pode ter passado despercebido, mas sua atenção
fica do indivíduo transforma-o em sujeito, incitando-nos a buscar nos é chamada pela intervenção do email de um internauta em um
nele sinais físicos de criminal idade em potencial. Paradoxo irre-
blof:
futável: o corpo acaba sendo ao mesmo tempo material de exame
e prova para a constituição do crime pelo qual o indivíduo está olhem, nenhuma pessoa tira foto de frente e aparece a som-
sendo acusado. bra, esse cara deve ser a sombra do DIABO (Arthur)

2 Extrato do texto "PM e Caesg se juntam para capturar o 'Estuprador de


Itambé', do dia 08 de outubro de 2009 no blog Sudoeste Hoje de Davi Ferraz
(2009). Disponível· em <http://www.sudoestehoje.com.br/web/policia/2293-
policia-eta-no-encalco-do-estuprador-de-itambe.hlml>. Acesso em 15 novo
2009.
3 Comentário postado no B/og de Ronny Santos (2009). Disponível em: <http://
1 Confira a foto postada no blog Sudoeste Hoje de Davi Ferraz em 2009.
rsanttos. word press.com/2009/11 /04/estuprador-de-itamb-deixa-conquistensés-
Disponível em <http://www.sudoestehoje.com.br/web/policia/2293-policia-eta-
em-estado-de-pnico/>. Acesso em 15 novo 2009.
no-encalco-do-estuprador-de-itambe.html>. Acesso em 15 novo 2009.
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Nilton Milanez
Pistas e traços do corpo suspeito: [ailton, o estuprador de Itambé

Dar atenção à sombra do corpo de Jailton, refletida na parede


atrás dele, como faz Arthur, demonstra um modo de olhar para corpo e de sua moral ali presentes. Como analista, observo a foto-
o sujeito que vai se dividir em dois: destaca-se a presença do que grafia e os elementos que a constituem como semiologias para a
é visível e o. que está invisível, daquilo que é interior e se expressa construção e fixação das marcas e valores sócio-históricos daquele
na sua exterioridade por um golpe de vista. Essa dicotomia revela a corpo suspeito. Entretanto, devo repetir que a leitura da fotogra-
presença de um corpo e de uma alma, sendo que por meio dela, na fia não se dá de forma isolada e que a constituição de seus sen-
interioridade dos sentimentos do corpo, é que poderíamos conhe- tidos está atrelada a indícios exteriores e traços já sulcados pelos
cer as paixões escondidas do suposto criminoso. A tensão entre mecanismos de produção discursiva midiática, reafirmando as sus-
"[ ...] interioridade escondida do homem e sua exterioridade mani- peitas pelo indivíduo da foto, além de elencar e dar voz aos leito-
festa." (COURTINE; HAROCHE, 1988, p.39) é o lugar no qual res. Juntos, em uma ciranda, mídia e leitores, sem sabermos quem
é possível entrever tudo aquilo que está oculto e que será mani- determinou que papel para quem nesse jogo, (rejconstroem o lugar
festo. A marca de desidentificação do corpo representada na som- de Jailton na sociedade. Lembro, também, que a leitura que apre-
bra descaracteriza o sujeito de sua humanidade, apresentando um sento a seguir se adequa a esse escopo discursivo, no qual a ima-
espaço que se constrói à luz do desconhecido, do estranho, que se gem do suspeito desencadeia, passando a pertencer ao domínio da
transforma em tenebroso e demoníaco. Esse cara deve ser a som- anormalidade. Portanto, a mesma pose, olhar, rosto, roupa, cená-
bra do DIABO, como enuncia o internauta, é a conclusão a que rio poderiam fazer parte da corporalidade de uma propaganda de
se chega sobre a imagem em foco. Assim, a imagem da virtualidade revista, de jornal ou outdoor de alguma marca famosa, mas o cam-
do corpo do criminoso será a materialização do conhecimento que po discursivo no qual ela se encontra aceita um número e valor de
se produz acerca dele. formações em detrimento de outras.
Posto isso, podemos compreender que a pose de Jailton, de
frente, encarando todo e qualquer cidadão, atribuem-lhe sentidos
Fotografia: da morfologia do corpo à moral dos atos
que soam ameaça e confronto, ao olhar diretamente em nossos
A fotografia traz, portanto, uma produção em torno de si e olhos do outro lado da foto, da mesma maneira que fazem os ani-
dos arredores daqueles que a olham. A construção midiática acer- mais prontos para o ataque. A camiseta branca, em contraste com
ca de Jailton vai se desvelando a partir dos vestígios iconográficos sua pele, ressalta a largura de seus ombros e dá destaque aos seus
·que partem da materialização de sua foto, ou como disse Barthes ossos externos, fazendo-nos considerar sua força e possível agressi-
(200 I, p.I03), ao evidenciar o elo entre o político e seus eleito- vidade. Os lábios grossos, antes de sugerir uma arte erótica, remon-
res, "[ ...] a fotografia é elipse da linguagem e condensação de todo tam a memórias em que o negro pertenceria a sociedades primiti-
um 'inefável' social [...] em proveito de uma 'maneira de ser', de vas ou selvagens, era detentor de um exotismo comparado ao dos
um estatuto social e moral." Nessa linha, a fotografia nos faz reco- animais. O cabelo negro, curto e rente ao crânio estabelece o limite
nhecer em profundidade aquele que nela está representado, mos- para onde devemos voltar e fixar nossa visão, fazendo-nos retomar
trando-nos que o que está exposto na foto inclui as motivações, aos olhos de Jailton. Um olho com formato diferente do outro. O
circunstâncias familiares, mentais, eróticas e o estilo da imagem do olho da direita nos encara, o da esquerda nos olha atravessado. Essa
retrato. desarmonia do desenho dos olhos produz um efeito de estranheza
Sob essa perspectiva, a fotografia de Jailton impele o seu espec- que é prolongado pelo fundo azul e o pedaço do possível batente
tador a uma cumplicidade, exigindo dele o decifrarnenro daquele de porta, cujas memórias compartilhadas lançam-nos às cabanas no
88 meio da floresta das histórias infantis, povoadas de bruxas e lobos
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ou até mesmo fazendo-nos retomar os 'cativeiros' dos sequestrados Suas paixões interiores, escondidas, se revelariam em seus atos cri-
dos dias de hoje. Assim, tipo morfológico e ambiente externo com- minosos, cristalizando a relação diabo/estuprado r, corpo/atividade
pletam o clima de terror das condições que propiciaram a veicula- criminosa.
çâo e circulação daquela foto. Nesse sentido, a representação de seu corpo é tomada em con-
A foto de Jailton responde, portanto, a um largo leque de pes- sonância com o crime de estupro do qual é acusado. Estabelecem-
soas consideradas suspeitas como nativos de colônias européias, se, então, padrões de normalidade e anormalidade no interior da
imigrantes, negros, pobres, mendigos, degenerados, prostitutas. sociedade e da história. A anormalidade se estabelece a partir da
O que parece mover a identificação desses sujeitos, segundo Cole desordem estabelecida em relação ao direito a nosso próprio corpo,
(2001), é o desejo de controlar esses corpos suspeitos, por meio de intimidade resguardada e protegida por lei, cujo desacato é um ato
formas de identificação cruéis que visam à visibilidade e irreversa- contranatureza. Essa desordem se constitui de modelos já conside-
bilidade das maneiras de se produzir um criminoso. Dessa forma, rados fora do padrão desde o século XIX, quando nos defrontamos
a fotografia, uma das mais baratas formas de identificação hoje em com aquilo que é proibido e impossível (FOUCAULT, 2001 b),
dia, pode ser usada para estigmatizar grupos de pessoas, provocan- por isso inaceitável. Assim, dentro do domínio da anomalia, o
do seleção e hierarquização dos sujeitos pelas marcas notórias dos estuprador passa a ser identificado como um monstro.
traços que os assemelham dentro de determinados grupos. Dessa feita, as possibilidades de leitura que a foto de jailton
Esse tipo de atitude face aos indivíduos é análogo ao descrito nos proporciona em seus vestígios, não se encontram somente na
por Lavater (1807), em A arte de conhecer os homem pela fisionomia, iconografia, mas pode ser também indicada por, sinais Iingüísri-
que prescreve como devemos buscar conhecer na organização de cos particulares e fundamentais para a composição do discurso da
cada corpo a superioridade e inferioridade de cada espécie. A ques- mon~truosidade, exigindo uma investigação histórica semio-lin-
tão central desse pensamento, que data do início do século XIX, é guístico-discursiva, que se delineia a seguir na fala de dois inter-
que ele toma a interpretação dos signos relacionados à forma e con- nautas":
ceitos cristalizados no imaginário sócio-histórico, fazendo prolife-
o monstro
rar imagens de interdição e segregação na construção do indivíduo 107 Qua, 04 de Novembro de 2009 09:44
perigoso. Daniela
Gente será possivel q ninguém vai fazer nada, estou com medo
o monstro e a lei de sair pra trabalhar e ainda fico ensigura preucupada com
meus filhos em casa.
A análise dos detalhes vai-nos levando a caminhos, primeira-
mente, tortuosos, incongruentes, deixando-nos, às vezes, confusos, justi~
mediante a profusão de discursos que vão se formando aqui e ali. 256 Qui, 12 de Novembro de 2009 19:55
No entanto, essa dispersão de discursos vai, aos poucos, formando hupi
[...[espero que lailton esse monstro,que anda a solto seja preso
uma cadeia discursiva que pode ser acompanhada e compreendida
logoe que se faça justiça. '
por meio de um fio regular, que o ilumina e esclarece: um quadro
pintado por uma linguagem mista, que nos é dado a ver sob a óti-
4 Confira comentários postados no b/og Sudoeste Hoje de Davi Ferraz (2009).
ca da mídia. E o discurso da rnídia, portanto, nesse caso, insere Disponível em <http://www.sudoestehoje.com.br/web/policia/2293-policia-eta-
o suspeito Jailton no domínio da monstruosidade e da anomalia. no-encalco-do-estuprador-de-itambe.html>. Acesso em 15 novo 2009.

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Nilton Milanez Pistas e traços do corpo suspeito: [ailton, o estuprador de Itambé

No serap de Daniela, a sequência nominal 'O monstro' apare- estrupo


ce no lugar do 'assunto' (subject) na estrutura do endereçamento 247 Qui, 12 de Novembro de 200911:21
eletrônico. Ao determinar 'monstro' pelo artigo 'O', atribui-lhe rhuan carlos abadias
singularidade e potência, colocando-o no topo das discussões. esse vagabundo tem que morer esse desgraçado deveria pegar
Enquanto, o serap de hupi constitue a monstruosidade do suspei- ele e enfiar o pau bem no seu ## ai ele iria ver e sentir ador que
to por meio de uma referenciação, 'esse monstro', que nos lan- as pessoa que ele cometeu o estrupo, e enfiar o braço bem no
ça ao reconhecimento de identificação verbal das mais evidentes, meio do seu ## fila da puta e depois rnatalo com um tiro de
Jailton, nominação que novamente singulariza e coloca o corpo 12 bem no meio do seu ## encher de tiros seu aronbado vc vai
criminoso em questão na ordem do dia. O detalhe da escolha do morrer vai morrer vai morrer!!!!!!!
léxico, a particularidade do lugar que ele ocupa e a especificida-
Como podemos notar na leitura do email de rhuan carlos aba-
de do tipo de encadeamento propostos na estrutura do email são
dias, o monstro acaba por suscitar violência, ódio e vontade de
índices que colocam em zoom o posicionamento dos sujeitos e,
supressão do indíviduo, eliminado-o da sociedade por meio de sua
sobretudo, o lugar que dão a Jailton no centro da monstruosida-
morte, flagrando o desejo de uma higienização social. Como resul-
de criminosa. Certamente, a mídia exerce, aqui, o exame sobre o
tado, temos uma operação discursiva que desencadeia uma forma
suspeito, papel que é comumente desempenhado pelos discursos
de exame marcada por uma homogeneidade da reação social
médicos e judiciários.
(FOUCAULT, 2001b), que visa proteger todo o corpo social.
Assim, tais depoimentos implicam a anomalia na ordem da
lei, produzindo o que Foucault (2001b) denominou de monstro Entretanto, este movimento discursivo provocado pelo sujeito e -
humano. Foucault compreende essa referência no interior de um seu interrelacionamento com a norma e a lei produzem exatamente
noção jurídica, sentido amplo do termo, pelo fato de sua exis- o caminho contrário da ordem.
tência abarcar dois outros patamares: "[...] não apenas uma vio- O monstro, sob essa ótica, é a representação da infração em
lação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da nature- uma potência altamente elevada que, paradoxalmente, não fará
za." (FOUCAULT, 2001b, p.69). Isso nos faz compreender que o seu ponto de conversão na lei. "O monstro é uma infração que
jurídico está, também, entrelaçado ao biológico e determina que se coloca automaticamente fora da lei." (FOUCAULT, 2001b,
o indivíduo precisa ser corrigido pelo seus atos. Essa noção jurí- p.Zü). E se olharmos minuciosamente para essa monstruosidade,
dico-biológica introduz um sistema penal no qual "O criminoso é veremos que ela não tem apenas um monstro, mas dois. De uma
aquele que danifica, perturba a sociedade. O criminoso é o inimi- parte, temos o criminoso, aquele que rompe com o pacto social,
go social." (FOUCAULT, 2002, p.8I). Discurso corroborado pelos transgredindo os cálculos de si, perdendo a razão e violentan-
seraps de Daniela e hupi. do uma lei natural. De outra, temos aquele que assume o lugar
Mas daí fica a pergunta: como a lei vai tratar o criminoso? do rei soberano, com o direito de deixar viver ou fazer morrer
Quem são os sujeitos envolvidos na confecção e aplicação dessa (FOUCAULT, 1988), cuja posição coincide com a do crime, ou
lei? Que conhecimentos vão surgir do levantamento desses traços? seja, é também da ordem da contranatureza. Rhuan age como
Vejamos, então, mais um depoimento online: um déspota, posição compreendida por Foucault (2001 b, p.l l Z)
como aquela na o indivíduo "[...] impõe sua violência, seus capri-
chos, sua não-razão, como lei geral ou como razão de Estado.", e
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o primeiro monstro jurídico que vemos surgir delinear-se compreender "[...] a constituição de um sujeito que não é dado
ao novo regime da economia do poder de punir, o primeiro definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá
monstro que aparece, o primeiro monstro identificado e qua- na história, mas de um jeito que se constitui no interior mesmo da
lificado, não é o assassino, não é o estuprador, não é o que
história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história."
infringe as leis da natureza; é o que infringe o pacto social fun-
(FOUCAULT, 2002, p.l O). Dessa maneira, se efetua, então, uma
damental. O primeiro monstro é o rei. (FOUCAULT, 2001b,
crítica do sujeito pela história marcada pelos sinais que o com-
p.118).
põem. E isso não. equivale dizer que estamos diante do real ou da
Estamos diante, então, de um monstro humano na figura de verdade como tal, pois
Jailton e de um monstro jurídico na figura de Rhuan, que assu-
[...] a semiologia não é uma chave, ela não permite apreender
me a posição de rei. A materialização desse reinado se materializa
diretamente o real, impondo-lhe um transparente geral que o
em esse vagabundo tem que morer e matalo com um tiro de
tornaria inteligível: o real, ela busca antes soerguê-lo,em certos
12 bem no meio do seu ## encher de tiros seu aronbado vc vai
pontos e em certos momentos, e ela diz que esses efeitos de
morrer vai morrer vai morrer!!!!!!!, afirmações cujo fundamen- solevamento do real são possíveis sem chave: aliás é precisa-
to histórico se encontra na aplicação da correção sobre o indi- mente quando a semiologia quer ser uma chave que ela não
víduo, difundida amplamente como prática institucionalizada de desvenda coisa alguma. (BARTHES, 2002, p.39).
um sistema punitivo no seio de nossa sociedade disciplinar. Isso
produz o efeito de apagamento do crime em detrimento do cri- A verdade, portanto é uma ilusão. E a realidade não passa
minoso, tendo como fim a extinçâo do sujeito criminoso. Além de efeitos do real. O lugar entre o certo e o errado, o normal
disso, a promulgação da lei nesse caso se baseia na fonte histó- e o patológico, o inocente e o culpado atingem esferas discursi-
rica 'olho por olho, dente por dente', na medida em que o sobe- vas que não são homogêneas porque divadas de tantos inúme-
rano estabelece que esse desgraçado deveria pegar ele e enfiar ros discursos, enviesados, deslocados, transmutados, cuja origem
o pau bem no seu ## ai ele iria ver e sentir ador que as pes- ou identificação não poderá jamais ser alcançada. Nesse sentido,
soa que ele cometeu o estrupo, reescrevendo a pena de talião quando identificar significar 'recuperar a origem de', estaremos
(FOUCAULT, 2001b, p.83), na busca de causar repugnância no fadados à angústia de uma incompletude que se tenta corrigir por
próprio sujeito pelo crime que cometeu. meio da invenção, ou seja, fabricação de "[...] uma série de meca-
nismos, de pequenos mecanismos." (FOUCAULT, 2002, p.15),
o tecido dos sentidos semio-históricos, aqui levantados e compreendidos como signos
no interior do discurso.
Os traços, pistas, indícios e vestígios constituintes dos signos
quando colocados em rede, sejam icônicos ou lingüísticos, regi-
REFERÊNCIAS
mentam o laço entre poder e produção de saber acerca dos sujeitos.
O desejo tão irremediável do sujeito pela identificação do outro, BARTHES, R. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
de fato, está cercado da constituição de verdades. Para Foucault, o Paulo: Cultrix, 2002.
entroncamento do sujeito do conhecimento com sua representa-
ção na história é um dos pontos possíveis para o aparecimento de ___ oMitologias. Tradução de R. Buongermino e P. Souza. Rio
uma verdade. O filósofo sugere olharmos através da historia para de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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Pistas e traços do corpo suspeito: [ailton, o estuprador de ltambé

