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Olhos de Coragem

Tessa Olivier

- Boa sorte, meu filho.


Ariê sabia que sua mãe estava tentando se fazer de forte para não deixá-lo ainda mais
nervoso. Mas os olhos de uma mãe não enganam. Ele próprio estava nervoso, nunca
imaginou que chegaria tão longe na Batalha da Conquista, ainda mais no duelo final.
- Obrigado, mãe.
Pensou em lhe dizer “até mais tarde”, mas estava com uma sensação tão ruim no
fundo do seu estômago, que só pode dar um simples agradecimento. Queria poder dizer mais
a Haikka, que durante aqueles 150 anos foi sua mãe e mestre. Mas olhar para Haikka lhe deu
vontade de chorar e os dragões não gostavam de chorões. Ariê precisava manter a
compostura no último embate.
- Estou pronto.
O seu comando fez levantar as grades e o dragão serpenteou até a arena. Rudá, seu
oponente final, já estava sobrevoando o cercado e rugindo em resposta à ovação dos súditos.
Ele era o favorito. Filho do atual rei dragão, Murdurion. Este, estava sua posição de destaque,
onde podia visualizar toda a arena que daria um sucessor à coroa de Ogedras. Para o espanto
de Ariê, a atual possuidora da Chama do Conhecimento, conselheira e antiga rainha estava do
lado de Murdurion, Brettá, a Sábia.
- ARIÊ!!
Rudá o avistou e voou em sua direção. Parecia até profético: o príncipe de Ogedras,
de raça nobre; o dragão vindo do estrangeiro, um pária, no duelo final da Batalha da
Conquista. Dois rivais que se detestavam desde a infância, agora disputam a coroa.
- E aí, Cobrinha? Preparado?
- Sim.
- Ainda dá tempo de desistir e não passar vergonha, Cobrinha.
- Nem pensar.
- Oh? Que tal deixar as coisas bem mais interessantes?
- Como assim?
Rudá se aproximou do adversário, olhando no fundo de seu olhos:
- O perdedor deixa Ogedras.
- O quê?
- Isso mesmo que você ouviu, Cobrinha… cansei de ver alguém da sua raça manchar
o reino. Uma cobra que nem dragão é…
- Eu sou um dragão.
- NÃO É! - rosnou Rudá – Você é uma aberração trazida de algum lugar por Draicon!
Quando eu acabar com você, irá se arrastar para o seu “papaizinho” no Vale das Pedras!
Ariê rosnou. Não podia deixar Rudá brincar com a sua mente. Ia calar a boca dele.
Draicon não era seu pai. Era o motivo pelo qual ele foi odiado por toda Ogedras desde que
eclodiu do ovo.
- Ótimo. Aceito o desafio.
Rudá gargalhou.
- Como se uma aberração pudesse derrotar um legítimo filho de Ogedras…
- DRAGÕES! - rugiu Murdurion – PRONTOS PARA O DUELO?
- Pronto! -responderam os dois rivais.
- Ótimo… COMECEM!!
E foi quando toda Ogedras sumiu sob uma nuvem de poeira.
Ariê pensou que fora um ataque de Rudá, até ouvir a voz confusa do adversário o
acusando da mesma coisa. Pode ouvir ao longe os gritos e os rugidos da plateia e a voz
autoritária de Murdurion pedindo calma e até os rosnados de Haikka as suas costas, que
estava impedida de ver onde o filho estava. Ariê procurou se concentrar e percebeu que podia
enxergar além da poeira. Rudá sobrevoava a arena perdido e raivoso, assim como os demais
dragões que procuravam entender o de onde veio aquela poeira misteriosa.
No palanque, Murdurion e Brettá ainda tentavam manter a ordem, até uma sombra
surgir atrás dele.
- ATRÁS DE VOCÊS! - berrou Ariê.
Seu alerta foi em vão: a sombra atacou e um rugido de estourar os tímpanos se fez
ouvir. O rei foi atacado fatalmente nas costas. Brettá escapou por pouco, mas foi atingida no
rosto pela cauda espinhosa do atacante e ficou fora de combate. O estranho dragão soltou
uma risada maldosa e pulou na arena, que a fez tremer.
- ARIÊ! ISSO É OBRA SUA, SEU MALDITO??
- NÃO, RUDÁ! VOCÊ ESTÁ INDO NA DIREÇÃO DA COISA…!!
O dragão pegou Rudá pela calda em pleno ar e o atirou com força no chão. De onde
estava, Ariê não podia ver se o rival estava vivo ou apenas desmaiado. Engoliu em seco
quando percebeu que o dragão vinha em sua direção.
- Pirralho irritante… ora, o que temos aqui?
Ariê nunca tinha visto aquele dragão, mas no seu íntimo tinha um bom palpite de
quem era.
- Draicon…
- Bom, muito bom, garoto.
- ARIÊ?? QUEM ESTÁ AÍ COM VOCÊ??
- Ah, essa voz… me traz lembranças tão doces… mas também o amargo de traição.
Quem diria que Haikka cuidaria do ovo que eu trouxe de minhas viagens após me trair?
- ARIÊ!
- SILÊNCIO, MULHER! Cuido de você depois. Agora… seu filhotinho será meu
aperitivo…
Mesmo apavorado, Ariê assumiu sua postura de combate. Draicon era um dragão
