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Ficha de leitura

O fio das Missangas- contos


Apreciação do processo de leitura
Primeira vez a ler algo de Mia Couto. Até agora, apenas um livro de
contos. Uma opinião concreta em relação à escrita do autor ? Não tenho
nenhuma. Nem muito formada, nem muito fundamentada, visto que
nunca li nenhum romance ou outro tipo de narrativa de Mia. *
Relativamente a esta obra, não posso dizer que adorei, pois com toda a
honestidade, só um ou dois contos é que captaram a minha atenção. No
entanto, foi um livro fácil de ler e achei particularmente interessante a
tradução não ser feita na totalidade, deixando ainda bastantes marcas de
discurso Moçambicanas e vários significados de certos vocábulos
presentes no glossário. Espero iniciar brevemente o romance "O Outro
Pé Da Sereia" que se encontra ali na minha estante à espera que eu me
decida, e assim poderei certamente desenvolver melhor a minha
apreciação em relação à escrita de Mia Couto!

* Não me querendo justificar , eu digo isto porque não acho muito justo,
digamos assim, julgar um autor logo na primeira obra que lemos do
mesmo. Ainda para mais, sendo um livro de contos -não querendo de
forma alguma desvalorizar o trabalho ou a dedicação na elaboração de
um livro de contos. Apenas sou da opinião de que, um romace ,por
exemplo, seria algo muito mais "palpável" para dar a oportunidade de
criar algum tipo de opinião em relação ao autor. Por esse motivo, espero
conseguir ler e analisar "O Outro Pé Da Sereia" para adicionar ao meu
portefólio, onde até poderia elaborar uma pequena comparação entre
ambas as obras.

( A exceção mais bonita que eu já li na minha vida )


"O menino que escrevia versos"
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(versos do menino que fazia versos)
Análise do conto
Ação
O conto "O menino que escrevia versos" é sobre um menino que era
considerado problemático por representar as suas emoções através da
escrita. Os pais julgavam que esse problema tinha surgido por frequentar
a escola e se dedicar aos estudos em demasia, logo decidiram levá-lo a
uma consulta médica com a finalidade de curar essa "doença". Depois do
médico lhe perguntar " -Dói- te alguma coisa?", o menino respondeu
dizendo, " - Dói- me a vida, doutor." Este afirmava não ter uma vida e, por
essa razão, o menino escrevia e sonhava sem parar, porém, os pais não
entendiam e continuavam a insistir nessa mesma consulta. Depois de
analisar os versos, o médico sugeriu que o menino fosse internado na
sua clínica dentro de uma semana pois era mais grave do que se
pensava. Contudo, o médico rendeu- se aos versos do menino.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes
ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa
pode escutar a voz pausada do filho do mecânico qua ia lendo, verso a verso,
o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
- Não pare meu filho. Continue lendo ...

Espaço
A ação passa-se no consultório, que não é muito caracterizado, pois o
principal objetivo do conto é relatar a "doença" do menino . Para além
disso, só sabemos que o consultório existe, porque o filho foi consultar
um médico e no final do conto essa ideia é confirmada: "Que ele mesmo
assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o
menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.".

Tempo
Não há qualquer indicação temporal na qual a ação se insere.

Personagens:
O conto possui quatro personagens: o pai, a mãe (Dona Serafina), o
médico e o filho ( o menino).
O pai era mecânico. Preguiçoso, não gostava da escola e era um pouco
ignorante, visto que não conhecia muitas realidades diferentes da dele, o
que fica claro na seguinte passagem: "O pai da criança, mecânico de
nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia
motores, interpretava chaparias. Tratava- a bem, nunca lhe batera, mas a
doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias".
Nesta citação, o narrador mostra que o pai não tinha qualquer contacto
com a escrita, daí a razão que leva o pai a pensar que o facto de o seu
filho escrever era algo negativo.
A mãe, por outro lado, era a favor do estudo e realmente estava
preocupada com o filho, porém, obedecia ao seu marido sem hesitar. Na
seguinte passagem, fica claro o desespero dela em relação à urgência da
famosa consulta : "A mãe, em desespero, pediu clemência."
O médico aparece como um homem preocupado que concorda com os
pais, e que acha que o filho realmente tem algo de diferente, porém, ele
afirma não ter tempo para analisar algo como isso: "Mas nem chegou a
começar. O doutor interrompeu: - Não tenho tempo, moço, isto aqui não é
nenhuma clinica psiquiátrica."
Algo que me intrigou bastante foi que, entre todas os personagens, Mia
só deu nome à mãe, o que fez com que todas as outras fossem apenas
conhecidas pelas suas funções (pai/mecânico, médico e filho/filho do
mecânico). Na minha opinião isso acontece porque a mãe era a única
que realmente se preocupava com o menino. Ela era a única que tinha
uma ligação forte com ele, fazendo com que ela fosse a única
personagem relevante para o filho. "E riu- se acarinhando o braço da
mãe."
Nesse conto existem três personagens que são personagens- tipo e uma
personagem redonda. As personagens- tipo são, na minha opinião, o pai,
a mãe e o filho, pois todos eles não mudam de atitude, de opinião nem de
perspetiva durante todo o conto. A personagem redonda seria o médico,
que no início do conto achava estranho um menino escrever versos,
porém não ligava muito e alegava não ter tempo para "problemas
psiquiátricos". No entanto, no final este insiste para que o menino
continue a ler, o que demonstra que mudou de ideia em relação aos
versos e à escrita do menino que outrora fora um problema, mas que
agora se tornou tão belo.