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97
PARTE 11
AD, NOVOS OBJETOS, DESLOCAMENTOS
METODOLÓGICOS
A ANÁLISE DO DISCURSO E
A NATUREZA SEMIOLÓGICA
DO OBJETO DE ANÁLISE

Vanice Maria Oliveira SARGENTINI

Introdução

No Brasil, no pleito de 2010, a senadora e pré candidata do PV


à Presidência da República, Marina Silva, e o comando do partido
decidiram que não haveria um marqueteiro durante a campanha da
ex-ministra. "A imagem dela não precisa ser moldada nem maquia-
da e a campanha contará, entre outras coisas, com a origem humil-
de e a história de vida de Marina." (SCOLESE, 2010). Segundo a
reportagem, com o início oficial da campanha, em julho, o PV pre-
tende se limitar a contratar uma empresa que cuide da direção de
arte dos programas de 'TV, além de assessores específicos para dar
opiniões sobre imagem, figurino e tom de voz da senadora. "Isso
(dispensar um marqueteiro) não é uma decisão inocente nem sur-
giu pela falta de recursos. O mais forte que temos é o olho no olho
da Marina com as pessoas.", disse o vereador carioca Alfredo Sirkis
(PV), um dos coordenadores da campanha.
Recorremos a essa notícia para ilustrarmos como o discurso
político organiza-se, na contemporaneidade. É sob a ordem do
marketing, havendo uma prevalência das características da propa-
ganda publicitária sobre a propaganda política, que se erige o dis-
curso político. A própria emergência dessa notícia mostra-nos que
101
Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

o mais comum é que as campanhas eleitorais sejam regidas por um 1988) e redefiniçôes (COURTINE, 2009) delinearam os movi-
'marquereiro' e a ausência desse personagem é que se torna notícia mentos da teoria. Interessa-nos, neste momento, expor a rede-
e não a sua presença. Tal fato unido a outros, como a excessivapre- finíção do conceito de condições de produção, para que se possa
ocupação com a imagem física do candidato, seu tom de voz, seus defender a importância que, na atualidade, se pode ver em relação
gestos, parecem conduzir a um abrandarnento da importância das à articulação discurso e história e aos modos de leitura do objeto de
proposições políticas expostas na materialidade lingüística. Por isso análise.
nos perguntamos: Considerando o modo como se faz política nos Courtine (2009), ao considerar o quadro teórico no qual se
dias de hoje, como podemos analisá-Ia? desenvolve a noção de condições de produção, observa que dife-
O discurso político, matriz para os estudos da Análise do rentes concepções dessa noção são motivadas por distintas origens
Discurso, sofreu, ao longo do século XX, mudanças significa- desse conceito. A psicologia social, em uma origem direta, é um
tivas em sua forma de constituição, formulação e circulação. dos berços desse conceito, outros são, ainda que em uma origem
J.J.Courtine analisa as metamorfoses do discurso político em várias indireta, os estudos da sociolingüística e, em uma origem implícita,
obras (COURTINE, 2003, 2006, 2009), levando-nos a refletir como proposto por Harris, os estudos que apontam a exterioridade
sobre o lugar que cabe hoje à análise do discurso (derivada das da situação de enunciaçâo em relação ao objeto lingüístico. Cada
reflexões de Pêcheux), diante dos novos regimes de discursividade um desses nascedouros expõe oposições aos rumos que marcam os
do discurso político. Se antes as análises revelavam, por exemplo, as deslocamentos da noção de condições de produção para a AD.
nornmalizaçôes como um recurso de manutenção de uma língua de Se a noção de condições de produçãodelineada por Pêcheux
madeira (SERIOT, 1985), ou ainda as sequências discursivas como (1995) não afasta as origens psicossociológieas, mantendo a cen-
lugar de ocorrências de regularidades e deslizamentos de sentido, tralidade do conceito 'discurso' próximo de noções como a de for-
na contemporaneidade, não se pode ficar cego às outras modalida- mações imaginárias, tampouco afasta completamente que as condi-
des de linguagem que estão envolvidas no discurso político. ções históricas da produção de um discurso sejam compreendidas
Diante da problemática de como a análise do discurso pode tra- como as circunstâncias (no sentido psicolingüístico) da produção
tar seu objeto de análise, que é de natureza intrinsecamente semio- de mensagens emitidas por um falante.
lógica, ensaiaremos algumas respostas, considerando a necessidade Portanto, as noções de formações imaginárias e de circunstân-
de deslocamentos teórico-metodológicos para o desenvolvimento cias de enunciação favorecem muito para que se compreenda o
da análise. discurso como relações interindividuais, apagando o plano histó-
rico. Tal perspectiva tem também inclinação para mostrar "[...] os
Deslocamentos metodológicos: conceitos de condições de planos histórico, psicológico e lingüístico, aos quais as condições
produção, de enunciado e de corpus de análise. de produção remetem (como) justapostos." (COURTINE, 2009,
p.5I), expondo um caráter heterogêneo dessesplanos e não a histó-
o conceito de condições de produção. ria como determinante.
A proposição de Courtine (2009) de redefinição desse conceito
O campo da Análise do Discurso, em seu desenvolvimento his- inscreve-se no desenvolvimento histórico da Análise do Discurso,
tórico, jamais se furtou aos deslocamentos teórico-metodológicos orientando na direção a uma articulação da linguística com a his-
muitas vezes motivados por mudanças na sociedade e nos quadros tória. Para tal redefinição, pauta-se no conceito de formação dis-
de configuração do objeto de análise. As retificações (PÊCHEUX, cursiva e, em especial, na noção de enunciado como proposta por
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Vanice Maria Oliveira Sargentini
A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

Foucault (1986) em A arqueologia do saber. Esses dois conceitos


se repete, o enunciado é caracterizado por apresentar uma
serão primordiais para estabelecermos a relação da AD com o seu
material idade repetível.
objeto que tem, sobretudo na atualidade, de forma intrínseca,
natureza semiológica. O conceito de enunciado é, então, para Foucault (1986), sobre-
tudo, um conjunto de signos em função enunciativa, exigin-
o conceito de enunciado do com isso que entre o enunciado e o que ele enuncia estejam
envolvidos os sujeitos, em um lugar institucional, determinado por
Na Análise do Discurso, como proposta por Pêcheux (1995,
regras sócio-históricas que possibilitam que ele seja enunciado.
1988), não há uma definição específica de enunciado. Tal noção
Courtine (2009), ao mobilizar esse conceito de enunciado para
relaciona-se aproximadamente àquela de sequências discur-
os estudos da Análise do Discurso, inscreve-o no nível de uma rede
sivas, de sucessão de frases em uma superfície discursiva. Os
interdiscursiva que governa os elementos do saber próprios a uma
estudos de Courtine (2009) aproximam a noção de enunciado
Formação discursiva (FD) - relação instável, onde se podem apre-
em Foucault às reflexões de Pêcheux, expondo que a noção de
ender os elementos de saber de uma FD, e os elementos que não
enunciado em Foucault apresenta uma perspectiva discursi-
pertencem ao saber da FD, mas que a ela se integram devido a uma
va que falta à análise do discurso, e por essa razão em sua tese
fronteira que se desloca em um processo de reconfiguração inces-
(COURTINE, 2009) propõe uma releitura da definição de
sante - atribuindo, assim, ao enunciado a possibilidade e a capaci-
enunciado, partindo de Foucault, mas a ela acrescentando uma
dade de repetibilidade que vem a ocorrer em uma rede de formula-
relação incontornável entre a materialidade da língua e a mate-
ções e reformulações.
rialidade do discurso.
Essa visada sobre o conceito de condições de produção, enun-
A noção de enunciado, como posta n' A Arqueologia do Saber
ciado e formação discursiva foram aplicados na análise de sequên-
(1986), aponta quatro propriedades que lhe são inerentes, a saber:
cias discursivas de referência extraídas de um corpus em AD políti-
ca que focalizava 'a política da mão estendida'.
a) O enunciado é constituído por leis de possibilidades, por
Nesse estudo, apresentam-se em foco duas questões centrais,
regras de existência. Ele se dá em função das condições de
que, neste artigo, tornam-se indispensáveis para as reflexões que
emergência de aparição deste dado enunciado.
queremos desenvolver. A primeira delas refere-se a: como a rede-
b) O enunciado tem um autor (responde a uma função enun- finição do conceito de condições de produção intervém na arti-
ciativa) que assinala, sobretudo, uma posição sujeito. culação linguística e história? A segunda é: considerando que essa
c) O enunciado se integra sempre a um jogo enunciativo. Ele noção de enunciado ingressa nos estudos da AD, poderíamos pen-
não ocorre de forma livre ou autônoma, mas sempre cir- sar que ela abre margem para análises que não se reduzem à análise
cunscrito a um domínio associado e, assim, atesta sua do enunciado lingüístico?
historicidade. Toda formulação apresenta em seu domínio Quando Courtine (2009) introduz na AD a reflexão de que
associado outras formulações que ela repete, refuta, trans- as condições de produção devem ser cuidadosamente exploradas,
forma, denega. porque é preciso evitar circunscrevê-Ias, como tinha sido feito até
então, às noções de formações imaginárias e de circunstâncias de
d) ,O enunciado tem uma existência material ligada à noção
enunciação, uma vez que tal abordagem favorecia muito que se
de repetição. Se a enunciação é um acontecimento que não
compreendesse o discurso como relações interindividuais, apa-
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Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiolôgica do objeto de análise

gando dele o plano histórico, o autor acresce à teoria a noção de um balanço comercial, são enunciados: onde estão as frases?
Pode-se ir mais longe: uma equação de enésimo grau ou a fór-
'memória discursiva'. Tal noção irá definitivamente romper com
mula algébrica da lei da refração devem ser consideradas como
possibilidade de um estudo em AD que exclua as relações discurso
enunciados; e se possuem uma gramaticalidade muito rigorosa
/ história, e irá considerar que essa relação está inscrita no 'enuncia-
(já que são compostas de símbolos cujo sentido é determinado
do', porque esse enunciado possui uma existência material, ocorre por regras de uso e pela sucessão regida por leis de constru-
em um domínio associado e responde a determinadas condições ção), não se trata dos mesmos critérios que permitem, em uma
sócio-históricas de emergência. língua natural, definir uma frase aceitável ou interpretável.
Entretanto, as análises desenvolvidas naquela pesquisa restringi- Finalmente, um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâ-
ram-se a análise de enunciados lingüísticos próprios da AD política mide de idades, um esboço de repartição, formam enunciados;
que se imaginava naquele tempo. Afirmamos isso, porque poste- quanto às frases de que podem estar acompanhados, elas são
riormente, Courtine, sensível às mudanças do discurso político, em sua interpretação ou comentário; não são o equivalente deles:
uma reflexão sobre seus estudos anteriores, relata que em sua tese, a prova é que, em muitos casos, apenas um número infinito de
quando pensava fazer uma descrição da anatomia do discurso polí- frases poderia equivaler a todos os elementos que estão explici-
tico, fazia, hoje o reconhece, uma autópsia, um atestado de óbito tamente formulados nessa espécie de enunciados. Não parece
possível, assim, definir um enunciado pelos caracteres grama-
da língua de madeira, ação que lhe permitiu "[...] sentir correr o
ticais da frase.
sopro das línguas de vento.:". O discurso político respondendo a
uma mudança acentuada em seu regime de discursividade, devido Foucault, ao formular o conceito de enunciado, considera que
às mídias e suas novas tecnologias, já não estaria mais circunscri- esse pode ser, entre outros, uma pirâmide de idades, um esboço de
to ao enunciado lingüístico, mas em outro lugar. Procuramos, ora, repartição..., assim não se trata apenas de articular uma rnateria-
mostrar que ele ainda pode ser apreendido no enunciado, compre- lidade da língua a uma materialidade do discurso, mas se trata de
endido a partir de Foucault. ampliar a relação da materialidade do discurso a outras materiali-
Para Foucault (1986, p. 93): dades (gestuais, imagéticas, sonoras) que demandam de forma mais
incisiva a análise a ser desenvolvida pelos estudiosos do discurso,
É relativamente fácil citar enunciados que não correspondem à
estrutura linguística das frases. Quando encontramos em uma uma vez que a noção de enunciado nâo se reduz, então, ao enun-
gramática latina uma série de palavras dispostas em coluna - ciado lingüístico. Assim, explicitar um discurso será, então, inter-
amo, amas, amat -, não lidamos com uma frase, mas com o pretar o que as pessoas escrevem, mas também suas imagens, seus
enunciado das diferentes flexóes pessoais do indicativo presen- gestos, falas, expressãosonora ...
te do verbo amare. [...] outros exemplos são menos ambíguos:
um quadro classificatório das espécies botânicas é constituído o conceito de corpus de análise: alguns deslocamentos
de enunciados, não de frases (Genera plantarum de Lineu é
um livro inteiramente constituído de enunciados, em que náo Dentre os conceitos que sofreram deslocamentos ao longo do
podemos reconhecer mais que um número restrito de frases); desenvolvimento da Análise do discurso está também aquele de
uma árvore genealógica, um livro contábil, as estimativas de corpus discursivo. Se nos trabalhos produzidos na década de 1970,
a noção de corpus discursivo era compreendida como um conjunto
de sequências discursivas estruturado segundo um plano definido
1 Citação do texto especialmente escrito para ser lido no 11 CIAD-2009,
ocorridona UFSCar- São Carfos,sob nossa coordenação. em referência a um certo estado das condições de produção do dis-
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Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

curso: tendo, po.rtanto., uma concepção estática, tal conceito sofre Temos corno exemplos alguns trabalhos de Courtine; Haroche
reconfigurações ao. ser aproximado. do. conceito de formação dis- (1988) corno Histoire du Visage e Courtine; Corbin, Vigarello
cursiva corno propo.sto po.r Foucault e ao. ser cotejado à redefinição (2008) História do Corpo v. 3, que inscritos em um quadro teórico.
da noçâo de condições de produção. da antropologia cultural, analisam a longa duração. sem com isso.
O co.rpus discursivo passa, então, a ser compreendido como. um render-se à continuidade histórica o.Uàs causalidades dos fatos.
arquivo. que funciona corno um conjunto aberto. de articulações, Se voltarmos para a análise do. discurso. político. conternporâ-
que não. responde necessariamente à cronologia histórica ou às neo, veremos que muitas pesquisas privilegiam a análise de uma
supo.stas relações de causa e conseqüência dos fatos. Assim, interfe- curta duração, muitas vezes apreendida em textos da mídia, com
rem fortemente na análise dos discursos, as diferentes ternporalida- o. objetivo de flagrar uma história em curso. expressa po.r uma nar-
des que podem ser analisadas. rativa do. tempo. presente. Enrretanto, há também pesquisas que
acompanham as transforrnaçôes do. discurso. político em uma longa
As diferentes temporalidades: longa, média e curta duração, fazemos aqui referência a Piovezani (2009), que investi-
duração (o acontecimento). ga os discursos produzidos em público pelos políticos, expondo,
assim, uma genealogia da fala pública e a produção. de verdades no.
Os enfrentamentos que Foucault (1986) estabelece com a discurso. político, Observamos, entretanto, que, assim corno num
História tradicional irão. ecoar em diversos âmbitos das Ciências estudo. que aborde a longa ou média duração. pode-se flagrar a
Humanas e a Análise do. discurso. não. passará alheia a isso. historicidade dos fatos, também na análise do. acontecimento, ela
Foucault, amparado. po.r reflexões de Nietzsche e da Nova História, está presente, talvez não. como. uma coluna sólida que se mostra de
questiona os métodos, os limites, critica o. apagamento. das disper- forma já consolidada, mas como. a efervescência que deixa ver na
sões, dos acidentes, das descontinuidades, que caracterizam os tra- superfície o. movimento intenso. que há na profundeza das ãguas'.
balhos de muitos historiadores. Nossa preocupação em refletir sobre as diferentes ternporalida-
Nessa perspectiva, se os historiadores desenvolviam suas análises des objetiva acentuar corno a articulação. entre o. discurso. e a histó-
pautando-se numa longa duração, tal fato. promovia uma ruptura ria, nas análises desenvolvidas sob a égide da Análise do. Discurso,
com a história historicizante, privilegiava a linearidade dos aconte- apresenta-se de forma incontornável. Assim, analisar um discurso.
cimentos compreendidos em suas supo.stas causas e conseqüências, não. é analisá-lo enquanto. sequência discursiva, mas como. um frag-
A tese de Courtine (2009) e a obra de Pêcheux (1997) - mento da história, que se forma a partir de uma espessura históri-
Discurso: estrutura e acontecimento irão. marcar-se na AD, respec- ca, na qual se acumulam camadas que sustentam distintos paradig-
tivamente, como trabalhos que questionam o. princípio. da conti- mas de leitura.
nuidade na leitura dos enunciados estudados ou inscrevem-se no. Se o. discurso. político sofreu transformações, e isso. já está ates-
acontecimento. Ambos consideram a história estabelecida na dis- tado. em um conjunto de trabalhos sobre o. assunto. (COURTINE,
persão, nas rupturas e descontinuidades, e, portanto., analisam-na 2006; PIOVEZANI, 2009; SARGENTINI, 2008), é de fato
segundo. uma ordern do. discurso.
Não. se defende com isso. que os trabalhos que abordam o. dis- 2 O discursomidiático se apresenta como aquele que exige do historiador a
análise da curta duração, da história recente e em andamento que se passa
curso. não. se apoiaram ou po.ssam apoiar-se em uma longa dura-
diante dos nossos olhos. A análise, neste livro, de Sá e Sargentini, sobre o
ção, cremos que análises que assim se desenvolveram oferecem
processo de espetacularização do discurso político no Brasil, é um exemplo
belíssirnos resultados e contribuições para os estudos do. discurso. disso.

