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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

ANNA PAULA DOS SANTOS MAIA

“HÁ FLORES EM TUDO O QUE EU VEJO”


Uma interpretação dos poemas de Yosano Akiko e a influência do Hanakotoba

RIO DE JANEIRO
2022
1. INTRODUÇÃO

Hanakotoba, ou linguagem das flores, é o termo utilizado para descrever os diversos


tipos de significados, mitos e crenças que as flores e plantas carregam. Na literatura japonesa,
esses elementos são utilizados como formas de marcar estações e meses, falar sobre sentimentos
e ornamentar ambientes. Em determinados excertos, é ainda necessário que o leitor tenha um
conhecimento mais aprofundado sobre o assunto, visto que o uso de nomenclaturas botânicas
pode ser bastante diversificado.

Nos poemas de Midaregami, de Yosano Akiko, ao abordar temas como juventude, arte,
amor e individualidade, a autora não se restringe quanto à utilização das mais variadas espécies
de plantas e flores. Dessa forma, os poemas são descritos com vividez e uma harmoniosa
ambientação. Além disso, apesar da temática “juvenil”, os versos são carregados de uma
sensualidade e ousadia que rompem com o estilo tradicional de tanka da época. Através dessa
ruptura, Yosano recebeu muitas críticas, mas também se tornou muito conhecida por sua
antologia de 399 tankas.

Neste trabalho, realizaremos a interpretação de cinco poemas que fazem parte da


antologia Midaregami, explicitando a possível motivação da autora em utilizar plantas e flores
para adornar seus versos.

2. INTERPRETAÇÃO DOS POEMAS

2.1. Flor de camélia

flor de camélia
também a flor de ameixa
ambas são brancas
mas meu pecado vejo
só na cor do pêssego
(NATILI & FALEIROS, 2007)

O eu-lírico inicia o poema comparando duas flores – a flor de camélia e a flor de ameixa.

Na versão original do poema, em japonês, essas flores são chamadas de “椿” (tsubaki) e “梅”

(ume), respectivamente, e segundo SHIRANE (2012), a flor de camélia e de ameixa são típicas
da primavera. Essa primavera, que corresponde à uma das estações do ano, também pode
corresponder à primavera da idade, ou seja, a juventude, período marcado por antíteses, como
a inocência e libertinagem, o receio e o despudor.

Dessa forma, a escolha das cores das flores também não é feita de forma inconsciente.
De acordo com o dicionário de Hanakotoba, a flor branca de camélia representa “beleza nobre
e incontestável”, e a flor branca de ameixa representa “graça e elegância”. Esses significados,
intrinsecamente ligados à uma ideia de pureza, contrastam com a cor do pêssego – “桃” (momo)

- que, apesar de não ser traduzido como flor, pode ser associado a partir do contexto. As flores
de pêssego possuem um tom rosado, e significam “eu sou sua vítima (do amor)”, além de, desde
os tempos antigos, serem associadas ao gênero feminino.

Logo, quando o eu-lírico diz que só enxerga seu pecado na cor de pêssego (“mas meu
pecado vejo / só na cor do pêssego”), ele parece querer se afastar das cores brancas, porquanto
elas, possivelmente, querem suprimir o seu amor “eros”. Já as flores de pêssego se harmonizam
perfeitamente com o estado de espírito e sentimento da poeta.

2.2. A primavera

a primavera
penso nesta peônia
de sangue ou de amor
passo a tarde sozinha
incapaz de poemas
(NATILI & FALEIROS, 2007)

No poema “A primavera”, a flor em destaque, peônia – em japonês “牡丹” (botan) –

significa nobreza, riqueza e honra, mas também amor e beleza feminina. Segundo NATILI
(2007), “um dos temas de Midaregami é a vida das damas de corte do período Heian”. Sabe-se
que, durante esse período, a influência chinesa nas artes e literatura era muito expressiva, de
forma que, ao utilizar a peônia, flor que já foi símbolo nacional da China, Yosano pretende
remeter à época da aristocracia. Não é difícil compreender o porquê dessas assimilações, visto
que isso pode ser um reflexo da atuação da própria poeta como tradutora de obras clássicas do
período Heian, como o famoso Genji Monogatari.
Assim, conseguimos traçar o seguinte cenário para “A primavera”: uma cortesã, durante
a era Heian, apreciava as flores de peônia, provavelmente sozinha em seu aposento e
observando-as com uma certa distância. No entanto, em vez de cumprir a tarefa de escrever
poemas, o eu-lírico é tão absorvido pelas flores que não consegue compor (“passo a tarde
sozinha / incapaz de poemas”. Nesse trecho, há, ainda, um tipo de metalinguagem, enquanto a
poeta relata a incapacidade de escrever poemas através do próprio poema.