Narrador:
O narrador narra na 3ª pessoa, pois este só aparece na narrativa para
descrever ações ou personagens. O modo com que este narra faz com
que certos factos sejam explicitados. Numa passagem, o narrador diz
que o pai queria que o médico "afinasse o sangue, calibrasse os pulmões
e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira", deixando
clara a ignorância que o pai tinha em relação a outros assuntos que não
fossem relacionados com mecânica. Essa opinião permanece durante
todo o conto. **
Além de deixar clara a ignorância do pai em relação aos estudos, o
narrador também mostra como o pai não sabia nada sobre as pessoas.
Para ele, o seu filho era uma máquina programada que deveria fazer o
que os meninos (também programados) faziam naquela idade. Porém,
ter conhecimento dos versos que o filho escrevia , era quase como se o
mecânico se deparasse com um problema de funcionamento num carro ,
por exemplo, daí essa enorme necessidade de consertar esse "erro".
** O narrador acaba por dar um certo ênfase à "vergonha familiar" e à
ignorância do pai o que demonstra que em toda a sua vida este apenas
adquirira conhecimentos de mecânica . Para isso, o narrador utiliza
diversas metáforas, tais como: " Queria tudo. Que se afinasse o
sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível
do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não
importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar."

Indicação e opinião sobre o tema principal do conto ( Moral


do Conto)
Claramente este conto é uma crítica alargada a todos os pais que
impedem os seus filhos de seguir os seus sonhos e se serem quem
realmente são. Muitas vezes ambos os pais criam uma expectativa em
relação aos seus filhos e quando estes não seguem esse caminho,
digamos assim, por vezes, tencionalmente ou não, estes fazem- nos
sentir como se fossem uma desilusão para os mesmos, uma "vergonha
familiar" como é referido o menino neste conto, por exemplo.
Neste conto a partir da sua infelicidade em relação à vida, o menino
utiliza como refúgio, como desabafo e como confidente: a escrita. Este
sente- se desolado, insatisfeito e de certa forma triste com o facto de os
seus pais acharem que este precisa de um psicólogo apenas por
escrever poesia. No fundo, os próprios pais -essencialmente o pai-
fazem- no sentir como se fosse uma "vergonha familiar" o que para uma
criança é diícil de ouvir. O médico ao aperceber- se da situação sugere
que o menino fique na clínica, para este se poder expressar sem ser
julgado ou criticado. Penso que a moral do conto é mesmo dedicada a
todos os pais que não ouvem os seus filhos, que os rebaixam e
humilham por fazerem aquilo que gostam. Porém, há sempre alguém que
nos vai ouvir e aceitar como realmente somos e essas pessoas sim,
valem a pena.

*Amor, nós sempre vivemos assim! Fomos criados assim! No meu tempo
sempre foi assim! Sempre vivi assim! Fui criado assim!Para quê mudar
quando está tudo bem? O nosso filho também tem que ser assim. Tem
que tirar boas notas para fazer isto, para ganhar dinheiro, casar- se, não
pode ser homosexual, vamos ter netos e pronto. Tem que ser assim. Não
pode ser de outra forma. Assim é perfeito. Se não for assim já viste a
vergonha? O que vão pensar de nós se o nosso filho não fizer nada
disto?*
Nem sempre os pais têm culpa. Muitos deles sempre foram criados de
forma a que para eles a palavra "mudança" não faça sentido ou nem
sequer conste no seu dicionário, o que não facilita na maioria destes
casos. É preciso realmente muita força de vontade para conseguir ter
uma mentalidade mais aberta, o que devo admitir, que não é tarefa fácil
pois hoje em dia a juventude já não é o que era. Muitas vezes é só puro
medo que os filhos partam para o desconhecido, mas faz parte da vida. A
aventura faz parte. E cada filho e filha no mundo tem que ter
possibilidade de fazer o que gosta, de acordar feliz com a pessoa que
tem ao lado, com o trabalho que tem, com a cidade onde vive e com o
ambiente que os rodeia. Nada deve ser forçado. Existe um caminho para
todos nós. Só tem que ser encontrado. À primeira? Nunca na vida. À
segunda? Também não. É preciso bater com a cabeça na parede as
vezes que forem precisas. Faz parte. Um dia aprendemos e seguimos a
nossa vida. Pais , não se preocupem. Faz parte. Prometam estar lá para
nós se cairmos. Mas nós levantamos- nos e vamos chegar lá. Isso
prometemos nós.