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Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

impossível na análise limitar-nos aos enunciados lingüísticos quan- tas tecnológicas facilitou o acesso a todos esses materiais que são
do os gestos, as expressões faciais, as inflexões da voz, as imagens suportes do discurso político, bem como simplificou a captação
nos sites e propagandas políticas, entre outras dimensões reclamam desses materiais.
análise. A natureza semiológica do objeto de análise se impõe e esse Por outro lado, são tantos os materiais disponíveis e eles são
objeto não existe isolado das camadas históricas que o compõe. Há, atualizados com tanta frequência, que geram, ao mesmo tempo,
assim, uma dimensão semiológica que configura o retrato da gene- dificuldade em apreender essa diversidade do discurso político. As
alogia do discurso político. informações em sites desaparecem com a mesma velocidade córn
que apareceram, de um acesso a outro, o conteúdo já se modi-
A natureza semiológica do objeto de análise: a captação ficou e o anterior não pode mais ser acessado. O caráter líquido
do corpus e a análise do discurso político. (BAUMAN, 2001) dos discursos pode ser visto de forma intensa
no discurso político, havendo rápida vaporização dos enunciados,
o discurso político, composto por rnaterialidades cornpó-
que, logo, se tornam inapreensíveis.
sitas, é expresso por uma diversidade de dispositivos materiais
Para análise, recortaremos um fragmento, composto por ima-
complexos como programas de governo, folders, sites, comícios, gens e texto escrito, extraído do site <www.dilmanaweb.com.br>.
programa do horário gratuito de propaganda eleitoral (HGPE), acessado em 03 de maio de 20103• O enunciado (em sentido fou-
leis, produtos resultantes de diversos tipos de apoio político, caultiano) mantém-se no site desde sua criação, enquanto outras
nos quais se pode identificar o candidato, enfim, um arqui- partes do site são atualizadas. Vemos, neste enunciado, tanto o tex-
vo composto de uma diversidade de gêneros que circulam em to verbal quanto o imagético que não se separam ao olhar do leitor
variados suportes.
do sire/blog".
Se, por um lado, há pouco tempo, esse arquivo do discurso
político era menos diversificado, em geral era composto de livre- Figura 1 - Minha Vida
tos e panfletos (enunciados lingüísticos, em geral) publicados e
distribuídos pelos comitês dos candidatos, e também, com certa
MINHA VIDA
Coragem. competência e sensibilidade
dificuldade de acesso, por filmagens feitas em comícios ou pro-
social: três características muito
nunciamentos em rádio e TV, ai:ualmente esse quadro se modi- presentes em toda a vida de
Dilma. Biografia
ficou. Diante desse grande arquivo que é a internet, é possível
recuperar, com certa facilidade, os programas do HGPE; ter aces-
so aos diálogos entre os candidatos e seus eleitores, por meio das
Fonte: Blog Oilmanaweb (2010).
várias redes sociais como Orkut, Twitter, Facebook; ver no Flickr
as diversas fotos que atuam como documentos que atestam por
quais lugares o candidato passou e com que pessoas esteve; aces-
sar os sites nos quais há conversas ao vivo com os internauras; 3 A página de rosto do site pode ser vista integralmente ao final do artigo.

ouvir, a qualquer momento, a gravação de programas de rádio, Anexo 1.


4 A própria candidata mistura a nomeação do suporte, chamando-o ora de
enfim, são mais diversificadas as produções do discurso político,
site (25 anos da morte de Tancredo. Leiam o post no meu site: http://migre.me/
bem como são mais facilitadas as formas de captação desse dis- ytrnz-), ora de blog (É uma grande alegria receber você, internauta, no meu
curso. Assim, consideramos que a criação de diversas ferramen- blog).
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Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

A polêmica que se instaurou sobre esse enunciado refere-se ao sentes na natureza semiológica do objeto de análise e que, por isso,
fato de a imagem central, que está ladeada por duas fotos de Dilma não há uma leitura certa ou equivocada desse enunciado. Essas
RoussefP, ser da atriz Norma Bengell em uma passeata. Em respos- imagens, assim como o texto verbal, em seu caráter compósito não
ta aosquestionarnentos postos sobre a junção dessas três imagens, di'Zem pela evidência, não podem ser lidas como provas documen-
indica-se que, ao se passar o mo use sobre as imagens, é possível tais, mas como uma construção discursiva que admitem diferentes
obter uma legenda para as imagens, desfazendo o possível conflito. paradigmas de leitura.
Além disso, em uma nota de esclarecimento, "O blog Dilmanaweb Em um paradigma que chamarei de a 'construção discursiva
lamenta profundamente a interpretação equivocada da foto que da mulher militantel atuante na política' ou ainda "as mulhe-
traz a atriz Norma Béngell participando de uma passeata contra res podem vencer" - frase dita por Ségolêne Royal à pré-candidata
a ditadura." (DILMANAWEB, 2010).6 Veja a seguir o enunciado Dílma? - podemos recuperar, no enunciado que contém as fotos
com a legenda que exige que candidato faça uma ação para que ela de Dilma criança, manifestantes dos anos 60 e Dilma já minis-
apareça. tra, a narrativização da inserção da mulher no meio político. De
Figura 2 - Minha vida 2 menina não se passa a dona de casa ou professora (atribuições este-
reotipadas ao grupo feminino), mas a militante, assim como outras
MINHA VIDA mulheres de sua geração (dentre elas Norma Bengell), que luta-
Coragem, competência e sensibilidade ram e, por isso, conquistaram postos de destaque na nação - por
social: três características muito
exemplo, ser nomeada ministra. O enunciado atualizado responde
presentes em toda a vida de
Dilma. Biografia a determinadas condições de emergência que permitem sua formu-
lação, em uma organização que se permite que se leia a imagem
sintagmaticamente. O texto verbal "Coragem, competência e sen-
ÚLTIMAS NOTÍCIAS
sibilidade social: três características muito presentes em toda a vida
Fonte: Blog Oilmanaweb (2010).
de Dilma." pode ser lido de forma a construir uma homologia com
Amparando-nos na noção de enunciado que se caracteriza por as imagens. A coragem da criança, da mulher e da: ministra estão
responder a determinadas condições de emergência, por ser enun- expressas no rosto em clóse, que não expõe um sorriso escancarado,
ciado a partir de uma posição sujeito e por ter uma existência mas a altivez para enfrentar a vida. A competência e a sensibilida-
material inscrita no interior de um domínio associado, analisa- de social deverão ser lidas no rosto, historicamente olhos da alma,
remos os paradigmas de leitura desse enunciado, com o objetivo mostrado com muita proximidade na mulher criança e ministra. A
de mostrar que a interpretação responde a questões históricas pre- foto central, nesse paradigma, fortalece a construção e o reconheci-
mento do lugar (muitas vezes de luta) que se deve dar à mulher na
5 Em dissertação recente, desenvolvida junto ao LABOR (Laboratório de política.
estudos do discurso) sob minha coordenação, Garcia (2010). analisa que,
atualmente, há na política uma prevalência do emprego apenas do primeiro
7 Conforme notícias do site "A ex-ministra e pré-candidata Dilma Rousseff
nome do candidato (Geraldo, Lula, Marina, Dilma), cujo efeito obtido é de
e a socialista francesa Ségoléne Royal (derrotada por Nicolas Sarkozy em
proximidade entre eleitor e candidato.
2007) se encontraram no final da tarde desta sexta-feira, no Hotel Royal Tulip,
6 A nota de esclarecimento, bem como a entrevista que Norma Bengell
em Brasília. [...) No encontro privado, Ségoléne afirmou que 'uma campanha
concedeu à Folha de S.Paulo, podem ser vistas na íntegra ao final do artigo.
eleitoral é sempre difícil, mas a gente há de persistir, porque as mulheres
Anexos 2 e 3.
podem vencer'." (DILMANAWEB, 2010).
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Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

Outro paradigma de leitura pode ser apreendido a partir do midade e valor de verdade. É também comum ao discurso polí-
sintagma "MINHA VIDA", que propõe ao leitor um percurso tico brasileiro, em período pós-ditadura, o político valer-se da
de leitura da biografia em sua continuidade e coerência, na qual divulgação de ter feito parte da oposição ideológica ao regime
as imagens (fotos) atuam como documentos que atestam a histó- militar. FHC, Lula, José Dirceu, Serra, cada um ao seu modo
ria da vida de Dilrna. Se mantivermos a leitura da narrativização deixa que se veja a resistência que fizeram ao período ditato-
construída pela sequência das imagens desse enunciado, recupe- rial no Brasil. O blog da Dilma também dá visibilidade a isso.
raremos uma memória cronológica e contínua da vida da can- A foto central de manifestantes em passeata "contra a censura,
didata (assim como metodologicamente proposto em uma pers- pela cultura" expõe os anos de chumbo, e para isso focaliza a
pectiva da história tradicional). Nessas imagens, a posição do repressão cultural. A manifestação que se apreende pela foto é
rosto está da direita para a esquerda, não há o olhar da esquerda pacífica e no conjunto sincrético de imagens e texto instala-se o
para a direita que almeja o futuro, mas há sim um olhar para tempo da ditadura em uma memória do passado expressa pela
um passado, em um gesto de retrospectiva da vida, vista em foto em preto e branco e pela frase "manifestantes nos anos 60".
três períodos, proporcionais (todas as fotos estão apresentadas A construção da propaganda política edífica, sobre esse período,
em um mesmo tamanho) para os quais se inscreve visualmente
um lugar político de onde o enunciador se situa em dada posição
grande semelhança: fotos em dose, na primeira e terceira fotos
sujeito, mobilizando domínios associados e condições de emer-
e recorte de uma foto mais aberta, tendo em primeiro plano um
gência que 'autorizam' essa foto e não outra em seu lugar. A foto
rosto, cujas semelhanças com as fotos que a ladeiam se dão pelo
mais recorrente de Dilma no período da ditadura é aquela tirada
corte de cabelo - em todos os rostos há franja - e pela posição
para compor o arquivo de presos na qual ela está em dose, usan-
do rosto na foto. Nesse paradigma, a interpretação de que a foto
do óculos grandes de aros escuros e segurando uma placa com
central é uma foto de Dilma é fortemente motivada. Tal fato
números. Tal foto de Dilma não parece servir ao discurso da pro-
pode conduzir à interpretação de que o sujeito que enuncia se
paganda política na atualidade. Há na foto de Norma Bengell,
posiciona de forma a obscurecer os dados ditos verdadeiros, que
na passeata pela cultura, um abrandamento quando essa imagem
seriam aquele da atribuição da foto à Norma Bengell, A sequ-
é comparada a outras muito mais agressivas referentes ao perí-
ência discursiva "Dilma criança, manifestantes dos anos 60 e
odo ditatorial. A foto de Dilma ministra desencadeia, então, o
Dilma já ministra." não desfaz plenamente esse lugar ambíguo
atribuído à Dilma, pois quando a legenda indica serem manifes- discurso político na atualidade. Sua coragem, competência e sen-
tantes dos anos 60, não há uma atribuição de nome ao rosto em sibilidade social resumem-se na mulher que ela é hoje, que se

primeiro plano. pode apreender, não por acaso, na última foto dessa construção
Um terceiro paradigma de leitura, que nomearei 'a constru- narrativa. Nela se acumula a história de sua vida, mas também a
ção da propaganda política' desencadeia, ainda, outro percur- histórlade sua nação. A identificação que cada cidadão tem com
so de leitura desse enunciado. É próprio do discurso político, a a foto tirada na infância e com as lutas políticas antiditatoriais
exposição de imagens de crianças, cuja inocência e graça transfe- estendem-se à identificação com essa personagem que se propõe
rem ao discurso político valor de honestidade e verdade. A foto a representar a nação politicamente. Nesse paradigma, a imagem
da pré-candidata quando criança é uma foto de família, aque- central, recupera uma memória discursiva dos anos de chumbo
la foto tirada nos anos 40 para recordação dos pais e parentes a serem eternamente combatidos com coragem e competência
mais próximos. Ela empresta a esse enunciado docilidade, plpxi- para seguir.

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Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

Algumas conclusões impedida de retratar o real, produz a farsa e essa se estende à candí-
data, atribuindo a ela a pecha de mentirosa.
As imagens constroem o candidato ou a imagem deixa que ele
Aos olhos dos responsáveis pelo blog Dilmanaweb, a foto cen-
seja visto por si só? Se a imagem é compreendida como um discur-
tral representa uma questão menor, uma interpretação equivocada
so, então ela é uma construção sócio-histórica que, assim como um
de quem viesse a confundir a imagem de Norma Bengell com a da
enunciado lingüístico, admite diferentes interpretações.
Dilma Rousseff.
Os assessores de Marina, ao dispensarem a figura do marque-
Nem uma, nem outra das perspectivas nos interessam. Assim
teiro de campanha, justificam-no pelo fato de que a imagem dela
como não se pode atingir um real da língua, não há também um
não precisa ser moldada ou maquiada, e que é suficiente expor,
real da imagem. Para analisarmos o discurso político na atualidade,
pela evidência, sua origem humilde e sua história de vida. Nessa
sabendo-o objeto semiológico, construído discursivamente, será
perspectiva, supõe-se que essa tal imagem de Marina não seja cons- necessário, de imediato, separar-se da ilusão de que uma imagem
truída, mas que se depara com ela, atingindo, assim, o real. Ora, diz por si só. Nem Marina dirá pela evidência de sua origem, nem
essa questão já discutida nos estudos da Análise do discurso, em os marqueteiros poderão controlar completamente os discursos. O
relação à material idade lingüística, repete-se em relação a outras discurso político faz-se hoje nesse conflito que procuramos aqui
materialidades. Assim, como não há um real da língua que nos leve apontar.
a um real da história, também não há um real da imagem que atue
plenamente como real da história. REFERÊNCIAS
Como podemos, então, analisar o discurso político na atuali-
dade, sabendo que ele, sendo de natureza semiológica, constrói- BAUMAN, Z. A modemidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar,
-se no jogo da multimodalidade onde estão presentes imagens,· 2001.
gestos e vozes, expressos em novos suportes? Defendemos que os
conceitos empregados para a análise da materialidade lingüística COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comu-
são também pertinentes para a análise do outras materialidades. nista endereçado aos cristãos. São Carlos: EdUFScar, 2009.
Considerando os ajustes necessários para a análise da material i- ___ o Metamorfoses do discurso político: derivas da fala
dade imagética em sua articulação com a materialidade lingüís- pública. Tradutores Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São
tica, pautamo-nos, para esse ensaio de análise, no conceito de Carlos: Claraluz, 2006.
enunciado, por considerar que nele estão compreendidos outros
conceitos da Análise do discurso, como condições de produção, Os deslizamentos do espetáculo político.- In:
arquivo e memória. GREGOLIN, M. R. (Org.). Discurso e mídia: a cultura do espe-
Se a leitura do material de análise que recortamos pode ser fei- táculo. São Carlos: Claraluz, 2003. p. 21-34.
ta por diferentes paradigmas, pautados em construções discursivas
COURTINE, J.-J.; HAROCHE, C. Histoire du visage: exprimer
socio-historicarnente constituídas, não é coerente que se defenda
et taire ses émotions (XVIe - debut XIXe siêcle). Paris: Payot et
uma leitura certa e outra equivocada.
Rivages, 1988.
Aos olhos do partido de oposição, a foto central é uma questão
maior, reflete que todo discurso da candidata se erige sobre a falsi- COURTINE, J.-J.; CORBIN, A.; VI GARELLO , G. (Org.). A
dade da foto, que impedida de dizer pela evidência, supostamente história do corpo. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. v.3
116 117
Vanice Maria Oliveira Sargentini A análise do discurso e a natureza semiológica do objeto de análise

DILMANAWEB. 2010. Disponível em: -chttp./Zwww.dilmana- ANEXOS


web.corn.br». Acesso em: 03 maio 2010.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1986.
ANEXO 1- Página de rosto do site Dilmanaweb
GARCIA, L. C. O discurso político eleitoral contra a corrup-
ção no HGPE/2006: memória e construção de identidade. 2010.
178p: Dissertação (Mestrado em Lingüística) - Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2010.

PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas:


Pontes, 1997.

___ Análise automática do discurso. ln: GADET, E; HAK,


o

T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à


obra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1995. p.
61-151.