velho, mas todas as suas escamas emanavam poder. Não tinha certeza que poderia derrotar o
antigo tirano de Ogedras, mas precisava segurá-lo até os dragões conseguirem organizar uma
resistência.
- É inútil esperar ajuda, moleque. Aperfeiçoei meu poder durante quinhentos anos,
minha poeira bloqueia todos os sentidos. Estive guardando forças para poder soprá-la por
todas Ogedras, mas… curioso!
Os dois dragões se encaravam e andavam em ciclos, estudando um ao outro. Ariê
esperava não demonstrar tanto medo quanto sentia.
- Você consegue ver além da minha poeira. Interessante… boitatás são mesmo uma
raça curiosa.
- O quê?
Draicon riu.
- Então você não conhece sua própria raça? Ah, não me admira… eu que te trouxe
para cá ainda no ovo, garoto… um pequeno troféu do duelo mais difícil que enfrentei, em
uma das minhas viagens ao confins do mundo.
“Deixe-o falar, se concentre em encontrar alguma fraqueza” pensou Ariê consigo
mesmo. “Apenas se concentre, não importa o que ele diga. É só mais um valentão que adora
contar vantagem...”
- Viajei a uma terra quente, mas repleta de verde e ouro em seu interior. Lá encontrei
um dragão diferente de todos o que eu tinha visto. Quando perguntei que diabos ele era, disse
que era um boitatá e como eu ri, garoto! Que nome ridículo para um dragão! O desafiei para
um duelo ali mesmo. E devo reconhecer, o maldito era poderoso mais do que qualquer dragão
que já enfrentei. Ele absorvia todos os meus ataques e os devolvia com mais força. Além de
tudo, emitia um brilho que era capaz de deixar qualquer um cego. Mas ele tinha uma
fraqueza…
Mais uma vez, Draicon gargalhou com a memória.
- O ninho! Ele protegia um ninho! Ele tinha algo a perder e me aproveitei disso. Ao
proteger seu ninho, abaixou a guarda e o matei. E para compensar, peguei o único ovo que
permaneceu intacto.
Ariê rosnou ao sorriso prepotente de Draicon.
- Ah, mas eu voltei fraco desse duelo. Por isso fui expurgado do meu trono quando
voltei. Brettá, essa cobra caduca, arranjou força não sei da onde para me derrotar. Mas
enquanto ela relaxava na paz e deixava outros dragões receberem a coroa nessa Batalha da
Conquista idiota, EU fiquei mais forte. Agora, prepare-se, garoto! Vamos ver se é digno do
poder dos boitatás!
Draicon cuspiu uma torrente de brasas, que Ariê desviou. O dragão mais velho podia
ser forte, mas era grande e lento. O boitatá serpenteava pela arena, desviando dos ataques e
vez ou outra cuspia chamas azuis de sua boca, que mal causavam dano no adversário.
Draicon ria e provocava, gritando ofensas a Ariê, a Haikka e toda a Ogedras, que mal podia
ver o que estava acontecendo.
“Ele é só mais um valentão!” pensou o boitatá desesperado “Alguém que só sabe se
vangloriar! Resista, você pode enfrentar seu orgulho tolo”
Ariê parou e encarou Draicon. Lembrou de toda a humilhação que sofreu por causa
daquele dragão, tendo que viver como um pária, tratado como aberração por todos. Se
lembrou de todas as vezes que foi atacado por Rudá e seus amigos, ridicularizado até não
aguentar mais. Precisa se lembrar daquela sensação, quando decidiu que nunca mais ia fugir e
peitaria seus inimigos de frente, como ensinou sua mãe adotiva.
“Concentre. Você já fez isso antes. Agora com um dragão bem maior...”
O boitatá precisava se vingar. Se não fosse por Draicon, teria uma família e um reino
onde ele não era uma aberração. Por causa do tirano, precisou lutar sempre para ter um pouco
de respeito. Escolheu entrar na Batalha da Conquista para mostrar que era um dragão digno.
E até isso aquele maldito tirou dele.
- MORRA!
Ariê fechou os olhos e recebeu em cheio o ataque. Era doloroso, mas precisava
canalizar energia por todo o seu corpo para resistir ao choque. Sentiu suas escamas
dominarem as brasas, as levou para o fundo de seus olhos e lá as concentrou com força. O
boitatá não podia ver, mas agora suas escamas brilhavam como o sol, dissipando a poeira.
Toda a Ogedras via seu antigo tirano e seu pária na arena.
- Impossível… -murmurou Draicon.
O boitatá abriu os olhos e um brilho intenso cegou o velho dragão, que rugiu de dor.
- Draicon… isso é por tudo o que fez a mim, minha mãe e Ogedras: DESAPAREÇA!
Ariê disparou uma potente rajada de fogo pelos olhos que atingiu Draicon, cujo corpo
desapareceu sob as chamas até seus gritos se cessarem. Exausto, Ariê desmaiou.

