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Caso clínico

P. tem 10 anos, é o irmão mais velho de uma família com 3 filhos. Dos 4 anos
até os 8 anos, a família de P. viveu na Inglaterra, sendo que, o início dos atendimentos
se deu poucos meses após o retorno ao Brasil.
A demanda inicial do caso partiu principalmente da escola (foi a instituição que
me indicou), uma vez que no ambiente escolar, P., mostrava-se bastante desatento e,
em alguns momentos, inibido diante dos questionamentos da professora. “Era como
se ele congelasse quando as atenções se voltavam para ele” (sic). Contudo, este
comportamento se restringia ao contexto escolar, já que, em casa mostrava-se
agitado, extrovertido, falante e brincalhão.
Nas primeiras entrevistas com os pais, surgem questões diferentes das
relatadas pela escola: P. se preocupa excessivamente com a segurança de sua mãe,
fica a todo momento querendo saber onde ela está e se está bem; não tem conseguido
dormir sozinho em seu quarto e relata ter medo de monstros que viu em um filme com
um primo mais velho.
O início do atendimento ocorreu no meio do segundo semestre de 2019, com a
chegada da pandemia em 2020, os atendimentos são interrompidos por alguns meses
e retornam presencialmente por volta do meio do ano. Nesse retorno, P. aumentou
consideravelmente a intensidade da angústia em relação às preocupações com a mãe.
Naquele novo momento, P. não estava conseguindo mais ficar tranquilo se estava em
um andar da casa diferente de sua mãe. Seus pais não conseguiam sair sozinhos, pois
P. ligava para eles a cada 10 minutos para saber se a mãe estava bem. Todos os dias
quando sai da escola e não era sua mãe que o buscava, P. ficava muito ansioso até
conseguir falar com ela.
Apesar da intensidade dessa angústia, vou percebendo com o passar do tempo
que a manutenção dos atendimentos ocorre muito mais pelas demandas da escola do
que pela angústia de separação com a mãe. Não que os pais não reconheçam essa
questão, no entanto, a cada virada de semestre, foi necessário que a escola
assegurasse a necessidade dos atendimentos para que a análise desse continuidade –
entendo que a forma como os pacientes (principalmente crianças) são encaminhadas
influenciam diretamente nas transferências com os pacientes e pais. No presente caso,
era nítido o papel que a escola tinha como fiadora dos atendimentos, como se eu
estivesse diretamente ligado ao corpo profissional da instituição, penso que haveria
aspectos desses “barulhos transferenciais” para nos aprofundarmos e
problematizarmos, no entanto optei por não aprofundar mais esse tema nessa
monografia.
Os atendimentos com P. perduraram até o meio do ano de 2022, por hora as
sessões estão interrompidas. Não acho impossível, mas algo bastante delicado –
escrever e teorizar sobre um caso em andamento – de forma que me sinto mais a
vontade de falar sobre P. sem estar atendendo-o.

Em sessão

P. entra na minha sala pela primeira vez mais quietinho, mas querendo explorar
a gama de jogos e brinquedos disponíveis. Rapidamente parece sentir-se a vontade
comigo e começa a se mostrar mais naturalmente. Me chama a atenção como a
descrição que os professores e coordenadores da escola fazem de P. não condiz com a
forma como ele se apresenta a mim no consultório. Isto por si só não é nenhuma
novidade, muitas crianças agem de forma diferente quando têm a atenção de um
adulto voltadas somente a elas, mesmo assim, foi notável perceber a energia de P. na
forma como corria em minha sala, pulava no divã e, principalmente, no mundo interno
que começou a trazer através de uma brincadeira com bonecos que nos acompanhou
ao longo de grande parte das sessões.
A brincadeira mencionada consistiu em uma história com bonecos que
continuava ao longo das sessões como se estivéssemos criando uma série de tevê com
capítulos. Não era em todas as sessões que mantínhamos esse plano, contudo, foi bem
frequente continuarmos a história que íamos fabricando juntos. Na verdade, o que se
mantinham eram os personagens, as aventuras ocorriam normalmente com começo,
meio e fim a cada sessão. No fim das sessões imitávamos uma voz engraçada (mais
grave que normalmente narra os trailers de filmes), como por exemplo: “no próximo
capítulo teremos a continuação da fuga da rainha do crime” (sic).
A rainha do crime e sua gangue eram os personagens preferidos de P., as
histórias transcorriam em diferentes cenários como a escola, uma casa, a prisão, a rua,
mas o enredo normalmente era o mesmo, meus personagens eram atacados pelos os
de P. Dentre os meus personagens havia alguns que se repetiam, um policial, um
boxeador, crianças alunos de uma escola, uma professora e robôs que tinham que
fugir dos planos malévolos da rainha do crime. Havia um prazer imenso na ação de
destruir os meus personagens, sendo que, em duas vezes ele chegou a danificar algum
objeto, após isso mostrava-se arrependido e se desculpava. Por mais que os meus
personagens bolassem estratégias criativas, a rainha do crime sempre apresentava
alguma ideia que iria se sobrepor às minhas defesas.
Durante muitas sessões me perguntava qual era a função desse jogo que
ocorria entre nós – pergunta essa que me faço em quase todas as sessões com
crianças -, às vezes me sentia com menos ânimo de entrar nesse jogo de um aparente
gozo da pura destruição, mas aos poucos pude ver alguns deslocamentos. Chegou um
momento em que a rainha do crime foi presa, a partir daí, a lógica das histórias mudou
um pouco, não havia mais aquela clara dicotomia entre ele como agressor e eu como
“saco de pancada”, juntos pudemos deslocar nossos lugares, as vezes éramos de um
mesmo time e, o próprio P., podia na mesma brincadeira representar os personagens
que eram amigos ou inimigos da rainha do crime. Passamos também a inserir nas
sessões jogos com regras como futebol de botão e pega varetas.
Em paralelo as sessões com P., tive algumas sessões com seus pais. A ideia
principal dessas conversas era de conseguir pensar o porquê dessa angústia diante da
separação com a mãe. Tentei trazer a importância do papel do pai de P. tanto na
necessidade de fortalecer o vínculo com o filho quanto em ajudar os dois nessa difícil
separação que tinha sido ainda mais dificultada pelas contingências da pandemia.

Problema de pesquisa

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