___ o Só há causa daquilo que falha: o inverno político francês,


MINHA YIOA
Coraoem.~.~dad!
soc.trtsu,liCltIfQ(~~
~,""IOCIa
~~
• ..-.b*
-- ..=-
início de uma retificação. ln: . Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da UNICAMp, 1988.
.:..r-._
..IowM ocupMI ao.. dot postos de tr~ m.dos dftde 2003
_------
.. .•...- ...•...
--
-...-.-
1ll~»10
•••••••••••• CM •• " ••••••••• _ •• '5 f:!l_Mla. •• _ ••••••••••••• =~:.:-::=---- t
p.293-307. ,.."..... •• ~Noç--..aIMoI ••• ~~.,~-.tLf ••. 1oWS

LuII: •••• .,., crw 4"" dt•••••• rnIbdo.,.


••.•• defHcM •••• 2002
PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz: dispositivos de fala públi- OU15:mo
o•••,.......L.I.ú•••• ".tMI;it •• ~"' •• b'._fIel~_.
''- ...
f·••.•
~ ...
·_.•. ·poo1•••• _''''-.LElAM.llS
ca e produção da verdade no discurso político. São Paulo: Ed. da
UNESP, 2009.

SARGENTINI, V. Objetos da Análise do Discurso: novas formas, PtIrObrn. tIoJt ~


01(6:'010
neclOnlf, Iftm. DIIrM

novas sensibilidades. In: SARGENTINI, v, GREGOLIN, M. R. HoI·•• IoIM~_.~""CVT


•••••••••_~· •••••••••••• _. __
•• '*<""*'.I......,."
.,... •• Bra$4l._
.•,"f__ •••.~ .•.•.•.
__ ,...I~ •• ·lBt.froCAIS

Análise do Discurso: heranças, métodos e objetos. São Carlos:


Claraluz, 2008.

SCOLESE, E. Marina decide abrir mão do marqueteiro. Folha


on-líne. São Paulo, 23 mar. 2010. Disponível em: <http://wwwl.
folha. uol.com.brlfolha/brasillult96u71 0660.shtmb. Acesso em:
15 maio 2010.

SERIOT, P. Analyse du discours politique sovietique. Paris:


Insrirur d' etudes slaves, 1985.
118 119
Vanice Maria Oliveira Sargentini

ANEXO 2 - Nota de esclarecimento

Nola de esclarecimento
POR: PEPPER INTERATlVA 125 04 2010

O blog Dilmanaweb lamenta profundamente a interpretação equivocada da foto que traz a atriz
Norma 8engell participando de uma passeata contra a drtadura.
Jamais houve a intenção de confundir a sua imagem com a de Dilma, o que seria estapafúrdio, PODE A IMAGEM
aonda maIS se tratando de uma figura pública. O que se busca, ali, é ressaHar um momento da vida
do país do qual Dilma participou ativamente. Outras fotos do blog fazem referência a esse momento
em que os brasileiros foram às ruas pedir o fim da drtadura. FALAR NA ANÁLISE DO
Oilma participou de todas essas lutas. Elas fazem parte de sua vida e da vida de milhões de
brasileiros. Lamentamos eventuais mal-entendidos que possam ter ocorrido e tomaremos
providencias para evitá-Ios.
DISCURSO POLÍTICO?
Pepper Interat;"a

Pedro NAVARRO
ANEXO 3 - Entrevista Norma Bengell

A segunda opção de título que me ocorreu foi "Sobre o uso


"Não lem nada que pedir desculpas·. diz Norma Bengell político da imagem na mídia." Talvez até mais adequado, uma
27.04.2010
vez que, ao refletir sobre o título primeiro, tentarei esboçar (e
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo de hoje, a atriz Norma 8engell disse que não viu problema
algum no uso de uma foto sua no site Dilma na Web. A fotografia de 8engell aparece numa essa é a tônica deste texto) uma possibilidade de fazer análise
ilustração da seção ·Minha vida·, que conta a trajetória de Dilma e o contexto histórico do país
desde a década de 1940. da imagem com as ferramentas teóricas da Análise do Discurso
·Eu não vi, não. Uma amiga viu e me contou. Acho normal. Não tem nada que pedir desculpas. Fiz
parte das passeatas contra a ditadura. Aliás, eu gosto da Oilma. Acho que ela é maravilhosa, uma francesa.
mulher que sofreu murto. Tomara que ganhe·, afirmou ela, dizendo ter simpatia pela ex·ministra da
Casa Civil.
Nesse esboço de análise, faço dialogar alguns apontamentos
Oilma agradeceu, em sua página no Twitter, a declaração de Norma 8engell, que desfaz o teóricos e merodológicos formulados por Michel Pêcheux, Michel
mal-entendido gerado no último fim de semana. Uma nota no Dilma na Web esclareceu o caso.
·Quero agradecer a atriz Norma 8engell pelas pali]'(is simpáticas. Deu ao episódio de sua foto no Foucaulr, J-J Courtine, Roland Barthes e Jean Davallon, na tentati-
blog a devodadomensão:uma questão menor", diss •••• o microblog.
va de encontrar, nesses autores, alguns direcionamentos para análi-
DEIXE UM COMENTÁRIO
se dos usos políticos da imagem em enunciados da mídia impressa
brasileira contemporânea.
O tratamento dado à imagem por outras perspectivas teóri-
cas, sobretudo aquelas que configuram a área da comunicação ou
o campo da Semiótica de linha peirciana (SANTAELLA, 2000),
poderia oferecer ao analista algumas das ferramentas mais atuais
para a abordagem desse tipo de material idade. No entanto, defen-
do aqui a possibilidade de realizar uma espécie de "batimento"
descrição/interpretação da imagem com o dispositivo teórico que
Análise do Discurso vem utilizando para analisar o discurso, seu
objeto central de investigação da linguagem em uso.
120 121
Pedro Navarro Pode a imagem falar na análise do discurso político?

Ao me servir desses autores como a espinha dorsal das reflexões Como mostra o autor, no enunciado "on a gagnê', há um jogo
a seguir, parto, de início, da consideração de que a imagem é um metafórico que sobredetermina o acontecimento vitória de F.
enunciado que entrecruza estrutura e acontecimento. Em virtude Mírerrand, sublinhando a sua equivocidade. A descrição/intrepre-
dessa possibilidade de "fundir" o pensado e o impensado, a ima- ração que Pêcheux realiza desse enunciado traz para a análise de
gem tem o poder de delinear e de traçar dado percurso do olhar discurso a consideração do estatuto das discursividades que traba-
sobre o político. O quadro "Operários", de Tarsila do Amaral, será lham os acontecimentos, entrecruzando proposições oriundas de
tomado, para os propósitos analíticos, como uma imagem (discur- "universos logicamente estabilizados", que visam à descrição do
so) fundadora de um programa de leitura do acontecimento políti- "real", com proposições pertencentes a outros universos "não-logi-
co eleição e reeleição do presidente Luiz Ignácio Lula da Silva. camente estabilizados", que propõem uma interpretação do "real.
Assim, ao se vincular o acontecimento político ao jogo esportivo,
A imagem como enunciado que entrecruza estrutura e ele (o acontecimento) fica livre de perguntas do tipo: quem ganhou
acontecimento e o que ganhou?:

Nesta seção, meu objetivo é situar a análise da imagem no inte- o 'resultado' de um jogo é, evidentemente, objeto de comen-
rior da Análise do Discurso francesa, em especial em um momento tários e de reflexões estratégicas posteriores (da parte dos capi-
em que seu fundador, Michel Pêcheux, aproxima-se das proposi- tães de equipe, de comentadores esportivos, de porta-vozes de

ções de Michel Foucault, encontradas no terceiro capítulo de A interesse comerciais, etc.), pois sempre há jogos no horizon-
te ... , mas enquanto tal, seu resultado deriva de um universo
arqueologia elo saber (FOUCAULT, 1972). Não se trata, aqui, de
logicamente estabilizado [... ) que se pode descrever exaustiva-
pontuar o diálogo e os embates entre esses dois autores no seio da
mente através de uma série de respostas unívocas a questões
teoria do discurso, tal como o faz Gregolin (2004), em uma obra
factuais (sendo a principal, evidentemente: 'de fato, quem
de referência nessa questão. Proponho-me a compreender, a partir
ganhou, X ou Y?'). (PÊCHEUX, 1997, p.22).
desses dois autores, os efeitos de sentido das imagens de duas capas
da revista Carta Capital, concebendo-as como enunciados que, ao Esse acontecimento político, trabalhado pela mídia televisiva, é
retomarem o quadro "Operários", trabalham o referido aconteci- analisado pelo autor, com a finalidade de pontuar a equivocidade
mento político. do discurso. Evidenciando a opacidade de "on a gagnê', Pêcheux
A questão suscitada, a partir dessa rede interdiscursiva, é, de cer- faz uma discussão mais abrangente, que toca na questão de que esse
ta forma, aquela que mobiliza Pêcheux a discurir, tomando como enunciado, "[ ...] repetido sem fim como um eco inesgotável, ape-
mote o enunciado "on a gagnê', a relação existente entre aconte- gado ao acontecimento." (PÊCHEUX, 1997, p.2I), pode apontar
cimento e estrutura / descrição e interpretação. Ao analisar esse ou disfarçar a situação da esquerda francesa daquele momento.
enunciado, no contexto político francês da vitória de F. Miterrand, O primeiro ponto a destacar é que, na mídia francesa, um coro
nas eleições para a presidência da França, ocorridas em 10 de maio de vozes ressignificou esse o acontecimento, configurando todo
de 1981, Pêcheux chama a atenção para o contexto de atualida- um trabalho de formulações, de reformulações, de retomadas e
de e para o espaço de memória que esse acontecimento convoca e de deslocamentos de um campo a outro do espaço político. Isso
começa a reorganizar, ou seja: "[ ...] o socialismo francês de Guesde mostrou que a opacidade do acontecimento estava já inscrita no
a jaurês, o congresso de Tours, o Front Popular, a Liberação [...]" jogo oblíquo de suas denominações, em enunciados, tais como: "F.
(PÊCHEUX, 1997, p.19). Miterrand é eleito presidente da República Francesa. A esquerda
122 123
Pedro Navarro Pode a imagem falar na análise do discurso político?

francesa leva a vitória eleitoral dos presidenciáveis. A coalizão socia- para o interior do imenso arquivo, oral e escrito, que se desdobra
lista-comunista se apodera da França," (PÊCHEUX, 1997, p.20). há dez anos em torno do 1O de maio de 1981." No entanto, embo-
O segundo aspecto é que esses enunciados não estão em relação ra não se proponha afazer uma descrição do enunciado no interior
interparafrástica, uma vez que, embora remetam a um mesmo fato, do arquivo, o que Pêcheux parece reter das propostas de A arqueo-
não constroem a mesma significação. logia é a aproximação que Foucault faz entre enunciado e História.
O terceiro ponto diz respeito ao fato de que, dentre essas dis- Outro ponto que diferencia a análise de Pêcheux com a "des-
cursividades que poderiam bem sintetizar a euforia do espírito des- crição pura dos acontecimentos discursivos", feita por Foucault
se momento histórico, para o cenário político francês, "on a gagnê' (1972, p.38), refere-se ao fato de que, em Pêcheux, há uma pre-
emerge como um grito de vitória que irá vincular um sentido e ocupação com a material idade discursiva, ou seja, com o "real da
não outro ao acontecimento. Pêcheux se detém na descrição lin- língua" na produção dos efeitos de sentido do enunciado.
guística desse enunciado, oferecendo, assim, uma possibilidade de Pêcheux volta-se para a organização sintática do enunciado "on
interpretação do acontecimento e da situação do partido político a gagnê' e pergunta: quem ganhou? Lembra o autor que a sintaxe
de esquerda naquele país. da língua francesa permite, pelo uso do "on" indefinido, colocar em
Como analisa o autor, a materialidade discursiva desse grito não suspenso a identidade de quem ganhou. Arérn-se ao verbo e tam-
tem nem o conteúdo nem a forma nem a estrutura enunciativa de bém pergunta: -ganhou o quê, como e por quê? Com essa descrição
uma palavra de ordem. Assemelha-se ao grito das torcidas esporti- linguística, o autor mostra que a interpretação político-esportiva só
vas, o que o leva a associar essa peculiaridade a uma mudança da funciona como uma proposição estabilizada, desde que a identida-
política, provocada pela sua "espetacularizaçâo", feita pela mídia. de do sujeito do verbo "gagnê' e a referência dos seus complemen-
Nesse contexto político, destaca o autor, a mídia teve um papel tos elididos não sejam interrogadas.
significativo ao construir uma espécie de "univocidade lógica" em De fato, o "real da língua" não é objeto de Michel Foucault,
torno do resultado das eleições, para a qual as proposições advindas mesmo que considere que a existência material seja um dos com-
de universos logicamente estabilizados, por exemplo, quadros esta- ponentes necessários para a realização do enunciado: ''A descri-
tísticos e "tabelas com porcentagens, transformaram o acontecimen- ção de acontecimentos de discurso coloca uma outra questão
to vitória de F. Mitterand em uma proposição verdadeira. bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não
Em síntese, na análise desse acontecimento e dos enunciados outro em seu lugar?" (FOUCAULT, 1972, p.39). A compreensão
que dele emergem ou que o trabalham, Pêcheux dá o caminho teó- do enunciado como acontecimento implica, certamente, um tra-
rico para uma possibilidade de estudo dos usos políticos da ima- balho de escavação do arquivo sobre o que os homens disseram
gem na mídia contemporânea, com base em uma perspectiva que a respeito da política, trabalho esse que Pêcheux não se propõe a
abarca os três domínios evocados: o acontecimento, a estrutura e fazer no seu texto. No entanto, isso não significa que esse autor
a tensão entre descrição e interpretação no interior da Análise do atenha-se, apenas, ao nível da descrição linguística, dada impõs-
Discurso. sibilidade de organizar um quadro enunciativo do que foi dito
No texto de Pêcheux, ecoam as propostas de Foucault (1972) nos anos que se antecederam ao acontecimento sobre o qual se
em relação a uma análise dos saberes pautada no enunciado com detém. A concepção de enunciado formulada por Pêcheux indica,
valor de acontecimento no interior do arquivo. Vale registrar que, em parte, o espaço em que a Análise do Discurso pode trabalhar
a esse respeito, Pêcheux (1997, p.17) faz uma ressalva ao afirmar para tratar; por exemplo, do uso político da imagem em textos de
que não dispõe de uma "[ ...] via de acesso especialmente preparada comunicação de massa:
124 125
Pedro Navarro Pode a imagem falar na análise do discurso político?

[...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se meiras reações dos responsáveis políticos dos dois campos já
outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de são anunciadas, assim como os comentários ainda quentes
seu sentido para derivar para um outro [...] Todo enunciado, dos especialistas de politicologia; uns e outros vão começar a
toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descri- "fazer trabalhar" o acontecimento [...] Esse acontecimento [...]
tível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de é o acontecimento jornalístico e da mass-media que remete a
pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação. um conteúdo sócio-político ao mesmo tempo perfeitamente
(PÊCHEUX, 1997, p.53). transparente [...] e profundamente opaco. (PÊCHEUX, 1997,
p.19-20).
o problema que essa definição coloca para os propósitos deste
texto é que ela orienta um campo de pesquisa sobre a relação entre Pêcheux leva em conta a noção de acontecimento discursivo
discurso e acontecimento, com base em uma abordagem que fixa para propor que a teoria do discurso problematize, também, "as
seu batimento descrição/interpretação de enunciados cuja matéria- circulações cotidianas do sentido", o cruzamento entre proposições
lidade é, exclusivamente, linguística. Como apontado, é a análise logicamente estáveis e "formulações irremediavelmente equívocas."
da organização sintática do enunciado "on a gagnê' que possibilita (PÊCHEUX, 1997, p.28).
a Pêcheux interpretar o funcionamento discursivo dessa materia- Ainda assim, é preciso trabalhar com uma concepção mais alar-
lidade, evidenciando o equívoco do acontecimento, equívoco esse gada de enunciado para que possamos, aí, encontrar um espaço
que a mídia trabalha, conferindo um efeito de transparência entre para deixar a imagem falar na análise do discurso político. Início,
as palavras e aquilo que elas nomeiam. assim, esta segunda parte da seção, com a seguinte citação de
Tendo em vista que o percurso histórico do desenvolvimento da Foucault:
teoria do discurso, elaborada por Pêcheux, registra um movimento
[...] um enunciado é sempre um acontecimento que nem
que se desloca de um althusserianismo estrito para uma aproxima-
a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente.
ção das propostas de Foucault, voltar ao texto de A arqueologia do
Acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está
saber talvez possa indicar uma possibilidade de tratamento da ques- ligado de um lado a um gesto de escritura ou à articulação de
tão aqui posta. uma palavra, mas que, por outro lado, se abre a si mesmo uma
A noção de "acontecimento enunciativo", elaborada por existência remanescente no campo de uma memória, ou na
Foucault (1972), torna-se um princípio teórico-metodológico com materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma
o qual é possível apreender as regularidades discursivas existentes de registro; em seguida, porque é único como todo aconteci-
nas relações que os enunciados estabelecem entre si, nas relações mento, mas que está aberto à repetição, à transformação, à rea-
existentes entre grupos de enunciados (relações de conformidade tivação; finalmente, porque está ligado não apenas a situações
ou de confronto entre enunciados que formam uma rede interdis- que o provocam, e a conseqüência que incita, mas, ao mesmo
cursiva) e nas relações entres enunciados, grupos de enunciados e tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a
acontecimentos de ordem social, cultural, política e histórica, tal enunciados que o precedem e o seguem. (FOUCAULT, 1972,
p. 40, grifo nosso).
como o faz Pêcheux, ao considerar a relação entre o acontecimento
político vitória de F. Miterrand e os enunciados que ele convoca: Toda essa citação oferece elementos essenciais para os propósi-
[...] estimativas calculadas por várias equipes de informática tos deste texto. A informação destacada, contudo, indica que essa
eleitoral [...] dão F. Mitterand como "vencedor" [...] As pri- definição de enunciado pode contemplar enunciados não linguís-