- Meu filho…
- Mãe?
- Não exagere, Ariê… você fez um grande esforço…
- E… Draicon?
Haikka ajudou o filho a se levantar. Onde esteve o tirano agora havia uma pilha de
cinzas fumegantes. Ariê podia sentir os olhares assombrados dos dragões sobre si. Engoliu
em seco. Achou que havia exagerado um pouco.
- Ariê! -Haikka ofegou.
Uma flâmula dourada brilhava sobre a cabeça do filho.
- O que?
- Ah, meu filho…
Antes que Haikka pudesse dizer o que era, Brettá posou com dificuldade diante deles.
A dragão idosa estava ferida, mas bem.
- Senhora… -disse Ariê se curvando.
- Erga-se, Ariê. Draicon pode ter tentado frustrar a Batalha da Conquista ao matar
nosso rei e atacar os duelistas. Mas isso só serviu para a Chama do Conhecimento escolher
seu novo senhor: um dragão diferente, que mesmo vindo de outra terra, provou seu valor ao
se livrar de uma vez por todos do nêmesis de nosso reino.
Os dragões se deram conta da presença da pequena flâmula sobre a cabeça do boitatá
e começaram a ovacionar e bater suas asas e garras.
- Mesmo que Ogedras só tenha mostrado hostilidade ao diferente, ainda assim Ariê
lutou para proteger sua casa com bravura e um grande poder. - continuou Brettá - Resta
alguma dúvida de sua dignidade e nobreza? Portanto, Ogedras, temos um novo rei sábio e
poderoso: ARIÊ, O CAMPEÃO DA CHAMA DO CONHECIMENTO!

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