Na aula anterior (14/03/15), foi combinado que, hoje (19/03/15), seria trabalhado dois contos
do Mia Couto. Fiquei responsável por trazer um deles, O Menino que escrevia versos. Algum
tempo antes, entre conversas de intervalo, comentei com uma colega que, por sinal, é
escritora, acerca desse conto e prometi lhe enviar. Dias depois recebi a resposta que
reproduzo aqui: 98 Figura 7: Reprodução de E-mail Fonte: LEVANTAMENTO DE CAMPO. Março
de 2015 Os alunos, ao receberem o texto com uma foto do autor, ficaram surpresos ao ver que
“o autor é homem, e não uma mulher”, como pensavam. Outra surpresa foi o fato dele ser
“branco”, “olhos azuis”, “cabelo bom”. Há uma aluna que já lera o texto em outra disciplina e
que ressalta a beleza do conto, corroborando para que os demais se interessem. A leitura
arrebata a atenção dos alunos, todos, a exceção de um, ao celular, leem o texto. Ao fim da
primeira leitura, alguém indaga: “esse menino era gay?”. Algumas alunas sugerem que sim,
outras, dizem que: “é o pai que acha que o menino é gay”, outra, diz que o médico é pedófilo,
por isso aceitou tratar do garoto de graça. Para contextualizar: o mote literário do conto gira
em torno de um “miúdo” que rabisca um caderninho de poesia. Um dia, aparece nos cantos da
casa uns versos que o garoto assume ser o autor. “Tudo corria sem mais, (...) Mas eis que
começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho
confessou, sem pestanejo, a autoria do feito”. O ambiente, a princípio, pouco suscetível ao
surgimento de uma sensibilidade literária, pode ser visto como, de algum modo, hostil, já que
o núcleo familiar é composto pelo pai, representante de 99 uma ordem simbólica dominante,
aquele que organiza, administra, em uma palavra: o provedor, seja pela categoria de gênero,
seja pela profissão: mecânico, uma função que demanda força, virilidade, “macheza”. O que
acaba por asfixiar o filho que não parece demonstrar interesse por seguir os seus passos. Do
outro lado, temos a figura da mãe, apresentada pelo narrador como submissa, obediente ao
marido. O pai do garoto, “mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara
uma página (...)”. Ao invés de incentivar os estudos do filho, faz exatamente o oposto. Diz que
aquilo [a escrita de versos] já era demais, “(...) Havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era
coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias”. Em conversas de corredor, um
colega me falou algo muito parecido. O pai dele dizia que: Estudá num dava futuro. A gente
morava na roça, logo quando meus pais se separaram fui embora com minha mãe, mudamos
de estado e toda vez que ele ligava me chamava pra ir morar com ele e trabalhá na roça que
estudá num tinha futuro. Interessante notar como o enredo cativou os leitores. Mais que isso,
fisgouos. Então, o que explicaria alguns textos serem mais bem aceitos que outros? O que faz
alguns leitores se identificarem mais e outros, menos? Um mesmo texto pode afetar
igualmente e causar sentimentos parecidos em diferentes leitores? Esse texto, em particular,
teria sido bem recebido por dialogar com a realidade de alguns alunos daquela turma? O tom
amistoso de recepção ao conto se deu, porque “é mais menos isso que a gente vê”, disse uma
aluna, se referindo à forma como algumas pessoas veem os estudos. Não raro, alguns sujeitos
parecem ver pouca importância na escola, o que, em partes, pode explicar a primeira reação
do pai ser “tirar o miúdo da escola”. Esse trecho ventila já uma perspectiva daquilo que seria
ser homem para determinados sujeitos, em determinadas sociedades, de determinadas
estratos sociais. O trecho a seguir do conto de Mia Couto é revelador: “Pois o rapaz, em vez de
se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda,
escrevia versos”. É-nos sugerido que a atitude de homem, mesmo para um garoto em pré-
adolescência, é “se lançar no esfrega-refrega com as meninas”, “ser homem” seria, então,
dialogar, constantemente, desde a mais tenra idade com a virilidade, “seduzir e conquistar
garotas?” Alguém perguntou. Se um jovem assim 100 não se porta, sua masculinidade pode
ser questionada, é o que dizem. “O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador
entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?” A aula se dirige
para a discussão de gênero. Ouço alguém perguntar “por que o homem desde pequeno é
levado a ser pegador e a mulher, se fizer isso é galinha?” O homem para se afirmar como tal,
necessariamente, teria de ser um garanhão, para usar um dito popular. Essa é uma questão
que “pega fogo” na sala, majoritariamente pela parte feminina. Em conversas de corredor, um
colega me colocou a seguinte questão: “por que se um cara der um fora em cinco meninas vão
dizer que ele é gay, mas se uma menina disser „não‟ pra dez caras ninguém vai achar que ela é
gay?”. Discutimos por algum tempo e a única conclusão óbvia que chegamos foi a de que esse
seria um ônus do machismo, uma vez que o homem, por ser homem, não poderia „perder‟
nenhuma chance de se mostrar o „macho alfa‟. Assim, se ele apresenta algum
comportamento diferente do que se espera dele, sua sexualidade pode, eventualmente, ser
questionada. E o inverso não acontece, já que as meninas seriam educadas para serem
„difíceis‟, porque se ela for „fácil‟, possivelmente, será mal falada.

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