126 127
Pedro Navarro
Pode a imagem falar na análise do discurso político'

ticos. Em outros termos, se considerarmos as diferentes materia- se uma verdade lá estivesse salvaguardada à espera de ser decifrada.
lidades que se colocam como objeto de investigação, tal definição A história geral, ao transformar os documentos em monumentos,
indica, em linhas bastante gerais e introdutórias, uma possibilidade toma para si a tarefa de constituir séries, isto é, "[ ...] de descobrir o
de fazer Análise do Discurso ao lado da língua, da imagem e da tipo de relações que lhe é específico, de formular-lhes a lei e, além
história, tendo como foco não o linguístico ou o imagético, mas a disso, descrever as relações entre as diferentes séries, para constituir,
constituição de uma linha de pesquisa cujo objeto é o enunciado. assim, séries de séries, ou quadros." (FOUCAULT, 1972, p.14-15).
A análise arqueológica não se detém nas regras linguísticas e/ O empreendimento de uma história geral com base na consti-
ou nas estratégias imagéticas que possibilitam a produção de enun- tuição de um quadro enunciativo provoca uma ferida na história
ciados. Como ensina Foucaulr, a palavra arqueologia designa um global, morada da consciência histórica. O descentramento do
tipo de pesquisa "[ ...] que se dedica a extrair os acontecimentos sujeito operado pela análise histórica das relações de produção,
discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo." feita por Marx, pela genealogia de Nietzsche, que se opõe à pro-
(FOUCAULT, 2006, p. 257). O objetivo da arqueologia é realizar
cura de um fundamento originário, e pelas pesquisas em psica-
a descrição do enunciado com valor de acontecimento no interior
nálise, em linguística e em etnologia, que descentraram o sujeito
do arquivo. Se consideramos, como já adiantado, que a definição
em relação às leis do seu desejo, às formas de sua .linguagem e
de enunciado contempla outras materialidades, além das linguísti-
aos jogos de seus discursos míticos ou fabulosos, mostra que a
cas, a teoria do enunciado em Foucault pode abrir um campo para
relações discursivas não são redutíveis ao "[ ... ] esforço incessan-
a Análise do Discurso, que a coloca como disciplina de interpreta-
te de uma consciência adquirindo doinínio de si e tentando se
ção ao lado da história, da língua e da imagem, de tal sorte que o
dominar até o mais profundo de suas condições." (FOUCAULT,
seu objeto de investigação - o discurso - deva ser concebido como
1972, p.22). Elas não religam entre si os conceitos ou as palavras,
o resultado da inscrição do sujeito nessas três ordens:
estabelecendo, com isso, uma espécie de arquitetura dedutiva ou
Algumas considerações acerca do enunciado, encontradas em A
retórica entre as frases ou as proposições. Ao contrário, as relações
arqueologia do saber, podem advogar a favor da análise da imagem
discursivas oferecem os objetos de que os discursos podem falar,
como enunciado.
ou melhor, determinam
Em relação à concepção de história assumida por Foucault, a
chamada história geral, o enunciado surge como um elemento a [...] o feixe de relações que o discurso deve efetuar para pode
partir do qual é possível analisar a irrupção dos acontecimentos falar de tais ou quais objetos, para poder tratá-tos, nomeá-tos,
enunciativos. Tal perspectiva afasta-se da ideia de que entre todos analísá-Ios, classificá-Ios, explícá-los, etc. Essas relações caracte-
os acontecimentos de uma dada sociedade e época é possível esta- rizam nâo a língua que utiliza o discurso, náo as circunstâncias
belecer um sistema de relações homogêneas, uma única e mesma em que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto
prática. (FOUCAULT, 1972, p.61).
historicidade sobre as estruturas econômicas. A noção de aconte-
cimento e a constituição de séries enunciativas colocam o descon- A noção de discurso como prática acrescenta mais um elemen-
tínuo como um dos elementos fundamentais da análise histórica. to ao entendimento do caráter de acontecimento enunciativo, uma
As noções de acontecimento, de descontinuidade e de série dire- vez que a análise arqueológica orienta-se no sentido de pôr, em
cionam a análise histórica para um trabalho de "rnonumentaliza- suspenso, certas unidades (tradição, influência, desenvolvimento e
ção" dos documentos históricos. Não se trata mais de memorizar os evolução, livro, obra e autor) que diversificam o tema da continui-
monumentos do passado e transformá-los em documentos, como dade. Com isso, o método arqueológico pode liberar um domínio
128
129
Pedro Navarro Pode a imagem falar na análise do discurso político?

imenso constituído pelo "[ ...] conjunto de todos os enunciados efe- sujeito-que-agencia outros discursos, sujeito-que-retoma e/ou
tivos, em sua dispersão de acontecimentos e na instância que é pró- desloca enunciados pronunciados por outros sujeitos, em outros
pria a cada um." (FOUCAULT, 1972, p.38). lugares institucionais e em outras épocas; o domínio associa-
É um trabalho paradoxal, uma vez que se busca, na dispersão, a do, que concerne às relações entre os enunciados e os grupos de
índívidualízaçâo do discurso: enunciados. Esse elemento do enunciado fundamenta as noções
de memória discursiva e de interdiscurso. A consideração de que
No caso em que se pudesse descrever, entre um certo número
os enunciados pertencem a uma rede de outros enunciados leva
de enunciados, semelhante sistema de dispersão, no caso em
o analista a considerar que, nos processos discursivos, pode haver
que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as
a inscrição da memória histórica, social ou mítica de uma socie-
escolhas temáticas, se poderia definir uma regularidade (uma
ordem, correlações, posições e funcionamentos, transforma- dade ou mesmo a retomada e/ou deslocamento de um enunciado
ções), dir-se-à, por convenção, que se trata de uma formação por outro; e o suporte material (a própria estrutura em que o
discursiva [...] (FOUCAULT, 1972, p.51, grifo do autor). objeto é representado, no caso, o jornalismo impresso), que dá
condição de existência aos enunciados e possibilita que eles sejam
Um último aspecto em relação ao enunciado diz respeito à repetidos.
noção de função enunciativa, central na A arqueologia do saber, Os elementos da função enunciativa não se restringem nem são
pois, a partir dela, o autor especifica sua forma de descrição do dependentes de uma estrutura linguística. Referem-se ao nível de
enunciado. Em outra oportunidade (NAVARRO, 2008), quan- possibilidade de existência material dos enunciados, podendo, por-
do analisava o exercício da função enunciativa em discursos da tanto, organizar, também, os sentidos de uma imagem ou de um
mídia, essa função foi relacionada à produção de identidades texto imagético e verbal, materialidade sobre a qual me detenho
femininas, com a finalidade de problematizar certos enunciados' neste texto.
contemporâneos que parecem desestabilizar a memória social A noção de acontecimento e a consideração de que o discurso é
construída a partir do que foi chamado de "políticas de identi- uma prática que oferece as condições de exercício da função enun-
dade". Essa análise evidenciou que o corpo feminino é tomado ciativa sinalizam que a arqueologia não é um método estrutural
como alvo de um dispositivo de poder que produz sujeitos sem- fechado, uma vez o enunciado é algo da ordem das instituições, daí
pre jovens e saudáveis, independentemente de sua idade biológi- seu caráter histórico e sua historicidade.
ca. Nesse estudo, foram destacados: o princípio de diferenciação Para finalizar esta seção, gostaria de pontuar os avanços que
que circunscreve o objeto do qual o discurso fala (cuidados com os textos de Pêcheux e de Foucault podem indicar sobre a relação
o corpo feminino); a posição de sujeito, concebido em termos existente entre imagem (enunciado), mídia e política.
de modalidades enunciativas. O sujeito do enunciado ocupa um Sobre a relação rnídia e política, Pêcheux, distante pouco mais
lugar legitimado pela instituição midiática para falar sobre o obje- de vinte anos da publicação de A arqueologia do saber, volta-se à
to e assume posições de sujeito no interior das práticas discursi- teoria do enunciado e à noção de discurso como acontecimento,
vaso Na mídia, ele pode ocupar ou pode exercer a função/posição localizando a possibilidade de tratamento do enunciado na sua
de su jei to-q ue- narra, sujei to-q ue-descreve, sujei to-q ue- interp reta, relação com o acontecimento político francês de maio de 1981.
Levando em contra o papel dos meios de comunicação, no jogo
1 Dentre os enunciados analisados, o estudo considerou o exercício da função
oblíquo das denominações discursivas que trabalham esse acon-
enunciativa na capa da Revista IstoÉ, de 8 de maio de 2005. tecimento, mostra que, embora o enunciado não seja redutível a
130 131
Pedro Navarro Pode a imagem falar na análise do discurso político?

uma prova de verdade, como se dá com as proposições, nas condi- o enunciado imagético: repetição e deslocamento da
ções de produção do contexto político das eleições presidenciais na memória
França, a mídia, ao se valer de elementos discursivos do universo
estabilizado do campo esportivo, transformou o enunciado "on a Inicialmente, tendo em vista o exposto até aqui, parto do prin-
gagnê' em uma proposição "verdadeira". Mesmo fazendo referência cípio de que a noção de "memória discursiva", tal como ela entra
ao papel da mídia televisiva nesse contexto, o batimento descrição/ na Análise do Discurso político, a partir da leitura que Courtine
interpretação dos discursos volta-se para materialidades linguístico- (1981) faz de A arqueologia do saber, vale tanto para o enuncia-
-discursivas. do verbal quanto para o imagético. É a ideia de enunciado como
O texto de Foucault, por sua vez, não oferece condições espe- função que fornece a base teórica para Courtine formular esse con-
cíficas para a abordagem da relação entre enunciado (imagem), ceito, que tem sua origem no fato de "[ ...] a função enunciativa
mídia e política. Sua questão é mais abrangente. No entanto, a não pode se exercer sem a existência de um domínio associado."
definição de enunciado indica que ele é um fenômeno sernioló- (FOUCAULT, 1972, p.120). O domínio associado abarca uma
gico, se aceitarmos que a noção de enunciado como função pode rede de formulações nas quais o sentido do enunciado se consti-
abarcar materialidades discursivas constituídas por signos hetero- tui e produz efeitos de memória específicos. É, portanto, em tor-
gêneos. no desse entendimento que convoco as reflexões feitas por Pêcheux
O ensaio que Foucault (1988) faz da pintura Isto não é um (1999) e Davallon (1999) sobre o papel da memória em relação à
cachimbo, de René Magritte, parte da constatação de que se tra- imagem.
ta de um enunciado formado por signos verbais e por elementos Em termos, a motivação do texto de Davallon é a mesma das
plásticos. Foucault chama atenção para a separação entre repre- reflexões de Pêcheux, em Discurso: estrutura e acontecimento: o polí-
sentação plástica e referência linguística e a equivalência entre tico, como um acontecimento na mídia:
semelhança e afirmação, os dois princípios que regiam a imagem
pictórica ocidental do século XV ao século XX. Segundo o que Pensemos, a propósito, numa cerimônia política como aquela
analisa, no quadro de Magritte, está desfeita a equivalência entre da posse do Presidente da República: com os múltiplos jogos
semelhança (a imagem de um cachimbo) e afirmação (a frase que surgem entre a referência, de um lado, a uma memória
social já e?üstente (o Panteão, os heróis republicanos) e, de
"Isto não é um cachimbo"): o pronome ("isto") evoca a evidência,
outro lado, à produção de uma nova memória. Pois o registro
ao mesmo em que a nega ("não é"). O enunciado justapõe a ima-
do 'acontecimento' deve constituir memória, quer dizer: abrir
gem de um cachimbo à frase que a contradiz. Foucault mostra'
a dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir,
que o conjunto indica que o texto e a imagem estão a dizer que
de uma comemoração. (DAVALLON, 1999, p.24).
nada disso é um cachimbo: trata-se de um texto que simula um
texto e de um desenho de um cachimbo que simula o desenho de Davallon parece reservar à imagem midiática o poder de se
um cachimbo. movimentar entre uma "memória já existente" e a "produção de
Assim, as noções de enunciado em Foucault e em Pêcheux uma nova memória", Vista por esse viés, a análise desse autor nos
se complementam na tentativa de esboço de uma análise do uso autoriza a olhar para a imagem como um fenômeno que tem a
político da imagem na mídia contemporânea. Falta a esse qua- força de desestabilizar o pensado, introduzindo o impensado. Em
dro teórico, entretanto, a consideração da imagem e do papel da Outras palavras, sendo discurso, a imagem é, também, algo da
memória. ordem da estrutura e da ordem do acontecimento.
132 133
Pedro Navarro Pode a imagem folar na análise do discurso político?

Retomando a relação entre imagem (enunciado), mídia e polí- [...] a cerimônia do Panteão -, por ser 'representado' (o que
tica, tema destas reflexões, é preciso levar em conta que, entre as é mais e outra coisa do que ser simplesmente registrado ou
inúmeras práticas culturais que podem promover um "enquadra- difundido), tomará o valor de uma espécie de ponto originá-
rnento da memória" (POLLAK, 1989), destaca-se a mídia, como rio da comunidade social: o acontecimento se dará em um
um suporte privilegiado para captar vestígios de lembranças em momento singular do tempo; mas a essência do ato se encon-
objetos de memória. Dada essa capacidade, a mídia é um dispositi- trará para sempre na própria estrutura do objeto que o repre-
vo de poder por meio do qual a memória coletiva pode ser revista, sentará (a emissão televisonada, por exemplo). Ele se tornará
indissociavelmente documento histórico e monumento de
reorganizada ou deslocada.
recordação. (bAVALLON, 1999, p. 26-27).
Para a eficácia desse poder, a imagem, como analisa Davallon,
tem a capacidade de promover a síntese entre memória coletiva e Se considerarmos o fio teórico condutor até aqui traçado, o tex-
memória histórica, oferecendo, com isso, um programa de leitura to de Pêcheux (1999), Papel da memória, parece estar muito bem
inscrito em outro lugar. Como analisa esse autor, a imagem oferece localizado entre a noção de memória discursiva, elaborada por
"[...] uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem Courtine, e a definição de imagem, como operador da memória
representa a realidade, certamente; mas ela pode também conservar social, proposta por Davallon.
a força das relações sociais (e fará então impressão sobre o especta- Aludindo às reflexões deste último, Pêcheux (1999, p.5I) con-
dor)." (DAVALLON, 1999, p.27). sidera haver uma "[...] negociação entre o choque de um aconteci-
Davallon considera a imagem como uma produção cultural, mento histórico singular e o dispositivo complexo de uma memó-
haja vista sua eficácia simbólica e semântica. Em relação ao sim- ria." Em termos de análise discursiva da imagem, essa negociação
bólico, a observação da imagem possibilita o desenvolvimento de implica jogar com a passagem do visível ao nomeado. Nesse movi-
uma atividade de produção de significação. Apesar de a eficácia mento de sentidos, retomando Davallon, Pêcheux afirma que a
simbólica favorecer certa liberdade de interpretação, já que o con- imagem funciona como um operador de memória social, por com-
teúdo legível ou dizível da imagem pode variar conforme as lei- portar, em seu interior, "[...] um programa de leitura, um percur-
turas, a imagem comporta um programa de leitura, uma vez que so escrito discursivamente em outro lugar." (PÊCHEUX, 1999,
assinala determinado lugar ao seu observador. O aspecto semântico p.51). Ora, para o estudo da relação entre enunciado e arquivo (o
promove uma espécie de integração entre a materialidade e o sen- autor não faz menção à noção de enunciado, neste texto e, como
tido: a forma, a cor e a tipologia articulam-se com a instância tex- vimos, no outro ao qual já fiz referência, também não intenta des-
tual e enunciativa, conferindo à imagem uma abordagem textual. crever o arquivo), o que diz sobre a imagem é bastante elucidativo,
Os aspectos formais retêm o olhar e, ao mesmo tempo, dizem algo uma vez que o programa de leitura indica o "efeito de repetição e
sobre os sentidos construídos e vinculados à imagem. de reconhecimento que faz da imagem como que a recitação de um
O funcionamento da eficácia simbólica e semântica transforma mito".
a imagem em um operador da memória social, o que lhe possibili- A questão é como pensar a imagem em relação à memória,
ta, de certa maneira, agregar uma comunidade de olhares. A ima- no sentido que lhe é dado no interior da Análise do Discurso.
gem define posições de leitor abstrato que o espectador concreto Novamente, é preciso voltar à noção de discurso como aconteci-
é interpelado a ocupar para poder dar sentido ao que seus olhos mento, para compreender que o funcionamento da memória per-
veem. De certa maneira, a imagem faz convergir o olhar dos leito- mite abordar as condições (mecanismos, processos) nas quais o
res ou dos espectadores possíveis para um mesmo ponto: acontecimento histórico pode vir a se inscrever na continuidade
134 135
Pedro Navarro l!0de a imagem falar na análise do discurso político?