2.3. Na chuva vernal


na chuva vernal
encharcado chegaste
a meu abrigo
à noite um rosto feliz
em rosa flor de maçã
(NATILI & FALEIROS, 2007)

O terceiro poema a ser interpretado é introduzido pela chuva de primavera, ou “春雨”

(shun’u), caracterizada por ser uma chuva fraca e silenciosa. Enquanto chove, o eu-lírico está à
espera de alguém, possivelmente seu amante. Quando ele chega, encharcado pela chuva
primaveril, ela o recebe com um rosto feliz e de tonalidade rosada, comparando o rosto à uma
flor de maçã.
Originalmente, a flor de macieira – “海棠” (kaidō) – representava, na poesia chinesa,

“uma mulher sofrida que não se preocupava com a maquiagem” (NATILI, 2007). No entanto,
Yosano opta pelas flores de tom rosado para ressignificar seu sentido clássico, criando a
imagem de uma mulher alegre e ansiosa pelo seu amado. Esses sentimentos são refletidos no
rosto rosado da moça (“à noite um rosto feliz / em rosa flor de maçã”).

2.4. Lá mergulhada
lá mergulhada
no fundo da nascente
a flor de lírio
corpo de vinte verões
vejo assim tão bonito
(NATILI & FALEIROS, 2007)
Segundo as crenças cristãs, a flor de lírio representa Virgem Maria, mãe de Jesus,
mulher que gerou um filho sem ter nenhum tipo de relação carnal. Logo, a flor estaria
intimamente ligada à uma ideia de pureza e castidade.
No entanto, de acordo com o dicionário de Hanakotoba, diferentemente da visão
ocidental, alguns dos significados do lírio seria a vaidade, beleza e luxúria. A poeta, ao falar de
si, compara-se à uma flor de lírio (“百合” – yuri), exaltando sua beleza e jovialidade (“corpo

de vinte verões / vejo assim tão bonito”). Além disso, a forma como seu corpo possivelmente
nu é descrita revela um tom de narcisismo que age como “uma forma de contestação contra a
figura remissiva da mulher e contra a convenção poética que vetava falar-se do corpo feminino”
(NATILI, 2007). Dessa forma, subverte-se o conceito de “modéstia” das mulheres japonesas e
rompe com pensamentos conservadores da época.

2.5. Chega o outono


chega o outono
o meu viver parece
pequeno e estreito
feito também as flores
áster e lespedeza
(NATILI & FALEIROS, 2007)

Diferente dos poemas observados anteriormente, o outono toma o lugar da primavera e


invade os versos, preenchendo-os com tristeza e solidão, de modo que o eu-lírico se sente
melancólico ao falar de sua vida (“chega o outono / o meu viver parece / pequeno e estreito”).
As flores áster (“紫苑” – shion) e lespedeza (“萩” – hagi) podem significar solidão e nostalgia,

e sua tonalidade arroxeada contribui para esses sentimentos.


Assim, ao comparar o seu viver com as flores, e introduzir o outono substituindo a
primavera, a poeta percebe que seus anos de juventude estão se esvaindo. Logo, as flores da
primavera, com cores vivas e chamativas, não podem mais representar sua vida. A cor roxa,
mais sóbria, se aproxima ligeiramente melhor de seu estado de espírito.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das interpretações dos poemas que este trabalho contempla, pretende-se trazer
uma maior visibilidade à influência do Hanakotoba, ou linguagem das flores, na poesia
japonesa, e como esse tipo de linguagem ajuda a construir o cenário e sentimentos que o poeta
planeja transmitir.
Dentro dos estudos japoneses, é de conhecimento geral o papel desempenhado pela
natureza nas artes e na literatura, e muitas antologias clássicas, como o Man'yōshū e o Kokin
Wakashū, utilizam esses elementos para criar elos entre os seres humanos e a vividez do mundo
natural. Assim, Yosano Akiko se apropria e subverte esse recurso, criando mais de 300 tankas
que compõe a antologia Midaregami.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIETZ, S. Theresa. The Complete Language of Flowers: A Definitive and Illustrated History.
New York: Wellfleet Press, 2020.

NATILI, Donatella. Comentários. In: YOSANO, Akiko. Descabelados. Tradução de Donatella


Natili e Álvaro Faleiros. Brasília: Editora da UnB, 2007.

SHIRANE, Haruo. Japan and The Culture of the Four Seasons: Nature, Literature, and the Arts.
New York: Columbia University Press, 2012.

YOSANO, Akiko. Descabelados. Tradução de Donatella Natili e Álvaro Faleiros. Brasília:


Editora da UnB, 2007.

花言葉 – 由来, 2019. Disponível em: < https://hananokotoba.com>. Acesso em: 12/03/2022.

「牡丹の季節はいつ?春牡丹・寒牡丹・冬牡丹など品種別の開花時期をご紹介」.
Botanica, 2020. Disponível em: < https://botanica-media.jp/508>. Acesso em: 12/03/2022.

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