interna, isto é, "no espaço potencial de coerência próprio a uma preexistente com os implícitos que a memória veicula, de modo
memória." (PÊCHEUX, 1999, p.50). que a estabilização parafrástica negociaria a integração do aconte-
Certamente, uma perspectiva psicologizante de memória não cimento, até absorvê-lo e, eventualmente, dissolvê-lo. Em sentido
daria conta de explicar o complexo cruzamento da memória míti- oposto a esse funcionamento, nos enunciados pode operar outro
ca, com a memória social e com a histórica, em especial, quando se jogo de força, que desregula a memória, perturbando, assim, a rede
trata de lidar com o "sistema de formação" (FOUCAULT, 1972, dos implícitos.
p. 134) de práticas discursivas (políticas e midiáticas), nas quais o
diálogo entre enunciados verbais e imagéticos constitui, em parte, a Sobre o uso político das imagens na mídia
sua "modalidade de existência" (FOUCAULT, 1972, p. 135).
A exposição de Pêcheux sobre o papel da memória representa Os dois enunciados sobre os quais me deterei brevemente orga-
um ganho para análise dos usos políticos da imagem, mesmo que nizam os sentidos do político, em duas capas da Revista Carta
não seja esse o enfoque dado às suas reflexões nesse momento, A Capital sobre a eleição e a reeleição do Presidente Luiz Ignácio Lula
problemática apresentada pelo autor toca na questão da memória da Silva, em 2003 e em 2006. No entanto, eles dialogam, antes,
como estruturação de materialidades discursivas complexas. Dado com outro enunciado, o quadro Operários, de Tarsila do Amaral,
o seu funcionamento dialético como repetição e regularização, a e isso, em termos do que estou chamando de "uso político" da
memória discursiva é aquilo que, imagem, coloca uma série de problemas à Análise do Discurso,
dos quais não posso me furtar, mas para os quais não encontro, no
[...] face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem
momento, condições de indicar possibilidades ou caminhos para
restabelecer os "implícitos" (quer dizer, mais tecnicamente, os
a realização de uma "escuta" discursiva que avance naquilo que foi
pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-trans-
exposto nas duas seções anteriores. Explico-me: esses três enun-
versos, etc.) de que sua leitura necessita. A questão é saber
ciados compõem um quadro enunciativo sobre o referido acon-
onde residem esses famosos implícitos, que estão "ausentes por
sua presença" na leitura da seqüência: estão eles disponíveis na tecimento político, o qual conjuga tipos de signos diferentes: o
memória discursiva como em um fundo de gaveta, um registro plástico, o icônico e o linguístico, resultando, dessa intersecção Íin-
oculto? (PÊCHEUX, 1999, p. 52). guístico-semiótica, um programa de leitura que joga com o saber
histórico, cultural e político do espectador;
A relação entre imagem e texto fica, de certa forma, suspensa , Pêcheux finaliza seu texto sobre o papel da memóriacolocando-v«
no texto de Pêcheux, embora ele reconheça a necessidade de voltar Banhes como uma via aberta para a Análise do Discurso pensar a
a Barthes, em virtude da posição por este ocupada como linguista relação da imagem com o texto e com a memória. Dos escritos de
de texto e teórico das imagens. Apesar de não mostrar um possí- Barthes, detenho-me em um que trata da fotografia, na tentativa
vel encaminhamento para essa relação, o que para nós seria muito de interpretar as questões postas por esse autor, a partir do quadro
confortante, a noção de implícito articulada ao papel da imagem, teórico aqui apresentado, correndo o risco, com isso, de ser criti-
como operador de síntese entre memória coletiva e histórica, indica cado por estender a descrição pautada nos elementos que Barthes
a necessidade de se considerar, para o esboço de análise aqui reali- oferece para a leitura da fotografia aos signos plásticos que com-
zado, a existência de um jogo de forças no choque entre a memória põem os enunciados em análise.
e o acontecimento, como expõe Pêcheux, nos seguintes termos: nos Banhes (1984) propõe uma distinção entre studium e punctum
enunciados, esse jogo de força age.--nosentido de uma regularização para a leitura da fotografia. O studium indica certo investimento
136 137
Pedro Navarro Pode a imagem falar na análise do discurso político?

geral que recobre a imagem, o qual provém de um aspecto ou de "No princípio, era" um quadro:
um elemento cultural, político ou social que pode revelar, na foto-
Figura 1- Quadro Operários (1933), de Tarsilado Ainaral.
grafia, significações latentes e, por corolário, motivações sociais.
Como analisa o autor,

É pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer


as receba como testemunhos políticos, quer as aprecie como
bons quadros históricos: pois é culturalmente (essa conotaçâo
está presente no studium) que participo das figuras; das caras,
dos gestos, dos cenários, das ações. (BARTHES, 1984, p.45-
46).

o reconhecimento do studium é uma forma de interação entre


o spectator e o operator, que é o autor da imagem fotográfica:

[...] O studium é uma espécie de educação (saber e polidez)


que me permite encontrar o Operator, viver os intentos que Fonte: Tarsila (2012).
fundam e animam suas práticas, mas vivê-Ias de certo modo
ao contrário, segundo meu querer de Spectator. (BARTHES, Para os propOSltos destas análises, Operários é tomado como
1984, p.48). um enunciado fundador de uma representação do trabalhador bra-
sileiro, que irá ser constantemente retomada, formando uma rede
Como exernpliíica o autor, é como se o espectador de uma foto-
interdiscursiva e estabelecendo uma relação de "intericonicidade'"
grafia fosse levado a ler os mitos do fotógrafo, fraternizando com
com outros enunciados na História. O referencial dessa tela é a
eles, mas sem neles acreditar. Nesse sentido, os mitos têm a função
identidade do trabalhador brasileiro, que é retratada como fazendo
de "reconciliar" a fotografia e a sociedade, pondera Barthes.
parte de uma parcela oprimida da sociedade.
O punctum é um elemento que vem escandir o studium, por isso Como spectator-analista de discursos, sou levado a reconhe-
não é algo a ser buscado pelo espectador da imagem, mas que parte
cer, nessa tela, não as intenções ou os mitos do operator, mas o
da própria estrutura da cena que representa o spectrum, ou seja, o exercício de uma função enunciativa que vai buscar, em outros
objeto fotografado. Assim, o punctum é uma flecha certeira que, ao campos e em outros domínios associados, uma representação do
atingir o espectador, o atravessa e o mortifica: "[ ...] é também pica- trabalhador brasileiro, como um alguém unido na sua diversidade
da, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte - e também cultural eétnica pela falta de esperança e pela apatia diante de sua
lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me luta cotidiana.
punge (mas também me mortifica)." (BARTHES, 1984, p.46).
Estamos diante, agora, de um complexo emaranhado de noções
2 Essa. noção, ainda em desenvolvimento por Courtine (apud MILANEZ,
para tentar dar conta da complexa rede interdiscursiva formada
2006) (o autor fala sobre ela em uma entrevista concedida ao professor Nilton
pelo quadro de Tarsila e pelos enunciados de Carta Capital, atra- Milanez, da Universidade Estadual do Sul da Bahia), refere-se à propriedade
vessados pela compreensão do acontecimento político que essa que o enunciado imagéticci tem de, assim como o verbal, estar inserido em uma
série enunciativa oferece ao analista. rede de discursos.

138 139
Pedro Navarro Podç a imagem falar na análise do discurso político?

Em primeiro plano, os rostos dos operários aparecem dispostos outros enunciados, em que o "trabalhador brasileiro" é um referen-
em uma linha vertical que sugere parte da estrutura de uma pirâ- cial.
mide social. Embora o traçado de cada rosto evidencie a indivi- Quando analisado em relação aos enunciados de Carta Capital,
dualidade de cada trabalhador, em meio às diversas nacionalidades a questão que se apresenta é se existe ou não um desnível colocado
que compõem o caldeirão de raças da cultura brasileira (é possível em jogo entre Operários e os enunciados comentadores, do modo
reconhecer rostos de brasileiros e de imigrantes), essa linha vertical como Foucault (1995, p.I5) problematiza a relação entre "[ ...] dis-
produz o efeito de bloco compacto. cursos fundamentais ou criadores; e do outro, a massa daqueles que
Em segundo plano, tem-se a representação de uma fábrica, com repetem, g Iosam e comentam ".
seu prédio e as chaminés. Destaca-se a predominância de cores frias Assim como Pêcheux, não temos condições de retomar e de
no azul do céu, no cinza das chaminés e da fumaça e nas roupas descrever a massa de discursos formulada, desde a primeira vez que
das figuras humanas. O olhar apático de cada operário, como que Lula disputou as eleições presidenciais, em 1989, até 2003, quando
observando quem o observa, aliado ao tom acinzentado interpe- se tornou presidente do país. Mas essa impossibilidade não impe-
la diretamente o espectador, atravessando-o como uma flecha de de recuperar a situação política daquele momento. O sentimen-
(punctum). O programa de leitura que essa imagem institui per- to de que, pela primeira vez na história, o povo estaria no poder,
mite observar cada trabalhador, em sua individualidade, ao mesmo congregou seus eleitores, bem como tomou conta das páginas dos
tempo em que essa individualidade é absorvida pela coletividade, jornais e das revistas. Esse espírito foi alimentado pela biografia de
a qual se sobrepõem fatores econômicos e sociais. O conjunto des- Lula, sobejamente contada e recontada nos meios de comunicação.
creve e narra um saber acerca da condição dessa classe social. O fato de um retirante nordestino, operário, ex-metalúrgico e sem
Cabe agora interrogar o efeito dessa imagem na produção de nível superior de estudo" ter chegado ao poder executivo máximo
sentidos sobre o acontecimento político eleição e reeleição de Lula, de uma nação foi espetacularizado pela mídia. Essa história de vida
mas não sem antes dar voz a Foucault (1972), para quem o enun- "colou" -se ao acontecimento político, sobredeterminando seus
ciado é constituído pelo conjunto das formulações a que faz refe- sentidos, tal como parecem fazer os enunciados da capa de Carta
rência, seja de forma implícita ou não, referência essa que pode ter Capital, na eleição de 2003 e na reeleição de 2006.
a função de repetir, modificar e adaptar as formulações ou de fazer Há pouco, mencionava a complexidade de noções a ser con-
oposição a elas. O enunciado é constituído, também, pelas formu- vocada para a compreensão dessa rede interdiscursiva, não menos
lações em relação às quais se apagará, será ou não valorizado, con- complexa, formada pelo quadro de Tarsila e pelos enunciados de
servado, sacralizado, podendo, em vista disso, aparecer como refe- Carta Capital.
rencial para a existência futura de outros discursos. Para o autor, Para essa tarefa, o batimento descrição-interpretação deve,
não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não retome agora, partir das capas da revista para o quadro. Esse movimento
outros discursos. permitirá que olhemos para as capas, buscando compreender o
Em Operários, o punctum confere ao quadro o estatuto de papel da memória entre estrutura (aquilo que Operários instituiu
enunciado conservado e sacralizado em nossa memória imagética. como "pensado" sobre o trabalhador) e acontecimento (aquilo
Como parte do sistema de enunciabilidade que rege aquilo que
os homens podem falar sobre as coisas, o discurso fundador que
3 Em seu discurso de posse, Lula afirmou que: "E eu, que durante tantas
essa imagem materializa, de modo inaugural, oferece-se (funciona) vezes fui acusado de não ter um diploma superior, ganho o meu primeiro
como um elemento que dá condições de existência à formulação de diploma, o diploma de presidente da República do meu país."

140 141
Pedro Navarro Pode a imagem [alar na análise do discurso político?

que Carta Capital sintetiza como o "impensado" sobre a .políti- Esse é o funcionamento da imagem em relação ao acontecimento
ca). Isso poderá indicar o funcionamento da imagem no discurso político.
político. Essa imagem fotográfica da posse de Lula sobrepõe-se aos tra-
A Revista Carta Capital "O Brasil que virá" reporta-se à posse balhadores de Tarsila do Amaral, de modo a querer ocultar e, ao
de Lula, em janeiro de 2003, após vencer as eleições presidenciais mesmo tempo, dar visibilidade aos seus sujeitos, distantes, agora,
de 27 de outubro de 2002, nas quais derrotou o candidato apoiado setenta anos do primeiro presidente operário do país. O que restou
pela situação, o ex-rninistro José Serra, do PSDB. e o que foi apagado (silenciado) do enunciado fundador?
O enunciado da revista possibilita o reconhecimento do qua-
Figura 2 - Carta Capital
dro, e é esse o funcionamento discursivo da memória. É preciso
um efeito de repetição para que se obtenha o de deslocamento, o
de ressignificação ou o de negação do enunciado primeiro (funda-
dor). A reutilização é uma das características do enunciado garanti-
das pela função enunciativa que nele se exerce.
Assim, em parte, o punctum do quadro (a expressão facial de
apatia e de desesperança) retoma no enunciado da capa, mas o efei-
to de pirâmide e o tom acinzentado são apagados. Se, no quadro
de Tarsila, a fábrica e as chaminés parecem projetar os operários
para o primeiro plano, como se eles se deslocassem do fundo, ou
seja, do local de trabalho, na capa da revista, são as figuras huma-
nas que parecem projetar Lula para o primeiro, indicando que ele
saiu da massa de trabalhadores (do comércio, das fábricas, da infor-
malidade ou daqueles que estão sem emprego) e pode representá-
-los. O enunciado verbal "o Brasil que vira' começa a trabalhar essa
Fonte: O Brasil que virá (2003). memória do futuro, com base na ideia de governo popular.
Entre o que restou e o que foi apagado de Operários e a imagem
Não se trata de uma fotografia, como aquelas analisadas por de Lula, com o rosto reluzente e expressão de contentamento, há
Barthes, nem de uma pintura, mas de um enunciado que con~u- um movimento de sentido, que oscila entre continuidade e descon-
ga signos verbais, fotografia e elementos plásticos. Em primeiro ti nu idade histórica. Isso é resultado de um jogo de forças que atua
plano, aparece uma das tantas imagens fotográficas, da posse do no enunciado, mantendo uma regularização com os implícitos que
. d e comumcaçao
presidente, que circularam nos meios . -' Impr essOS
." e a memória social e histórica sobre os operários veicula e uma desre-
eletrônicos: o momento congelado pelo "animal sagrado do chc gulação desses implícitos, feita pelo enunciado de Carta Capital. O
(LISSOVSKY, 2001), em que Lula recebe a faixa presidencial e faz, programa de leitura desse conjunto heterogêneo atrai nosso olhar
com os braços, o gesto de vitória. Como toda fotografia, essa ope- para o rosto feliz e vitorioso de Lula. Esse é o punctum; contudo,
ra uma espécie de mobilização, de interrupção do tempo, fazendo sem os operários ao fundo, sua flecha talvez não pudesse nos ferir
com que o acontecimento entre para a hiIStona,
,. tornan do - se tanto, e nos atravessar, pois a imagem de Lula não existe sem a imagem
um documento histórico quanto um monumento de lembran dos trabalhadores, os quais têm a missão de representar. Com isso,

142 143
Pedro Navarro
Pode a imagem falar na análise do discurso político?

chegamos à prática discursiva jornalística (studium) que recobre o ciação jornalística, sobredetermina O acontecimento, com base na
acontecimento político. inscrição da memória discursiva imagética acerca da identidade
O outro enunciado da revista trabalha o acontecimento reelei- do trabalhador e no desempenho do governo de Lula no primeiro
ção de Lula, no pleito de 29 de outubro de 2006, quando ven- mandato. As imagens do rosto de Lula entre os operários retratados
ceu, no segundo turno, o ex-governador do Estado de São Paulo, por Tarsila do Amaral narra visualmente aquilo que o enunciado
Geraldo Alckmim, também do PSDB. verbal diz: "Pesquisa Vox Populi indica: 85% dos brasileiros apos-
Há semelhanças entre este enunciado e o anterior: ambos reto- tam no segundo mandato". Essa grande aceitação é o que justifi-
mam a pintura de Tarsila, o que indica que o studium dessa prática ca Lula não aparecer mais como que saindo do povo, mas estando
discursiva, em relação ao acontecimento político, continua aproxi- entre eles. A avaliação feita por cientistas políticos de que o gover-
mando Lula do povo. É como se esta capa dissesse à anterior como no de Lula é um governo popular ganha corpo nessa capa. A ima-
é esse Brasil que estava para surgir em 2003. O programa de leitura gem diz por si só.
desses dois enunciados sofre determinações do quadro de referên- Entretanto, aquilo que fora apagado no enunciado da capa da
cias culturais istudium) que incide sobre a representação do sujeito revista de 2003 parece insistir em voltar: o tom acinzentado e o
trabalhador brasileiro e do Presidente ex-metalúrgico. traçado vertical da linha, formando uma pirâmide social. A apatia
desses operários e a falta de esperança parecem ainda aguardar por
Figura 3 - Carta Capital 2 dias melhores, o que justifica a escolha lexical do verbo "apostam".
r ~ClUSIVO
Mas o apostador não tem a certeza de que vai ganhar, embora saiba

Carta Capital qual será o prêmio. E os eleitores brasileiros (os operários), apostam
em que e vão ganhar o que, se ganhar? A análise de Pêcheux ecoa,
nesse momento, e nos leva a interrogar o estatuto dessa discursivi-
LULA. LULA \. dade em relação ao político. Assim, somos levados a nos distanciar
da evidência dos dados estatísticos usados para estabilizar o aconte-
•. ..,j.. ..;'\., cimento e, com isso, tornar transparente o discurso de que o gover-
' :ilpC' 1 ~- •• ~'"

,··"I
u

i .. ~'.
no de Lula é "do povo e para o povo". Somos levados, também, a
~" "lyj, s

"~C
. 't
~:"'e.e'~:~
y:.
interrogar os efeitos materiais da montagem desse enunciado,
de sequências discursivas do quadro, da imagem do rosto de Lula
feita

~. J" ~J
t,
vitorioso e de texto.
Voltando o olhar para o quadro de Tarsila, a partir da retomada
.• ,.~. .L.J que dele é realizada pelos enunciados dessas duas capas, a relação
~.f:~~~:
..,-/ ._!!/ -, U ~.~
~~ entre imagem, memória e acontecimento político mostra não haver
tanta semelhança assim, em termos de funcionamento discursivo.
Fonte: Lula, Lula (2006). No enunciado da capa de 2003, o acontecimento parece desesta-
bilizar a memória da imagem fundadora dos operários (eles agora
Do mesmo modo que o anterior, este enunciado é composto
podem ter esperança). Já no enunciado de 2006, o acontecimento
pelo sincretismo da pintura, do verbal e da fotografia. O diálogo
da reeleição não tema a mesma força em relação à memória imagé-
estabelecido entre essas três linguagens, emolduradas pela enun- tica desses sujeitos. Olhando para a montagem, fica a pergunta: o
144 145
Pedro Navarro
Pode a imagem falar na análise do discurso político?

que nos fere e o que nos atravessa mais? O rosto feliz de Lula ou as
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz
figuras humanas dos operários, formando um bloco?
Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes; Lisboa: Centro do Livro
Brasileiro, 1972.
4. Concluindo .•.
___ o Isto não é um cachimbo. 3. ed. Rio de janeiro: Paz e
Esses enunciados dizem algo tanto sobre o acontecimento
Terra, 1988.
quanto sobre a prática discursiva jornalística exerci da. Como toda
observação implica uma seleção de alguns dados dentre uma mul- ___ o A ordem do discurso. Tradução de Adalberto de O.
tiplicidade de outros também significativos, é preciso ter em vista Souza. Maringá: da UEM, 1995. (Série Apontamentos, n. 29).
que essa atividade jornalística não está, de modo algum, desvincu-
--~. Estratégia, poder-saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
lada do trabalho subjetivo de interpretação do "real", que demanda
Universitária, 2006. (Coleção Ditos & Escritos, V. 4).
um processo de editoração, a saber: o escurecimento ou o clarea-
mente de tal ou qual ponto, a inserção de imagens por inteiro ou GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na análise do discurso:
não, com a finalidade de torná-Ias mais adequadas, mais convin- diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz, 2004.
centes etc, Trata-se de um trabalho sobre o qual pesa a subjetivida-
de do enunciado r jornalístico. LISSOVSKY, M. Sob o signo do "clic": fotografia e história em
Além disso, essa prática discursiva pode falar alguma coi- Walter Benjamin. In: FELDMAN-BIANCO, B.; LEITE, M. L.
sa na Análise do Discurso, uma vez que coloca o analista diante M. (Org.). Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo
de alguns desafios teóricos e metodológicos relacionados às novas nas ciências sociais. 2.ed. Campinas: Papirus, 2001. p.62- 78.
material idades, como a Imagem fotográfica e a pintura. O desa- LULA, Lula. Carta Capital, São Paulo, Ano 13, n. 417, novo
fio tende a ficar maior, quando essa mesma prática faz montagens 2006.
de sequências enunciativas que conjugam signos heterogêneos.
Pêcheux (1999, p.56) perguntava "Em que pé estamos em relação MILANEZ, N. O corpo é um arquipélago: memória, intericoni-
a Barthes?" E isso motiva outra interrogação (inquietação): como cidade, identidade. In: NAVARRO, P. (Org.). Estudos do texto e
lidar com essas novas materialidades com uma concepção de dis- do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz,
curso como algo da ordem da língua e da ordem da história? 2006, p. 153-179.

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significam as coisas. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 2000. DISCURSO PUBLICITÁRIO
TARSlLA do Amaral. Disponível em: <http://www.historiadaarte.
corn.br/tarsila.html>. Acessoem: 27 jan. 2012.
Denise Gabriel WITZEL

São as mulheres que comandam agora, diz ele [Pierre


Riviêre] para explicar seu crime. A força foi aviltada.
(FOUCAULT, 1977, p.132)

Introdução

Romântica e submissa como esposa; resignada e abnegada


como mãe; perigosa e pecadora como amante. Eis sumariamente
as tradicionais posições do feminino inscrit~s em um sem-núme-
ro de práticas discursivas que falam ainda hoje sobre as mulheres,
que as imaginam e as perscrutam. Dentre essas práticas, quero
chamar a atenção aqui para anúncios de medicamentos que circu-
laram na mídia impressa brasileira em dois momentos distintos:
primeira metade do século XX e recentemente, aproximando-os
de modo a dar a ver os efeitos do atravessamento da memória
na constituição dos discursos e destes na construção de imagens
identitárias do feminino. Parto do princípio de que essas produ-
ções possibilitam entrever as articulações entre discurso, história e
memória que reverberam saberes sobre o que era/é ser mulher aos
olhos da publicidade. Que saberes são esses? O que permanece e
o que é apagado dos discursos pré-constituídos nas propagandas
da atualidade?
148 149
Denise Gabriel Witzel História de mulheres no discurso publicitário

Concentrada, portanto, em um espaço interdiscursivo de proli- concebe o atravessamento pelo inconsciente e a heterogeneidade
ferações e rarefações, silêncios e reverberações, permanências e res- constitutiva dos discursos (AUTHIER-REVUZ, 1982); (ii) há
significações de discursos que há muito inscrevem o sujeito femini- uma inevitável relação entre o interdiscurso - dimensão vertical,
no em um regime particular de visibilidade, normatizado por ideais lugar de constituição do pré-construído - e o intradiscurso -
de conduta e de beleza, discuto neste artigo a constituição histórica dimensão horizontal, lugar de constituição do "fio do discurso."
da mulher. Mais precisamente, analiso três peças publicitárias com (COURTINE, 2009). Assim, entende-se que o discurso é um
o intuito de mostrar que (i) a formação da memória sobre a iden- produto de interdiscursos e o trabalho de recuperação dos senti-
tidade do feminino sempre se deu a partir de certa fixação sele- dos dispersos, bem como dos saberes deslinearizados no inrerdís-
tiva de discursos produzidos pelas/nas relações de poder e pelos/ curso, realiza-se no intradiscurso.
nos sistemas de valores sócio-histórico-culturais; (ii) a publicidade A problemática da articulação entre discurso e memória está
é um dispositivo de poder que produz enunciados inevitavelmente "no cem e das reflexões de Pêcheux em pelo menos dois de seus
ligados à memória coletiva que, por sua vez, desencadeia um movi- textos: Leitura e Memória: projeto de pesquisa (1990) e O Papel da
mento para a memória dos saberes, reproduzindo incessantemente Memória (2007). Em ambos, nega uma abordagem psicologista
jogos de verdade (FOUCAULT, 2006). de memória individual e afirma, no primeiro, que a produção e a
Além dos aportes de Michel Foucault sobre as relações de interpretação de uma sequência discursiva dependem da existên-
poder-saber-verdade e de estudos desenvolvidos em torno das cia de um "[ ... ] corpo sócio-histórico de traços que constituem o
"mulheres ou os silêncios de sua história" (PERROT, 2005), o espaço de memória da seqüência.", e que "[ ... ] o termo interdis-
trajeto analítico da tradição à contemporaneidade será conduzido curso caracteriza esse corpo de traços como materialidade discur-
fundamentalmente pela noção de memória discursiva, tal como ela siva, exterior e anterior à existência de uma sequência dada, na
é concebida no interior da Análise do Discurso derivada de Michel medida em que essa materialidade intervém para constituí-Ia."
Pêcheux. Isso significa partir do princípio de que "[ ... ] o sujeito (PÊCHEUX, 1990, p.289). Propõe integrar os níveis sintáticos,
não é fonte do sentido; o sentido se forma na história através do lexicais e enunciativos mediante uma análise linguística discursí-
trabalho da memória, a incessante retomada do já-dito; o sentido va que considere o interdiscurso (PÊCHEUX, 1990). No segun-
pode ser cercado, ele escapa sempre." (MALDIDIER, 2003, p.96). do, Pêcheux afirma que a memória seria "[ ... ] aquilo que, face
Rechaça-se assim a ideia de um sujeito intencional que estaria na a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabele-
origem do sentido, ao mesmo tempo em que se concebe a ideia de cer os 'implícitos' (os pré-construídos, elementos citados e rela-
que o sujeito é afetado pelo esquecimento, por isso tem a ilusão de tados, discursos transversos, erc) de que sua leitura necessita: a
ser fonte do que diz, mas há sempre um pré-consrruído, algo que condição do legível em relação ao próprio legível." (PÊCHEUX,
fala antes, em outro lugar e independentemente. Porque há sempre 2007, p.52).
já um discurso, os sentidos são incontornavelmente dependentes A pergunta que se coloca diante dessa última definição é: onde
das relações interdiscursivas que constituem redes de memória. estão os implícitos ausentes por sua presença? Segundo Achard
As formulações acerca do conceito de memória discursiva (apud PÊCHEUX, 2007), eles não existem sob uma forma está-
engendram horizontes teóricos que comungam basicamente o vel e sedimentada em algum discurso autônomo. Inscrevem-se na
que se segue: (i) todo discurso é tecido pelo discurso do outro/ articulação dialética da repetição e regularização. Sob a repetição
Outro; toda palavra está sempre e inevitavelmente perpassa- dos implícitos, forma-se um efeito de série do legível que possi-
da pela palavra do outro/Outro. Alteridade a partir da qual se bilita a regularização, "[ ... ] e seria nessa própria regularização que
150 151 .
Denise Gabriel Witzel
História de mulheres no discurso publicitário

residiriam os implícitos, sob forma de remissões, de retomadas e


Do enunciado aos jogos de verdade sobre o feminino
de efeitos de paráfrases." (PÊCHEUX, 2007, p.52). A partir des-
se entendimento, é possível pensar na construção dos estereóti- Em outros tempos, Pitágoras afirmara que "uma mulher
pos, e no caso específico deste estudo, dos estereótipos sobre o em público está sempre fora de lugar" ao que fez eco a voz de
feminino. Rousseau: "toda mulher que se mostra se desonra" (PERROT,
Entretanto, postula-se que a regularização pode ruir sob o peso 2007, p.136). Muitos outros discursos integram essa rede de for-
de novos acontecimentos, produzindo-se uma nova série que con- mulações que, além de terem delineado formas enclausuramen-
segue perturbar ou mesmo apagar a antiga, isso porque o aconteci- to de muitas mulheres do passado, legitimaram a ideia de que o
mento "[...] desloca e desregula os implícitos associados ao sistema mundo exterior, o do trabalho, seria um mundo do homem por
de regularizaçãoanterior." (PÊCHEUX, 2007, p.52). excelência. A sedimentação de verdades como essa sobre a organi-
Em suma, nesse movimento de regularização e desregularização zação do público e do privado resulta, na esteira de Foucault, do
ocorre um jogo de força na memória que visa "[...] manter uma fato que:
regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula, con-
[...] há efeitos de verdade que uma sociedade [...] produz a
fortá-Ia como 'boa forma', estabilização parafrástica negociando a
cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de verda-
integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dís-
de não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de
solvê-lo." (PÊCHEUX, 2007, p.53); visa também ao oposto, per- poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder
turbar a rede dos implícitos, desregularizando-a. tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e
Admitidas as movências na série dos implícitos e, consequen- porque essas produções de verdade têm elas próprias efeitos
temente, o fato de que a memória não pode "[...] ser concebi- de poder que nos unem, nos atam. (FOUCAULT, 2006,
da como uma esfera plena [...] cujo conteúdo seria um sentido p.229)
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório.", mas
Ao pensar especificamente nas produções de verdades cujos
necessariamente como "[...] um espaço móvel de divisões, de
efeitos implicam a normatização dos papéis sociais, é importan-
disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de
te lembrar que para Foucault, as relações de poder não se limi-
regularização; um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmi-
tam aos grandes poderes de Estado ou às grandes dominações de
cas e contra-discursos." (PÊCHEUX, 2007, p.56), interessa ago-
classe;elas "existem entre um homem e uma mulher, entre aquele
ra observar o texto publicitário como um "acontecimento a ler",
que sabe e aquele que não sabe" etc (FOUCAULT, 2006), quer
uma ocorrência linguageira que emerge em um contexto socio-
dizer, entende-se que o poder está pulverizado microfisicamente na
-hisrórico específico.
sociedade, atuando em pequenos enfrenrarnenros, nas microlutas
Considerando prioritariamente que os esquecimentos e as res-
cotidianas. Lutas porque onde há saber, há poder; e onde há poder
sonâncias são efeitos da inscrição da memória nos discursos, vol-
há resistência.
to meu olhar para a materialidade de peças publicitárias tentando
Breve e rapidamente, há que se dizer que o poder, na obra
estabelecer as correlações entre seus enunciados e outros que inte-
foucautiana, adquire pelo menos dois modos de funcionamen-
gram a rede de discursos historicamente formulados, mas esque-
to, nomeadamente "poder disciplinar" e "biopoder". O primei-
cidos. Aqueles que "jazem reclamando sentidos" (GREGOLIN,
ro se concentrou no corpo "[...] como máquina: no seu ades-
2001, p.60).
tramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas
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153
Denise Gabriel Witzel História de mulheres no discurso publicitário

forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na Figura 1 - Cafiaspirina Figura 2 - Cafiaspirina 2 Figura 3 - Aspirina
sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos."
SE A SUA MÃE
(FOUCAULT, 1988, p.151) e fez surgirem verdadeiras institui- ESTIVESSE
ções disciplinares (fábricas, hospitais, escolas, prisões, etc ..) que COM DOR
se multiplicaram e atingiram todo o corpo social. Esse meca- DE CABEÇA
nismo de poder se materializou nos corpos dos sujeitos indivi- NAQUELE DIA.
dualizados, mediante técnicas de controle asseguradas por pro- VOC:~ NÃO
cedimentos que caracterizaram as disciplinas: anátomo-política EXISTIRIA.
do corpo humano. Já o biopoder surgiu porque a modalidade
disciplinar do poder se transformou, no século XVIII, passando
a integrar outras e novas técnicas que se deslocaram do corpo-
-indivíduo para o corpo-espécie, "[ ... ] o corpo transpassado pela Fonte: Bayer (1986). Fonte: Bayer (1986). Fonte: Bayer (2006).
mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos:
a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saú- Em que pesem os diferentes momentos sócio-históricos e, em
de, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições decorrência, os diferentes sentidos e imagens do feminino que essas
que podem fazê-Ias variar." (FOUCAULT, 1988, p.152). Os peças produzem, todas elas possuem um único objetivo: valem-se
efeitos do biopoder se fazem sentir, na contemporaneidade, nas de uma linguagem pretensamente persuasiva, com vistas a tentar
intervenções e nos controles reguladores da população, como a vender o mesmo remédio para curar dor de cabeça. O que é possí-
mídia, por exemplo; aplicam-se não mais nos corpos dos indi- vel dizer sobre os sentidos desse enunciado diferentemente inscrito
víduos, mas em suas vidas. É, pois, uma biopolítica que faz as em cada uma dessas peças, senão aqueles associados à cefaléia, sen-
vezes de uma medicina social. sação desagradável, incômoda com grandes variações de intensida-
Disso se deduz que o corpo é uma questão de poder, e em des, tal como disseminados pelo discurso médico-científico?
se tratando especificamente do corpo feminino, é preciso consid- Considerando que os sentidos não são imanentes, tampouco
erar que historicamente é pela sua sexualidade que as mulheres literais ou transparentes, já que a língua está enraizada na história
vão se constituir em objeto de "problemarízação" (FOUCAULT, e, consequentemente, sujeita à opacidade e ao equívoco, ancoro-
19.88). E, obviamente, essa sexualidade implica uma história do -me em Pêcheux (2006, p.23), para mostrar que a materialidade
corpo feminino cujo percurso não linear vai, grosso modo, da imerge o enunciado dor de cabeça em uma "[...] rede de relações
submissão à emancipação. São justamente os fragmentos dessas associativas implícitas [... 1 em uma série heterogênea de enuncia-
(des)continuidades históricas que constituem as três peças publi- dos, funcionando sob diferentes registros discursivos, e com uma
citárias' abaixo. estabilidade lógica variável." As relações associativas que enredam
o enunciado dor de cabeça provocam deslizamentos que ora repe-
tem aqueles sentidos inscritos na ordem discursiva médica, ora os
deslocam metaforicamente para outras regiões. Em seus múltiplos
1 Essas peças foram selecionadas de um grande corpus formado por
efeitos, o que se nota é que o enunciado dor de cabeça é resgatado
anúncios que integram dois volumes de uma coleção de reclames da Bayer, interdiscursivamente de "discursos subterrâneos" que ligam o femi-
organizados por este empresa e com circulação restrita. nino à sua sexualidade e à sua função reprodutora.
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Denise Gabriel Witzel
História de mulheres no discurso publicitário

Na peça publicitária da figura 1, veiculada em 1938, no jornal


Careta, vê-se uma mulher deitada de bruços, apoiando o queixo falta de calor ou de força, falhou na extrusão. Com sua natu-
reza mais fria e mais fraca, e sua genitália contida internamen-
sobre uma das mãos, deixando o outro braço para fora da cama.
te, as mulheres eram essencialmente equipadas para a criação
Sua postura e aparência demonstram extremo desânimo, fadiga e
de filhos, não para uma vida racional e ativa dentro do fórum
mal estar. Abaixo da ilustração, lê-se:
cívico. As mulheres eram criaturas privadas, os homens eram
Dôr no corpo... LAGRIMAS nos olhos... TRISTEZA no públicos. (PORTER, 1992, p.316).
coração... Soffrer em determinados dias do mês! Que sup-
Aos olhos masculinos dessa época, o sexo feminino era uma ver-
plicio desnecessário! Desnecessario e facilmente evitável,
são incompleta ou deformada do sexo oposto, uma "forma mal-
bastando para fazel-o desappareccer, um ou dois comprimi-
dos de CAFIASPIRINA. Tenha sempre .~ mão. DORES DE cozida", nos termos de Perrot (2007, p.63). Acreditava-se que os
CABEÇA - ENXAQUECAS - MALES FEMININOS homens poderiam se desenvolver até atingirem a perfeição; já as
mulheres, por conta da fragilidade que lhes seria inerente, deve-
Trata-se evidentemente de uma linguagem e de um tempo já riam ficar confinadas à vida doméstica, sujeitas "[...] às gestações
bem distantes, década de 30, mas a volta a essepassado resgata uma sem fim, aos cuidados das crianças, ao envelhecimento prematu-
imagem ainda muito reiterada na contemporaneidade: mulher frá- ro, à exaustâo e frequentemente à morte por doenças do parto."
gil, a despeito de todos os deslocamentos já conquistados nesse (PORTER, 1992, p.316).
domínio. A essa fragilidade, somam-se a sensibilidade - lágrimas Somente a partir do século XVIII é que se deu uma reinrerpre-
nos olhos - e a melancolia - tristeza no coração. ração dessas crenças à luz da medicina e da biologia que propaga-
A rede de memória que a envolve desvela um modo muito vam novas verdades, agora cientificamente comprovadas. Passou-se
singular e emblemático de descrever os males femininos, invaria- a disseminar a ideia segundo a qual haveria duas espécies com qua-
velmente associados às verdades sobre suas funções reprodutoras. lidades e aptidões particulares: "[...] aos homens, o cérebro [...], a
Verdades produzidas na "noite dos tempos" (PERROT, 2005); inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o
mais precisamente quando o corpo feminino foi interpretado coração, a sensibilidade, os sentimentos." (PERROT, 1988, p.I77),
como corpo subordinado, norrnatizado biologicamente com base daí as lágrimas, as tristezas, o suplício de que fala a figura 1. Ao
no modelo masculino, definindo-se, assim, a fragilidade em oposi- apresentar esse tipo de argumento, solidificava-se a dissirnerria
ção à virilidade. sexual e a opressão das mulheres, pois se promovia uma verdadeira
É especialmente em torno do mistério da fertilidade, da estra- domesticação do corpo feminino, mostrando e comprovando que
nha capacidade de a mulher gerar a vida humana que se concen- ela deveria ser afastada da vida pública e profissional e limitar-se ao
tra a gênese do saber histórico sobre a identidade do feminino. Tal núcleo da esfera privativa do lar. E lá elas ficavam ancoradas "[...]
inquietação fez com que no tempo de Aristóteles, por exemplo, ela em seus corpos frágeis, doentes, histéricos que se devia proteger e
fosse vista como uma versão muito inferior do homem, uma infe- esconder." (PERROT, 2005, p.491).
rioridade que, segundo Porter, a sociedade legitimou ao interpretá- OUtro ponto a considerar é que, em função da descoberta dos
-Ia como ovários e da natureza do ciclo menstrual, descobriu-se igualmen-
[...) machos defeituosos ou monstruosos, seres nos quais a te que não havia razão para as mulheres serem consideradas como
genitália (designada para ser do lado exterior do corpo), por um ser sexualmente ativo. Surgiram, então, as convicções de que
não era necessário nenhum estímulo para as mulheres conceberem;
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Denise Gabriel Witzel História de mulheres no discurso publicitário

"elas tinham apenas que servir como receptáculos." (PORTER, ordenou a prisão do profeta, mas não pôde matá-lo, porque ele era
1992, p.317). No desdobramento dessa verdade, que dessexualizou tido como santo. Salomé então vai provocar isso. Durante um ban-
a mulher, irrompeu um maior controle sobre ela, sobretudo por- quete ela dançou e deixou Herodes tão fascinado que ele prometeu
que passou a ser associada à figura sacralizada da mãe, espelhan- dar-lhe o que ela quisesse. Atendendo ao capricho da mãe, Salomé
do a santa e virgem Maria. Vale acrescentar que assim concebida, pediu a cabeça de João Baptista sobre uma bandeja e teve seu dese-
a mulher passou a assumir especial relevância, porque assegurava jo prontamente realizado.
uma melhor ordem social e moral-religiosa. O mito dessa mulher de extrema beleza, por quem um sobera-
Os vestígios desse modo de ver e interpretar o sujeito feminino, no perdeu a razão e sucumbiu a seus encantos, inspirou incontáveis
justificado pela sua fraca constituição física e de sua sensibilidade re-leituras que circulam em diferentes rnaterialidades', mantendo
à flor da pele, estão claramente expostos na construção imagéti- com o discurso fundador relações de paráfrases, inversões e/ou
ca da mulher da figura 1, que reitera os estereótipos calcificados deslocamentos. Sendo os sentidos repetidamente (r) estabelecidos,
na premissa de que: "vós não sois nada além de vosso sexo." e este Salomé representa um estereótipo da sedução, incorporando ideais.
sexo é "frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doença." de feminilidade altamente valorizados em muitas práticas discur-
(FOUCAULT apud PERROT, 2005, p.497). O enunciado dor de sivas que integram nosso cotidiano. Quem são, então, as Salomés
cabeça se inscreve nessa rede de formulações e, juntamente com evocadas pelo jogo intertextual instalado na publicidade capazes de
a enxaqueca e os males femininos? assegura na material idade o provocar as terríveis dores de cabeça de que fala o texto?
legado histórico, passado de geração a geração, da suposta patologi- Novamente, é preciso retornar à "noite dos tempos" para
zação da mulher que sofre principalmente naqueles dias. compreender que paralelamente à existência daquelas mulheres
A segunda peça publicitária, que circulou em 1950, em Eu sei frágeis, encarceradas nas funções domésticas, outras reinavam
tudo, apresenta uma versão completamente antagônica dessa ima- no imaginário dos homens, preenchendo suas noites e ocupan-
gem de fragilidade ao recitar o mito da mulher perigosa por sua do seus sonhos. Se as primeiras se espelharam na virgem e san-
beleza e por sua sensualidade. Junto à sequência "Dores célebres da ta Maria, as segundas tomaram os ensinamentos de Eva, a que
história - Salomé não somente dava 'terríveis' dores de cabeça aos representa "a origem do mal e da infelicidade, potência notur-
homens, como fazia cortar a cabeça aos santos.", desenha-se uma na, força das sombras, rainha da noite" (PERROT, 1988, p.168)
mulher - Salomé. A seu lado e a seus pés, há uma bandeja sobre a responsável pela queda e pela morte. E é, como sempre, sobre o
qual se exibe uma cabeça - a de João Batista - e uma espada. Um corpo e a sexualidade feminina que incidem esses saberes, uma
terceiro personagem se encontra mais ao fundo, debruçado sobre vez que esse corpo se desloca de sua fragilidade e dos "males" que
as mãos, dando a entender que está 'morrendo' de dor de cabeça. lhe seriam inerentes; desloca-se igualmente do espaço austero do
Intertextual e interdiscursivamente, na tentativa de produzir lar conjugal, passando a ser objeto de desejo. Trata-se, então, de
certo efeito de humor, essa peça ressignifica ~ famosa história da um corpo desvelad~, exibido e erotizado que começa a ganhar
personagem bíblica tal como consta no evangelho de S. Marcos, no visibilidade e dizibilidade em diversas práticas discursivas, espe-
Novo Testamento. Embora Salomé tenha ficado conhecida como cialmente na mídia publicitária, a partir da década de 50.
a personagem central desse episódio, a trama se desenvolve na ver-
dade em torno da mãe, Herodíades. Esta se casou "em segundas 2 Dois exemplos: essa história foi recontada na pintura de Caravaggio,
núpcias" com Herodes, irmão do primeiro marido, provocando a Salomé com a Cabeça de São João Batista (1609-1610) e ressignificada nas
indignação de João Baptista que a acusava de adultério. Herodes páginas do livro Salomé, de Oscar Wilde (1892).

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Denise Gabciel Witzel
História de mulheres no discurso publicitário

Os fios do discurso da figura 2 se entrelaçam com essa rede de


Insurgindo-se contra toda forma de opressão baseada nas nor-
memória, emaranhando-se às verdades que fizeram do corpo femi-
mas de gênero, o movimento feminista da década de 70 é consi-
nino um objeto cultural extremamente ambíguo, contraditório e
derado um divisor de águas na história das mulheres. Em meio a
misterioso por concentrar em si o bem e o mal, a virtude e o peca-
discursos sobre a emancipação, igualdade e autonomia, a questão
do. Nessa interdiscursividade, é possível verificar que o discurso
da contracepção (ter ou não ter a criança? conceber ou não?) figu-
publicitário em questão, ao evocar a figura de Salomé e os implí-
ra de modo ímpar. A esse respeito, Perrot (2007, p.69) retoma os
citos a ela atrelados, reproduz a imagem de mulher fatal: aquela
preceitos religiosos, para lembrar que no passado a maternidade era
que se submete aos desejos masculinos, mas que, ao mesmo tempo,
uma espécie de fatalidade: "[ ...] a mensagem do anjo Gabriel era
provoca, administra e controla os prazeres (SOHN, 2008).
válida para todas as mulheres que passavam, todas ou quase todas,
Sobre os efeitos de sentido de dor de cabeça cerceados nessa pela anunciação, desejada ou temida, da maternidade próxima."
rede de formulações, importa relembrar Pêcheux (2006, p.53), A transposição da fatalidade para a escolha, ou seja, a dissociação
quando ele afirma que "[ ...] todo enunciado é intrinsecamente sus- entre sexo e procriação a partir do controle feminino da contra-
cetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar dis- cepção constitui, no entendimento daquela historiadora, a grande
cursivamente de seu sentido para derivar para um outro." Assim, revolução do século 20.
paralelamente ao efeito de mal estar físico contra o qual o remédio Décadas depois, assiste-se ao fato de que as sociedades e os cos-
anunciado é indicado, o sentido de dor de cabeça desliza para o tumes seculares mudaram e, consequentemente, desencadearam-se
campo da sedução, associando-se à moral indesejada de um corpo outras verdades sobre o corpo feminino, interpretado na atualidade
que emerge como efeito da construção discursiva. A ambiguidade como um corpo sexuado. Dos inúmeros deslocamentos que a escri-
mostra que este corpo apresenta as marcas da transformação histó- ta da história das mulheres registra, importa sublinhar a negação
rica de um corpo que precisava ser protegido, resguardado, repri- com relação aos interditos de ordem cristão-religiosa, como por
mido e, não raro, castigado para um corpo dessacralizado que pre- exemplo, a ideia de que a sexualidade deveria ser "[ ...] circunscrita
cisa aparecer e parecer inspirador de desejo e lugar de sexualidade. ao casal legítimo, destinada essencialmente à reprodução e inimiga
"Se a sua mãe estivesse com dor de cabeça naquele dia, você não da concupiscência." (SHON, 2008, p.112). Na contramão, emer-
existiria - Homenagem da Aspirina aos Dias das mães." é a sequên- gem os discursos que tematizam o direito ao prazer de todos (liber-
cia da última peça publicitária, que circulou na F de S. Paulo, em dade), a recusa de uma sexualidade sob pressão (transparência) ea
1997. São as construções discursivas sobre o tema da maternidade, erosão do pudor (SHON, 2008).
vista historicamente como "[ ...] fonte da identidade e fundamento Os sentidos da peça 3 se entrecruzam com tais discursos, na
da diferença reconhecida, mesmo quando não vivida." (PERROT, medida em que arregimenta os saberes que afrouxaram a tensão
2007, p.68), que dão a ver uma terceira imagem do feminino des- entre as normas de controle social e os desejos do corpo sexuado.
viante tanto da fragilidade quanto da sedução. Discursivizada agora Fala-se no domínio público, onde obviamente a publicidade circu-
como mulher-mãe em sua relação com as contemporâneas formas la, de uma prática até pouco tempo interdita e circunscrita na vida
privada. Tal interpretação é possível a partir do enunciado dor de
sócio-histórico-culturais de viver e de querer a maternidade, retor-
cabeça, que ali assume pelo menos dois sentidos: um que nova-
nam especialmente alguns traços históricos do movimento feminis-
mente estabiliza aqueles outros advindos do discurso médico, asso-
ta que preconizava, por exemplo: "um filho se eu quiser, quando eu
ciado ao mal estar físico; e outro que os desestabiliza, remetendo ao
quiser, como eu quiser", ou ainda, "nosso corpo nos pertence".
senso comum, aos discursos anônimos que circulam no cotidiano
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Denise Gabriel Wittel História de mulheres no discurso publicitário

segundo os quais a mulher dissimula, mente que está com dor de tando generalizações e dizendo aos leitores-consumidores o que é
cabeça para evitar o cônjuge. cerro e o que é errado de modo que esses leitores se descobrem e se
Esse duplo sentido assenta-se especialmente no fato de que se identificam com as imagens ali construídas.
trata de uma "homenagem" pelo dias das mães. A metáfora mobi- Para encerrar estas reflexões, quero recuperar minha epígra-
lizada rompe, de um lado, com o estereótipo de boa-mãe, sempre fe para dizer que os lugares femininos reproduzidos nos discursos
associada ao sagrado, portanto dessexualixada; reverbera, de outro, publicitários aqui analisados, noradarnenre as figuras de mulher
o reconhecimento das conquistas, como se enunciasse: "parabéns frágil, sedutora e mãe emancipada do jugo masculino (ainda que
pela emancipação". esta última se desloque das imagens tradicionais, ela permanece
Por conta desse deslocamento, vale associarmos tudo o que foi como exemplo de boa mãe), não resumem os lugares ocupados
dito até aqui sobre a peça 3 com a seguinte apreciação de Michel pelas mulheres na história. Isso porque muitas se desviaram dessas
Foucault acerca da moral sexual e dos estilos de vida, em um posições, na medida em que resistiram, construíram outros pode-
momento de suas reflexões quando ele "se mostra mais sensível à res e agiram, não raro, de forma opressora, a exemplo da mãe de
diferença entre os sexos e à desigualdade de seus poderes, que obri- Ríviêre,
ga as mulheres à astúcia e à recusa": O caso desse parricida, que afirma em seu memorial redigido
em 1835: Eu, Pierre Riuiêre, que degolei minha mãe, minha irmã
A mulher podia fazer toda uma série de coisas: enganar (o e meu irmão (FOUCAULT, 1977), é exemplar para ilustrar tanto
homen), surrupiar-lhe o dinheiro, recusar-se sexualmente. Ela
as representações de poder instaladas justamente no lâcus domés-
sofria, no entanto, um estado de dominação, na medida em
tico, quanto as representações transgressoras de mãe e esposa. Em
que tudo isso era apenas um certo número de ardis que não
linhas gerais, como sintetiza Perrot (2005), Rivíêre desenvolve
conseguiam nunca alterar a situação. Mas em caso de domina-
uma repulsa pela mãe e pelo poder que ela possuía. Ele a descreve
ção (...) o problema é, de fato, saber onde se forma a resistên-
como um ser perdulário, que recusava o comércio carnal e o leito
cia. (FOUCAULT apud PERROT, 2005, p.232)
comum; além disso, controlava as despesas do marido e possuía
No caso analisado, a resistência se formou, em parte, na dissi- suas próprias economias. Diante e contra essa mulher, Riviêre
mulaçâo, na convincente dor de cabeça. pondera:

Não é justo, pois, que eu deixe viver uma mulher que perturba
Considerações finais a tranquilidade, a felicidade de meu pai ... - Aliás, é tempo de
Funcionando como uma caixa de ressonância de verdades his- construir um exemplo para derrubar a moral deste século( ...)
desta nação, que parece ter tanto gosto pela liberdade e pela
toricamente construídas, a publicidade, sem dúvidas, é um impor-
glória, obedece às mulheres. (FOUCAULT, 1977, p.202).
tante dispositivo que forja identidades, na medida em que se cons-
titui em uma "[...] fonte poderosa e inesgotável de produção e Claro está, acredito, que a mãe de Riviêre pagou muito alto por
reprodução de subjetividades, evidenciando sua sofisticada inserção ter transgredido as regras de um sistema forjado no poder patriar-
na rede de poderes que criam as sujeições do presente.", segundo cal. É sem dúvida uma em meio a tantas que se instalaram na ten-
Gregolin (2008, p.95). Dito de outro modo, a publicidade é lugar são poder-resistência de que fala Foucaulr, mas que ficaram bem
de enunciação onde se encenam representações sociais; em seu distantes, em silêncio, da história de mulheres no discurso publi-
funcionamento discursivo, fixa determinadas identidades, apresen- citário.
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Denise Gabeiel Witz.el
História tÚ mulheres no discurso publicitário

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